Artigo Comunicação, Diálogo e Escuta
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COMUNICAÇÃO, DIÁLOGO E ESCUTA: REFLEXÕES SOBRE O PROCESSO
COMUNICACIONAL SOB LENTES BAKHTINIANAS
Bruno Sampaio Garrido1
Introdução
Mikhail Bakhtin, em seu legado teórico, nunca teve por objetivo de estudar o fenômeno
comunicacional per se, dedicando-se majoritariamente a desenvolver uma teoria dialógica da
linguagem – focada na interação eu-outro como seu elemento constitutivo e transformador.
Entretanto, ao longo do desenvolvimento de sua obra, o pesquisador russo contrapõe-se
especialmente a duas correntes teóricas influentes na época que abordaram o processo de
comunicação entre indivíduos: o estruturalismo saussuriano e o formalismo russo. E nesse
empreendimento de contestação, muitas vezes veemente, Bakhtin refuta a concepção que
esses dois referenciais constroem acerca da comunicação, sempre em consonância com as
proposições que este elabora acerca da língua e da linguagem.
Ainda que, naquele momento, o objetivo estivesse centrado na comunicação verbal, as
reflexões e proposições desenvolvidas pelo teórico acerca da comunicação podem ser
aplicáveis a outras vertentes desse campo, permitindo uma compreensão bastante peculiar
desse fenômeno – entendido aqui sob a perspectiva do dialogismo. O objetivo desse ensaio é
apresentar, de forma bastante sucinta, algumas reflexões a respeito do processo de
comunicação humana sob as lentes de Bakhtin, nessa perspectiva dialógica, somadas às ideias
e proposições do filósofo italiano Augusto Ponzio, cujo pensamento é marcadamente
influenciado pela obra do pesquisador russo.
Comunicação como ato dialógico, responsivo e responsável
Ao longo de seus trabalhos, Bakhtin (1993; 1997; 2006) elabora a sua teoria dialógica
da linguagem tendo em vista dois interlocutores com os quais se contrapõe e refuta
sistematicamente suas ideias. Refiro-me, como fiz há pouco, aos formalistas russos (tendo
como um de seus grandes nomes o linguista Roman Jakobson) e a Ferdinand de Saussure, no
que tange ao seu projeto fundador da linguística estrutural – e, sobretudo, do paradigma
estruturalista francês. A despeito das peculiaridades e divergências, vou me ater a aspectos
comuns desses dois legados teóricos, especialmente no que diz respeito a estudar a língua por
meio da forma, seus mecanismos internos de funcionamento e, mais precisamente, como esse
princípio está relacionado com o modo de se entender a comunicação humana. O percurso
assemelhar-se-á ao adotado pelos semioticistas Santaella e Nöth (2004) que, em sua obra,
tiveram por objetivo mostrar os pontos de contato entre as teorias comunicacionais e as
principais abordagens semióticas estudados no Brasil (greimasiana, peirceana e russa).
1 Jornalista, Mestre em Comunicação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), câmpus de Bauru, e Doutorando em Linguística e Língua Portuguesa (ela Universidade Estadual Paulista (Unesp), câmpus de Araraquara. Assistente de Suporte Acadêmico do Departamento de Psicologia da Unesp de Bauru. E-mail: [email protected].
Tanto Saussure como Jakobson elaboraram, dentro da perspectiva de se analisar o
funcionamento das línguas, um modelo que pretendia explicar como se dava o processo de
comunicação interindividual. Esses modelos que se assemelham muito ao modelo matemático-
informacional de Shannon e Weaver, muito influente até a segunda metade do século XX. De
modo geral, esses modelos comunicativos apontam que qualquer processo de comunicação
deve conter os seguintes elementos: emissor, mensagem, canal, código, ambiente, ruído,
receptor e o feedback (entendido como resposta à ação do emissor).
Em linhas gerais, todo processo de comunicação inicia-se com um emissor, o qual tem
a intenção de transmitir uma mensagem (seja ela qual for) a um receptor. Essa mensagem é
concebida por meio de um código (língua, sinais gráficos, sons...) e veiculada por um canal
(voz humana, impressos, mídias eletrônicas), a qual é influenciada pelo ambiente – ou contexto
– onde é produzida e pode sofrer a interferência de ruídos e ter a qualidade comprometida. O
receptor, ao receber aquela mensagem, irá emitir um feedback, elemento de grande
importância ao constatar a eficácia da mensagem transmitida – se ela foi devidamente
entendida e/ou compreendida pelo destinatário e, enfim, surtiu os efeitos esperados.
Enfim, pressupõe-se que a comunicação, em consonância com esses modelos, é um
fenômeno linear, mecânico, em que indivíduos transmitem e retransmitem sinais entre si como
se fossem instrumentos em perfeita sintonia, sendo as únicas interveniências previstas nessa
relação de aparente “harmonia” decorrentes, de modo geral, de incompatibilidades entre o
código usado pelos envolvidos, interferências físicas ou “defeitos”. Aqui, o objetivo da
comunicação é transmitir sinais ao destinatário com o maior grau de precisão possível e os
efeitos gerados por esse processo, que igualmente devem atingir o maior grau possível de
correspondência com os objetivos do emissor. Vale lembrar que estamos nos referindo a um
modelo herdado de uma teoria matemática-informacional, aplicável perfeitamente a máquinas,
e que por essa peculiaridade gerou uma série de incongruências ao se aplica-lo ao estudo da
comunicação humana.
Bakhtin, entretanto, rejeita compreender o uso da linguagem como uma troca de
sinais, em que os sujeitos envolvidos são meramente transmissores e/ou receptores e a
linguagem, simplesmente um código. Mensagens e agentes, nesse modelo, são instâncias
imutáveis, artificiais. A comunicação, sob a perspectiva dialógico-enunciativa, se dá a partir da
interação entre os agentes – que se constituem falantes na própria ocasião comunicacional,
isto é, na enunciação. A mensagem, para Bakthin, também se constitui nesse momento, pois
as palavras se ressignificam e atualizam a cada nova enunciação, tratada como um evento
único, irrepetível, embora se valha de elementos reiteráveis e conhecidos para que a interação
se viabilize.
Assim, o enunciado é a unidade elementar que constitui o processo de comunicação,
segundo Bakhtin, pois se trata da unidade mínima de sentido, decorrente de uma situação que
envolve, além dos falantes e das relações de interação que exercem entre si, as condições
espaciais e temporais em que esse enunciado é produzido e, por fim, o seu conteúdo.
Entretanto, como já aventamos anteriormente, esse conteúdo não é linear, previsível e de
imediata compreensão e resposta, mas se constitui de elementos regulares e reiteráveis,
necessários para a operacionalização do enunciado (significação) e de elementos peculiares,
próprios, produzidos no e para aquele momento, que não precisam ser necessariamente
verbais, mas de qualquer elemento significativo produzido nessa relação enunciativa (tema).
O caráter interacional dessa maneira de ver a comunicação humana se dá pelo fato de
que, para o filósofo russo, esse fenômeno tem por cerne a alteridade. Logo, fundamenta-se no
diálogo com as várias vozes constituintes dos discursos, sejam passadas ou futuras, que
conferem dinamismo e organicidade ao fenômeno comunicacional, além de um caráter de
historicidade que fundamenta qualquer discurso – toda palavra provém de algum lugar, que se
atualiza na enunciação e adquire novas acepções, novos sentidos.
Por ser decorrente da interação interindividual, a comunicação é, portanto, um ato
realizável a partir das escolhas do indivíduo, que se define como um sujeito inserido em um
momento histórico, e busca constituir uma interação com o outro. Isso significa que, quando
comunicamos, sempre temos à vista um outro, que não é meramente um destinatário (seja ele
real ou ideal), mas é ele quem dá o “acabamento” aos enunciados em circulação, de acordo
com sua capacidade responsiva (compreensão, assimilação, “dissimilação” e resposta). Logo, a
comunicação, além de ato responsivo, pois sempre é dirigida a um outro e sempre espera a
resposta desse outro, é um ato responsável, em que o interlocutor é de algum modo afetado
pelo outro ao qual se dirige ao destinatário (mesmo que seja apenas uma projeção, uma
instância gerada). A comunicação, sob a lente bakthiniana, é viva – assim como a própria
linguagem, que se atualiza e se renova a cada fenômeno enunciativo.
No próximo segmento, iremos enriquecer essas discussões a partir das reflexões do
filósofo Augusto Ponzio (2009; 2010a; 2010b), que retoma os conceitos de dialogismo e
alteridade da linguagem e propõe um estudo linguístico como uma arte da escuta, ou
linguística do encontro, em que reforça a necessidade de se considerar nesses estudos o
extralinguístico, o contextual, o interacional – em vez de se ater apenas aos elementos formais
e estruturais dos sistemas linguageiros.
Comunicação como escuta
Ao propor essa arte da escuta ou do encontro, Ponzio contrapõe-se justamente aos
paradigmas estruturais e/ou formais dos estudos da linguagem, sobretudo os mais conhecidos
(o estruturalismo saussuriano e o gerativista-transformacional de Noam Chomsky), cujo
enfoque é descrever o funcionamento das línguas naturais a partir de seus próprios elementos
constitutivos, ou seja, adotam uma visão imanentista para estudar esses fenômenos, como se
os próprios mecanismos da língua fossem suficientes para assegurar seu próprio
funcionamento, assim como suas eventuais mudanças.
Ponzio, em consonância às propostas bakhtinianas, irá classificar essas abordagens
formal-estruturais como linguísticas do silêncio, pois, ao privilegiar a forma e os elementos
internos dos sistemas linguísticos, elas excluem tudo aquilo que lhes é exterior, ou seja, os
elementos pertinentes ao contexto e à interação eu-outro, que operacionalizam e de fato dão
vida ao sistema – em suma, pela enunciação. São linguísticas que, ao ignorarem a alteridade,
entendem a língua como um dispositivo de mão única (one-way flow), linear, um mero código
que, na cadeia comunicativa, está voltado a transmitir sinais, independentemente de como o
interlocutor irá reagir à iniciativa do emissor. O outro, nessa perspectiva, não é um agente
constituinte dos fenômenos comunicacionais, mas simplesmente uma meta, um alvo a atingir
e, portanto, uma instância reificada, em uma relação desigual com a instância emissora,
alçada a uma posição preponderante.
Contudo, na linguística da escuta, defendida contundentemente pelo filósofo italiano, o
eu e o outro são instâncias copartícipes, pois ambos têm oportunidade de construir e atualizar
os sentidos na enunciação, dando margem a novas acepções, novos usos da palavra ou de
qualquer elemento com potencial significativo. Escutar, no sentido ponziano, não é
simplesmente “ouvir” o outro, em uma conotação de passividade, mas dar-lhe o direito à
palavra, a participar desse processo de coconstrução que caracteriza a vivacidade da língua e
sua capacidade de transformação – em detrimento de uma linguística silenciadora que não
constrói, mas impõe sentidos.
Nesse sentido, a comunicação entendida pelas lentes do dialogismo e da escuta dá
margem a uma capacidade de renovação dos sentidos, já que estes estão em contínua
atualização e modificação e, por isso, a novidade nas relações comunicativas pode ser
entendida como um elemento crucial para que elas se configurem como tal. E nesse aspecto
tais reflexões se aproximam às de Marcondes Filho (2008), eminente teórico da comunicação
brasileiro, para o qual não existe comunicação sem a novidade, o inusitado, o diferente nas
acepções, nos sentidos compartilhados, mas apenas transmissão de sinais. Comunicação, para
esse autor, também implica uma abertura para o outro, tratá-lo como elemento participante (e
não como mero “alvo”) e constitutivo em que irá, juntamente com as outras instâncias,
interagir e construir sentidos.
Entretanto, não podemos esquecer que os elementos reiteráveis são necessários nesse
processo de interação interindividual para situar as posições entre os indivíduos, ou então, em
uma situação de novidade plena, nos veremos diante de uma incompreensão total.
Considerações finais
Após essa breve reflexão, é possível perceber o impacto que o pensamento filosófico de
Bakhtin e de Ponzio acerca da comunicação humana, entendida como um processo dialógico,
histórico e dinâmico, pode exercer nos estudos da área, trazendo-lhe contribuições positivas.
Isso se faz particularmente necessário em virtude de o viés mecanicista, apresentado no início
deste texto, ainda se fazer presente no meio acadêmico, repercutindo em interpretações muito
restritivas desse fenômeno tão complexo – que, mais do que um processo, é relação, encontro.
Mesmo nessas poucas páginas, espera-se que as discussões trazidas neste texto sirvam
de estímulo aos estudiosos e interessados no tema a amadurecer as reflexões apontadas e,
quem sabe, fomentar as bases para o engendramento de uma teoria dialógica da
comunicação, centrada na alteridade e na escuta. Tal esforço, ainda que imenso e imprevisível,
é certamente instigante e muito bem-vindo.
Referências
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
______. Para uma filosofia do ato. Trad. Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza da edição americana Toward a philosophy of the act. Austin: University of Texas Press, 1993. (tradução destinada exclusivamente para uso didático e acadêmico).
______.; VOLOSHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2006.
MARCONDES FILHO, C. Para entender a comunicação: contatos antecipados com a Nova Teoria. São Paulo: Paulus, 2008.
PONZIO, A. A revolução bakhtiniana. São Paulo: Contexto, 2009.
______. Procurando uma palavra outra. São Carlos: Pedro & João, 2010a.
______. Encontros de palavras: o outro no discurso. São Carlos: Pedro & João, 2010b.
SANTAELLA, L.; NÖTH, W. Comunicação e semiótica. São Paulo: Hacker, 2004.