Artigo: As empresas sociais e a mudança que queremos ver

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154 | AVENTURA & AÇÃO Pensar Global, Agir Local Texto: Marianne Costa MEIO AMBIENTE As empresas sociais e a mudança que queremos ver É possível aproveitar o poder do mercado livre para resolver os problemas da pobreza, da fome e da desigualdade no planeta? Para muitos, isso não passa de utopia, mas Muhammad Yunus (o "banqueiro dos pobres") usa a teoria e a prática para provar o contrário E m maio, aconteceu no Rio de Ja- neiro o III Fórum Internacional de Comunicação e Sustentabili- dade, que contou com Muham- mad Yunus como palestrante. Se você não o conhece, com certeza já ouviu falar de algum dos seus projetos, da expressão “banqueiro dos pobres” ou do microcrédito, criado e difundido por ele. Resolvi compartilhar um pouco da proposta do Fórum e das ideias do Sr. Yunus, pois elas têm muito a ver com o objetivo dessa coluna: mostrar que muito do que vem sendo pensa- do globalmente por aí pode ser apli- cado no nosso dia a dia. Entre as temáticas que motivaram a realização do encontro está a in- fluência que a grande mídia tem no que somos e consumimos. Divulga-se que o Brasil só perde para o México como o país mais influenciado pela mídia contemporânea. Isso só prova o quanto a comunicação pode ser ini- miga ou aliada na “mudança que que- remos ver no mundo”, parafraseando Mahatma Gandhi. Nunca se falou tanto em aqueci- mento global, poluição, destinação de resíduos, desequilíbrio ambiental, mudanças climáticas e, claro, susten- tabilidade. Mas a distância que existe entre o discurso, todo esse barulho, e a prática é fácil de explicar: somos o que consumimos. Por isso é tão importante sabermos responder algu- mas questões que dizem sobre nossa própria identidade e o impacto que geramos no mundo. Como consu- mimos? De quais empresas compra- mos? O que consumimos? Estamos conseguindo transpor o “mundo das ideias” e praticar tudo que ouvimos e falamos? Não precisa ser nenhum es- pecialista para responder, eu mesma faço isso: Não, não estamos. Por isso, a educação e a comunica- ção têm uma influência fundamental nas nossas mudanças de hábito de consumo, que começam por você, por mim, por nossos vizinhos, ami- gos, família, colegas de trabalho. Muhammad Yunus conseguiu fa- zer essa transposição da teoria, literal- mente, pois era professor doutor de Economia em uma universidade em seu país, Bangladesh, quando se inco- AGRICULTURA ORGÂNICA A Cooperativa Sementes da Paz comercializa alimentos orgânicos, produzidos a partir do princípio da economia solidária FOTOS DIVULGAÇÃO

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Artigo publicado na revista Aventura e Ação: As empresas sociais e a mudança que queremos ver. É possível aproveitar o poder do mercado livre para resolver os problemas da pobreza, da fome e da desigualdade no planeta? Para muito, isso não passa de utopia, mas Muhammad Yunus (o "banqueiro dos pobres") usa a teoria e a prática para provar o contrário.

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154 | AventurA & Ação

Pensar Global, Agir Local

texto: Marianne Costa

meio ambiente

As empresas sociais e a mudança que queremos verÉ possível aproveitar o poder do mercado livre para resolver os problemas da pobreza, da fome e da desigualdade no planeta? Para muitos, isso não passa de utopia, mas Muhammad Yunus (o "banqueiro dos pobres") usa a teoria e a prática para provar o contrário

Em maio, aconteceu no Rio de Ja-neiro o III Fórum Internacional de Comunicação e Sustentabili-dade, que contou com Muham-

mad Yunus como palestrante. Se você não o conhece, com certeza já ouviu falar de algum dos seus projetos, da expressão “banqueiro dos pobres” ou do microcrédito, criado e difundido por ele.

Resolvi compartilhar um pouco da proposta do Fórum e das ideias do Sr. Yunus, pois elas têm muito a ver com o objetivo dessa coluna: mostrar que muito do que vem sendo pensa-do globalmente por aí pode ser apli-cado no nosso dia a dia.

Entre as temáticas que motivaram a realização do encontro está a in-fluência que a grande mídia tem no que somos e consumimos. Divulga-se que o Brasil só perde para o México como o país mais influenciado pela mídia contemporânea. Isso só prova o quanto a comunicação pode ser ini-miga ou aliada na “mudança que que-remos ver no mundo”, parafraseando Mahatma Gandhi.

Nunca se falou tanto em aqueci-mento global, poluição, destinação de resíduos, desequilíbrio ambiental, mudanças climáticas e, claro, susten-tabilidade. Mas a distância que existe entre o discurso, todo esse barulho, e a prática é fácil de explicar: somos o que consumimos. Por isso é tão importante sabermos responder algu-mas questões que dizem sobre nossa própria identidade e o impacto que

geramos no mundo. Como consu-mimos? De quais empresas compra-mos? O que consumimos? Estamos conseguindo transpor o “mundo das ideias” e praticar tudo que ouvimos e falamos? Não precisa ser nenhum es-pecialista para responder, eu mesma faço isso: Não, não estamos.

Por isso, a educação e a comunica-ção têm uma influência fundamental nas nossas mudanças de hábito de consumo, que começam por você, por mim, por nossos vizinhos, ami-gos, família, colegas de trabalho.

Muhammad Yunus conseguiu fa-zer essa transposição da teoria, literal-mente, pois era professor doutor de Economia em uma universidade em seu país, Bangladesh, quando se inco-

agricultura orgânicaA Cooperativa Sementes da Paz comercializa alimentos orgânicos, produzidos a partir do princípio da economia solidária

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modou com a incoerência em ensinar aos alunos os modelos econômicos tradicionais, enquanto milhares de pessoas no entorno da Universidade não se incluíam em nenhum daqueles modelos e viviam abaixo da linha da pobreza. Desde então, seu objetivo de vida passou a ser “colocar a pobre-za nos museus”, pois no mundo em que vivemos não há mais espaço para ela. Desde seu primeiro “incômodo” já se passaram mais de 30 anos e, em 2006, Muhammad Yunus e o Banco Grameen, o primeiro dos seus em-preendimentos sociais, ganharam o Prêmio Nobel da Paz como reconhe-cimento pela coragem, excelência e expressivos resultados alcançados.

o pontapé inicial: banco grameenA primeira iniciativa de Yunus foi a fundação do Banco Grameen, cujo negócio é emprestar dinheiro para pessoas carentes que, através dos meios convencionais, nunca teriam acesso a nenhum tipo de crédito. Es-tava criado o “microcrédito”. O Ban-co Grameen tem hoje mais de 7,5 milhões de usuários, dos quais 65%, ou seja, 4,87 milhões de pessoas con-seguiram vencer a pobreza extrema.

Visto dessa maneira, temos a im-pressão de que se trata de um traba-lho de grandes dimensões, com im-portantes apoiadores. Hoje até pode ser assim, mas sabe como Yunus começou seu trabalho? Observando

a aldeia vizinha à Universidade onde trabalhava. Lá, ele percebeu que di-versas famílias não conseguiam evo-luir economicamente, pois encontra-vam-se dependentes de agiotas, única alternativa de crédito a que tinham acesso. Como deve se imaginar, eram cobradas taxas de juros tão elevadas que, concluiu o professor, elas traba-lhavam para pagar juros e, às vezes, para sobreviver. Estas pessoas esta-vam escravizadas em um círculo vi-cioso da pobreza.

Com a ajuda de dois alunos, Yunus levantou informações de todos os que tomavam empréstimos na região (um grupo de 42 pessoas) e descobriu que a soma dos valores emprestados não ultrapassava 27 dólares. Assim, ele mesmo se disponibilizou a emprestar o dinheiro a estas pessoas, com juros bem mais baixos e observou a gran-de diferença que fez. Assim, nasceu o Banco Grameen, que, 30 anos de-pois, já teve sua experiência replicada em mais de 40 países.

a empresa socialMas Yunus não parou aí. Com sua ex-periência no Banco, o professor deu início a uma série de outras empre-sas cujo foco é combater a pobreza. Tratam-se de negócios em diferentes setores como alimentação, agricultu-ra, telefonia móvel, internet, geração de energia, saúde, educação e indús-tria têxtil. Em todas elas, as pessoas são, além de usuárias, protagonistas

moda sustentávelintegrantes da ecotece, que comercializa roupas “sustentáveis”e trabalha integrada ao projeto retece, composto por mulheres de uma comunidade carente de Santo André, atuando com customização e bordado das peças

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do processo de criação e implementa-ção. E você entendeu certo, ele criou empresas.

São as chamadas empresas sociais, definidas por ele como empresas que têm como objetivos igualmente impor-tantes: a geração de lucro e a resolução de problemas sociais e ambientais.

Estas organizações são movidas por uma causa social e não apenas pelo lucro. Geram receita de vendas de produtos ou serviços, enquanto bene-ficiam pessoas mais necessitadas e a sociedade como um todo.

Apesar disso, não se tratam de insti-tuições de caridade, pois precisam re-cuperar suas despesas e alcançar seus objetivos sociais. Os investidores, po-rém, geralmente recuperam apenas o valor investido e não lucros sobre esse valor. O excesso é reinvestido na própria empresa, para maximizar o benefício social.

Segundo Yunus, o modelo de em-presa social surge em resposta à insa-

tisfação com a forma como o capita-lismo, enquanto modelo econômico, vem prosperando financeiramente, ampliando a desigualdade social e agravando o problema da distribuição de renda no mundo.

Esse tipo de proposta nos instiga a repensarmos a forma como empre-endemos e trabalhamos, e também como, de quem e com quem gasta-mos nossos recursos. É uma boa re-flexão para avaliarmos os critérios de seleção que usamos para escolher as empresas que nos servem, se elas es-tabelecem e cumprem seus objetivos sociais, se é que eles existem.

o eventoDurante sua participação no Fórum, Yunus reforçou a importância de esti-mularmos as empresas sociais e prin-cipalmente, a ideia de que qualquer um de nós pode criar uma. Segundo ele, “estamos sempre apontando o dedo e cobrando do governo ou da

iniciativa privada, mas precisamos fazer nós mesmos. Não precisamos resolver o problema do País inteiro, mas podemos começar pequeno, plantando uma pequena semente e estimulando as pessoas a replicá-las”. Todos nós temos nossa responsabili-dade em fazer um “mundo melhor” e para Sr. Yunus criar empresas sociais é um caminho muito eficiente e “di-vertido”.

Sobre a sustentabilidade das entida-des sem fins lucrativos, o Sr. Yunus destacou que o dinheiro gasto em cap-tação de recursos externos para sua sobrevivência poderia ser investido na criação de empresas sociais, tornando as entidades menos dependentes dos recursos externos e estimulando a criatividade e comprometimento dos próprios beneficiários, rompendo com o ciclo do assistencialismo.

Uma das principais questões levan-tadas pelos jornalistas ao Sr. Yunus, desde que chegou ao Brasil, foi sua opinião sobre o programa do governo federal, o Bolsa Família. Muito sábio, o professor não fez críticas, como to-dos esperavam. Manteve sua postura otimista e destacou: “o governo fez sua parte ajudando os que precisam. Agora é a nossa vez de fazer a nossa e ajudar todas estas famílias a preci-sarem cada vez menos destes progra-mas, através das empresas sociais.”

Para mostrar que já é possível em-preender socialmente no Brasil, trou-xe aqui alguns exemplos de empresas que considero que estão próximas desse conceito de empresa social e uma boa fonte de referência no Bra-sil: a organização não governamental Artemísia, que apoia negócios sociais no Brasil e seus parceiros.

Artemísiawww.artemisia.org.br

Organização pioneira em negócios sociais no Brasil que busca atrair e for-mar pessoas qualificadas para atuar na criação e desenvolvimento de um novo modelo de negócio, que possa contri-buir para reduzir as desigualdades so-cioeconômicas no mundo.

the Hubwww.the-hub.com.br

O Hub São Paulo é uma espécie de “incubadora” de empreendimentos

tHe Hub escritório compartilhado

propicia um ambiente que estimula o

empreendorismo social

culturaOficina realizada em conjunto

com a comunidade pela operadora de turismo Aoka no

vale do ribeira. A proposta é valorizar as culturas tradicionais

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sociais que oferece espaço físico, infra-estrutura e serviços para que empreen-dedores com ideias inovadoras possam acessar recursos, realizar conexões, pro-duzir e compartilhar conhecimento.

Ecotecewww.ecotece.org.br

Trabalha com produção e co-mercialização de artigos de moda, produzidos com matérias-primas sustentáveis e com o trabalho de cooperativas, praticando os concei-tos do comércio justo.

Aoka operadora de turismo sus-tentávelwww.aoka.com.br

Uma empresa que busca elevar o turismo a um novo patamar de sustentabilidade e interatividade com os destinos visitados, atuando junto a comunidades tradicionais e ONGs locais. Através de sua ativi-dade, busca promover inclusão so-cial, geração de renda e incentivo ao empreendedorismo relacionado ao turismo responsável, que valori-za a cultura local e a troca de co-nhecimentos entre comunidades e visitantes.

sementes da Paz

sobre a autora Marianne Costa, empreendedora social, turismóloga e gestora de projetos em associativismo, terceiro setor, turismo e desenvolvimento local.

www.sementesdepaz.orgÉ uma cooperativa de logística

e distribuição de alimentos e pro-dutos ecológicos e solidários que integra uma rede de consumo e co-operação econômica situada na Re-gião Metropolitana de São Paulo. O trabalho é pautado pelos princípios da Agroecologia, da Economia Soli-dária, do Comércio Justo e do Con-sumo Responsável

Amapá Brasilwww.amapabrasil.com.br

Agência de comunicação com foco em sustentabilidade, a Amapá tem preocupação com a geração de lu-cro, em ser social e ambientalmente sustentável, unindo características do segundo setor, como planejamento e objetividade, e do terceiro setor, como idealismo e foco nas pessoas.

e-mail: [email protected]

turismo comunitárioA operadora de turismo AoKA trabalha com roteiros

construídos a partir da participação das comunidades

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