Artigo Anpae Educação Inclusiva

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Grupo de Trabalho: Formação de Professores e Educação Especial PROFESSORES DE APOIO AOS ALUNOS COM NECESSIDADES EDUCACIONAIS ESPECIAIS NO ENSINO REGULAR: NOVOS HABITUS PROFESSORAIS? Sandra Novais Sousa 1 Eliane Greice Davanço Nogueira 2 RESUMO: O presente artigo apresenta como objeto de estudo a constituição do habitus professoral de professores de apoio que atendem nas classes do ensino regular a alunos com necessidades educacionais especiais e a manifestação de um habitus estudantil entre esses alunos. Tem como objetivo analisar, a partir do conceito bourdiesiano de habitus, como tem sido materializado a relação pedagógica dos professores de apoio, observadas em suas práticas docentes e no relacionamento que constroem com os alunos atendidos e com os professores regentes ou titulares das disciplinas. Como metodologia de pesquisa utilizamos os pressupostos da pesquisa qualitativa que se vale de histórias de vida, coletadas por meio de entrevistas narrativas a cinco professoras de apoio e seis alunos com necessidades educacionais especiais. Como resultados, inferimos a constituição de um novo habitus professoral, manifestado 1 Doutoranda em Educação (UFMS), Mestra em Educação (UEMS/2014); especialista em Alfabetização (IESF-2007), Coordenação Pedagógica (UCDB-2014) e Gestão Escolar (UNIASSELVE-2014); graduada em Pedagogia (FIMES-2004). Professora alfabetizadora da Rede Estadual e Municipal de ensino em Campo Grande - MS. 2 Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2006). Professora da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul no curso de Pedagogia na unidade de Campo Grande, no Programa de Mestrado em Educação na unidade de Paranaíba e no Programa de Mestrado Profissional de Educação na unidade de Campo Grande. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Narrativas Formativas (GEPENAF) e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada (GEPEC).

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Sousa, Sandra Novais

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Grupo de Trabalho: Formação de Professores e Educação

Especial

PROFESSORES DE APOIO AOS ALUNOS COM

NECESSIDADES EDUCACIONAIS ESPECIAIS NO ENSINO

REGULAR: NOVOS HABITUS PROFESSORAIS?

Sandra Novais Sousa1

Eliane Greice Davanço Nogueira2

RESUMO: O presente artigo apresenta como objeto de estudo a constituição do habitus professoral de professores de apoio que atendem nas classes do ensino regular a alunos com necessidades educacionais especiais e a manifestação de um habitus estudantil entre esses alunos. Tem como objetivo analisar, a partir do conceito bourdiesiano de habitus, como tem sido materializado a relação pedagógica dos professores de apoio, observadas em suas práticas docentes e no relacionamento que constroem com os alunos atendidos e com os professores regentes ou titulares das disciplinas. Como metodologia de pesquisa utilizamos os pressupostos da pesquisa qualitativa que se vale de histórias de vida, coletadas por meio de entrevistas narrativas a cinco professoras de apoio e seis alunos com necessidades educacionais especiais. Como resultados, inferimos a constituição de um novo habitus professoral, manifestado nas estratégias didáticas próprias dos professores de apoio para adaptar sua metodologia de ensino tanto às necessidades dos alunos quanto ao planejamento dos professores regentes e aos conteúdos das séries em que os alunos se encontram, além da internalização, pelos alunos, de valores e atitudes próprios de um habitus estudantil. Concluímos, ainda, que as condições oferecidas pelo ensino público não favorecem a uma verdadeira inclusão desses alunos no sistema educacional regular.

Palavras-chave: Professores de apoio. Educação Inclusiva. Habitus.

INTRODUÇÃO

A educação escolar tem sido considerada e propagada como a principal

responsável pela possibilidade de ascensão ou mobilidade social, e ainda como um fator

1 Doutoranda em Educação (UFMS), Mestra em Educação (UEMS/2014); especialista em Alfabetização (IESF-2007), Coordenação Pedagógica (UCDB-2014) e Gestão Escolar (UNIASSELVE-2014); graduada em Pedagogia (FIMES-2004). Professora alfabetizadora da Rede Estadual e Municipal de ensino em Campo Grande - MS. 2 Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2006). Professora da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul no curso de Pedagogia na unidade de Campo Grande, no Programa de Mestrado em Educação na unidade de Paranaíba e no Programa de Mestrado Profissional de Educação na unidade de Campo Grande. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Narrativas Formativas (GEPENAF) e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada (GEPEC). 

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chave na medição do desenvolvimento econômico de um país. Dessa forma, a educação

– e os educadores – colocam-se no centro das discussões políticas e sociais.

desempenhando assim o duplo papel de agentes culturais e agentes políticos, pois são

“[...] funcionários do Estado e agentes de reprodução da ordem social dominante” ao

mesmo tempo em que “[...] personificam também as esperanças de mobilidade social

das diferentes camadas da população.” (NÓVOA, 1991, p. 124)

Em relação à Educação Especial ou às propostas de educação inclusiva,

presentes nos discursos oficiais acerca da educação escolar, na elaboração dos

currículos e nas exigências de oferta de matrículas nas escolas de ensino regular aos

alunos com necessidades educacionais especiais, essa função socialmente atribuída à

escola, de formar cidadãos que possam atuar ativamente na sociedade, ganha

conotações ainda mais expressivas. A própria ideia da inclusão, do respeito à

diversidade de sujeitos, carrega consigo uma dimensão ideológica e um apelo implícito:

a escola e o projeto de escola que uma sociedade coloca em ação são determinantes no

sucesso ou insucesso que uma pessoa vivenciará ao longo de sua trajetória de vida.

É com essas reflexões em mente que nos propomos a pesquisar quais as

situações concretas que são oferecidas aos sujeitos da educação especial, aqui

delimitados pelos professores de apoio que atendem a alunos inseridos no ensino regular

e aos próprios alunos, no que se refere à forma que ocorre essa inserção e como é

constituído o trabalho efetivo do professor de apoio. São questões que nortearam essa

investigação: Como é a relação do professor de apoio com o professor regente ou titular

de uma disciplina? Como é realizado o trabalho didático desses professores? Os saberes

mobilizados por eles e sua prática efetiva guardam pontos em comum com o habitus

professoral desenvolvido em outro contexto?

Em busca de indícios que pudessem nos fornecer algumas respostas iniciais para

essas questões, utilizamos como aporte metodológico os pressupostos da pesquisa

qualitativa, utilizando as histórias de vida para entender os processos de constituição

dos habitus professorais dos professores de apoio e de um habitus estudantil dos alunos

com necessidades educacionais especiais.

A opção metodológica por uma linha de pesquisa que considere os saberes

práticos, as experiências e as motivações dos professores, envolve a adoção de um novo

modo de encarar a docência, a formação inicial e o desenvolvimento profissional

docente. Não é possível empreender esse tipo de pesquisa estando-se ainda arraigado

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em antigos conceitos ou “[...] numa visão mecanicista e positivista da modernidade.”

(SOUZA; PORTUGAL; SILVA, 2013, p. 49).

Dessa forma, “[...] o processo de formação pelas histórias de vida apresenta-se

enquanto movimento de reivindicação, que reconhece os saberes subjetivos e adquiridos

nas experiências e nas relações sociais, sendo ela a própria história de formação do

sujeito.” (ROCHA; SOUZA, 2013, p. 179).

Para tanto, escolhemos como instrumento para produção de dados as entrevistas

narrativas, assim caracterizadas:

As entrevistas narrativas se caracterizam como ferramentas não estruturadas, visando a profundidade, de aspectos específicos, a partir das quais emergem histórias de vida, tanto do entrevistado como as entrecruzadas no contexto situacional. Esse tipo de entrevista visa encorajar e estimular o sujeito entrevistado (informante) a contar algo sobre algum acontecimento importante de sua vida e do contexto social. Tendo como base a ideia de reconstruir acontecimentos sociais a partir do ponto de vista dos informantes, a influência do entrevistador nas narrativas deve ser mínima. Nesse caso, emprega-se a comunicação cotidiana de contar e escutar histórias. (MUYLAERT et al, 2014, p. 194)

Seguindo esse princípio, optou-se por ouvir as histórias de vida de cinco

professoras de apoio, atuantes em duas escolas públicas de Campo Grande/MS, sendo

uma da rede estadual e outra da rede municipal de ensino, e de seis alunos por elas

atendidos, em busca de entender como se dão suas relações professor/aluno no ambiente

escolar, na perspectiva da educação inclusiva, não nos restringindo, portanto, apenas à

analise teórica dos programas de formação ou da legislação oficial sobre a inclusão

escolar.

2. Alguns conceitos importantes: A aproximação entre saberes experienciais e Habitus

profissional

Para se estudar a educação e os fenômenos sociais a ela ligados, precisamos

buscar os “[...] saberes professorais – desenvolvidos, adquiridos e reproduzidos –

necessários ao exercício da docência”. (SILVA, 2011, p.339). Nesse sentido, a

utilização de histórias de vida constitui-se num importante recurso teórico-

metodológico, apontado não somente como forma de “coleta de dados”, mas como

dispositivos que podem ser utilizados, inclusive, em favor de processos autoformativos

ou autorreflexivos, e como forma de incluir as vozes dos profissionais que ensinam nas

salas de aula, seja no âmbito da Educação Especial, seja em outras modalidades da

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Educação Básica, nos discursos que propõem alterações de melhoria na qualidade da

educação oferecida.

Segundo Marilda Silva (2011, p. 339), “Isso se justifica pela nossa necessidade

de dados oriundos da experiência docente por parte dos agentes que a vivem, já que o

exercício de sua prática é que consubstanciam os dois habitus em questão, o de quem

ensina e o de quem aprende.”

O conceito de habitus , elaborado por Pierre Bourdieu é importante para se

estabelecer proximidades e distâncias sociais, no sentido que descortina as mudanças

pelas quais passa o sujeito, em relação às suas formas de ver e simbolizar a realidade

social, “[...] associadas ao nível de instrução (avaliado pelo diploma escolar ou pelo

número de anos de estudo) e, secundariamente, à origem social.” (BOURDIEU, 2008, p.

09). Para Bourdieu (1983), habitus é um

[...] sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes, isto é, como princípio que gera e estrutura as práticas e as representações que podem ser objetivamente "regulamentadas" e "reguladas" sem que por isso sejam os produtos de obediência de regras, objetivamente adaptadas a um fim, sem que se tenha necessidade da projeção consciente deste fim ou do domínio das operações para atingi-lo, mas sendo, ao mesmo tempo, coletivamente orquestradas sem serem o produto da ação organizadora de um maestro (BOURDIEU, 1983, p. 15, grifo do autor).

São essas “práticas e representações”, percebidas nas ações e comportamentos

dos professores de apoio e dos alunos com necessidades educacionais especiais, no caso

específico que pretendemos pesquisar, “[...] que permitem ao observador identificar a

que grupo [...] o sujeito exposto pertence, sem que ele tenha oferecido informações a

esse respeito”. (SILVA, 2011, p. 338). Dessa forma, colocamo-nos numa posição que

defende a não separação entre o saber teórico e o saber prático, quando da pesquisa

sobre saberes e representações docentes:

Quando pensamos a práxis do professor, entendemos que esta é a exteriorização dos sistemas das disposições estruturadas (no meio social) e estruturantes (nas mentes), portanto reveladora da ação do habitus, que por sua vez é capaz de expressar num movimento dialético as trocas entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo. Isto nos leva a pensar que cada experiência vivida pelo agente pode forjar um novo habitus, como produto das experiências práticas, em condições específicas da docência. Essas relações levam o indivíduo a desenvolver gostos, sentimentos, valores, vontades, capacidade de escolhas que não podem ser calculadas de maneira mecânica. O modo de perceber e fazer suas escolhas passa a ser a exteriorização da

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incorporação desse novo habitus adquirido. (SILVA; ASSIS, 2014, p. 81)

Em tal contexto, para estudar o que Silva (2011) denomina de habitus

professoral e habitus estudantil, é preciso se ater a como o professor age no exercício da

sua profissão, algo que envolve mais do que pesquisar quais as formas de formação

(inicial ou continuada) disponíveis e como os alunos/estudantes internalizam ou

manifestam os valores neles inculcados por meio da ação pedagógica. São nas ações

efetivas do dia a dia que os professores demonstram como colocam em prática os

saberes teóricos, adquiridos em processos formativos e os estudantes demonstram ter

assimilado (ou não) o que a ação pedagógica intentou inculcar.

Segundo Silva (2005; 2011) o estudo do habitus professoral engloba, por sua

vez, o estudo do habitus estudantil, uma vez que os “[...] alunos também exibem

ações/comportamentos que facilitam a identificação do grupo de agentes ao qual

pertencem.” (SILVA, 2011, p. 338). Assim, ao entrevistar os alunos atendidos no

âmbito da educação especial, inseridos no ensino regular, pretende-se descobrir em seus

comportamentos como estes percebem o ambiente escolar, o que dele esperam e, ainda,

se a realidade do cotidiano educativo tem correspondido às suas expectativas.

Espera-se que, ao evidenciar as trajetórias dos sujeitos narradores, seja possível

repensar o verdadeiro sentido da inclusão, que passa envolve não apenas a ampliação do

acesso ao ensino regular por meio da obrigatoriedade das escolas públicas em matricular

alunos com necessidades educacionais especiais. Se não são oferecidas condições para o

desenvolvimento do trabalho educativo a esses sujeitos, seja por falta de condições

materiais, seja por falta de qualificação específica dos profissionais envolvidos no

processo educativo, que não se restringe aos professores, a inclusão fica apenas no

âmbito do discurso. Assim, segundo Pietro,

É preciso provê-los em suas necessidades específicas, pois a igualdade de direitos, neste caso, é preservada se combinada com o direito a diferença, que deve ser concretizado, inclusive pela disponibilização de um conjunto de provisões, serviços, equipamentos, materiais, profissionais capacitados e especializados para seu atendimento. (PRIETO, 2010, p. 72),

Portanto, considerar os alunos com necessidades especiais apenas nos

documentos legais – leis, resoluções, textos de políticas públicas, como o Pacto

Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, recentemente implantado - é insuficiente

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para atender suas necessidades, já que elas pressupõem apoio técnico e financeiro, entre

outros.

3. Os sujeitos da educação especial: novo campo de atuação, novos habitus professorais?

O primeiro aspecto da história de vida das professoras que buscamos foi em

relação aos motivos que as levaram, em sua trajetória profissional, a optar pelo trabalho

com alunos com necessidades educacionais especiais.

Encontramos histórias como a da professora Diana, 51 anos, graduada em

Pedagogia, 8 anos de magistério e especialista em Atendimento Educacional

Especializado, que narra que havia trabalhado como professora das séries iniciais há

muitos anos, mas ao passar em um concurso público deixou a escola para trabalhar em

um banco, onde foi “ficando”, pois “você vai fazendo aquilo que te aparece no

momento...”. No entanto, apesar de estar trabalhando no setor bancário, em uma função

muito distante da profissão escolhida na graduação (Pedagogia), “o que lá dentro pedia

era a área da educação”, então, continuou se “formando”, fazendo cursos na área da

educação especial. Então, há três anos, mudou completamente sua vida profissional,

fazendo inscrição para o trabalho como professora de apoio na rede municipal de ensino

e, finalmente, após fazer uma prova classificatória, conseguiu “pegar um aluno

especial”.

Essa mudança, narra a professora, modificou profundamente sua forma de ver o

mundo. Ela conta: “Eu me encontrei. Depois que eu comecei a trabalhar com eles eu

entendi tanta coisa que você muitas vezes não dá valor... e, com eles, não. Coisas

simples [são] momento de alegria para eles. Coisas que você faz de forma tão

automática, é muita alegria para eles.” (Professora Diana). Enfatiza, ainda, que é

necessário gostar muito do que faz para encarar os desafios dessa modalidade da

educação, pois “tudo que você for fazer não tiver o amor, você não vai fazer direito.

Tem que gostar mesmo. Tem que gostar de estar na sala de aula, ou de qualquer outra

coisa, tem que gostar.” (Professora Diana). E responde, sem titubear, que se hoje

tivesse a possibilidade de escolha entre ser professora regente de uma classe ou ser

professora de apoio, escolheria a educação especial. Sobre a especificidade do trabalho

com alunos com necessidades especiais afirma: “É muito diferente. É outra coisa, você

sai, e pega uma criança assim, a sua cabeça fica outra. Você melhora cem por cento. O

seu jeito de ver o mundo, as coisas, modifica” (Professora Diana).

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Diana é professora de apoio de Hermes, um rapaz de 17 anos, aluno do 4º ano de

uma escola municipal, CID F72 (Retardo mental grave), que se mostrou pouco a

vontade com a situação de entrevista e demorou um pouco para interagir com a

entrevistadora. Puxamos assunto sobre futebol (ele é são-paulino), mas sem muito

sucesso. Várias vezes a professora Diana intervinha: “Pode responder.... Pode falar,

você está em casa..”

Por fim, conseguimos que ele nos contasse que sabe escrever seu nome “mais ou

menos”, que o que mais gosta é do esporte adaptado com o professor que só ele lembrou

o nome (e era um nome pouco usual) e que foi convidado pelo professor para jogar

bocha nas olimpíadas: “Ele que me colocar” – “E você quer ir?” - perguntamos. “Eu

quero!”.

Apesar de claramente demonstrar satisfação pelo campo de atuação escolhido, a

professora Diana menciona como alguns aspectos dificultam o desenvolvimento do seu

trabalho. Quando perguntamos se o aluno Hermes ficava o tempo todo em sua cadeira

de rodas, que possui uma pequena mesa embutida, ela desabafou:

[...] eu já pedi a mesa, mas está em falta. Então ele fica o tempo inteiro com esta daqui. Você vai trabalhar um material aqui? Um jogo da memória? Falta espaço. E ele sempre tem esses espasmos [com os braços e mãos], então, se o espaço é pouco, ele vai jogar as peças. Se você tem uma mesa, você pode trabalhar melhor. (Professora Diana).

Gaia, 42 anos, pedagoga, 21 anos de docência nas séries iniciais e Educação

Infantil, é especialista em Psicopedagogia e Educação Especial. Ela conta que fez o

curso de Psicopedagogia, em primeiro lugar, pelo fato de querer entender e auxiliar

melhor o filho mais novo, que é hiperativo. A partir dessa experiência formativa, tentou

“entrar na educação especial”. Ficou sabendo que seria oferecida uma especialização

em educação especial, fez e gostou. Conforme ela narra: “Fiquei com eles e gostei,

porque a psicopedagogia ensina ‘n’ jogos, como trabalhar com as crianças, é diferente,

eu gostei.” (Professora Gaia).

A professora Gaia narra sobre um aspecto premente da função do professor de

apoio, que é a necessidade de se elaborar um planejamento adaptado àquele que o

professor titular da disciplina faz para o “restante” da classe:

6º ano é complicado. São 8 professores, eu não consigo sentar com nenhum deles. Eu tenho o planejamento do que é para o 6º ano [as diretrizes curriculares] por bimestre. Então eu tento trocar ideias com

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os professores, assim, rapidamente, eu tento perguntar para eles o que é que eles vão dar, mas nem sempre é possível. Eu faço o meu planejamento adaptado para o Apolo e a Hera. Às vezes, eles [os professores] dão um pouquinho diferente do que eu havia imaginado, então na hora [da aula] eu dou uma adaptada, e assim vai... (Professora Gaia)

Esse aspecto específico do trabalho do professor de apoio indica as mudanças na

atuação profissional em relação ao trabalho que antes desempenhavam como

professoras regentes. É preciso, para conseguir fazer o seu trabalho, estar atento ao que

o professor da disciplina planejou, ao currículo (disciplinar) da série/ano em que o aluno

se encontra e adaptá-lo a uma situação de ensino diferenciada, em que muitas vezes o

aluno a quem esse ensino se dirige não possui os pré-requisitos necessários para o

entendimento do conteúdo que está sendo trabalhado com o restante da sala. Suas

necessidades educacionais são outras, mas elas devem ser “temperadas” com o currículo

oficial, em atividades que nem sempre são capazes de fazê-los acompanhar o ritmo da

turma. Dessa forma, percebem-se dois aspectos bem marcados: a autonomia do

professor de apoio é relativa, pois este deve seguir o planejamento do professor regente;

por outro lado, por conhecerem melhor as necessidades dos alunos a quem atendem,

esses professores desenvolvem estratégias únicas de ação pedagógica, aproveitando os

“conteúdos” para trabalharem, da melhor forma possível, o que o aluno precisa. No caso

dos alunos desse estudo, a alfabetização, uma vez que nenhum deles está ainda

alfabetizado, apesar de frequentarem o 2º, 4º, 5º e 6º ano do Ensino Fundamental.

A professora Gaia atende aos alunos Hera e Apolo. Hera tem12 anos de idade, é

aluna do 6º ano de uma escola municipal. Nos arquivos de sua matrícula, encontramos o

CID G80.0 (Paralisia cerebral quadriplágica espástica). Segundo as regras da SEMED

(Secretaria Municipal de Educação de Campo Grande/MS), Hera não teria direito ao

auxílio de um professor de apoio, como narra a professora Gaia: “[...]a Hera nunca

teve professor de apoio, nem estagiária, ninguém com ela. O ano passado que eu vim

para o Apolo e comecei a dar assistência para ela também.[...] eu sou só do Apolo, mas

como eu já estou lá, então eu dou assistência para ela.”(Professora Gaia)”.

Sobre o fato da aluna não ter esse direito, a professora se manifesta:

Mas ela deveria ter! Porque do pré ao 5º ano, ela não sabia nada. Isso que eu acho errado. Se a criança passou pelo primeiro ano e não foi alfabetizada, tem que ter professor [de apoio], porque se [a criança] não se desenvolve como as outras crianças da turma, então precisa de apoio. Se não, vai ficar perdendo tempo? Se a Hera tivesse

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desde lá do prezinho, ela já estaria no nível [dos alunos] do 6º ano. Então [esses] dois anos [com professora de apoio] foi ótimo. (Professora Gaia)

Dessa forma, a aluna, claramente prejudicada por não ter uma professora de

apoio desde o início de sua escolarização, passou pelo 1º, 2º, 3º e 4º ano sem ser

alfabetizada. Ao perguntarmos para aluna qual ano ela cursava, sua resposta foi: “5º, eu

acho...”. Indagamos: “Não seria o 6º ano?”, ao que ela disse: “Eu acho que é...”

Essa pergunta feita à Hera foi repetida para todos os alunos, sendo que todos,

sem exceção, não souberam precisar em que série estavam. No entanto, por outro lado,

Hera demonstra uma percepção aguçada do espaço escolar. Quando perguntamos a ela

o que faltava na escola para esta ficasse melhor, respondeu prontamente: “Podia ter

uma rampinha, para as cadeirinhas que têm aqui, né? Porque não tem como subir, aí

tem que erguer a cadeira? Tem que ter a rampinha.” (A escola possui algumas rampas,

nos locais onde há escadas, mas não para acesso a alguns lugares, como a biblioteca,

local em que estávamos). Ao responder se no trajeto que fazia de casa para a escola

havia essa adaptação, respondeu que na rua está mais fácil se locomover do que na

escola, pois em seu caminho para a escola encontra uma rampa, com faixa de pedestres,

e que “Eles [a prefeitura] fizeram a calçada, a gente pára lá e os carros param para

mim, para minha mãe, para todo mundo. Mas, às vezes eles não param, a gente fica

lá...”.

Longe de estar alheia ao que acontece a sua volta, Hera percebe o mundo ao seu

redor e as dificuldades ou facilidades que este apresenta à sua condição especial. Talvez

por conviver mais estreitamente com pessoas dessas profissões, ao responder sobre qual

profissão quer seguir quando terminar seus estudos, diz: “Eu penso de ser professora ou

médica”. “E o que você acha que uma pessoa tem que fazer para ser uma

“professora”?” – perguntamos - ao que ela respondeu, em toda a sua singeleza:

“Estudar!”

As regras e códigos de conduta próprios de estudantes, também foram bem

internalizados, demonstrados na reprodução de um habitus estudantil e na manifestação

de que, por sua vez, para ser um bom aluno, deve-se “ler e estudar”, “não conversar na

sala, ficar em silêncio”.

Hera é colega de sala de Apolo e, conforme já mencionamos, “dividem” a

mesma professora de apoio, que precisa elaborar um planejamento diferente para cada

um:

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É complicado. Porque com o Apolo eu estou começando o pré-braile. Eu comecei o ano passado, mas ele ainda tem muita dificuldade, porque ele não consegue memorizar nem a letra A.[...] Como ele nunca teve braile, e braile é difícil... E a Hera, ela está boa em matemática. Ela já faz sozinha continha de adição, subtração, agora eu estou começando multiplicação, com o material dourado. Ela já começou a escrever palavrinhas simples, com as sílabas simples, ela consegue ler algumas palavrinhas do livro. (Professora Gaia)

Ao passo que Hera apresenta avanços significativos, observados a partir do seu

5º ano de escolaridade, Apolo, por sua vez, apresenta poucos avanços na aprendizagem.

Apolo tem11 anos, seu CID é G80 (Paralisia cerebral), H54 (Cegueira em ambos os

olhos) e H35 (Outros transtornos de retina). Ao perguntarmos quem é sua professora,

ele diz: “A Solange!”. Então perguntamos se não seria a Gaia, ao que ele responde que

não: Ela é “sua linda”. Em sua entrevista, o aluno diz que consegue andar sozinho pela

escola, subir e descer escadas sem ajuda, já escreve seu nome e lê seus livros sozinho.

Essa é sua autoimagem, embora não corresponda à realidade observada pelos adultos:

Ele anda sempre com apoio de alguém (aluno ou professor), e ainda não identifica nem

a letra inicial do seu nome. Começou a ter aulas de pré-braile agora, no 6º ano, por

questões de desentendimento de seus responsáveis com a escola. A família insistia que o

Apolo enxergava, apesar do laudo de cegueira em ambos os olhos.

Sobre a imagem que tem sobre o que é ser estudante, revela que o que faz na

escola é “brincar.” Esse é o seu universo: as tentativas de fazê-lo aprender a linguagem

em braile se configuram para ele como uma gostosa brincadeira, que ele aceita (ou não)

a depender do seu humor ou do quanto está disposto a isso.

Já a professora Ferônia, 51 anos, graduada em Psicologia e graduanda em

Pedagogia, com 20 anos de atuação como professora das séries iniciais, especialista em

Educação Inclusiva, Atendimento Educacional Especializado e Deficiência Visual, é

professora de apoio de Eros, que conta em seu registro de matrícula com o CID G80

(Paralisia Cerebral) e F70 (Retardo mental leve). Sobre Eros e sua participação nas

atividades de sala, a professora narra:

[...] ele sempre ficava em um cantinho, e ninguém se importava com ele. Hoje não, “eu” faço ele se relacionar, porque mesmo que ele fique quieto, só olhando, ele está ali, está presente com elas. Então ele participa dessa maneira. E ele gosta, ele olha para um, olha para outro, ele sabe que ele está no grupo. Antes, ele ficava sozinho, e eu acho que é por esse motivo também que ele não falava muito... (Professora Ferônia)

Depois que passou a ser atendido por ela, a professora narra sua mudança:

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Hoje ele fala, ele ri, ele grita, ele berra, ele se diverte. É bacana ver isso, apesar de que o que eu queria mesmo dele era a parte da alfabetização, mas toda criança tem o seu tempo. Toda criança precisa do tempo. Eu acho que esse tempo que ele está aqui, se relacionando com o outro, que “eu” estou colocando ele para se relacionar com as outras crianças, e com os professores também, eu acho que isso aí é que vai alavancar a alfabetização. (Professora Ferônia)

Porém, na entrevista, não conseguimos que Eros falasse conosco. Perguntamos

sobre o maninho (Apolo), onde ele estava, se ele gostava da escola, e nada: silêncio. Até

que a professa Ferônia disse: “Você não quer falar hoje? Ele fala, sim, quando passa

uma menina bonita ele diz “gostosa”.” E foi quando ouvimos a voz de Eros, que repetiu

sem parar, com um grande sorriso maroto no rosto: “Gostosa, gostosa...”Mas, quando

trocávamos de assunto e perguntávamos outra coisa, vinha o silêncio. Olhava para o

lado e não fazia caso.

O silêncio do aluno, junto a sua manifestação espontânea quando o assunto lhe

interessou, é sinal de grande avanço. Em sua forma singular de se comunicar, até

mesmo pelo não dito, demonstra perceber o mundo à sua volta e manifesta o que lhe

agrada ou desagrada.

Segundo o relato da professora Ferônia:

Quando eu peguei ele o ano passado ele não conversava. Hoje ele fala. Não é aquela conversa longa, estendida, mas ele fala algumas frases para você. Ele já consegue formar algumas frases... Hoje ele sabe o que é “não”. “Não pode, Eros”, “Não faz, Eros”. Mas, ele acaba fazendo... porque ele acha divertido, ele dá risada quando ele faz alguma coisa que ele sabe que é proibido, que não pode. Ele tem entendimento sim.

Até mesmo o fato de ele se divertir quando sabe que está quebrando as regras,

demonstra que esse “[...] princípio que gera e estrutura as práticas e as representações

que podem ser objetivamente “regulamentadas” e “reguladas”” (BOURDIEU, 1972, in

ORTIZ, 1983, p. 15), o habitus, está presente em suas ações.

Pensando em alunos como Eros, Apolo e Hera, e em tantos outros em condições

semelhantes, mesmo sem algum CID ou laudo, nos questionamos se ao serem pensadas

políticas públicas de formação de professores, como o PNAIC – Pacto Nacional pela

Alfabetização na Idade Certa, esses são levados em consideração. Ou o “tempo certo”

se refere somente aos “outros” alunos, não a todos, a toda a diversidade de sujeitos

inseridos nas classes de alfabetização ou no inteiro sistema público de ensino?

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Por exemplo, Dóris, aluna de 10 anos de idade, matriculada no 2º ano em uma

escola estadual, que apresenta: CID Q87 (Síndrome com malformações congênitas que

acometem múltiplos sistemas), G80 (Paralisia cerebral), F72 (Retardo mental grave),

G20 (Doença de Parkinson) e H26.0 (Catarata infantil, juvenil e pré-senil), pode ser

incluída no “pacote” de alfabetização na idade certa?

Sua professora de apoio é Irene, 42 anos, graduada em Ciências Biológicas,

cursou Magistério, possui 15 anos na profissão docente e é especialista em Educação

Especial. Com toda a sua atenção e dedicação, assim como a professora regente,

conseguiu avanços significativos na aprendizagem de Dóris. Ela já reconhece várias

letras do alfabeto e conhece alguns números.

Quando perguntamos para Dóris se ela gostava da escola, a aluna balançou

enfaticamente a cabeça que não, mas com um grande sorriso no rosto. A professora

Irene veio em nosso apoio, explicando que para Dóris, o “não” significava “sim”: “Essa

negação, é por conta do autismo. O pai já me perguntou: Às vezes a gente vê que ela

quer alguma coisa, mas ela fala não. Eu expliquei que esse gesto dela significa “sim”,

na linguagem própria dela.” (Professora Irene).

Assim, em sua linguagem própria, às vezes em LIBRAS, às vezes com falas

pouco compreensíveis para quem não convive diária e diretamente com ela, Dóris conta

que gosta da escola, que na escola toma sorvete e faz atividades no computador. Mas,

não quer muita conversa. Perguntamos quem era sua professora, ela apontou para Dóris

e disse “Acabou!”, oralmente e por gestos, encerrando de vez a entrevista.

Na história de vida da professora Irene a educação especial entrou por convite.

Havia um aluno, na escola em que ela trabalhava como professora de Ciências, que era

autista, e estava sem acompanhamento especializado. A diretora da escola, sabendo que

ela, além de Ciências Biológicas, possuía o curso de Magistério, pelo fato de Irene

constantemente fazer substituições no contra-turno da mesma escola em que trabalhava,

a convidou para trabalhar como professora de apoio desse aluno, pois não havia

“nenhum profissional na escola” que pudesse atendê-lo. Assim, a partir do momento

que começou a acompanha-lo, passou a buscar informações, tendo como único

elemento concreto o CID constante no laudo do aluno, encontrado em seus arquivos de

matrícula na escola. A formação que teve, então, foi por intermédio de suas pesquisas

pessoais, das informações da técnica do NUESP (Núcleo de Educação Especial da

Secretaria de Estado de Educação) e da frequência às reuniões da AMA (Associação de

Pais e Amigos dos Autistas). Narra a professora:

Page 13: Artigo Anpae Educação Inclusiva

Eu participei de alguns encontros da AMA. Participei de congressos. Mas, porque eu fiz um cadastro na AMA, quando ele começou a frequentar a AMA por exigência do NUESP, e a partir desse cadastro eles me informavam quando iam ter os congressos, e eu comecei a participar. Porque eu tinha que saber como eu ia trabalhar. (Professora Irene, grifos nossos).

Ao narrar a importância do contexto escolar para esse aluno, a professora

evidencia o papel das técnicas do NUESP e da professora da sala de recursos nesse

processo. Foi a “[...] técnica que avaliou e a professora da sala de recursos também

ajudou no diagnóstico, pois ela tinha vários cursos, o que ajudou também. E assim ele

foi encaminhado para o tratamento” (Professora Irene). Ou seja, diante do

desconhecimento no ambiente familiar, a escola teve um papel importante, somente

levado a cabo pela intervenção dos “técnicos” do NUESP e da professora da sala de

recursos. Ao mesmo tempo em que esse fato demonstra a importância do ambiente

escolar para os alunos com necessidades especiais, também traz a tona o fato de que a

escola, como instituição autônoma, ainda não possui recursos suficientes para dar conta

das múltiplas funções que estão ao seu encargo. Sem o apoio de setores externos ao

ambiente escolar, instituído por políticas públicas específicas, a escola pouco pode fazer

nesses casos, pelas deficiências em sua estrutura, tanto no que se refere à parte física da

escola como ao efetivo de profissionais que ali estão. Falta investimento do poder

público em formações que realmente preparem o professor, o coordenador pedagógico,

o gestor escolar, para lidar com essas situações, ficando assim a escola dependente de

ações externas a ela, que nem sempre chegam de forma pontual quando é necessário. Os

técnicos do NUESP são em número reduzido, precisam atender a diversas escolas de

uma região, ficando muitas vezes sobrecarregados, o que faz com que haja uma demora

significativa entre o espaço de tempo em que um aluno/a é indicado/a para avaliação e

os efetivos encaminhamentos para o Atendimento Educacional Especializado.

Entrevistamos também a professora Caria, 25 anos, formada em Ciências

Biológicas, Mestra em Biologia, professora há 4 anos, cursa Pós-Graduação (lato sensu)

em Educação Especial. Narra que buscou a especialização em educação especial por ter

em sua sala de aula, onde lecionava Ciências, alguns alunos com necessidades

educacionais especiais, sentindo a necessidade de procurar uma formação que a

auxiliasse seu trabalho didático com esses alunos. Começou a fazer uma especialização,

se identificou com a proposta e está há um ano como professora de apoio.

Page 14: Artigo Anpae Educação Inclusiva

A aluna que atende atualmente é Têmis, 7 anos de idade, aluna do 1º ano dessa

mesma escola estadual, CID G80(Paralisia cerebral ), F71 (Retardo mental moderado),

F60 (Transtornos específicos de personalidade) e G40 (Epilepsia), é auxiliada pela

professora Caria. Também demonstrou, em seu comportamento, que não estava muito

satisfeita com essa quebra em sua rotina, e do fato de estar sendo entrevistada. Com

algum esforço, conseguimos que nos relatasse que o que mais gostava na escola era

desenhar e pintar com tinta, jogar bola na educação física e fazer suas atividades,

escrever. A professora Caria quis que ela nos mostrasse que sabia escrever a primeira

letra do seu nome, mas ela se recusou, fez um risco em uma folha e voltou a se entreter

com uma cadeira giratória e com os objetos (mais interessantes) na mesa da diretora.

Mas as regras de conduta próprias do habitus estudantil estavam bem

internalizadas. Ao perguntarmos como uma criança devia se comportar na escola,

respondeu prontamente: “Atenção” e, com essa simples palavra, resumiu todas as

normativas implícitas na relação estudante/escola.

Considerações finais.

Ao analisar as entrevistas desses alunos mais do que especiais, ouvi-los e

entendê-los, percebemos o quanto estamos longe de incluí-los realmente no sistema

público de ensino regular e, ainda, o quanto o papel da professora de apoio é importante

nesse processo, embora suas funções ainda estejam sendo definidas nesse novo campo

de atuação, imbricado, mas totalmente diferente do campo em que atuavam, e do

habitus que possuíam, como professoras regentes ou de disciplinas específicas. Ou seja,

esse novo campo, como “um sistema  de  desvio de  níveis diferentes” somente será

compreendido, somente terá sentido, se considerado “relacionalmente,  por  meio  do 

jogo das oposições e das distinções.” (BOURDIEU, 2003, p.179).

Ser professora de apoio confunde-se, muitas vezes, com o que essa condição se

opõe a não ser professora de apoio, e sim regente. Como professora regente, há um

corpus de atribuições e se espera um determinado comportamento. Como professora de

apoio, esse corpus de atribuições muda, embora o trabalho seja feito no mesmo

ambiente, sob as mesmas condições e, de certa forma, com os mesmos objetivos:

conseguir com que o aluno aprenda, considerando-o em sua condição de sujeito ímpar,

com ritmo de aprendizado próprio e com características únicas.

Page 15: Artigo Anpae Educação Inclusiva

Percebemos, ainda, que a presença dos professores de apoio nas salas de aula do

ensino regular, ou a sua ausência, no caso aqui tratado da aluna Hera, tem a ver com a

instituição de um novo campo profissional, com habitus e expectativas próprias,

caracterizados por uma relação que não permite um trabalho autônomo aos professores

de apoio, visto que precisam sempre levar em consideração o planejamento feito pelos

“titulares”, embora não tenhamos percebido nas entrevistas que haja o firmamento de

uma parceria pedagógica, com vistas ao desenvolvimento de todo o potencial criativo e

de aprendizagem desses sujeitos.

Referências

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