Artigo Ana 02_rev_ok_limpo.docx

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Somos máquinas. Máquinas modeladoras de tipos, grupos; ao mesmo tempo, somos máquinas demolidoras de formas. Porque somos também criadores e destruidores de sentidos, e aí está o potencial de nos reinventar. Fluxo e refluxo em orquestração, em que se, por um lado, existe necessidade de compreender, resolver o mundo em significados, de reconhecer e nomear, há também outro movimento: nem absurdo nem normalizado, ele apenas se constitui na forma que o absorve. Esse movimento não é dialético, não há uma parte negando a outra. Situamo-nos em um mundo de organizadas manifestações simbólicas, de representações que classificam ordenamentos sociais, regras de convivência, morais aceitáveis ou reprováveis. Nossa memória é requisitada a nos apontar como seres identitários, marcados pela prontidão da resposta a essa normatividade propagandeada e assimilada pelo nosso corpo. É aí, nessa linha, que pequenas lembranças se formam, que novos hábitos surgem e assim algo se solidifica nessa série de sentido selecionado, classificado e organizado. O que parecer ser de cunho individual tem dimensão global, na disputa por afetividades, potências, resistências, política, coletividades... A invenção é o jogo mais delirante da necessidade. Somos chamados a vislumbrar um mundo possível. Nas cidades, estamos vivendo uma falta de sentido doentia. Não desse sentido que nos deram, que simula liberdade, mas é uma prisão, que se utiliza da comunicação, da mídia e usa a linguagem como espetáculo. Vimos nos dias da Copa de 2014 o quanto estamos encurralados e traídos por uma ideia de democracia que é a falência de qualquer pretensão de virtude humana. Fomos sabotados e vislumbramos de uma maneira diferente a guerra em que estamos vivendo. Uma guerra que não é discreta, ela está acontecendo nas ruas, está fazendo seus mortos, e está abolindo ainda mais qualquer sentido que teime em resistir. Vimos a vigilância nas ruas não só nas manifestações,

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Somos mquinas. Mquinas modeladoras de tipos, grupos; ao mesmo tempo, somos mquinas demolidoras de formas. Porque somos tambm criadores e destruidores de sentidos, e a est o potencial de nos reinventar. Fluxo e refluxo em orquestrao, em que se, por um lado, existe necessidade de compreender, resolver o mundo em significados, de reconhecer e nomear, h tambm outro movimento: nem absurdo nem normalizado, ele apenas se constitui na forma que o absorve. Esse movimento no dialtico, no h uma parte negando a outra.Situamo-nos em um mundo de organizadas manifestaes simblicas, de representaes que classificam ordenamentos sociais, regras de convivncia, morais aceitveis ou reprovveis. Nossa memria requisitada a nos apontar como seres identitrios, marcados pela prontido da resposta a essa normatividade propagandeada e assimilada pelo nosso corpo. a, nessa linha, que pequenas lembranas se formam, que novos hbitos surgem e assim algo se solidifica nessa srie de sentido selecionado, classificado e organizado. O que parecer ser de cunho individual tem dimenso global, na disputa por afetividades, potncias, resistncias, poltica, coletividades... A inveno o jogo mais delirante da necessidade. Somos chamados a vislumbrar um mundo possvel. Nas cidades, estamos vivendo uma falta de sentido doentia. No desse sentido que nos deram, que simula liberdade, mas uma priso, que se utiliza da comunicao, da mdia e usa a linguagem como espetculo. Vimos nos dias da Copa de 2014 o quanto estamos encurralados e trados por uma ideia de democracia que a falncia de qualquer pretenso de virtude humana. Fomos sabotados e vislumbramos de uma maneira diferente a guerra em que estamos vivendo. Uma guerra que no discreta, ela est acontecendo nas ruas, est fazendo seus mortos, e est abolindo ainda mais qualquer sentido que teime em resistir. Vimos a vigilncia nas ruas no s nas manifestaes, mas em qualquer reunio de pessoas, em locais pblicos. Usando o discurso de que preciso manter a ordem, criou-se um medo e o nome ao novo perigo: os vndalos. Essa ordem est falando, e fcil entender o que ela diz. As vias, as praas, os bares, os lugares pblicos na cidade foram tomados de sobressalto por figuras coercitivas vestindo fardas, expressando nos olhos a violncia latente. Eles no falam, apesar de nunca se calarem, uma violncia muda. Tangenciam espaos, do nomes, cospem fogos e choques. Mas querem ganhar pelo que no dizem. Mais intrusivos, eles querem nos condicionar e nos convencer de que somos fracos. Cuiab no So Paulo, Porto Alegre no Fortaleza, Manaus no Braslia e, no entanto, estivemos todos impactados pela invaso nas ruas por homens fortemente armados; presenciamos o trato desumano das remoes foradas, nos vimos jogados com a gentrificao. Ns faremos absolutamente tudo para mostrar que o Brasil um pas civilizado no somente no contexto do futebol, mas tambm como pas em si, como homens do governo e seus aparelhos de comunicao bradaram na oficializao da Copa do Mundo no Brasil. Ser civilizado est em consonncia com o projeto iluminista da servido padronizao da beleza e da boa educao. Falando cruamente, isso significa desconfiar do outro, inspira o medo daquilo que difere, e foi isso que autorizou moralmente e oficialmente atravs das leis as remoes foradas de famlias, da gentrificao nos grandes centros urbanos. Uma exibio cruel de que a igualdade social nunca foi mais que promessa de campanha ou ps-marketing.Autoriza-se moralmente o uso de violncia extrema por parte da polcia contra o que eles chamam de cidado nos projetos de pacificao. Projeto de pacificao um sistema de controle do cotidiano dos moradores de favelas; no entanto, so projetos vendidos para a populao em geral como sendo um policiamento que se aproxima da realidade dessas pessoas, compreendendo suas carncias e dificuldades. Autoriza-se moralmente o uso de violncia extrema por parte da polcia contra o que eles chamam de cidado quando esse vai rua em manifestaes, investindo dinheiro pblico para adquirir as armas da Copa, que consistem em 2,2 mil kits com sprays de pimenta e de espuma de pimenta, granadas lacrimogneas com chip de rastreabilidade, 8,3 mil granadas de efeito moral para uso externo e indoors e 8,3 mil granadas explosivas de luz e som; 8,3 mil de gs lacrimogneo fumgena trplice; 50 mil sprays de pimenta; 449 kits com cartuchos de balas de borracha e cartuchos de impacto expansvel; 1,8 mil armas eltricas. E ainda: 3.700 militares, alm de mais de 500 viaturas de diversos tipos, dentre elas: blindadas, mecanizadas, antiareas, de defesa ciberntica, comando e controle, transporte de tropa e de defesa qumica, biolgica, radiolgica e nuclear. (...) Oito helicpteros das Foras Armadas um deles equipado com o Olho da guia, dois esquadres de Cavalaria de Choque e uma seo de Ces de Guerra.[footnoteRef:1] [1: Disponvel em: . ]

Seus inimigos so o micro, as formas de comunicao desviantes, as redes. E o que combatem qualquer outro mundo possvel que possa vir a reluzir, que possa se efetivar. Temem, pois sabem que novas relaes, ligadas por afinidades polticas e afetivas, podem desestabilizar a ordem. E a ordem vem a custo grosso sendo naturalizada a ponto de parecer que a nica possvel. Por isso se articulam contra as operaes que criam desordem e se perdem por no possurem ttica predeterminada. Mas eles sabem tambm que a revolta um sentimento efmero e que precisa de concentrao, que se esvai facilmente, delicado manter a sua coeso. E sabem de nossa fora primeiro que ns, pois, a ns mesmos, parecemos to desgarrados, to provisrios, to imediatos e apaixonados. Somos taciturnos e loucos de uma inteligncia apocalptica, de outro sentido.A aventura mais cruel que podemos criar o mundo possvel. Todas as suas tropas e suas estratgias so provas da incapacidade de nos gerir. Somos inimigos desse Estado doloroso.

Esto brigando agora pela nossa alma, nosso pensamento, nossa maneira de experimentar o mundo... Mas ns no somos ningum e pretendemos assim nos conservar, num anonimato desviante e coletivo. Querem roubar nosso olhar distrado, querem dar valor ao nosso pensamento. Somos profetas projetados na arte da desiluso, somos brasileiros e estamos acostumados a nos arrebentar num 7x1, como uma bomba implosiva.Nossa resistncia supera nossos prprios atos de dissoluo, numa capacidade autodestrutiva que nos confere ainda assim uma permanncia belicosa, inflamvel. A variao da potncia ou da impotncia coloca prova nossa capacidade de fazer do sentido operante uma referncia existencial, isto , ultrapassar a linha definitiva da normalidade para compor traos novos da memria, vislumbrado essencialmente no que se vive, forando a prpria existncia. Algo dessa desmedida, um povo, uma multido ainda que esparsa, caminha, alavanca novas memrias. E sua potncia tanto maior quanto mais for liberada de sentido. Este passa a ser agora a experincia que acontece interiormente, silenciosamente. Livre das apologias, ganha sentido extremo, uma vibrao. No aceitamos o papel de que somos um Brasil, de que somos um povo, de que temos a submisso e a docilidade como natureza, que somos fceis e liberais e, no entanto, malandros e capciosos.

Uma rebelio comea a se agitar dentro da gente, por isso muitas vezes a hostilidade apenas uma fora de expresso da represso que sofremos pelo enfadonho sentimento de patriotismo, nacionalismo, regionalismo que no nosso. Podemos colocar mesmo tudo a perder, mas para que possamos ganhar outra legio que quer se encontrar, em lugares no oficiais e pouco provveis, com redes de comunicao talvez pouco habilitadas, ainda cheirando a perseguies, invases e espionagens, mas tateando movimentos de ruptura. Frente a todo maquinrio de produo, estamos na difcil tarefa de nos produzir, entre certa distrao e at de movimentos errticos que podem inclusive nos causar mais dor, mas estamos profundamente desinteressados do lugar-comum, arriscando abrir mo do que dizem ser segurana para apostar em algo que requer afinidades, uma nova maneira de sermos humanos, uma inaugurao, suportando e resistindo, mas ameaadores tambm: propor um presente, ainda que inslito, e acima de tudo desafiador, porque no somos bandeiras, no somos espelhos da sociedade buscando representao ou um lugar ao sol, e no estamos interessados em parecer razoveis.

Ana Paula