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Cadernos de Educação de Infância n.º 94 Set/Dez11 30 : ARTIGO Fundámos uma associação sem fins lucrativos, a Associação Social Polivalente, construímos um centro social, com o apoio da Embaixa- da da Holanda… Os nossos primeiros “jogos” foram pedaços de madeira cortados aos bo- cadinhos e um cesto com alguns bonecos de peluche. O jardim infantil conta agora mais de 300 crianças, das quais metade pertence às famílias mais pobres do bairro. Optámos por funcionar em dois turnos, de manhã e de tarde, para podermos acolher o dobro das crianças. Com a ideia de promover socialmen- te a família inteira, organizámos uma ATL para as crianças da 1ª à 7ª classes, fizemos turmas de alfabetização de adultos, equipámos uma biblioteca onde os estudantes tivessem aces- so aos livros de estudo que não conseguem comprar, equipámos e pusemos a funcionar uma sala de informática… À semelhança deste, com algumas variantes, têm começado por toda a cidade um bom nú- mero de centros sociais e jardins infantis liga- dos à Igreja e sem fins lucrativos, que recebem muitas crianças pobres. Relação com o Estado Em Moçambique a educação de infância está O Estado não faz, não apoia? Mas, conjugan- do esforços, conseguimos nós fazer e orga- nizar muita coisa! Não tinha nada: nem casa onde acolher as crianças, nem material didático, nem ou- tras educadoras com quem trabalhar. Na minha bagagem, alguns jogos de encaixe, puzzles , canetas de feltro e papel… Come- cei por dialogar com as crianças, por contar histórias à sombra de uma árvore, por dar papel e canetas para desenhar, na varanda cimentada do salão paroquial. Depressa me dei conta de que a maioria das crianças não teria condições para pagar uma mensalidade no jardim infantil. E eu, mais do que tudo, queria trabalhar exatamente com esses, com os que vivem descalços, esfarrapados, sujos e famintos. Sabendo que a maior parte das crianças pobres só come uma vez por dia, senti a necessidade de lhes dar uma segun- da refeição quente diária. Onde ir buscar o dinheiro? Como comprar a comida e o mate- rial mínimo, como pagar ao pessoal? Surgiu a ideia de haver algumas pessoas de bom coração que quisessem apoiar a educação de uma criança moçambicana, e o projeto dos padrinhos começou a rolar. Alguns dados do Ministério da Saúde dizem- -nos que: - Metade da população de Moçambique tem menos de 18 anos; - Só 32% têm acesso à escola primária; - 28% morrem antes dos 5 anos; - 38% com menos de 3 anos são desnutri- dos; - A esperança de vida, por causa da sida, baixou para 38 anos. Perante estes dados, talvez consigam imagi- nar a multidão de crianças de todas as idades que anda na rua! É frequente encontrarmos crianças de 5 ou 6 anos transportando os ir- mãozinhos às costas. Saem de todos os bu- racos, em bandos, sempre sorridentes, livres como os passarinhos e felizes à sua maneira, porque de um modo geral são muito estima- das pelas famílias; como não conhecem uma realidade diferente, também normalmente não sonham com ela. As crianças são muito meigas, sorridentes e disciplinadas, não é nada difícil trabalhar com elas. Entre si, protegem muito os mais novos. Tenho sempre comigo a imagem da- quele passeio que dei a pé com um grupo de crianças de 3 a 5 anos: ainda um pouco dis- tantes de casa, as mais novinhas começaram a dar sinais de cansaço. Que fazer? Eu não podia pegar-lhes ao colo, eram muitas… Ao olhar para o lado, qual a minha surpresa ao ver que as de 5 anos se tinham baixado, as mais pequeninas subiram-lhes para as cos- tas e fizeram o resto do caminho assim, sem os mais velhos darem mostras de enfado ou trocarem sequer uma palavra de censura! São assim as crianças moçambicanas! Como o nosso projeto começou Sou religiosa e terminei o curso de educa- dora na Maria Ulrich, em 1970. Vim para Moçambique, a meu pedido, com a ideia de tentar fazer alguma coisa pelas crianças e na formação dos monitores que com elas traba- lham. Cheguei em 1995, há 16 anos. As crianças em Moçambique Ir. Maria Assunção Osório . Educadora de infância

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Cadernos de Educação de Infância n.º 94 Set/Dez1130

: ARTIGO

Fundámos uma associação sem fins lucrativos, a Associação Social Polivalente, construímos um centro social, com o apoio da Embaixa-da da Holanda… Os nossos primeiros “jogos” foram pedaços de madeira cortados aos bo-cadinhos e um cesto com alguns bonecos de peluche. O jardim infantil conta agora mais de 300 crianças, das quais metade pertence às famílias mais pobres do bairro. Optámos por funcionar em dois turnos, de manhã e de tarde, para podermos acolher o dobro das crianças. Com a ideia de promover socialmen-te a família inteira, organizámos uma ATL para as crianças da 1ª à 7ª classes, fizemos turmas de alfabetização de adultos, equipámos uma biblioteca onde os estudantes tivessem aces-so aos livros de estudo que não conseguem comprar, equipámos e pusemos a funcionar uma sala de informática… À semelhança deste, com algumas variantes, têm começado por toda a cidade um bom nú-mero de centros sociais e jardins infantis liga-dos à Igreja e sem fins lucrativos, que recebem muitas crianças pobres.

Relação com o EstadoEm Moçambique a educação de infância está

O Estado não faz, não apoia? Mas, conjugan-do esforços, conseguimos nós fazer e orga-nizar muita coisa! Não tinha nada: nem casa onde acolher as crianças, nem material didático, nem ou-tras educadoras com quem trabalhar. Na minha bagagem, alguns jogos de encaixe, puzzles, canetas de feltro e papel… Come-cei por dialogar com as crianças, por contar histórias à sombra de uma árvore, por dar papel e canetas para desenhar, na varanda cimentada do salão paroquial. Depressa me dei conta de que a maioria das crianças não teria condições para pagar uma mensalidade no jardim infantil. E eu, mais do que tudo, queria trabalhar exatamente com esses, com os que vivem descalços, esfarrapados, sujos e famintos. Sabendo que a maior parte das crianças pobres só come uma vez por dia, senti a necessidade de lhes dar uma segun-da refeição quente diária. Onde ir buscar o dinheiro? Como comprar a comida e o mate-rial mínimo, como pagar ao pessoal? Surgiu a ideia de haver algumas pessoas de bom coração que quisessem apoiar a educação de uma criança moçambicana, e o projeto dos padrinhos começou a rolar.

Alguns dados do Ministério da Saúde dizem--nos que:- Metade da população de Moçambique

tem menos de 18 anos;- Só 32% têm acesso à escola primária;- 28% morrem antes dos 5 anos;- 38% com menos de 3 anos são desnutri-

dos;- A esperança de vida, por causa da sida,

baixou para 38 anos.

Perante estes dados, talvez consigam imagi-nar a multidão de crianças de todas as idades que anda na rua! É frequente encontrarmos crianças de 5 ou 6 anos transportando os ir-mãozinhos às costas. Saem de todos os bu-racos, em bandos, sempre sorridentes, livres como os passarinhos e felizes à sua maneira, porque de um modo geral são muito estima-das pelas famílias; como não conhecem uma realidade diferente, também normalmente não sonham com ela. As crianças são muito meigas, sorridentes e disciplinadas, não é nada difícil trabalhar com elas. Entre si, protegem muito os mais novos. Tenho sempre comigo a imagem da-quele passeio que dei a pé com um grupo de crianças de 3 a 5 anos: ainda um pouco dis-tantes de casa, as mais novinhas começaram a dar sinais de cansaço. Que fazer? Eu não podia pegar-lhes ao colo, eram muitas… Ao olhar para o lado, qual a minha surpresa ao ver que as de 5 anos se tinham baixado, as mais pequeninas subiram-lhes para as cos-tas e fizeram o resto do caminho assim, sem os mais velhos darem mostras de enfado ou trocarem sequer uma palavra de censura! São assim as crianças moçambicanas!

Como o nosso projeto começouSou religiosa e terminei o curso de educa-dora na Maria Ulrich, em 1970. Vim para Moçambique, a meu pedido, com a ideia de tentar fazer alguma coisa pelas crianças e na formação dos monitores que com elas traba-lham. Cheguei em 1995, há 16 anos.

As crianças em MoçambiqueIr. Maria Assunção Osório . Educadora de infância

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nheço bem a diretora do ISMMA, com quem já trabalhei em Nampula, e recentemente conversámos muito sobre o funcionamento do curso.

Formação de monitoresEm Nampula, ninguém sabia como trabalhar com crianças! Como não existe o curso de educadores e durante muito tempo fui a única educadora de uma cidade com cerca de 350 000 habitantes e de toda a província, com um tamanho equivalente ao de Portu-gal continental, preocupei-me em organizar cursos de formação para os monitores que trabalham com essas crianças. Pedindo ajuda a uma enfermeira pediatra (para dar aulas de saúde, alimentação e higiene infantil) e a um

Social, mas que também não tem curso de educador. A orientação vai numa linha de aprendizagens e disciplina, com pouco espa-ço para a criatividade.No Maputo, que fica a cerca de 2000 km de Nampula, a cidade onde vivo, abriu recente-mente uma escola superior particular, para formação de educadores, mas não tenho nenhuma informação sobre o seu funcio-namento. No Instituto Superior Maria Mãe de África (ISMMA), propriedade da Confe-rência Episcopal Moçambicana e orientado pela Igreja Católica, abriu recentemente um curso profissional de Educação de Infância; é exigida a 10.ª classe (equivalente ao nos-so 9.º ano) e são dois anos de curso. Tenho muito boa impressão desse curso, pois co-

enquadrada no Ministério da Ação Social, mas não há qualquer tipo de ajuda da parte do Estado. Limitam-se a exigir que apresen-temos estatísticas do número de crianças abrangidas, por sexos e idades, a exigir o alvará do jardim infantil (aqui chamado “es-colinha”) e a organizar alguns eventos como: deposição de uma coroa de flores na Praça dos Heróis Moçambicanos no dia 1 de junho (!), visita à esposa do governador, concursos de jogos e danças em que as crianças do úni-co jardim infantil do Estado são ensinadas a fazer batota para ganhar, etc.Não existe formação de educadores a nível do Estado, ou melhor, existem uns dias de formação (3 ou 4) que são orientados por algum professor que trabalhe lá na Ação

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professor de Português (para estudar com os alunos textos escolhidos por mim e refe-rentes à educação de infância), demos início ao primeiro curso de formação de monito-res, que teve a duração de cerca de 3 meses. Desse primeiro curso saíram os primeiros monitores do centro, que nessa altura esta-va em construção, bem como monitores para vários outros centros. Seguiram-se vários outros cursos aprovei-tando, sempre que possível, a colaboração de outras educadoras que passem por Nam-pula. Às vezes organizamos, nas férias esco-lares, um curso só para os monitores que já estão a trabalhar com crianças. Muitas ve-zes, também, vêm de outros centros pedir para fazer um estágio no nosso, por saberem que está orientado por uma educadora.

O dia a diaEntre as 7 e as 8 horas chegam as crianças do turno da manhã. Pelas 8 horas fazem o que chamam a concentração, que aqui é regra em todas as escolas e escolinhas. Trata-se de ficar em forma, consoante o grupo a que perten-cem, e de fazerem uma primeira atividade de conjunto: cantar, recitar poesias, aprender os dias da semana, as cores, as partes do corpo e outras aprendizagens. Seguidamente, cada grupo por sua vez se dirige à sua sala, onde começam as atividades dirigidas, seguindo-se as atividades por áreas.Pelas 9.40 vem então o “matabicho”, que é uma papinha quente, diferente em cada dia, incluindo tudo aquilo que os poderá forta-lecer e que os mais pobres poucas vezes comem: papa de farinha de milho com leite, coco ou soja, papa de arroz com amendoim ou sopa de hortaliça. Não damos pão a não ser nas festas, porque além de comerem bastantes cereais na sua ementa diária, o pão ficaria muito mais caro. Depois do “matabicho” vem o recreio gran-de. Um grupo brinca no parque dos baloiços enquanto os outros brincam no pátio. Mui-tas vezes, a esta hora, há sessão de cantos,

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muito longe, deve ser a América!» «Subimos “na” montanha!» «No meu prato tinha um ovo inteiro!»Falta acrescentar que, como as crianças são muito meigas e fáceis de disciplinar, brincam à vontade mas ninguém se afasta de nós.

Os padrinhosO sistema de padrinhos é coordenado por vários grupos que em Portugal, na Alemanha e na Itália, fazem voluntariamente a ligação entre mim e cada padrinho. Um dos grupos é coordenado pelo meu ir-mão mais novo e pela sua esposa. E-mail: [email protected]. Têm um link na Internet, onde se podem ler as cir-culares que são enviadas, ver as fotografias das crianças e apoiar, possivelmente, alguma que ainda não tenha padrinhos. O endereço do link é: http://picasaweb.google.pt/lenanunosorio.leigos.m.ir.sjb

Qualquer ajuda será muito bem vinda!

seus monitores e mais um grupo de jovens que nesse dia vem colaborar connosco. O carro vai como apoio, para o caso de ha-ver alguma urgência a resolver, mas graças a Deus em todos estes anos nunca houve nenhum problema.Logo à chegada, o pequeno-almoço (mata-bicho): pão e refresco para todos. Segue-se um dia cheio de música, dança e passeios pelas montanhas circundantes. Pelas 11 ho-ras o carro vai buscar os cozinheiros, que ficaram no centro a preparar o almoço: ar-roz, feijão, cabrito e ovo cozido. Chegando o carro, são horas do almoço. Aqui não exis-te o “não quero” e o “não gosto” – tudo é bem-vindo e, depois da manhã ao ar livre, as crianças comem com muito apetite. Depois, continua a brincadeira.Antes de regressar, ainda lanchamos: os pais contribuem com bolachas e neste dia todos comem à vontade, guardando o resto no grande bolso do bibe, para depois partilharem com os irmãozinhos que ficaram em casa.As exclamações e comentários das crianças são sempre deliciosos: «Atravessámos a ci-dade INTEIRA!» «Andámos muito, aqui é

danças e “batucadas”. O ritmo está-lhes no corpo! É frequente aos 3 ou 4 anos já sa-berem bem manter o ritmo dos batuques, enquanto outros dançam.Pelas 11 horas, novo período de atividades na sala. Às 11.45 termina o período da manhã e os familiares começam a vir buscá-los.Um grupo de perto de 40 crianças, cujos pais trabalham, almoça no centro e participa nas atividades também da parte da tarde.A tarde começa entre as 13 e as 14 horas e processa-se de maneira semelhante à ma-nhã, mas sem 2.º período de atividades: as tardes em África são muito curtas. Pelas 16.15 começam a sair as crianças e depois das 17 horas já não deve ficar ninguém.Aos sábados, é a reunião dos monitores comi-go. Cada um pode trazer os pontos que dese-ja que sejam falados e que vão desde uma ja-nela que se estragou até à criança que entrou mais recentemente e ainda não se adaptou. Acabando esta parte da reunião, é tempo de formação: em conjunto, preparamos as ativi-dades da semana que se segue. Elaborei um pequeno guião para 4 semanas, para servir de orientação. Semanalmente concretizamos a forma de, nessa semana, realizar as ativida-des, e procuramos o material necessário.

O passeioDepressa me apercebi de que a maioria das crianças nunca tinha entrado em nenhum meio de transporte: só conheciam as próprias pernas e as costas da mãe! Foi então que or-ganizámos o primeiro passeio das crianças, que depois se converteu em passeio anual.Logo de manhãzinha chega o autocarro. Bem organizadas e cheias de entusiasmo, as crianças tomam lugar nos bancos ou sen-tadas no chão. Apesar de muito apertadas, ninguém reclama. Só se ouve cantar ao som do batuque.Vamos para perto. A 10 km da cidade fica o seminário, que tem uma grande quinta com boas condições para receber o nosso grupo: cerca de 200 crianças, acompanhadas pelos