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A força da atmosfera criadora Robison Breno Oliveira Carvalho [email protected] A arte teatral é por excelência uma arte coletiva. De modo que pensamos sempre o teatro como uma obra realizada a partir de um agrupamento de pessoas que se unem em função da criação de um trabalho em comum. Um coletivo que envolva pessoas com interesses artísticos em comum e a partir deste desejo realize seus espetáculos. Partindo deste ideal diversos artistas se unem neste sonho de poder realizar um trabalho em um grupo teatral. A tentativa de entender a atmosfera de um grupo teatral, nos auxiliará no entendimento da atmosfera de trabalho da diretora Cibele Forjaz. Partimos aqui então sobre o desejo de uma artista plural, em estabelecer uma unidade criativa em grupo. Estamos falando de uma diretora que trabalhou em diversos grupos e ou em projetos isolados, mas sentimos em sua fala que o desejo de estabelecer um ‘grupo’ sempre foi muito forte. Trabalhar em grupo pressupõe a busca de uma atmosfera que caminhe pela unidade de pensamento entre diversas pessoas que pretendem comungar de um mesmo ideal. Impor suas vontades, mas também ter que ceder às vontades dos outros. É expressar a sua vontade por meio de um trabalho coletivo, sobretudo que gere continuidade. Sendo compreendida pela profundidade que a atmosfera do trabalho em grupo pode proporcionar. Assim, propus para minha pesquisa de mestrado 1 acompanhar a criação de um espetáculo da diretora Cibele Forjaz dentro da Cia Livre. O espetáculo em questão partiu de um estudo sobre o ensaio de Montaigne intitulado “A força da Imaginação”. Dois focos na pesquisa sobre o texto ressaltaram no processo criativo do grupo, são elas “a força da imaginação” e o caso da mulher que após um ‘acidente’ virou homem, “Marie que virou German” ou “Maria que virou Jonas”. 1Em minha pesquisa de mestrado proponho estabelecer uma relação entre o estudo da estética, no qual o termo ‘atmosfera’ é tratado pelo filósofo Gernot Böhme e o conceito teatral de atmosfera estabelecido por Michael Chekhov no livro ‘para o ator’. Chekhov propõe a efetivação de uma atmosfera cênica que dê suporte à ação do ator. Um ambiente propício à encenação, que envolva o ator em seu trabalho criativo e por sua vez abrace também o espectador dentro do evento teatral. Os estudos realizados por Böhme seguramente reforçam o posicionamento de Chekhov e nos possibilitam reforçar o conceito. Interessante afirmar que o entendimento de ambos os autores nos servem de base para compreender como a dita “atmosfera cênica” é construída na criação teatral.

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A força da atmosfera criadora

Robison Breno Oliveira [email protected]

A arte teatral é por excelência uma arte coletiva. De modo que pensamos sempre o

teatro como uma obra realizada a partir de um agrupamento de pessoas que se unem em

função da criação de um trabalho em comum. Um coletivo que envolva pessoas com

interesses artísticos em comum e a partir deste desejo realize seus espetáculos. Partindo

deste ideal diversos artistas se unem neste sonho de poder realizar um trabalho em um

grupo teatral. A tentativa de entender a atmosfera de um grupo teatral, nos auxiliará no

entendimento da atmosfera de trabalho da diretora Cibele Forjaz.

Partimos aqui então sobre o desejo de uma artista plural, em estabelecer uma unidade

criativa em grupo. Estamos falando de uma diretora que trabalhou em diversos grupos e

ou em projetos isolados, mas sentimos em sua fala que o desejo de estabelecer um

‘grupo’ sempre foi muito forte. Trabalhar em grupo pressupõe a busca de uma atmosfera

que caminhe pela unidade de pensamento entre diversas pessoas que pretendem

comungar de um mesmo ideal. Impor suas vontades, mas também ter que ceder às

vontades dos outros. É expressar a sua vontade por meio de um trabalho coletivo,

sobretudo que gere continuidade. Sendo compreendida pela profundidade que a

atmosfera do trabalho em grupo pode proporcionar.

Assim, propus para minha pesquisa de mestrado1 acompanhar a criação de um

espetáculo da diretora Cibele Forjaz dentro da Cia Livre. O espetáculo em questão

partiu de um estudo sobre o ensaio de Montaigne intitulado “A força da Imaginação”.

Dois focos na pesquisa sobre o texto ressaltaram no processo criativo do grupo, são elas

“a força da imaginação” e o caso da mulher que após um ‘acidente’ virou homem,

“Marie que virou German” ou “Maria que virou Jonas”.

1Em minha pesquisa de mestrado proponho estabelecer uma relação entre o estudo da estética, no qualo termo ‘atmosfera’ é tratado pelo filósofo Gernot Böhme e o conceito teatral de atmosfera estabelecidopor Michael Chekhov no livro ‘para o ator’. Chekhov propõe a efetivação de uma atmosfera cênica quedê suporte à ação do ator. Um ambiente propício à encenação, que envolva o ator em seu trabalhocriativo e por sua vez abrace também o espectador dentro do evento teatral. Os estudos realizados porBöhme seguramente reforçam o posicionamento de Chekhov e nos possibilitam reforçar o conceito.Interessante afirmar que o entendimento de ambos os autores nos servem de base para compreendercomo a dita “atmosfera cênica” é construída na criação teatral.

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Além do debate acerca da questão da sexualidade, as questões de gênero e, sobretudo de

trans-gênero outros focos do texto original foram motivos de pesquisa e discussão. A

força da imaginação foi amplamente debatida durante a leitura do texto, refletindo sobre

as questões de fé e crenças que são tratadas pelo autor. A palavra “credulidade” é

questionada pela maneira irônica com que Montaigne a coloca. Credulidade para ele é

uma crença ingênua. Este e outros detalhes foram amplamente discutidos como ponto

de partida para a criação.

Assim percebemos em todo o processo evolutivo da Cia Livre essa atmosfera de intensa

liberdade de criação, mas mantendo a responsabilidade na efetivação de um espetáculo

coerente e coeso. Essencialmente a Cia trabalha com processo colaborativo. Envolvendo

diversos profissionais especializados no trabalho de criação. E, sobretudo pesquisando e

ampliando os procedimentos, as etapas e métodos estabelecidos dentro do processo de

criação espetacular.

Para entender um pouco sobre os procedimentos que aponto aqui como elementos

detonadores do processo criativo da diretora, vale ressaltar o trabalho que ela realiza no

estudo do texto. O estabelecimento sobre uma minuciosa pesquisa dramatúrgica é um

procedimento comum na arte de Forjaz. Segundo Isabel Teixeira “Cibele é a rainha do

subtexto”, ainda completa “A miopia crônica de Cibele deve ser um instrumento

precioso para sua a percepção dessas veias ocultas do texto” (Teixeira, 2009). É nesta

delicadeza que a artista trabalha conduzindo a cena e o processo de modo atento e

profundo com o qual a atmosfera que se estabelece no ar é de uma certe sacralidade, em

relação à arte teatral. A artista faz com que a instauração da atmosfera que permeará a

cena esteja carregada de todo esse subtexto pesquisado no princípio do projeto.

Assim, comecei as observações do processo criativo do espetáculo “Maria que virou

Jonas, ou a força da imaginação”, tentando compreender um pouco sobre o percurso

da diretora e principalmente sobre os seus procedimentos. Esse entendimento sobre a

evolução da atmosfera no trabalho de grupo e o modo como Cibele Forjaz conduz a

criação do espetáculo desde a sua raiz é o ponto crucial para o entendimento de como

essa liberdade criadora é determinante na concretização da cena.

Interessante perceber que a proposição deste espetáculo não partiu da diretora, mas de

integrantes do grupo. Isto é sem dúvida um dado importante, pois estamos buscando

entender em nossa pesquisa a criação da atmosfera cênica vista pelos olhos do diretor.

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Aqui talvez seja um dado crucial para nosso entendimento por essa atmosfera de

liberdade que permeará a criação do espetáculo. Libertos da vaidade e envoltos pelo

desejo criador temos aqui um profundo respeito pelos desejos de todos os envolvidos no

trabalho do grupo

A atmosfera que se cria durante processo é de uma liberdade criadora. Amplamente

intensificada pela autonomia dos envolvidos no espetáculo. Aqui, como falado

anteriormente, o processo é colaborativo, de modo que todos os participantes interferem

diretamente na criação do espetáculo. O que se instaura durante os trabalhos é uma

atmosfera favorável a discussão do tema proposto. Cibele se mostra como uma

condutora da pesquisa, discutindo e debatendo as imagens e proposições dos criadores.

Fato que estabelece na mesa uma discussão aprazível que possivelmente influenciará na

obra final.

O que se evidencia no espetáculo é a atmosfera da transformação, há algo no ar que está

se transformando em outra coisa. São percepções para além da sexualidade que

perpassam o ambiente e provocam discussões que tentam fazer uma ponte entre estas

imagens e o texto de Montaigne. As configurações são fluidas e há uma busca por uma

solução que resolva as ideias para o espetáculo. Fica entendido que o teatro é o lugar ou

situação que permite a brincadeira da transformação. No entanto, na transformação há

algo que nunca se sabe onde vai parar.

Há uma discussão em torno da força da imaginação como algo terrível, enquanto a

realidade tem algo que pode te salvar. Há a busca por um entendimento sobre as

afecções da cabeça sobre o corpo. O domínio do corpo no limite da liberdade.

Interessante uma busca pelo elemento mágico da transformação. A realidade não é uma

identidade estável.

Durante os primeiros ensaios há questionamento sobre o esgotamento dos

procedimentos do processo colaborativo. Este entendimento passa pelos modos como o

grupo percebe as necessidades criavas do mesmo. Os atores questionam a necessidade

de criarem muitos workshops e pouca coisa ser usada. Pois há na ambientação do

processo a necessidade de um entendimento sobre a elaboração da personagem.

Dentro das proposições iniciais Cibele propõe a estruturação de um primeiro “por

exemplo” que será apresentado à equipe. A ideia do “por exemplo” é uma proposição do

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que possa vir a ser o espetáculo. Um primeiro rascunho das ideias que já foram

discutidas. A proposta então é montar uma apresentação como se fosse para ser

apresentada. O roteiro que aqui se estrutura não tem nenhuma obrigação de se efetivar,

pode ser que nada do que foi feito no “por exemplo” seja aproveitado, o que se deseja

ou espera deste momento é ver as discussões, propostas, ideias, desejos, vontades, etc.

tomarem forma. A ideia é que se estabeleça uma atmosfera que norteará todo o trabalho.

Cibele busca criar uma atmosfera propícia a efetivação do ensaio. De modo que realiza

diversos acordos com os atores sobre como será o ensaio. A diretora utiliza para esta

efetivação um jogo de “faz de conta”, respeitando o processo de criação de personagens

dos atores. Todo o jogo do ensaio é muito livre, sempre embalados pela proposta

delicada do “que tal se?”. Assim, atores e equipe lidam com uma atmosfera propicia a

criação. Atores e equipe têm amplas possibilidades e permissões para criar.

Há um acordo de que os atores transitem na proposição de personagens-atores-trans, ou

seria um trans-ator. Como a proposta é lidar com esta questão da transsexualidade, os

atores caminham pela ideia de serem personas que atravessarão todas peças,

transmutando-se em seus personagens. A Atmosfera do ensaio ocorre com a diretora

combinado com os atores e equipe as possíveis marcações que serão mostradas no dia

seguinte para a equipe. Os atores realizam o ensaio sendo conduzidos pela diretora.

O interessante é observar que todas as ideias e propostas de toda a equipe, são

importantes para a efetivação do espetáculo, nada é desperdiçado. De modo que todos

sintam a liberdade da criação. Em um determinado momento, sabemos que serão

necessários cortes, mas isso será em comum acordo. É neste ambiente de liberdade

criativa que a equipe deixa suas ideias fluírem.

Vale perceber a importância exercida pelos elementos materiais da cena que revelam em

suas peculiaridades a formatação da atmosfera que permeará todo o espetáculo. Mesmo

tendo consciência de que muito do que esta sendo realizado ali pouco seja aproveitado,

mas é visível a entrega dos atores neste jogo e de como eles entendem a importância

deste no encadeamento final do processo.

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Bibliografia consultada

TEIXEIRA, Isabel. ROMANO, Lúcia. MINA, Simone (Org.). Cia Livre:

experimentos e processos 2000-2011(Coleção Nóz – Caderno Livre). São Paulo, 2012.

BÖHME, Gernot. The art of the stage set as a paradigm for an aesthetics of

atmospheres. Ambiances. 2013. (Acessado em 28/07/2014 URL:

http://ambiances.revues.org/315)

BÖHME, Gernot. Atmosphere as the Fundamental Concept of a New Aesthetics.

Thesis Eleven 1993. (Acessado em 28/07/2014. URL:

http://desteceres.com/boehme.pdf)

CHEKHOV, Michael. Para o Ator. SP: Martins Fontes, 1986.

TEIXEIRA, Isabel. A escrita na cena: anatomia de uma dramaturgia do coração.

Artigo publicado na revista Sala Preta (USP). São Paulo, 2008.