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RElAçõES conTEmpoRânEAS: moda e cultura, o designer Ronaldo Fraga e suas coleções literárias

Adriana Dornas1 Marcelina das Graças de Almeida2

RESumo

A sociedade contemporânea demanda a criação de padrões e tendências de consumo, exigindo dos criativos um despojamento permissível às artes e aos produtos industriais. Neste sentido, o artigo pretende compreender a dinâmica criativa do designer de moda Ronaldo Fraga em sua originalidade, além de tentar destacar as características que o faz representativo no mundo da moda. Foram analisadas duas coleções bem como a análise da produção intelectual relacionada ao perfil do profissional. Conclui-se que atuação de Fraga tem sido de inovação, explorando os traços culturais da sociedade brasileira, recriando e ressaltando aspectos que demonstram os valores e a identidade que marcam a mesma.

palavras-chave: design brasileiro, moda, diversidade cultural

AbSTRAcT

Contemporary society demands the creation of patterns and consumer trends, requiring from creatives an allowable stripping to arts and industrial products. In this sense, the article seeks to understand the creative dynamics of the fashion designer Ronaldo Fraga in its originality, and try to highlight the features that makes him representative in the fashion world. We analyzed two collections and his intellectual production related to the professional profile. It concludes that Fraga’s actions have been innovative, exploring the cultural traits of Brazilian society, andrecreating and highlighting aspects that demonstrate the values and the identity that mark itself.

Keywords: brazilian design, fashion, cultural diversity

1 Mestre em Design e docente na Escola de Design, UEMG. E-mail: [email protected] Doutora em Historia e docente na Escola de Design,UEMG. E-mail: [email protected] .

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INTRODUÇÃO

Ao analisar o percurso da sociedade contemporânea no quesito consumo de produtos industrializados, observa-se uma tendência na aceitação de soluções estético-técnico-funcionais, em geral, evidenciados pela história e cultura de seus designers. Obviamente, tais requisitos não são os únicos, especialmente em países como Brasil, onde houve um forte apelo da industrialização advinda de países emergentes. Tal fato é confirmado por Moraes, ao ressaltar o desempenho das multinacionais em solo brasileiro, levando-o à industrialização e distanciando-o das referências do design local. O autor relembra a frenética busca de soluções projetuais industrializáveis concomitante com a baixa estima do design brasileiro, ocasionado especialmente no período do regime governamental militar. Por sua vez, na década de 1980, chamada de pós-militar, o designer prenunciava erguer a bandeira “contra a indiferença das multinacionais com suas estratégias de lucro fácil e falta de apreço pela causa do design local” (MORAES, 2013, p. 78).

Para Roizenbruch (2009), em meados da década de 1990, o design brasileiro se vê inserido na pós-modernidade e globalização. Vê-se claramente a absorção do domínio cultural e das questões identitárias na dinâmica de criação, reforçando a produção e originalidade dos designers locais.

Laraia (2001) afirma que cultura é um processo cumulativo e o homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Por isso, ele torna-se herdeiro desse processo que é proveniente de experiências adquiridas ao longo de muitas gerações que o antecederam, desenvolvendo a partir daí valores próprios.

O resultado criativo advindo desse contexto culminará, sob o ponto de vista de Lahire (2006), em sua maioria, na formação do produto com influências culturais sintetizadas, subjetivas e sutis. Ele acredita que a fraca ou forte legitimidade que um campo cultural proporciona pode ser delimitado pelo aprofundamento ou não que o designer faz, mas, em geral, isso não acontece na íntegra. Isto porque conceitualmente cultura é algo construído, somado e variante – o que por si só já impossibilita a imposição de formas.

Neste contexto, o design que, até então, tinha a função de concretizar “uma ideia em forma de projetos ou modelos” (LÖBACH, 2001, p. 16) encontra-se influenciado por uma história ou cultura, assumindo formas múltiplas e mutáveis, “fruto de uma sociedade pós-moderna que associa o local e o global”, caraterizando-se como multicultural (ROIZENBRUCH, 2009, p. 33).

Nesse sentido, pretende-se apresentar a dinâmica criativa do designer de moda de Minas Gerais Ronaldo Fraga, em duas coleções que utilizam a obra de dois reconhecidos escritores mineiros, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e Guimarães Rosa (1908-1967). Além de demonstrar como, em várias coleções, ele estabelece um diálogo com a cultura brasileira.

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DESign, culTuRA E iDEnTiDADE: RElAçõES conTEmpoRânEAS

No que diz respeito ao uso dos elementos culturais na dinâmica da criação no design, é importante ressaltar que a transferência de signos é feita através das informações passadas e das presentes no meio social. Lahire (2006) entende que essa transferência gera características muito próprias e sutis nos elementos criados.

Por outro lado Santana (2001, p. 170) mostra que, de um modo geral, o homem, diante de suas necessidades de autoafirmação, tende a modificar algumas bases dessa herança, tornando a cultura possível de mutação. Para ela, cultura é “um produto da atividade humana”, portanto, não é estática. Finalmente, para Laraia (2001), cultura é um processo cumulativo e o homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Por isso, ele torna-se herdeiro desse processo proveniente de experiências adquiridas ao longo de muitas gerações que o antecederam.

Para o autor, no final do século XVIII, o termo germânico Kultur era utilizado para simbolizar o conjunto de aspectos espirituais de certa comunidade, enquanto a palavra Civilisation (de origem francesa), referia-se às realizações materiais de um povo. Estes termos foram então sintetizados pela primeira vez por Edward Tylor (1832-1917), no vocábulo inglês Culture, palavra utilizada para definir um conceito complexo que incluiria conhecimentos, crenças, moral, leis, costumes, expressões artísticas, ou qualquer outro tipo de hábito que um indivíduo poderia adquirir como integrante de uma sociedade, criando uma simbologia cultural.

Podemos destacar que o sujeito pós-moderno desenvolve-se justamente a partir da desestabilização entre a relação do eu com a sociedade. Assim, esse sujeito define-se como não tendo uma identidade fixa, essencial ou imutável. “A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’ formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 2000, p. 16).

No Brasil, por exemplo, essa modificação é em parte ocasionada pela pluralidade de origens sociais e étnicas, característica da formação histórica do país e de sua dinâmica sociocultural. Ribeiro (1995) vem reforçar: a identidade étnica e a configuração cultural do Brasil vieram se formando “destribalizando índios, desafricanizando negros e deseuropeisando brancos”. Desta maneira, podemos perceber na afirmação anterior que a formação multicultural, multireligiosa e multiétnica do país levou a um sincretismo que se vê presente na base da cultura brasileira. Assim, essa multiculturalidade aparece em cenários onde a pluralidade de origens sociais e étnicas são inúmeras (RIBEIRO, 1995, p. 179).

Em um ambiente multicultural, as interferências entre culturas devem ser encaradas como parte de um processo natural do seu amadurecimento; todavia, a coexistência de culturas não

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deve ser vista como busca do predomínio ou da sobreposição de umas em relação a outras. A inter-relação entre diversas culturas, que é a fusão entre diferentes tradições culturais, pode ser vista como uma forma natural de evolução das sociedades, promovendo a criatividade, produzindo novas formas de cultura e até mesmo contestando as identidades do passado. Ono (2004) considera que as influências multiculturais de uma sociedade geram uma cultura material capaz de criar produtos com significados particulares que refletem os valores e referências culturais dessa sociedade.

Diante do exposto, refletir sobre a influência das multiculturas na dinâmica criativa do design brasileiro hoje torna-se pertinente, afinal, parte-se do pressuposto que a sociedade contemporânea tem perdido seus referenciais de identidade através do processo de globalização, o que a leva, por outro lado, a uma busca ávida por produtos cuja identidade e cultura possam estar explicitadas.

O antropólogo Keesing (1974), em seus estudos sobre a cultura, considera que é possível entendê-la sob duas correntes: 1) aquela que considera cultura como um sistema adaptativo, ou seja, padrões de comportamento sociais transmitidos e adaptados em comunidades humanas de acordo com os estilos de vida; 2) uma teoria idealista dividida em: cultura como sistema cognitivo, ou seja, um sistema de conhecimento; cultura como sistemas estruturais onde se define cultura como um sistema simbólico que é a criação acumulada da mente humana; cultura como sistema simbólico onde cultura é um sistema de símbolos e significados compartilhados pelos membros de uma sociedade.

Entretanto sob o ponto de vista da simbologia, Arantes (1981) afirma que os elementos culturais não significam nada se tratados individualmente, ou seja, só se tornam legítimos quando se conceituam participantes de um grupo. As variadas compreensões destes elementos inseridos nestes grupos são chamadas de eventos culturais. A partir daí, a cultura torna-se atividade concreta, passando por um jogo político divergente de segmentos sociais, adequando-se ao contexto de cultura como produto.

Assim, Hall (2000) entende que uma identidade:

[...] é formada na interação entre o ‘eu’ e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o ‘eu real’, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades que os mundos oferecem.(HALL, 2000, p. 11)

Deste modo, o conceito de identidade transita entre o interior do indivíduo e o exterior que o influencia. O indivíduo, com sua identidade própria, é composto não de uma única, mas de várias identidades. À medida que os sistemas formadores de identidade cultural se multiplicam os indivíduos se esforçam para se identificar de forma única dentro de uma “identidade possível” (HALL, 2000, p. 12).

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Por outro lado, Berger (1998, p. 112) afirma que “[...] as identidades são atribuídas pela sociedade”. Neste caso, é preciso que a sociedade as sustente com regularidade. Um indivíduo não pode ser humano sozinho e, aparentemente, não pode apegar-se a qualquer identidade sem o amparo da sociedade. As concepções estabilizam os sujeitos e os mundos culturais. Santos ressalta que a identidade de um povo não é rígida ou imutável; ela se constrói e se modifica na sequência de um constante processo de transformação (SANTOS, 2005).

A diversidade cultural aparece em cenários onde a pluralidade de origens sociais e étnicas caracterizam a formação de um ambiente e da dinâmica sociocultural de uma sociedade. Num ambiente como esse, as interferências entre culturas são entendidas como parte de um processo natural do seu amadurecimento. No entanto, a coexistência de culturas não deve ser vista como busca do predomínio ou da sobreposição de umas em relação às outras. A inter-relação da diversidade é a fusão entre diferentes tradições culturais e pode ser vista como uma forma natural de evolução das sociedades, promovendo a criatividade, produzindo novas formas de cultura e até mesmo contestando as identidades do passado (HALL, 2000).

Na realidade, a identidade não é consequência direta da diferença cultural, mas das interações dos grupos sociais e dos procedimentos que estes utilizam para apresentar tais diferenciações. O território local passa então a representar os limites físicos de uma determinada identidade cultural, cujas fronteiras são construídas socialmente. (FLORES, 2002)

O próprio conceito de território refere-se a uma identidade cultural coletiva. Segundo Teófilo (2002), território

[...] tende a ser uma microrregião com claros sinais de identidade coletiva compreendendo um número de municípios que mantenha uma ampla convergência em termos de expectativas de desenvolvimento, articulado com novos mercados, e que promova uma forte integração econômica, e social, ao nível local (TEÓFILO, 2002, p. 47).

Semprini (1999) destaca que o território multicultural é, antes de tudo, um espaço de sentido onde circundam símbolos de uma sociedade. Um país pode ser considerado território multicultural quando formado por diversos povos e culturas que convivem e trocam informações. Barbosa (1998) caracteriza esse cenário de multicultura ativa.

O resultado disso são produções com forte apelo cultural oriundos das comunidades que os produzem em seus respectivos territórios. Todavia, é importante ressaltar que tais favorecimentos criativos precisam ser trabalhados com cautela; afinal, é necessário ater-se à originalidade e riqueza de significados dessas culturas. Para Krucken (2009), esse é um caminho muitas vezes seguido por diversas áreas. O design, por exemplo, tende a unir técnica e conhecimento em projetos repletos de elementos culturais e simbólicos.

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Kistmann (2001) pondera que o design contemporâneo pode ser denominado como híbrido; isto porque ele se reporta, da mesma forma, ao processo moderno de produção e às bases tradicionais típicas das culturas locais. A autora ressalta que a aproximação do tradicional e do moderno não é um consenso, permanecendo em constante discussão, principalmente por ainda existirem produtos com essa configuração que não tenham resolvido totalmente seus processos produtivos.

Podemos perceber que no campo atual do design, identidade, cultura, diversidade cultural e globalização ocupam uma posição ímpar no cenário atual e, assim, podemos destacar:

O percurso feito pelo design brasileiro dentro de um cenário de reconhecida multiculturalidade legitima-o, portanto, como um laboratório a ser conhecido e levado em consideração por todos os que querem prospectar novos modelos no âmbito da disciplina do design, dentro da segunda modernidade e dentro do controverso fenômeno de globalização mundial. Procurar entender o paradigma brasileiro, com toda sua energia e pluralidade intrínsecas, é, em hipótese, uma maneira de refletir sobre as novas e possíveis estradas para o design no mundo global (MORAES, 2013, p. 78).

Pode-se dizer que o conceito de design na modernidade tornou-se muito complexo, levando os produtos a se adaptarem às diversidades. Nessa perspectiva, ele vem mediar produção e consumo, tradição e cultura, inovação e qualidade.

ESTUDO DE CASO – ROnAlDO FRAgA: REpRESEnTAnTE DE Um BRASil não cARicATo

A seguir será brevemente apresentada à trajetória artístico-profissional de Ronaldo Fraga no cenário brasileiro, seus trabalhos e algumas de suas experiências criativas. Posteriormente faremos uma descrição do estudo de caso propriamente dito, e da influência multicultural brasileira em sua obra, e por fim, destacamos duas de suas coleções de inverno 2005 e verão 2006∕7. Podemos perceber uma grande expressividade e originalidade em seu traço, o que o faz conhecido pela pesquisa em seu trabalho e principalmente o olhar atento e de preocupação em destacar personalidades e características da cultura brasileira.

O critério do estudo de caso se apoiou em menor proporção no entendimento da obra do designer, no que diz respeito às formas de inspiração/criação, materiais utilizados, técnicas de acabamento da costura, mas nos debruçamos principalmente nos conceitos desenvolvidos nestas duas coleções. O requisito de escolha foi sua significância na trajetória da marca Ronaldo Fraga, bem como, a aproximação dos critérios conceituais dos dois trabalhos, que podemos chamar de: Duas Coleções Literárias, pois o próprio designer destaca: “moda e literatura são dois instrumentos para escrever, e contar a história” (FRAGA, 2012, p. 73).

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breve histórico sobre a vida e obra de Ronaldo Fraga

Ronaldo Fraga nasceu em Belo Horizonte no dia 27 de outubro de 1966 e é formado pelo curso de estilismo da UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais, com pós-graduação na Parson’s School of Design de Nova York e vários cursos livres na Saint Martins School de Londres. Em 1997, no evento promovido pelo Phytoervas e MTV, ganha o prêmio de Estilista Revelação de 1997, apresentando a coleção “Álbum de Família” e “Em nome do Bispo”. Em 2001, estreou no São Paulo Fashion Week, com a coleção “Rute-Salomão”, uma estória de amor fictícia entre um judeu ortodoxo e uma cristã; a partir daí passa a ser reconhecido como um estilista com grande contribuição para a moda brasileira.

Uma marca em todos os seus trabalhos é estabelecer um diálogo entre cultura, principalmente a brasileira, com o mundo contemporâneo, em toda a sua complexidade. Ao longo de sua carreira, estabeleceu uma ligação com projetos sociais e projetos de geração de emprego e renda com cooperativas e comunidades diversas. Sua primeira coleção recebeu o nome de “Eu amo coração galinha” e foi promovida no inverno de 1996; desde então vem, com regularidade, exibindo seu talento e criatividade. Suas coleções infringem as normas estilísticas vigentes e a proposta de suas roupas ultrapassam os códigos comuns que exaltam a sexualidade, as tendências fáceis, o mundo comercial e mundano. As coleções de Fraga propõem discussões mais profundas sobre o lugar da moda no contexto da diversidade cultural brasileira. O mesmo acredita que:

[...] escolher um objeto de pesquisa para uma coleção de moda pode ser como definir um tema ou uma “estória” para cinema, teatro, ópera, quermesse ou enredo para escola de samba. Quase sempre, na busca por narrativas para a moda, mergulha no universo da literatura e da música brasileira, da cultura popular e nas histórias absurdas do homem comum. (FRAGA, 2012, p. 269)

Para tanto, Fraga desfilou algumas de suas coleções no Chile (2006), no Japão (2008), na Inglaterra (2009), no México (2010), na Colômbia (2010) e na Holanda (2011). Participou da mostra When lives become form, no Museu de Arte Contemporânea de Tóquio, e do Festival Cultural de Amsterdam (2011). Foi também eleito, em 2011, representante da moda no Conselho do Ministério da Cultura e recebeu o prêmio Trip Transformadores, em reconhecimento ao trabalho realizado pela valorização da cultura brasileira.

Duas coleções literárias: quando se lê as roupas e se vestem palavras

A cada coleção Ronaldo Fraga faz novas pesquisas, refaz trajetórias e homenageia personagens, anônimas ou conhecidas. Com o cruzamento entre memória afetiva e cultura, ele dá o tom de seu trabalho, evocando canções, murmurando palavras, percorrendo o tempo, atravessando

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uma espécie de “passado” e “futuro”, não apenas num sentido de temporalidade, mas principalmente, numa complexa tessitura daquilo que se foi, e do que virá. Assim, não é diferente nas coleções apresentadas a seguir. E ao se explicar pela escolha dos dois nomes, o próprio designer, diz: “nunca me lembro que eles eram mineiros. O meu grande interesse é pela universalidade e atemporalidade do que foi construído por eles” (FRAGA, 2012, p. 73).

coleção Todo mundo e ninguém – inverno 2005 - cDA

Esta coleção é baseada na obra de Carlos Drummond de Andrade, em todo seu universo poético (o universo drummondiano, com sua escrita drummondiana) e faz alusão às suas poesias, uma coleção romântica e delicada que apresenta, em sua confecção, volumes tímidos, cortes enviesados, páginas pautadas, bebês em batismo, cartões postais, memórias de amor. A roupa apresenta-se como um registro do tempo. As estampas são de manuscritos e bilhetes do poeta Drummond, relógios de pulso, labirintos e galhos de jabuticabas. Os tecidos são chevron, brocado de seda, filós, algodão, laise bordada, tweeds, tules e jeans brutos lavados, em sua maioria, segundo o próprio designer, com cara de “extintos”.

A trilha sonora musical do desfile é o próprio Drummond acompanhado por Billy Forghieri e a cenografia são páginas soltas de um caderno em brancas gigantescas que caem do teto da passarela, escritas com a letra tão minúscula e marcante do escritor, confeccionadas por Clarissa Neves. Os volumes são tímidos, retos e enviesados, são vestidos para dormir, para casar, para o footing, dentre outros.

Podemos perceber que as roupas de Ronaldo Fraga são para homens, mulheres, ou crianças, pessoas comuns, inventivas como o próprio designer. E como afirma Kalil (2007):

[...] suas roupas são pouco convencionais, cheias de referências infantis e vagamente nostálgicas. Não entram neste universo a sexualidade explícita, as tendências fáceis da moda, os apelos comerciais, nenhuma gota de vulgaridade. Jamais numa passarela deste cidadão belo-horizontino vão desfilar um decote exagerado, microssaias vertiginosas, fendas provocantes (KALIL, 2007, p. 7)

A seguir apresentamos, na figura 1, algumas imagens do desfile da coleção inverno 2005.

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Figura 1 – Coleção Todo mundo e ninguém

Fonte: Fraga, 2012, p. 32, 33 e 34.

Coleção A cobra ri – uma história de guimarães Rosa - verão 2006∕07

Esta coleção aproveita a data comemorativa de centenário da publicação Grande Sertão: Veredas. Fraga afirma: Sempre fui enlouquecido pelo “universo roseano” e destaca que “o universo de Guimarães é seco e por isso não existe a necessidade de desperdício de detalhes” (FRAGA, 2012, p. 12).

A coleção aborda o tema do sertão que, embora seja um universo seco, é cheio de cores e texturas. Os vestidos são curtos e os decotes profundos, os tecidos são de algodão e cambraia. O designer usou elementos que remetem à beleza do sertão: pássaros azuis, folhas, estrelas e lua no céu do sertão com muitos bordados e aplicações nos vestidos. O pano de fundo é o amor de Riobaldo e Diadorim, aqui, o homem é representado mais frágil que a mulher.

A principal peça da coleção é o vestido. A cartela de cores é dividida em três gamas: cores do amanhecer (branco, amarelo, cor de giz, encardidos e pálidos), cores do dia (vermelho, verde água, laranja e terra), cores da noite (azul marinho, turquesa e charuto). Nas estampas, cobras e flores. E o próprio designer acrescenta: “o ponto central do desfile é a genialidade de Guimarães Rosa em colocar o erudito alinhado ao popular com desenvoltura tal que faz parecer que um nasceu para o outro” (FRAGA, 2012, p. 73). A direção de cenografia é de Rodrigo Câmara e a trilha sonora Ronaldo Gino.

E para reforçar as palavras de Fraga, Mesquita afirma que, nesse sentido, é possível pensar que, desde a primeira coleção “Eu amo coração de galinha” (inverno 1996) até “O cronista do Brasil“ (verão 2011/12), Fraga consegue resgatar significados. A mesma autora acrescenta:

[...] o traço de Fraga multiplica os sentidos [...] inventa idiomas, demarca

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lugares, cria territórios e convida um povo para habitá-los. E depois se vai, para desbravar outro universo. Expõe marcas de afetos, afagos, alegrias, encontros, despedidas, fascínios, fragilidades, fissuras, gargalhadas, loucuras, paixões, preciosidades, saudades, sonhos, ternuras e tristezas. Permeadas por uma melancolia intensa e delicada ao mesmo tempo [...]. O conjunto da obra e os diversos modos de sua apresentação – cadernos de criação, desfiles, textos, vitrines de lojas e corpos vestidos – compõem suas paisagens (MESQUITA, 2012, p. 15).

Assim a seguir apresentamos na figura 2, algumas imagens do desfile da coleção verão 2006-7:

Figura 2- Coleção A cobra ri – uma história de Guimarães Rosa

Fonte: Fraga, 2012. p. 54,56,58,59.

Como as imagens revelam e Kalil chama atenção: Ronaldo Fraga escapa de diversos padrões, pois seus valores estéticos provêm da sua criação mineira associada à sua “proximidade com os anjos e os santos das igrejas.” (KALIL, 2007, p. 9).

E neste diálogo Mesquita (2012) pondera:

Nesse território híbrido, Ronaldo trama espaços e culturas com tamanha perspicácia que, mesmo sem essa pretensão, reivindica para a moda um lugar irreversivelmente político, pois é sobre história, fronteiras e poderes que essa geografia improvável nos fala (MESQUITA, 2012, p. 23).

Diante disso, observamos que as duas coleções apresentadas nos dão uma noção de identidade, território e vasto simbolismo, demonstrando a enorme importância da linguagem no trabalho deste designer de moda e, apesar da multiplicidade de significados, seu trabalho apresenta-se como uma resposta possível de caminhos que, embora representem riscos e incertezas, auxilia o enorme desafio de reforço das identidades neste mundo globalizado.

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AponTAmEnToS FinAiS

Pretendeu-se identificar os principais elementos expressivos que permeiam o design na atualidade e, no caso particular, do trabalho de Ronaldo Fraga. A partir disto, foi feito um estudo de caso da obra do designer, destacando as duas coleções do ano de 2000 e 2006, que exploram dois personagens consagrados da cultura brasileira. Essa escolha foi fundamental para consolidar o objeto principal desta pesquisa.

Percebeu-se que o Brasil possui uma pluralidade de origens sociais e étnicas que dão ao designer um repertório que, uma vez apropriado, resulta em produtos diferenciados com forte apelo cultural, pois o trabalho de Ronaldo Fraga traduz uma linguagem internacional, local, de transformação e reinvenção, de pluralismo e hibridização, podendo assim ser uma fonte de reflexão sobre a sociedade brasileira e mesmo latino-americana.

No trabalho de Ronaldo Fraga, percebemos que o mesmo tem procurado os caminhos traçados pelas culturas que, aqui miscigenadas, desenvolveram linguagem própria de pura brasilidade. Concluindo, acreditamos ser de suma importância que se dê um passo em direção à contribuição cultural que cada projeto pode e deve representar, enquanto avanço e libertação dessa mesma cultura, sendo possível tratar o design como matéria cultural, permeada por contemporânea brasilidade.

REFERÊnciAS bibliogRÁFicAS

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