Artigo

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Artigo Original 468 Rev Assoc Med Bras 2009; 55(4): 468-74 INTRODUÇÃO A população idosa brasileira tem crescido muito rapida- mente, passando de três milhões em 1960 para 18 milhões em 2005 1,2 . Estima-se que alcançará 32 milhões em 2020, o que colocará o Brasil na sexta posição mundial em população idosa 2 . Esse envelhecimento gera aumento por demanda diferenciada de serviços de saúde e de cuidado. A elevada prevalência de doenças crônico-degenerativas é uma de suas consequências, que favorece a exposição da população idosa ao uso de múltiplos medicamentos e a efeitos adversos decorrentes desse uso 3,4,5 . A polifarmácia pode propiciar o aumento do uso de medi- camentos inadequados, induzindo à subutilização de medica- mentos essenciais para o adequado controle de condições preva- lentes nos idosos. Além disso, se configura em uma barreira para a adesão aos tratamentos, na medida em que torna complexos os esquemas terapêuticos, e possibilita a ocorrência de interações medicamentosas e reações adversas 5 . Devido ao envelheci- mento, os idosos possuem um risco aumentado de ocorrência de reações adversas 6 e consequente abandono do tratamento. Considerando que a maioria da população com mais de 65 anos faz uso de pelo menos um medicamento prescrito, a *Correspondência: Faculdade de Farmácia Departamento de Farmácia Social Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, nº 6627 FAFAR Sala 1048 - Bloco 2 Belo Horizonte - MG CEP: 31270-901 RESUMO OBJETIVO. Analisar fatores associados à complexidade do esquema terapêutico em prescrições de medicamentos para idosos, em Belo Horizonte (MG). MÉTODOS. Inquérito domiciliar, com idosos selecionados por amostragem aleatória simples, a partir do cadastro do INSS. O Índice de Complexidade Terapêutica (ICT), medida direta das ações necessárias para administrar o medicamento, foi obtido de informações contidas na última prescrição. Foram realizadas análises univariada e bivariada dos dados para identificar fatores associados ao ICT. RESULTADOS. Dos 667 entrevistados, 56,5% apresentaram prescrição que atendia aos critérios de inclusão. A maioria (69,2%) era do sexo feminino com idade média de 72,4 anos. 35,5% conside- ravam seu estado de saúde bom ou muito bom e 37,4% relataram cinco ou mais doenças. Nos 15 dias anteriores à entrevista, foram utilizados 1873 medicamentos (média=5,1), desses, 942 cons- tavam nas prescrições analisadas (média=2,5). Para o mesmo período, 22,3% dos entrevistados deixaram de usar algum medicamento prescrito. O ICT encontrado variou de 1 a 24 (média=6,1). Número de medicamentos prescritos (>2), menor escolaridade, pior percepção de saúde e menor valor do benefício recebido foram associados positivamente à maior complexidade (p<0,05). Observou-se associação entre maior complexidade do regime e não uso de algum medicamento nos últimos 15 dias (p=0,034). CONCLUSÃO. Idosos com piores condições socioeconômicas e de saúde parecem mais propensos a receber esquemas terapêuticos mais complexos. Terapias mais complexas estão associadas ao menor cumprimento do tratamento proposto, sendo um importante aspecto a se considerar na atenção à saúde do idoso. A simplificação da terapia pode melhorar o autocuidado entre idosos. UNITERMOS: Idoso. Farmacoepidemiologia. Prescrição de medicamentos. Avaliação de medicamentos. COMPLEXIDADE DO REGIME TERAPÊUTICO PRESCRITO PARA IDOSOS FRANCISCO DE ASSIS ACURCIO 1* , ANDERSON LOURENÇO DA SILVA 2 , ANDRÉIA QUEIROZ RIBEIRO 3 , NATÁLIA PESSOA ROCHA 4 , MICHELINE ROSA SILVEIRA 5 , CARLOS HENRIQUE KLEIN 6 , SUELY ROZENFELD 7 Trabalho realizado na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Belo Horizonte, MG 1. Pós-doutor em Economia da Saúde, Professor Associado do Departamento de Farmácia Social, Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Belo Horizonte, MG 2. Farmacêutico - Mestrando, Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Belo Horizonte, MG 3. Doutora em Ciências Farmacêuticas - Pesquisadora, Departamento de Farmácia Social, Faculdade de Farmácia, da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Belo Horizonte, MG 4. Farmacêutica - Bolsista da Coordenadoria de Transferência e Inovação Tecnológica da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Belo Horizonte, MG 5. Doutora em Ciências Biológicas - Professora Adjunta, Departamento de Farmácia Social, Faculdade de Farmácia, da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Belo Horizonte, MG 6. Mestre em Saúde Pública - Pesquisador, Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ, São Paulo, SP 7. Doutora em Saúde Coletiva - Pesquisadora, Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ, São Paulo, SP

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  • Artigo Original

    468 Rev Assoc Med Bras 2009; 55(4): 468-74

    IntroduoA populao idosa brasileira tem crescido muito rapida-

    mente, passando de trs milhes em 1960 para 18 milhes em 20051,2. Estima-se que alcanar 32 milhes em 2020, o que colocar o Brasil na sexta posio mundial em populao idosa2. Esse envelhecimento gera aumento por demanda diferenciada de servios de sade e de cuidado. A elevada prevalncia de doenas crnico-degenerativas uma de suas consequncias, que favorece a exposio da populao idosa ao uso de mltiplos medicamentos e a efeitos adversos decorrentes desse uso3,4,5.

    A polifarmcia pode propiciar o aumento do uso de medi-camentos inadequados, induzindo subutilizao de medica-mentos essenciais para o adequado controle de condies preva-lentes nos idosos. Alm disso, se configura em uma barreira para a adeso aos tratamentos, na medida em que torna complexos os esquemas teraputicos, e possibilita a ocorrncia de interaes medicamentosas e reaes adversas5. Devido ao envelheci-mento, os idosos possuem um risco aumentado de ocorrncia de reaes adversas6 e consequente abandono do tratamento.

    Considerando que a maioria da populao com mais de 65 anos faz uso de pelo menos um medicamento prescrito, a

    *Correspondncia: Faculdade de FarmciaDepartamento de Farmcia SocialUniversidade Federal de Minas GeraisAv. Antnio Carlos, n 6627 FAFAR Sala 1048 - Bloco 2Belo Horizonte - MGCEP: 31270-901

    ResumoobjetIvo. Analisar fatores associados complexidade do esquema teraputico em prescries de medicamentos para idosos, em Belo Horizonte (MG). Mtodos. Inqurito domiciliar, com idosos selecionados por amostragem aleatria simples, a partir do cadastro do INSS. O ndice de Complexidade Teraputica (ICT), medida direta das aes necessrias para administrar o medicamento, foi obtido de informaes contidas na ltima prescrio. Foram realizadas anlises univariada e bivariada dos dados para identificar fatores associados ao ICT. resultados. Dos 667 entrevistados, 56,5% apresentaram prescrio que atendia aos critrios de incluso. A maioria (69,2%) era do sexo feminino com idade mdia de 72,4 anos. 35,5% conside-ravam seu estado de sade bom ou muito bom e 37,4% relataram cinco ou mais doenas. Nos 15 dias anteriores entrevista, foram utilizados 1873 medicamentos (mdia=5,1), desses, 942 cons-tavam nas prescries analisadas (mdia=2,5). Para o mesmo perodo, 22,3% dos entrevistados deixaram de usar algum medicamento prescrito. O ICT encontrado variou de 1 a 24 (mdia=6,1). Nmero de medicamentos prescritos (>2), menor escolaridade, pior percepo de sade e menor valor do benefcio recebido foram associados positivamente maior complexidade (p

  • Complexidade do regime terapUtiCo presCrito para idosos

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    falta de adeso afeta, em grande proporo, pessoas idosas7. estimado que 40% a 75% dos idosos com regimes terapu-ticos rotineiros no o cumprem adequadamente. Isso se deve a diferentes fatores, tais como dficit cognitivo e diminuio da compreenso das instrues, falta de comunicao, aumento das limitaes fsicas6 e a complexidade do regime teraputico.

    Diante disso, torna-se de grande relevncia a avaliao da complexidade do regime teraputico em prescries destinadas a idosos. Essa complexidade tem sido relacionada a distintas caractersticas dos regimes teraputicos. A literatura demonstra que o nmero de medicamentos, a frequncia das doses, as instrues para a administrao e as formas de dosificao prescritas influem nos resultados da terapia8.

    No Brasil, a prevalncia do uso de medicamentos em idosos elevada, com valores entre 60% e 91%5,9-13, sendo que a mdia de produtos usados varia entre dois e quatro medica-mentos dependendo da metodologia utilizada5,10,11,13. Entre ns, o aumento no nmero de estudos sobre o uso de medicamentos por idosos no tem sido acompanhado por anlises da complexi-dade dos esquemas teraputicos, a despeito de sua importncia no aprimoramento da ateno sade do idoso.

    Esse estudo tem por objetivo analisar a complexidade de esquemas teraputicos de prescries mdicas destinadas a idosos entrevistados em inqurito domiciliar realizado em Belo Horizonte (MG), verificando a relao entre a complexidade teraputica e caractersticas selecionadas dos participantes.

    Mtodos

    Delineamento, populao-alvo e amostraO estudo parte integrante da pesquisa Perfil de utilizao

    de medicamentos pelos aposentados brasileiros, apoiada pelo Ministrio da Sade e aprovada pelo Comit de tica em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais.

    A estratgia geral de delineamento foi a de um estudo epide-miolgico seccional (inqurito), com abordagem domiciliar.

    A populao alvo desse estudo foi constituda por aposen-tados, com 60 ou mais anos de idade, vinculados ao Regime Geral de Previdncia Social/INSS/MPAS, residentes em Belo Horizonte. Os participantes foram selecionados aleatoriamente a partir do cadastro de Aposentados e Pensionistas do Ministrio da Previdncia e Assistncia Social, de forma a constiturem uma amostra representativa da populao alvo. Foram reali-zadas entrevistas domiciliares com idosos pertencentes a uma amostra aleatria simples, de 881 indivduos, selecionada para o municpio de Belo Horizonte, no perodo de maro a junho de 200314.

    Variveis do estudoFoi utilizado um questionrio com a maioria das perguntas

    fechadas e pr-codificadas, referentes a caractersticas sociais e demogrficas (sexo, idade, escolaridade, co-habitao, valor do benefcio recebido do INSS), condies de sade (autopercepo da sade, restrio de atividades habituais, estar acamado nos ltimos 15 dias, doenas autorreferidas), uso de servios de sade (consultas mdicas no ltimo ano) e uso de medicamentos nos 15 dias anteriores realizao da entrevista. Para o mesmo perodo, tambm foi investigado o no uso de medicamentos

    prescritos. A prescrio mdica mais recente apresentada pelo entrevistado teve seu contedo transcrito na ntegra no referido questionrio.

    Coleta dos dadosAs entrevistas domiciliares foram feitas, preferencialmente,

    com os indivduos selecionados. Entretanto, com aqueles impe-didos por motivos de sade, tais como surdez ou dficit cognitivo, elas foram realizadas com parentes ou cuidadores, que tambm prestaram auxlio nos casos de dificuldades com algumas ques-tes, excetuadas aquelas que exigissem autoavaliao. Quatorze farmacuticos, previamente treinados, foram responsveis pela coleta dos dados.

    Anlise dos dadosA anlise da complexidade de cada medicamento foi feita

    com os critrios adotados por Conn et al.(1991)15. Dois pesqui-sadores, de forma independente, atriburam pontos s aes necessrias para a administrao de cada medicamento, aps a harmonizao entre si dos critrios de avaliao das prescries transcritas. Essa pontuao, depois de consolidada, comps o ndice de Complexidade Teraputica (ICT).

    As prescries que apresentavam dados ilegveis ou ausncia da informao sobre dose e/ou frequncia de uso foram excludas da anlise.

    O ICT inclui medidas do nmero de medicamentos, frequn cia e tipo de aes requeridas para a auto-administrao, avaliando diretamente: a) o nmero de frmacos prescritos; b) o nmero de doses por dia; c) as instrues adicionais que devem ser seguidas (tomar quando necessrio, tomar nas refeies ou com alimentos, tomar antes das refeies, tomar depois das refeies, no tomar com produtos derivados do leite e outras instrues dadas para medicamentos especficos); d) aes mecnicas necessrias para administrar os medicamentos (tomar a metade de um comprimido, tomar doses alternadas, administrar gotas oftlmicas, jatos para inalao, injees, cremes, pastas, adesivos, misturas de ps, administrao sublingual, entre outras).

    Com a padronizao dos critrios, foi elaborada uma equao para o clculo da complexidade de cada medicamento (CM):

    CM = CF x (CD+AR )+(IA x FIA)Em que:

    CM= Complexidade por medicamento: pontuao atri-buda complexidade de cada medicamento;

    CF= Complexidade da frequncia: frequncia de adminis-trao do medicamento a cada 24 horas e, conseqente-mente, o nmero de aes mecnicas requeridas;

    CD= Complexidade da dose: quantidade de comprimidos/cpsulas ou doses dos medicamentos a serem administrados por vez;

    AR= Aes requeridas: refere-se, para cada dose a ser administrada, s dificuldades (quantidade de aes extras) para a administrao (por exemplo, dividir o comprimido, medir 10 mL de um xarope, preparar a injeo, aplicar a injeo, administrar duas gotas, passar o creme ou pomada);

    IA= Instrues adicionais: quantidade de recomendaes diretamente ligadas administrao do medicamento, como

  • aCUrCio Fa et al.

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    tomar em jejum, tomar aps refeio, doses alternadas, entre outras;

    FIA= Frequncia das instrues adicionais: nmero de vezes, por dia, que a instruo adicional deve ser seguida. Uma instruo adicional pode ou no possuir a mesma frequncia de administrao do medicamento.Por ltimo, o ICT obtido pela soma das complexidades de

    cada medicamento:ICT= CM1 +CM2+ ... +CMnO ICT total representa, assim, o conjunto dos pontos atribu-

    dos para cada ao requerida para administrar os medicamentos prescritos, em um perodo de 24 horas.

    Para ilustrar a sequncia de pontuao de acordo com as diferentes situaes, apresenta-se como exemplo a seguinte prescrio: cido acetilsaliclico 500 mg, tomar meio comprimido no

    almoo; Hidroclorotiazida 25 mg, tomar um comprimido uma vez ao

    dia, pela manh; Insulina NPH, administrar 40 unidades todos os dias, s 8

    horas; Cloreto de potssio, tomar 15 mL uma vez ao dia; Neomicina Bacitracina pomada, aplicar sobre a regio

    afetada trs vezes ao dia; Diclofenaco de potssio 50 mg, tomar um comprimido de

    12 em 12 horas, caso sinta dor.Com base nos critrios estabelecidos obtm-se um ICT total

    de 18 para o regime teraputico contido na prescrio. Os valores que contriburam para o ICT nesse regime so apresentados nas equaes abaixo: CMcido acetilsalicilico = 1 x (1+1)+(1 x 1)= 3 CMHidroclorotiazida = 1 x (1+0)+(0 x 0)= 1 CMinsulina NPH = 1 x (1+2)+(0 x 0)= 3 CMCloreto de potssio = 1 x (1+1)+(0 x 0)= 2 CMNeomocina Bacitracina = 3 x (1+1)+(0 x 0)= 6 CMDiclofenaco = 2x (1+0)+(1 x 1)= 3

    Um terceiro pesquisador foi responsvel por verificar a concordncia entre os resultados obtidos e, em caso de discor-dncia, por determinar o ICT a ser atribudo por prescrio.

    Foram realizadas anlises univariada e bivariada dos dados. No ltimo caso, a varivel resposta foi o ICT e as variveis expli-cativas foram sexo, idade, escolaridade, valor do benefcio, auto-percepo da sade, nmero de doenas, nmero de consultas e nmero de medicamentos prescritos.

    A associao entre o ICT e a adeso ao tratamento tambm foi investigada. A falta de adeso ao tratamento foi avaliada pela pergunta: Nos ltimos 15 dias, o(a) sr(a) deixou de usar algum remdio que deveria estar usando?

    A significncia estatstica das diferenas entre as propores foram testadas com o Qui quadrado de Pearson, utilizando-se o p-valor de 5% como critrio de rejeio de nulidade. As anlises estatsticas foram realizadas utilizando-se o software SPSS verso 16.0.

    resultadosDos 667 entrevistados no inqurito domiciliar, 438 (65,7%)

    apresentaram prescrio, das quais 377 atendiam aos critrios de incluso para a anlise da complexidade. Os motivos de

    excluso das 61 prescries foram a ausncia ou no legibilidade das seguintes informaes: a dose e frequncia de administrao simultaneamente (37,7%), a frequncia de administrao (36,1%) e a dose (26,2%). Os indivduos que compuseram a amostra analisada possuam em mdia 72,4 anos (mediana = 72; variao = 61 - 102), sendo que 45,9% encontravam-se na faixa etria de 70 a 79 anos. A maioria (69,2%) era do sexo feminino e 17,0% vivam ss (Tabela 1). Setenta e dois por cento dos idosos possuam primeiro grau incompleto ou nunca haviam estudado e 61,8% recebiam um valor mensal de benefcio do INSS menor que um salrio mnimo.

    Em relao autopercepo da sade, 48,8% dos entre-vistados que foram includos na anlise da complexidade a consideravam regular e 15,6% ruim ou muito ruim. Cerca de 27% apresentaram alguma restrio das atividades habituais por motivo de sade nos 15 dias que precederam entre-vista, e 15,4% estiveram acamados nesse mesmo perodo. Em relao ao uso de servios de sade, 70,8% dos entre-vistados afirmaram ter-se consultado com mdico, no ltimo ano, quatro vezes ou mais e 22,3% foram hospitalizados pelo menos uma vez nesse mesmo perodo. Cerca de seis entre dez dos entrevistados relataram quatro ou mais doenas, sendo mais prevalentes os problemas de viso (82,8%), presso alta (70,6%) e depresso (36,3%).

    Os 377 participantes que fazem parte dessa anlise infor-maram utilizar, nos 15 dias anteriores entrevista, um total de 1873 produtos farmacuticos (mdia = 5,1; mediana = 5; intervalo = 1 a 22). Desse conjunto de medicamentos, 928 foram prescritos (mdia = 2,5; intervalo = 1 a 10). O ICT foi calculado apenas para os medicamentos prescritos.

    Os medicamentos com ao sobre o aparelho cardiovascular foram os mais prescritos (39,3%), com destaque para os diur-ticos e os agentes com ao no sistema renina-angiotensina. Em seguida, os medicamentos que atuam sobre trato alimentar e metabolismo (13,6%), sobretudo medicamentos usados no tratamento do diabetes melito. O terceiro grupo mais prescrito foi o dos medicamentos que atuam sobre o sistema nervoso (12,6%), principalmente psicoanalpticos e analgsicos.

    O ICT variou de 1 a 24, tendo mdia igual a 6,1 e mediana 5,0; apresentando tendncia de aumento de acordo com o aumento do nmero de medicamentos prescritos. Dentre os 377 participantes que tiveram a complexidade da prescrio avaliada, 12,2% utilizavam cinco ou mais medicamentos prescritos. Nos 15 dias anteriores entrevista, 22,3% dos entrevistados inclu-dos na anlise da complexidade relataram ter deixado de usar algum medicamento que deveriam estar usando.

    Na anlise bivariada, considerando-se o ndice de Complexi-dade Total como varivel de desfecho, foi observada associao estatisticamente significativa com fatores sociodemogrficos e de condio de sade: menor escolaridade, menor benefcio recebido do INSS, autopercepo da sade pior, maior nmero de doenas referidas, de consultas mdicas e nmero de medi-camentos prescritos mais elevado (Tabela 2).

    Assumindo a no utilizao de algum medicamento prescrito nos 15 dias anteriores entrevista como indicativo de no adeso ao tratamento, a no adeso mostrou-se associada maior complexidade do regime teraputico (Tabela 3).

  • Complexidade do regime terapUtiCo presCrito para idosos

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    Tabela 1 - Caractersticas sociais, demogrficas e relativas sade dos idosos includos no estudo de complexidade da

    prescrio, Belo Horizonte, mG, 2003

    VariveisFrequncia (n = 377)

    N %Grupo etrio60-69 anos 145 38,570-79 anos 173 45,980 anos 59 15,6

    sexoMasculino 116 30,8Feminino 261 69,2

    Co-habitaoMora s 64 17,0Mora com cnjuge e/ou filhos 251 66,6Mora com outros 62 16,4

    escolaridadeNunca estudou 56 15,0Primrio Incompleto 126 33,7Primrio Completo 87 23,31 grau completo 29 7,72 grau completo 47 12,6Superior 29 7,7

    Valor do benefcio do INss1 salrio mnimo 233 61,8> 1 salrio mnimo 144 38,2

    Autopercepo da sadeRuim ou muito ruim 59 15,6Regular 184 48,8Muito boa ou boa 134 35,6

    Restrio das atividades habituaisSim 102 27,1No 275 72,9

    Acamado nos ltimos 15 diasSim 58 15,4No 319 84,6

    Nmero de consultas mdicas no ltimo anoNenhuma 14 3,71 a 3 96 25,54 ou mais 267 70,8

    Hospitalizao no ltimo anoNenhuma 293 77,71 ou mais 84 22,3

    Nmero de doenas autorreferidas0 a 3 151 40,04 ou mais 226 60,0

    Tabela 2 - Percentuais de ndice de Complexidade Total da prescrio (ICT5) de acordo com caractersticas sociais e

    demogrficas, indicadores da condio de sade e do uso de servios de sade entre idosos, Belo Horizonte, mG, Brasil, 2003

    VariveisPrescries

    com ICT 5%

    Total Valor p

    Grupo etrio60-69 anos 50,3 14570-79 anos 52,0 17380 anos 54,2 59 0,876

    sexoHomens 47,4 116 Mulheres 53,6 261 0,264

    Co-habitaoMora s 57,8 64Mora com cnjuge e/ou filhos 49,8 251Mora com outros 53,2 62 0,502

    escolaridadeAt primrio completo 55,8 2691 grau completo ou mais 41,9 105 0,016

    Valor do beneficio do INSS1 salrio mnimo 56,7 233> 1 salrio mnimo 43,8 144 0,015

    Auto-percepo da sadeRegular, ruim ou muito ruim 56,0 243Boa ou muito boa 44,0 134 0,026

    Restrio das atividades habituaisSim 53,9 102No 50,9 275 0,603

    Acamado nos ltimos 15 diasSim 50,0 58No 52,0 319 0,775

    Nmero de consultas mdicas no ltimo anoAt 3 40,0 1104 ou mais 56,6 267 0,003

    Hospitalizao no ltimo anoNenhuma 49,8 2931ou mais 58,3 84 0,176

    Nmero de doenas autorreferidas0 a 3 43,0 1514 ou mais 57,5 226 0,006

    Nmero de medicamentos prescritos1 9,1 1432 ou mais 77,8 234 0,000

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    dIsCusso possvel empregar distintas classificaes para avaliar a

    complexidade de esquemas teraputicos. Algumas so simples, considerando apenas o nmero de frmacos e o nmero de doses dirias7,16. Outras so mais abrangentes, incluindo componentes da prescrio, tais como forma farmacutica e necessidade de aes mecnicas para administrao15,17. No presente estudo, optou-se por utilizar uma classificao mais ampla contemplando o maior nmero de itens possveis, de modo que o ndice obtido reflita o conjunto das dificuldades inerentes s prescries. O nmero de medicamentos influencia a complexidade do regime teraputico, mas no pode ser considerado como nico fator. Tratamentos com o mesmo nmero de medicamentos podem apresentar graus de complexidade diferenciados, podendo ocasionar diferentes nveis de dificuldade para o cumprimento da prescrio e, consequentemente, da adeso. Assim, foi observado que diversos outros fatores devem ser considerados na anlise da complexidade, como forma farmacutica, necessidade da execuo de uma ao mecnica, instrues adicionais a serem seguidas e, principalmente, frequncia de administrao da dose prescrita.

    O mtodo empregado pode ser utilizado na estimativa da complexidade do esquema teraputico e, ainda, do grau de dificuldade que o idoso enfrentar para cumpri-lo. O mtodo de clculo da complexidade utilizado no presente estudo foi validado por outros autores15,18, que demonstraram que a sua aplicao vivel para obteno de informaes sobre complexidade do regime teraputico, podendo ser til nas prticas clnica e acadmica.

    A menor renda e a escolaridade mais baixa se associaram a regimes teraputicos mais complexos, sugerindo que os idosos que possuem essas caractersticas pertencem a grupo mais vulnervel s complicaes advindas dessa complexidade. No entanto, essa relao de difcil interpretao, podendo ser inter-mediada por outros fatores. Tomando-se renda e escolaridade como proxy de condio socioeconmica, possvel que idosos com pior condio econmica tenham pior condio de sade, o que pode resultar na prescrio de esquemas teraputicos mais complexos. A despeito das possveis explicaes para essa associao, tais idosos necessitam de maior ateno por parte dos profissionais de sade, que devem buscar a adequao do regime teraputico para facilitar o autocuidado.

    Em relao s condies de sade, a meno a mais doenas, a percepo pior da prpria sade e a frequncia mais elevada de consultas mdicas associaram-se maior complexidade dos esquemas teraputicos. Esses resultados sugerem que idosos com pior condio de sade esto propensos a tratamentos mais complexos. Embora essa situao seja esperada, deve ser

    destacada a importncia da reviso permanente dos esquemas teraputicos para esses idosos, no sentido de atender suas reais necessidades em relao farmacoterapia e buscar garantir que as metas dos tratamentos propostos sejam efetivamente alcanadas.

    Observou-se, ainda, associao significativa entre maior complexidade do regime teraputico e o no uso de algum medicamento nos 15 dias anteriores entrevista, tomado como indicador de no adeso ao tratamento proposto. A auto-admi-nistrao de medicamentos um determinante importante do alcance de bons resultados em tratamento de doenas crnicas. A no adeso a um tratamento proposto, independentemente do motivo, pode comprometer os resultados esperados e at mesmo agravar o quadro clnico dos idosos que convivem com essas doenas. Diversos estudos avaliaram a complexidade do regime teraputico em grupos especficos da populao, como porta-dores do vrus HIV19-22, portadores de epilepsia18 e idosos15,16, utilizando diferentes metodologias. Em geral, esses estudos constataram relao entre a complexidade medicamentosa e a no adeso ao tratamento proposto15,20,21,22. A associao obser-vada entre maior complexidade e falta de adeso ao tratamento proposto ressalta a importncia de simplificar os regimes terapu-ticos e de evitar a polifarmcia, tanto para prevenir a ocorrncia de interaes medicamentosas e de efeitos adversos (aos quais os idosos so mais vulnerveis), quanto para facilitar o acesso aos medicamentos realmente necessrios e o cumprimento da prescrio (j que regimes complexos favorecem a baixa adeso teraputica). A abordagem multiprofissional deve ser enfatizada como uma estratgia relevante. O acompanhamento farmaco-teraputico, por exemplo, pode contribuir na identificao de problemas relacionados aos medicamentos, bem como evitar prescries de medicamentos desnecessrios por diferentes prescritores, minimizando ou prevenindo os prejuzos advindos da cascata medicamentosa.

    digno de nota o fato de que 61 (13,9%) das 438 prescri-es coletadas no puderam ser includas na anlise, por no apresentarem ou por serem ilegveis as informaes sobre a dose e a frequncia de administrao dos medicamentos, inviabili-zando, portanto, o clculo do ICT. Estas ocorrncias contribuem para aumentar a complexidade da prescrio e a dificuldade de adeso ao tratamento, especialmente neste grupo populacional, na medida em que podem ocasionar o uso dos medicamentos de forma inadequada ou mesmo o no uso decorrente da incom-preenso ou da falta de informao.

    O presente estudo no contempla medicamentos oriundos de outras prescries, alm daquela transcrita no questionrio do estudo, e tampouco medicamentos de venda livre utilizados pelos participantes. Apesar disso, acredita-se que os resultados sejam

    Tabela 3 - Associao entre deixar de usar medicamentos prescritos e Indice de Complexidade Total da prescrio. idosos, Belo Horizonte, mG, Brasil, 2003

    VarivelDeixou de usar medicamento nos ltimos 15 dias

    Valor psim%

    No%

    Totaln

    ICT at 4 17,6 82,4 182ICT 5 26,7 73,3 195 0,034

  • Complexidade do regime terapUtiCo presCrito para idosos

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    consistentes e permitam traar um perfil acerca da complexidade de esquemas teraputicos prescritos para idosos beneficirios do INSS, residentes em Belo Horizonte (MG). Embora se deva ter cautela nas generalizaes, razovel supor que o panorama apresentado possa ser semelhante em outros locais no Brasil.

    ConClusoO ndice de Complexidade Teraputica parece ser influen-

    ciado por fatores socioeconmicos, por aqueles relacionados sade e ao uso de medicamentos, estando associado incapa-cidade de adquirir, ou de usar, medicamentos prescritos. Estudos posteriores, com amostras maiores e questionrios que contem-plem outras variveis, so necessrios para um aprofundamento no conhecimento dessas relaes.

    A complexidade dos regimes teraputicos no pode ser avaliada apenas pelo nmero de medicamentos prescritos, pois outros fatores diretamente ligados s caractersticas da prescrio podem aumentar o conjunto de medidas necessrias para o seu cumprimento. Esses fatores podem dificultar a adeso ao trata-mento, por requerer um maior numero de aes dirias para a efetiva prtica do cuidado farmacoteraputico.

    A complexidade do regime teraputico um importante aspecto a ser considerado na ateno sade do idoso, devido s peculiaridades desses indivduos. A simplificao do regime pode favorecer a prtica de autocuidado de melhor qualidade. Quando a simplificao no for possvel, torna-se imprescin-dvel que o profissional de sade tenha conhecimento de toda farmacoterapia a qual o idoso est submetido, e o oriente sobre a importncia do cumprimento da mesma para a manuteno e/ou recuperao de sua sade. Ademais, a reviso permanente da teraputica proposta constitui uma prtica fundamental para a simplificao dos tratamentos, permitindo maior adequao s necessidades de cada indivduo, de acordo com o estgio de sua doena.

    Para que se cumpram esses objetivos imprescindvel a educao permanente dos profissionais de sade, em especial daqueles que atendem no sistema pblico de sade, j que os idosos de pior condio socioeconmica parecem estar mais expostos a regimes teraputicos mais complexos.

    Conflito de interesse: no h

    suMMaryCoMplexIty oF therapeutIC regIMens presCrIbed For elderly

    retIrees, belo horIzonte/Mg, brazIlObjective. To examine factors associated with therapeutic

    regimen complexity of drug prescriptions for elderly people in Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil.

    MethOds. A household survey of elderly people selected by simple random sampling from Brazils social security register. The medication complexity index (MCI), a direct measurement of actions required to administer medication, was derived from information in the latest prescription. Univariate and bivariate analyses were performed to identify factors associated with the MCI.

    Results. Of the 667 interviewees, 56.5% had prescriptions meeting the inclusion criteria; most (69.2%) were females aged

    72.4 years (mean); 35.5% self-rated their health good or very good; and 37.4% reported five or more diseases. In the 15 days prior to interview, 1873 drugs were used (mean=5.1), of which 942 appeared on the prescriptions examined (mean=2.5). Over the same period, 22.3% of interviewees failed to use some prescribed drug. The MCI ranged from 1 to 24 (mean=6.1). Number of drugs prescribed (>2), less schooling, worse percep-tion of health and a lower benefit payment associated positively with greater complexity (p

  • aCUrCio Fa et al.

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    Artigo recebido: 31/10/08Aceito para publicao: 17/03/09