Artigo Daniel Rocha

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REVISTA CAFÉ COM SOCIOLOGIA 75 ARTIGO O Espaço Intelectual Anarquista Especifista através das mobilizações no Brasil (2013-2014) Daniel Rocha 1 Resumo Objetivo deste artigo é discutir a constituição de um espaço intelectual anarquista especifista, que em termos analíticos se apresenta através da sustentação e fomento “opinião pública”. Assim, toma-se como marco da análise empírica as mobilizações que aconteceram no Brasil chamada “Jornadas de Junho” no ano de 2013 e as subsequentes greves ocorridas no ano de 2014. Palavras-chave: Anarquismo. Movimentos Sociais. Opinião Pública. Sociologia Intelectual. THE INTELLECTUAL SPACE ANARCHIST SPECIFIC TROUGH MOBILIZATIONS IN BRAZIL (2013-2014). Abstract This arcticle aims to discuss the establishment of a intellectual space anarchist specific which analytically is presented trough the supported and encouragement of “public opinion”. Thus, it is taken as a mark of empirical anlysis the mobilizations that ocurred in Brazil called “Jornadas de Junho” in 2013 and the subsquent strikes occured in 2014. Key-words: Anarchism. Social Movements. Public Opinion. Sociology of Intellectual. INTRODUÇÃO No cenário político atual de intensas mobilizações no Brasil é possível perceber uma gama de diferentes formulações e a constituição de diversas “opiniões públicas” acerca das manifestações que aconteceram no período de junho de 2013 e suas reverberações no ano de 2014, momento em que o país se preparava para receber os eventos de grande porte como foi o caso da Copa das Confederações, que ocorreu no ano de 2013, e como é a Copa do Mundo da FIFA no ano de 2014. Para fazer tal análise tomo como ponto de partida os conceitos de “espaço” e “opinião pública” – que outrora com o desenvolvimento do trabalho se revelará como constituinte 1 Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e mestrando no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia. E-mail: [email protected]

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Artigo de Daniel Rocha sobre o anarquismo no Brasil

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    ARTIGO

    O Espao Intelectual Anarquista Especifista atravs das mobilizaes no Brasil (2013-2014)

    Daniel Rocha1

    Resumo Objetivo deste artigo discutir a constituio de um espao intelectual anarquista especifista, que em termos analticos se apresenta atravs da sustentao e fomento opinio pblica. Assim, toma-se como marco da anlise emprica as mobilizaes que aconteceram no Brasil chamada Jornadas de Junho no ano de 2013 e as subsequentes greves ocorridas no ano de 2014. Palavras-chave: Anarquismo. Movimentos Sociais. Opinio Pblica. Sociologia Intelectual.

    THE INTELLECTUAL SPACE ANARCHIST SPECIFIC TROUGH MOBILIZATIONS IN BRAZIL (2013-2014).

    Abstract This arcticle aims to discuss the establishment of a intellectual space anarchist specific which analytically is presented trough the supported and encouragement of public opinion. Thus, it is taken as a mark of empirical anlysis the mobilizations that ocurred in Brazil called Jornadas de Junho in 2013 and the subsquent strikes occured in 2014. Key-words: Anarchism. Social Movements. Public Opinion. Sociology of Intellectual.

    INTRODUO

    No cenrio poltico atual de intensas mobilizaes no Brasil possvel perceber uma

    gama de diferentes formulaes e a constituio de diversas opinies pblicas acerca das

    manifestaes que aconteceram no perodo de junho de 2013 e suas reverberaes no ano de

    2014, momento em que o pas se preparava para receber os eventos de grande porte como foi

    o caso da Copa das Confederaes, que ocorreu no ano de 2013, e como a Copa do Mundo

    da FIFA no ano de 2014.

    Para fazer tal anlise tomo como ponto de partida os conceitos de espao e opinio

    pblica que outrora com o desenvolvimento do trabalho se revelar como constituinte

    1 Bacharel em Cincias Sociais pela Universidade Federal do Recncavo da Bahia e mestrando no Programa de Ps-graduao em Cincias Sociais pela Universidade Federal da Bahia. E-mail: [email protected]

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    daquilo que acredito que seja tambm um espao intelectual promovido pelas organizaes

    anarquistas especifistas, tendo em vista a aparente invisibilidade que essas organizaes

    possuem no debate poltico atual, mas que com um certo aprofundamento possvel perceber

    o papel central que elas possuem no desenvolvimento e aplicao de uma determinada

    concepo poltica que fomentaram (e fomentam) a luta e as mobilizaes que aconteceram (e

    acontecem) no perodo assinalado.

    Toma-se como base publicaes de artigos, textos, e notas lanadas pela Coordenao

    Anarquista Brasileira (CAB)2, que a entidade que unifica as diversas organizaes em

    mbito nacional (como tambm das prprias organizaes que a compe), tentado enxergar o

    desenvolvimento do programa poltico dessas organizaes e evidenciando aquilo que so

    considerados os princpios anarquistas, buscando entender, ento, o processo de constituio

    desse espao intelectual.

    O CONCEITO DE ESPAO E OPINIO PBLICA

    Para situar a investigao sociolgica no mbito do que seria o carter intelectual da

    organizao anarquista especifista, e sua atuao no sentido de instaurar uma opinio

    pblica, nas mobilizaes ocorridas no Brasil tratarei primeiro do conceito de espao a partir

    das consideraes de Doren Massey (2008), j que esta acredita sobretudo que a definio do

    espao est diretamente imbricado com a esfera do poltico.

    Ela, por sua vez, acredita que o espao produto de inter-relaes tendo em vista a

    prpria dinmica e a necessidade de uma poltica plural antiessencialista no cenrio

    contemporneo, que possa levar em conta a constituio das identidades e as relaes que elas

    estabelecem no seu processo de construo. No qual as identidades so forjadas a partir de um

    jogo poltico ou de uma diversidade de opinies que compe o espao.

    Assim, o espao se apresenta como fruto de aes e interaes no se tratando

    necessariamente da dimenso espacial no qual possvel perceber diferenas e

    heterogeneidades composta por aquilo que seria alteridades simultneas colocando o 2 A Coordenao Anarquista Brasileira surge como um projeto de organizao poltica anarquista especifista fruto de debates que aconteceram no seu primeiro Congresso realizado na cidade do Rio Janeiro no ano de 2012 se consolidando posteriormente como entidade que unifica as mais diversas organizaes especifistas no Brasil. Atualmente composta por 9 organizaes de diversas partes do pas que so: Coletivo Anarquista Zumbi dos Palmares (CAZP) no estado de Alagoas; Federao Anarquista do Rio de Janeiro (FARJ), Organizao Anarquista Socialismo Libertrio (OASL) no estado de So Paulo; Rusga Libertria no estado do Mato Grosso; Federao Anarquista Gacha (FAG) no estado do Rio Grande do Sul; Ncleo Anarquista Resistncia Cabana (NARC) no estado do Par; Coletivo Anarquista Bandeira Negra (CABN) no estado de Santa Catarina; Organizao Resistncia Libertria (ORL) no estado do Cear; Coletivo Anarquista Luta de Classe (CALC) no estado do Paran.

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    espao em processo, estando aberta para as possibilidades que podem superar modelos j

    estabelecidos de entidades/identidades a partir de uma construtividade relacional.

    Se nenhum lugar/espao uma autenticidade coerente e contnua, ento uma questo que levantada a de sua negociao interna. Se as identidades, tanto as especificamente espaciais quanto as outras, so de fato, construdas relacionalmente, ento isto coloca a questo da geografia dessas relaes de construo. Levanta questes da poltica dessas geografias e de nosso relacionamento e responsabilidade com elas, e faz surgirem, de modo contrrio e, talvez, de maneira menos esperada, as geografias potenciais da nossa responsabilidade social. (MASSEY, 2008, p.31).

    Dessa forma o espao possui um elemento de imprevisibilidade no que tange a

    construo dessas relaes, sem abrir mo daquilo que Massey considera como

    responsabilidade social: relaes que dialoguem e possuam um certo grau de liberdade e

    responsabilidade. Ou seja, o estabelecimento de princpios que possam orientar determinadas

    prticas sociais levando em considerao as pluralidades existentes no espao onde se

    constroem essas relaes.

    a partir, ento, dessa relao dialgica que busca a construo de um espao que

    possibilite o exerccio dessa responsabilidade social ou de princpios que se pode buscar

    entender o conceito de opinio pblica, agora utilizando Carlos Cossio (1985) como

    interlocutor, que por sua vez para definir o conceito pauta-se na diferenciao da opinio

    popular e opinio pblica.

    A opinio popular, para ele, a opinio do pblico se caracterizando como qualquer

    situao coletiva em que h um soma de opinies pessoais, j a opinio pblica tambm

    uma situao coletiva mas de carter especfico, j que esta, por sua vez, se caracteriza como

    uma opinio qualificada e que muitas vezes se traduz em princpios.

    Isso implica em divergncias no que refere-se ao carter constitutivo dessas

    diferentes opinies, e na possibilidade de sua consolidao dentro de um espao especfico.

    Ou seja, a diferena entre opinio pblica e opinio popular est sobretudo imbricada com a

    potencialidade que uma determinada ideologia, concebida como viso de mundo, possui de

    tornar-se referncia em relao a determinados fatos ocorridos.

    Assim, enquanto a opinio do pblico seria a popularidade de uma opinio, a opinio

    pblica se apresentaria de forma inversa buscando nesse sentido influenciar a opinio do

    pblico. interessante assinalar que Cossio ao tratar dessa relao acredita que quando a

    opinio pblica penetra na opinio do pblico ocorre um processo de empobrecimento e de

    passividade, j que essa relao adquire uma dimenso singular e unilateral, por outro lado,

    quando a opinio do pblico recebido pela opinio pblica a relao tende adquirir uma

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    dimenso plural e coletiva.

    A opinio pblica se apresenta, ento, de forma mais estvel do que a mera

    popularidade da opinio do pblico tendo em vista a historicidade da sua constituio. Na sua

    formao possui um passado e um futuro, j a opinio do pblico se apresenta de maneira

    passageira se produzindo de forma circunstancial em virtude de certas ocasies ou momentos.

    O que no quer dizer, que eventualmente est opinio do pblico no possa adquirir o status

    de opinio pblica, desde que consiga tornar-se referncia para um determinado grupo social.

    Portanto, a dimenso histrica da constituio da opinio pblica que vai revelar seu

    carter intelectual, j que para Cossio, esse elemento histrico que evidencia uma

    conscincia coletiva e justifica o fato dessa opinio ser pblica, alm de uma

    autoconscincia que est ligada a produo de um conhecimento reflexivo.

    [] na medida em que se trata de uma autoconscincia, ou seja, de um conhecimento reflexivo que se pode raciocinar e que se transmite pelo raciocnio, h na opinio pblica um inegvel carter intelectual que o reafirma suave e simplesmente como conhecimento []. Sendo conhecimento, no de estranhar que a opinio pblica se remeta a uma coisa que se faz valer como princpios. (COSIO, 1985, p.39)3.

    A fundamentao de princpios, ento, vai ser essencial para entender a posteriormente

    a proposta aqui empreendida, alm de possibilitar visualizar de forma mais clara a

    interlocuo existente entre os conceitos de espao e opinio pblica na constituio do

    espao intelectual anarquista especifista.

    A opinio pblica, ento, demonstra seu carter intelectual pelo processo reflexivo que

    possui, no podendo ser confundida com mera informao sobre a realidade, mas a uma

    dimenso de conhecimento, que leva em considerao um aprofundamento sobre

    determinadas questes, e que por isso mesmo tende a seguir certos princpios44.

    A ORGANIZAO ANARQUISTA ESPECIFISTA5

    3 Traduo minha. [] na medida en que se trata de una autoconciencia, es decir, de un conocimento reflexivo que se puede razonar y que se transmite por razonamiento, hay en la opinin pblica un innegable carcter intelectual que la refirma lisa y llanamente como conocimiento em el sentido cientfico de un acuerdo entre concepto e intuicin. 4 Aqui defendo a posio de que o conhecimento, em geral, se diferencia da informao. Enquanto, a informao se contenta com a superficialidade dos fatos na sua transmisso, o conhecimento, implica em uma investigao muitas vezes rigorosas, como por exemplo, se pretende o conhecimento cientfico aprofundada da realidade. 5 Nessa seo aproveitei algumas reflexes feitas no trabalho apresentado em maio de 2014 na III Semana de Histria da UNEB (Campus II) no simpsio temtico Marx e Marxismos: Mtodo, Histria, e Revoluo intitulado Interseces militantes: o pensamento socialista e o agrupamento de tendncia uma experincia da Organizao Popular de Ao Revolucionria.

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    A organizao anarquista especifista tem sua base na experincia histrica a partir da

    Federao Anarquista Uruguaia (FAU) sendo conhecida tambm como especifismo ou

    anarquismo organicista no qual baseia-se na necessidade de que a organizao poltica

    anarquista especifista se aproxime dos movimentos sociais populares com nfase em um

    comprometimento militante (FARJ, 2008).

    Ela se diferencia de outras correntes do anarquismo j que busca uma colaborao

    entre anarquistas especficos e de uma organizao poltica especfica que so aqueles

    que acreditam que na transformao social atravs de adoo de uma estratgia poltica e

    programa em comum regido por princpios coletivos. Nesse sentido, se diferenciam dos

    anarquistas de sntese, que so aqueles que trabalham com a ideia de que necessrio haver

    uma colaborao entre os anarquistas mesmo que estes no possuam uma estratgia poltica e

    programa em comum que unifique esse grupo. Pode-se inferir que

    Uma organizao nestes moldes defende algumas posies claras: a organizao como minoria ativa; a nfase na necessidade de organizao; a unidade terica e a unidade de ao; a produo de teoria; a necessidade de trabalho social e insero social; o entendimento do anarquismo como ferramenta para a luta de classes na busca de um projeto socialista libertrio; a diferenciao entre os nveis de atuao poltico (da organizao anarquista) e social (dos movimentos populares); e a defesa de uma militncia que seja feita com estratgia. (FARJ, 2008).

    Logo, essa unidade terica e programtica busca criar uma convergncia slida na

    busca de gerar fora social, que na estratgia geral do anarquismo especifista se traduz na

    busca de alcanar um objetivo finalista que a revoluo social e o socialismo libertrio.

    Nesse sentido, a concepo anarquista especifista de poder popular se apresenta como

    categoria central para a construo do seu programa poltico ideolgico tendo em vista que ela

    dialoga com outro conceito importante que a autogesto.

    O poder popular est diretamente imbricado com a trajetria e desenvolvimento do

    anarquismo sendo reflexo das diversas experincias, em mbito prtico e terico, e fruto de

    acmulos de saberes construdos coletivamente na busca de alcanar seu objetivo finalista.

    Historicamente, este conceito est associado ao cenrio latino-americano a partir da

    experincia da FAU que desde a dcada de 1960 reivindicava a necessidade de criar um povo

    forte que trata basicamente do fortalecimento do povo no sentido de ser protagonista de suas

    prprias lutas e em contexto de disputa poltica na conjuntura chilena de radicalizao do

    governo socialista de Salvador Allende capitaneado pelo Movimento de Izquierda

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    Revolucionrio (MIR)66.

    Assim, o poder popular se constitui atravs do desenvolvimento da ao poltica e na

    possibilidade de intervir no conjunto de foras sociais em jogo tendo em vista o contexto

    social, histrico e geogrfico em que os atores sociais esto inseridos na tentativa de

    impulsionar e atingir o seu objetivo finalista.

    Nesse sentido, concebe-se poder como uma relao social estabelecida a partir do

    enfrentamento entre diversas foras sociais, quando uma ou mais foras se impem s outras

    (CAB, 2012, p.10). Para os anarquistas especifistas, o poder uma relao dinmica e faz

    parte da sociedade mas deve ser diferenciado daquilo que eles consideram como fora social7.

    Uma fora social tem determinada capacidade de relao. Capacidade de relao pode ser entendida, como a possibilidade de produzir determinada fora social, quando colocada em ao pelo que a detm. muito importante esta definio, uma vez que a capacidade de realizao constantemente utilizada como sinnimo de poder. Ou seja, quando um agente tem a capacidade de realizar ou produzir determinado efeito, se diz ele tem poder. No nada disto, o agente pode ter a capacidade de realizar at uma relao de poder, contudo, nem tudo que o agente realiza poder (LPEZ LPEZ, Fbio, [?], p. [?]).

    Desse modo, para efetivao do poder necessrio fazer uso da fora social, da

    capacidade de impor sua vontade, seja por sua mobilizao atravs de um indivduo ou grupo.

    Assim, os anarquistas especifistas buscam interagir na relao de foras se contrapondo aquilo

    que eles acreditam que seja o tipo poder vigente na sociedade capitalista: o poder de

    dominao. A dominao se caracteriza, ento, como um tipo de poder autoritrio contra qual

    os anarquistas lutam historicamente na tentativa de substituio de um sistema de dominao

    para uma sociedade igualitria e libertria (CAB, 2012).

    Essa contraposio se efetiva a partir da prpria concepo de poder popular que a

    tentativa de instituir uma sociedade libertria a partir do federalismo8 e autogesto (baseado

    6 A busca aqui foi situar o conceito e a apropriao dele tendo em vista a proximidade com o cenrio brasileiro e sua adoo pelas organizaes que compem a CAB de forma que no se ignora outras experincias anarquistas na tentativa de criao de poder popular embora a explicitao no ocorresse nestes termos a exemplo da proposio de Bakunin de um programa anarquista na Associao Internacional dos Trabalhadores (AIT). J o Movimento de Izquierda Revolucionrio fundado em 1965 era um grupo que reunia jovens militantes marxistas no Chile e seu objetivo era assegurar que as pautas socialistas fossem cumpridas e fazer frente aos ataques de grupos de extrema direita e neofascistas contra o governo de Salvador Allende, adotando para isso, inclusive a luta armada 7 Enquanto o poder est no campo da possibilidade, na potencialidade, a fora social a capacidade de mobilizar o poder para interagir na realidade, ou seja, interferir nas foras em jogo na disputa poltica. 8 Caracteriza-se por ser o federalismo libertrio, que se ope ao modelo vigente, por exemplo, na sociedade brasileira no qual vigora o federalismo estatal. O federalismo libertrio um mtodo organizacional anarquista de carter horizontal em oposio as estruturas verticalizadas do Estado, prima pelas decises tomadas nas organizaes primrias ditas de base com a utilizao do voto direto.

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    na autonomia dos indivduos). Denomina-se, ento, de poder popular o modelo

    autogestionrio e federalista entendido como oposio da relao de dominao instituda

    na sociedade capitalista cujo objetivo implica na participao coletiva, grupal e pessoal

    tendo em vista a proporo em que se afetado pela tomada de decises no planejamento e

    nos processos decisrios. (CAB, 2012).

    Podemos dizer que autogesto seria, em termos gerais, o poder efetivo de deciso sobre o conjunto de questes polticas, econmicas, sociais; no realizado de cima para baixo a partir da cpula, mas de baixo pra cima, a partir da base. Definio que abrange diversos campos: formas de organizao poltica, organizao dos processos de produo e servios, educao, aspectos culturais e ideolgicos (). A autogesto no disciplina corpos para submisso, para obedincia e para o mando, mas tende a destruir, a descontinuar a noo atual de poltica como algo reservado a uma casta, dando outro contedo a esse conceito: a tomada, pelas prprias mos, dos diversos organismos sociais, em todos os nveis e sem intermedirios, dos assuntos que lhe competem, visando construir uma ordem social sobre essas bases. O que tambm implica em socializar a poltica; no desconstruir seu espao especfico, mas conceb-lo de uma outra maneira. (FAU apud CAB, 2012, p.11).

    Nesse sentido, a construo do espao anarquista que faz parte da estratgia geral do

    anarquismo especifista se d atravs de uma organizao poltica visando a atuao no nvel

    social, j que esses anarquistas acreditam que o trabalho com pouca organizao, mal

    articulado, ineficiente e no produz efetividade, ou seja, no gera fora social9. Aqui h uma

    diferenciao entre o nvel poltico e social. O nvel poltico que a organizao anarquista

    de fato aquele em que ocorre a aglutinao dos anarquistas especifistas e a construo do

    programa em comum pautado na concepo de poder popular j o nvel social os

    movimentos sociais aquele que os anarquistas buscam desenvolver sua prtica poltica e

    estar em contato direto com os setores populares.

    A atuao anarquista especifista no nvel social segundo Felipe Corra (2010) visa

    atuar em dois problemas que ele considera fundamental e que permeia a luta poltica junto aos

    setores populares: que a desorganizao da maioria desses setores, e nos setores que j se

    encontram organizados e a promoo de formas de organizao e programas que no levam a

    uma proposta libertadora e de transformao social. Pode-se considerar ento dois espaos de

    atuao: um espao social amplo composto por moradores de bairros perifricos,

    trabalhadores de vrios tipos desempregados, precrios, formais que esto desmobilizados

    9 O especifismo uma corrente do anarquismo que acredita que deve haver uma colaborao entre anarquistas especficos, que so aqueles que acreditam na transformao social atravs da ao e princpios coletivos. Diferem, portanto, dos anarquistas individualistas, ou dos anarquistas sintetistas, que trabalham com a ideia de sntese, ou seja, que deve haver uma colaborao entre os anarquistas mesmo que no exista um programa ou estratgia poltica que unifique esse grupo.

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    e desorganizados; e outro considerado como espao social restrito, que j possui organizao

    a exemplo de movimentos como: os sem-terra, os sem-teto, comunitrio, etc.

    Aqui entra novamente a questo da fora social e do poder popular, j que os espaos

    de atuao nos movimentos sociais esto em constante disputa e envoltos em conflitos de

    interesses. Os anarquistas especifistas consideram, ento, que em qualquer espao que haja

    conflito de interesses necessrio fora social, j que partem da ideia de que no existe

    vcuo de poder nas relaes sociais.

    Assim, a tentativa de organizar e participar dos movimentos se d no sentido de

    promover determinadas concepes metodolgicas e programticas sempre de forma

    organizada. Ou seja, para eles, quanto mais estiverem organizados maior ser a fora social e

    por consequncia mais fcil ser de atingir os seus objetivos. E nesse sentido que a

    organizao anarquista especifista desenvolveu um papel importante naquilo que constituiu a

    criao de um espao intelectual e a disputa de uma opinio pblica no cenrio de

    mobilizaes no Brasil entre 2013 e 2014.

    O ESPAO INTELECTUAL ANARQUISTA ESPECIFISTA

    Ao tomar-se como base para o desenvolvimento da anlise sociolgica aqui proposta

    as mobilizaes ocorridas em junho de 2013 denominadas Jornadas de Junho e as greves

    que aconteceram em 2014 em conjuntura de realizao da Copa do Mundo no Brasil10.

    A escolha do perodo, justifica-se pela dimenso que essas mobilizaes ganharam no

    cenrio contemporneo da poltica brasileira, j que, desde 1992 com o Fora Collor no se

    tinha registros de um nmero expressivo de pessoas que iam para as ruas protestar em vrios

    lugares do pas ao mesmo tempo (aconteceram protestos simultneos em vrias capitais do

    pas), e pelo intenso fluxo de informaes sobre esses protestos veiculadas tanto pela mdia

    tradicional como pelas redes sociais (esta ltima foi o principal veculo responsvel para

    divulgao e articulao de vrias manifestaes).

    As mobilizaes tiveram seu incio no ms de junho de 2013 quando o Movimento

    Passe Livre (MPL) se articulou e mobilizou passeatas em virtude do aumento da tarifa de

    nibus na cidade So Paulo que havia mudado o valor de sua passagem de R$ 3,00 para R$

    3,20. As passeatas foram convocadas atravs das redes sociais e tiveram como desdobramento

    10 A escolha do perodo se deu tambm devido a prpria atribuio dada pelas organizaes anarquistas especifistas da relao existente entre as mobilizaes de 2013 e as greves ocorridas em 2014.

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    uma forte represso do Estado envolvendo conflitos entre manifestantes e policiais1111, alm

    de um forte apelo miditico, que noticiou as passeatas como aes que incitavam o

    vandalismo e denominando os manifestantes de vndalos e baderneiros.

    No entanto, as manifestaes ganharam corpo por vrias outras cidades do pas como:

    Natal, Porto Alegre, Macei, Fortaleza, Rio de Janeiro, etc. j que estas tambm tiveram a

    adio de 20 centavos no valor da sua tarifa de nibus alm de um aumento gradativo no

    nmero de pessoas que foram as ruas protestar. Nesse primeiro momento as passeatas

    possuam uma pauta nica: a revogao do aumento na tarifa do nibus.

    Em um segundo momento, j com um grande nmero de pessoas nas ruas, e com uma

    cobertura da mdia favorvel as manifestaes, que em virtude da forma violenta com a

    polcia passa a atacar os manifestantes, inclusive jornalistas, muda seu editorial e passa a

    apoiar as manifestaes (mas sempre diferenciando os protestos de forma pacfica feito

    pelos manifestantes, dos vndalos que protestam de forma violenta) havendo tambm o

    aumento nas pautas das manifestaes, que se antes eram contra o aumento das passagens

    agora passam a ser contra a Copa das Confederaes e do Mundo, Contra Cura Gay, o fim da

    Corrupo, e etc.

    interessante destacar que essas mobilizaes institui aquilo que pode ser entendido

    como o fato sobre o qual vai ser forjada a constituio do espao e a opinio pblica, e por

    consequncia o espao intelectual anarquista especifista, j que com as mobilizaes

    possvel perceber essa relao do espao ligado diretamente com a esfera do poltico. E de

    como aes desse tipo e que envolvem a ocupao o espao pblico, traz a tona uma srie de

    opinies sobre esse processo, que naquele momento se encontrava em aberto possibilitando

    uma srie de interaes, por exemplo, que fez com que uma pauta especfica fosse

    transformada em questes diversas.

    possvel, ento, nesse cenrio evidenciar a opinio pblica anarquista especifista

    sendo colocada em prtica, como por exemplo, na anlise feita pelos militantes Thiago

    Calixto e Pablo Pamplona integrantes da Organizao Anarquista Socialismo Libertrio

    (OASL) de So Paulo que em entrevista dada em 25 junho de 2013 e publicada no site

    anarkismo.net falam sobre a organizao das manifestaes e suas subsequentes

    repercusses.

    11 O pice da violncia policial ocorreu na noite do dia 13 de junho de 2013 em So Paulo. (Vide matria da Carta Capital: 13 de junho o, dia que no terminou ).

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    As lutas contra o aumento da passagem vm sendo organizadas majoritariamente pelo Movimento Passe Livre (MPL), que organiza e convoca lutas em torno da questo do transporte desde 2006. O movimento com o qual temos grande afinidade e proximidade conserva um carter autnomo e combativo. Constri suas lutas com independncia e prima pela participao generalizada e horizontal. No leva carros de som s ruas, os pronunciamentos so sempre passados em forma de jogral (algum grita os informes e as pessoas ao redor repetem as mesmas palavras, para que um nmero maior de pessoas possa ouvir) e a passividade dos manifestantes nunca estimulada; ao contrrio, a participao e ao amplas so sempre incentivadas. Esse carter, bastante caracterstico nas lutas contra o aumento, tem conquistado um forte respaldo da populao, que, ao nosso ver, est cansada das mobilizaes no modelo tradicional da esquerda, em torno de palanques e discursos desgastados. A desobedincia civil e ao direta, assim como o trabalho de base, tm sido constantemente praticados pelo movimento. Ao mesmo tempo, deve ser motivo de preocupao o fato de a oposio aos partidos ter sido, em grande medida, apropriada por um setor conservador e nacionalista, algumas vezes estimulada pela extrema-direita e ter se estendido esquerda como um todo, incluindo os movimentos sociais e sindicatos. A grande mdia tambm tem contribudo para esse avano das foras conservadoras e para o enfraquecimento das pautas relacionadas ao transporte.

    Nesse relato possvel identificar uma dimenso que trata sobre a possibilidade de

    construo de alternativas nas mobilizaes e sobre novas formas de organizao dos

    protestos, trazendo a tona o estabelecimento das inter-relaes entre os movimentos (no caso

    citado a OASL e o MPL) e a superao de modelos estabelecidos da esquerda tradicional

    (ancorada nos partidos polticos e na disputa do Estado), alm de aspectos pautados pela

    organizao como a desobedincia civil, ao direta e trabalho de base.

    A primeira manifestao teve cerca de 5 mil pessoas, e j teve acompanhamento ao vivo do Jornal Nacional, o principal jornal televisivo do pas. O mesmo se seguiu pelos atos seguintes: a grande mdia continuou falando da luta (antes mesmo da reduo da tarifa, ela j era capa de muitos dos principais jornais e revistas do pas). Inicialmente, os manifestantes foram taxados de vndalos, jovens sem causa e outras posies que tentavam deslegitimar o movimento. Ento todo o pas falava das manifestaes, o que foi fundamental, e pelas redes sociais compartilhava vdeos e informaes que mostram outra verso da histria. (.) Na nossa avaliao, os recentes fatos confirmam o que os anarquistas defendem desde sempre: no basta levar o povo s ruas; preciso que o povo conquiste o poder, de baixo para cima, pelo seu prprio ritmo e organizao, no por meio da tomada do Estado, mas pela construo de organismos participativos e populares. Para isso, o trabalho de base imprescindvel. Se no h uma preparao prvia, a discusso poltica abstrada e cooptada pelos setores da sociedade que estiverem mais organizados. No caso atual, os grandes capitalistas e o Estado. Grande parte da populao que est nas ruas no tem acmulo em discusses polticas e apenas reproduz o que v h muito tempo atravs das lentes da ideologia dominante. Foi condicionada a converter a pauta a temas que interessam direita, como o orgulho de ser brasileiro, menos impostos, menos impunidade etc. As redes sociais no so boas por si s e no substituem, de forma alguma, a importncia e necessidade da organizao popular e trabalho de base permanente. Isso deveria ser lembrado por toda a esquerda. No entanto, como forma de propaganda, elas tm sido fundamentais para que muitas pessoas soubessem da luta e dos agendamentos das manifestaes.

    Assim, ainda com anlise dos militantes da OASL, importante destacar um novo

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    elemento que contribuiu para que ocorresse um aumento de pessoas s ruas e as disputas em

    torno do que iria ser pautado nas manifestaes, como a influncia das redes sociais nesse

    processo, e a circulao da diversidade de opinies estabelecendo contrapontos ao que era

    exibido pelas grandes empresas de comunicao12.

    Ou seja, embora a redes sociais possibilitassem que a opinio do pblico dialogasse

    com a opinio pblica produzida pela mdia tradicional, no sentido de inserir uma pluralidade

    de vozes na produo das informaes que estavam sendo veiculadas, elas no substituam o

    trabalho dirio construdo dentro dos movimentos que seria a importncia e necessidade da

    organizao popular e trabalho de base permanente.

    a, por exemplo, que entra a questo dos princpios da organizao anarquista

    especifista e naquilo que a adoo de um posicionamento crtico e de engajado sobre

    determinadas questes sociais (e que tambm se encontra expresso no programa e mtodo em

    comum adotado por essas organizaes). Pelo texto publicado em 19 de junho de 2013 pela

    CAB, no contexto das mobilizaes, intitulado A luta contra o aumento das passagens e o

    Anarquismo perceptvel, ento, esse posicionamento.

    Ns anarquistas organizados politicamente na Coordenao Anarquista Brasileira (CAB) participamos modestamente de diversas mobilizaes e cerramos fileiras com trabalhadores e militantes em diversos estados do pas. A CAB uma instncia que reuniu diversas Organizaes Anarquistas Especifistas de todo o Brasil para articular a luta e construir no futuro uma Organizao Anarquista em nvel Nacional. constituda por 9 Organizaes de diferentes Estados, de base Federalista que constri a partir de prticas concretas unidade estratgica e maior organicidade para intensificar a insero social no seio de nosso povo. Nesse sentido, so mais de 10 anos de resgate do Anarquismo enquanto corrente libertria do Socialismo, organizada politicamente e inserida socialmente. () fazemos parte de uma tradio poltico-organizativa (anarquismo especifista) que nasceu no seio dos trabalhadores. Tem esse nome porque retoma princpios bsicos do anarquismo e reafirma a necessidade de nos organizarmos politicamente enquanto militantes anarquistas e socialmente nos movimentos populares. Essa necessidade poltica se expressa por meio de uma Organizao Poltica Anarquista, Federalista e de Quadros, com critrios de ingresso, formao militante, dotada de um Programa Mnimo, Estratgia de Curto e Longo Prazo e Objetivo Finalista. No apostamos portanto, na luta individual e desorganizada como estratgia de vitria mas sim no acmulo de fora social nos movimentos populares. Dessa forma, no somos espontanestas, achando que a organizao popular vir por ela mesma. Ao contrrio do que alguns dizem, seguimos contribuindo com o fortalecimento dessa organizao, com esforos modestos mas firmes, no movimento popular, sindical, estudantil e campons em diversos estados deste pas. Cabe tambm sublinhar que no temos a pretenso de como organizao poltica anarquista e classista representar a totalidade dos anarquistas fora da nossa coordenao, assim como

    12 O caso mais exemplar do posicionamento da mdia tradicional ficou expresso na fala de Arnaldo Jabor em exibio no Jornal da Globo no qual diz que 20 centavos no poderiam ser a causa das manifestaes. E que o dio violento pela cidade nas aes dos manifestantes era comparvel a grupo de criminosos. .

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    no exigimos a determinados partidos marxistas que respondam pela totalidade dos marxistas. Somos parte de uma organizao poltica anarquista classista que trabalha com princpios em comum, critrios de ingresso, estratgia militante e unidade terica/ideolgica. Neste sentido, rejeitamos a associao preconceituosa de qualquer um que vincule de modo quase que automtico o anarquismo a desorganizao, sendo que no h nenhum elemento histrico que embase esta afirmao.

    importante assinalar que os princpios defendidos pelos anarquistas especifistas se

    traduzem naquilo que considerado para eles como uma postura tica, ou a tica

    anarquista, fazendo com que uma tomada de posio aparentemente singular e situacional

    (como aqui o caso das mobilizaes) esteja sempre interligada com uma dimenso de

    totalidade (que para eles refletem no seu objetivo finalista: a revoluo social e o socialismo

    libertrio), assim na Declarao de Princpios da CAB existe um item que trata exatamente

    disso: de que a tica um pilar fundamental da organizao anarquista e ela norteia toda a

    sua prtica (CAB, 2012).

    Percebe-se tambm que os especifistas estabelecem uma diferenciao (como aponta o

    trecho supracitado) em relao a outros anarquistas e grupos polticos que se posicionam no

    campo dito de esquerda, revelando no ser pretenso deles representar a totalidade desses

    agrupamentos e indivduos nas suas aes, se aproximando daquilo que Sartre (1994)

    considerava tambm como reflexo de um posicionamento intelectual.

    () os intelectuais devem tentar estabelecer, manter ou restabelecer uma unidade antagonstica entre eles, quer dizer, um acordo dialtico afirmando que as contradies so necessidades e que sempre possvel a ultrapassagem unitria dos contrrios, que no se trata, portanto, de querer levar o outro obstinadamente, a seu prprio ponto de vista. (SARTRE, 1994, p.50).

    As contradies vivenciadas pelos intelectuais, como aponta Sartre, so necessrias a

    sua constituio, ou seja, sempre na contraposio e nas contradies que se institui aquilo

    que pode ser chamado de espao intelectual. Nesse sentido, as organizaes anarquistas

    especifistas ao se confrontarem com a realidade social, de forma coletiva e organizada optam

    por um posicionamento tico que orienta suas aes, de maneira tal, que para eles no

    constitui objetivo ideologizar os movimentos sociais ou seja, no querem tornar todas as

    pessoas anarquistas mas sim propor modelos de organizao e militncia que so pautados

    pelos seus princpios como: autogesto, federalismo, democracia e ao direta, fortalecimento

    das bases, etc.

    no desenrolar desse processo de mobilizaes vivenciadas no ano de 2013 e na

    atuao das organizaes especifistas, que foi possvel, por exemplo, o surgimento de novas

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    articulaes em torno da proposta desses anarquistas, como o caso do estado da Bahia, que

    realizou o I Encontro Anarquista Especifista da Bahia nos dias 26 e 27 de abril de 2014 e

    que em nota lanada revela a influncia dos movimentos de Junho e das relaes

    estabelecidas com a CAB na construo de uma nova militncia anarquista na Bahia.

    As jornadas de junho demonstraram a insatisfao popular com a democracia representativa e a falncia das instituies do estado burocrtico, representada pela poltica dos partidos tradicionais, no momento em que as demandas populares no foram atendidas. O Estado mostrou sua capacidade de assegurar os interesses do Capital, respondendo os anseios populares com truculenta represso. A Bahia vivenciou ricos momentos de ao popular autnoma, com manifestaes em diversas cidades do Estado. Para o anarquismo, esse processo abriu novas possibilidades do fazer poltico junto com o povo, fomentando novos valores de democracia direta e do Poder Popular. Foi diante dessa conjuntura que, ns anarquistas, lutamos e fortalecemos o protagonismo das ruas. na retomada da militncia do anarquismo organizado na Bahia, que propomos a construo de uma organizao especfica anarquista que abarque a tarefa de trilhar o caminho rumo a uma sociedade justa e igualitria. sobre essa perspectiva, que ampliamos a construo do anarquismo, a partir das experincias do Vermelho e Negro e do Coletivo Anarquista Ademir Fernando (CAAF). Ambos processos incentivados pela construo do anarquismo no pas, atravs da Coordenao Anarquista Brasileira (CAB). Levados por esses anseios, realizou-se o encontro pr-organizao do anarquismo na Bahia, que reuniu diversos militantes do estado, para definir estratgias e programas comuns na consolidao do especifismo. Convidamos a tod@s @s militantes que afinam com a proposta do anarquismo especifista na Bahia, a somar-se na luta pela construo de uma nova sociedade. (Declarao do I Encontro Anarquista Especifista da Bahia).

    Assim, nessa percepo da continuidade da luta e colocando os seus princpios em

    prtica que a CAB considera que as atuaes das organizaes especifistas reverberam de

    forma positiva nas greves ocorridas em 2014, j que essas tendem a adquirir um novo carter,

    que ignora os modelos j estabelecidos de se organizar e protestar incorporando algumas das

    concepes defendidas por essas organizaes. Isso fica evidente no texto publicado em

    maro de 2014 pela CAB no boletim Socialismo Libertrio (nmero 29) intitulado No

    comeou em 2013, no vai acabar em 2014.

    As jornadas de luta de 2013 abriram novas possibilidades em nosso pas. Possibilidades de gestao de um novo perodo de embates, com novas caractersticas, contra as foras da ordem na peleia por melhores condies de trabalho e de vida. As experincias de ao direta, de mobilizaes massivas e de forte represso vividas por amplas camadas da populao deixaram marcas que podemos perceber no conjunto das lutas do incio do ano. A greve dos correios e dos rodovirios em Porto Alegre e as lutas pela gua com corte e barricadas de rua na regio metropolitana do RS; a greve dos garis e a dos operrios do Complexo Petroqumico de Itabora, no RJ; as mobilizaes de rua contra a Copa do Mundo e outras inmeras greves que so deflagradas em todo o Brasil demonstram que o ciclo de lutas aberto pelas jornadas de 2013 est longe de se fechar. Se no vemos a mesma massividade de 2013, salta aos olhos a combatividade destas lutas. Suas caractersticas indicam uma maior radicalizao e protagonismo das bases, que em vrios casos tem atropelado as direes sindicais pelegas e conquistado vitrias.

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    Um dos exemplos que podem ser citados dessa atuao e acompanhamento das greves

    ocorridas no Brasil, e de maior repercusso nacional, foi o caso da greve dos garis no Rio de

    Janeiro, ocorrida em maro de 2014, no qual os trabalhadores negaram a intermediao das

    negociaes atravs da estrutura burocrtica do sindicato e construram uma pauta a partir das

    bases, e a dos metrovirios em So Paulo em junho de 2014, no qual foi defendido a

    proposta da greve com passe livre, ou seja, os metrs circulariam pela cidade sem a

    necessidade da populao pagar a tarifa do transporte deixando a questo custo dos

    transportes para ser resolvida entre o Estado e as empresas que controlam as linhas.

    Hoje, estive na Assembleia dos Garis e na manifestao que houve em seguida. Muito me surpreendeu a insatisfao dos trabalhadores com seu sindicato (no apenas com a direo). O aparato repressor era digno das grandes manifestaes de junho e outubro. No entanto, o apoio popular era tamanho que parecia ser imune s tentativas de criminalizao da mdia corporativa. A plenria contou com a presena de cerca de 100 grevistas, onde os pontos mais exaltados foram: o aumento do piso salarial para R$1200 + taxa de salubridade, o auxlio creche para ambos os sexos e o fim das represlias aos lutadores. Os trabalhadores apontaram que essas conquistas s seriam possveis se a categoria estivesse unida, por que sozinhos, esculacham a gente, mas juntos, a gente forte!; e se a luta fosse pela base, uma vez que O sindicato Mercenrio!, O sindicato uma vergonha!. Quando os oprimidos constroem na luta, o Poder Popular; o Estado fica aterrorizado e, por isso, espalha terror. Hoje, o contingente de cinco policias para cada manifestante exibia: tasers, cassetes, sprays de pimenta e todo investimento do governo para resolver as mazelas sociais. Assim demonstrando que, na democracia burguesa que vivemos, as demandas do proletariado so meros assuntos de polcia. Por fim, a justeza da causa dos garis parece poder quebrar o consenso que vem sendo imposto: de que protestar um crime e, como tal, deve ser duramente reprimido. Nessa medida, o fortalecimento dessa luta possa ser um antdoto para o veneno miditico que tem provocado o refluxo do movimento no Rio de Janeiro. (Relato de um militante tirado do texto Solidariedade aos garis em greve! publicado no site da Federao Anarquista do Rio de Janeiro (FARJ).

    Aqui, ento, h uma mobilizao no sentido de garantir estas lutas de carter

    trabalhista e popular, e na defesa contra a criminalizao dos movimentos sociais e dos

    setores populares, j que nesse contexto em virtude da realizao da Copa do Mundo, foi

    mobilizado pelo Estado um alto contingente de policiais13 para reprimir as manifestaes,

    como fica evidente no texto Contra a Copa e a Represso: Somente a Luta e Organizao!

    publicado em 18 de junho de 2014 no site da CAB.

    Em virtude das jornadas de junho de 2013, temos visto a crescente preocupao do

    13 O governador do Estado de So Paulo Geraldo Alckmin afirma que interromper vias pblicas e atrapalhar o trnsito caso de polcia vide matria publicada 11 de junho de 2013 no Estado .

  • REVISTA CAF COM SOCIOLOGIA

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    Estado brasileiro em garantir a tranquilidade durante o perodo da Copa. O que, na prtica, se expressa em mecanismos jurdicos que rifam direitos civis e liberdades democrticas, intensificao da represso e da criminalizao do protesto e da pobreza, aumento dos efetivos policiais e militares nos centros urbanos, bem como em suas periferias e favelas, assim como os gastos com as tecnologias de represso. A continuidade das lutas sindicais e populares neste perodo nos indica que no sero poupados esforos no sentido de conter, amedrontar e impedir que os trabalhadores usem de instrumentos legtimos e histricos para defender seus direitos e arrancar conquistas, como greves, piquetes, ocupaes e marchas. No Rio de Janeiro, So Paulo e Cear, por exemplo, mandados de busca e apreenso foram expedidos s vsperas da COPA, com deteno de alguns companheiros/as no sentido de inculcar medo nos lutadores sociais. No Distrito Federal, militantes do Comit Popular da Copa receberam intimidao de supostos representantes da Justia Eleitoral no-identificados, um dia antes de um protesto contra os gastos da copa. Em Porto Alegre, vrios lutadores sociais do Bloco de Lutas esto sendo processados e intimados. Os prprios metrovirios em greve sofreram forte represso da Tropa de Choque da PM, que usou bombas de gs lacrimognio, de efeito moral e balas de borracha. Em Goinia, estudantes da Frente de Luta pelo Transporte Pblico foram presos de forma arbitrria e somam-se aos inmeros presos e detidos da luta pelo transporte no pas. A lista enorme e poderamos estender mais de uma pgina com casos de intimidao e represso de norte a sul do pas.

    A prpria perseguio do Estado revela tambm a efetividade da constituio e o

    carter intelectual que as organizaes especifistas (que no so exclusividades delas)

    desenvolveram nesse perodo, no sentindo de fornecer uma reflexo mais aprofundada sobre

    os acontecimentos levando em considerao a responsabilidade social (pautada numa tica

    anarquista) de garantir a viabilidade da luta junto aos movimentos sociais.

    CONSIDERAES FINAIS

    Os conceitos de espao e opinio pblica, e as mobilizaes ocorridas no Brasil no ano

    de 2013 e 2014 forneceram os elementos para entender a formao e constituio do espao e

    carter intelectual anarquista especifista no cenrio brasileiro. certo que a construo e

    evidncia desse espao se deu de forma situada temporalmente tendo em vista que a CAB

    fruto de uma de articulao nacional de 10 anos entre as organizaes que a compe e que

    discutem o anarquismo especifista.

    Assim, o carter e a constituio do espao intelectual anarquista especifista no

    contexto das mobilizaes no Brasil se evidenciam atravs da adoo dos diversos

    posicionamentos assinalados anteriormente, sempre levando em considerao a formao de

    um grupo social especfico e o seguimento de certos princpios e adoo de certos conceitos e

    categorias que conformam a constituio de uma opinio pblica em um cenrio poltico

    diverso e de disputa.

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    Procurou-se atravs do material utilizado evidenciar a atuao das organizaes

    anarquistas especifistas, no sentido de efetivao desse espao intelectual no cenrio de

    mobilizaes, e de sua atuao no nvel social, estabelecendo junto com os movimentos

    sociais uma inter-relao na defesa de pautas e demandas populares.

    Por fim, o intuito foi discutir elementos que fomentaram e sustentaram o contexto

    poltico indicado tendo em vista o pouco ou quase nenhum conhecimento acerca dos

    processos que estavam (e esto) se desenvolvendo para alm das informaes comuns

    veiculadas em relao a determinados grupos polticos e sociais, como o caso das

    organizaes anarquistas especifistas, que se configuram como uma das foras intelectuais e

    possibilitam visualizar outras formas de tratar a poltica dentro do cenrio brasileiro, para

    alm daquela que se encontra institucionalizada.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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