Artigo de Conclusão - Robert Rautmann

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A ritualidade entre “espiritualidade” e “religião”: Celebração de Entreajuda - análise de caso Robert Rautmann 1 Resumo A espiritualidade experimentada na pós-modernidade tem como tendências principais a individualização e a subjetivação das crenças religiosas. Porém o aspecto que se destaca é a capacidade do indivíduo de "bricolar" seu próprio sistema de crenças, criando uma ritualidade própria para a sua espiritualidade. O que é válido aqui para o indivíduo, pensa-se que também seja válido para as instituições, que no afã de atender à grande demanda dos que nela buscam algum elemento para agregar ao seu panteão sagrado, oferece uma espiritualidade dita tradicional, porém permeada de outros elementos pinçados de várias tradições religiosas. A espiritualidade é, pois, temática relevante dada a retomada do interesse religioso em nosso tempo, seja por sua ligação com as grandes tradições religiosas e as implicações que disto derivam (o fundamentalismo e o individualismo exacerbado), seja pela intensa busca de sentido (re)apresentada a partir dos grandes conflitos mundiais e das mudanças que desde então advieram. Neste artigo esta reflexão será direcionada a uma celebração específica realizada na Igreja Católica na cidade de Curitiba. Nomeada de Celebração de Entreajuda reúne aproximadamente três mil pessoas semanalmente nos três horários disponibilizados. 1 Mestrando em Teologia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Aluno bolsista do CAPES. 1

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A ritualidade entre “espiritualidade” e “religião”: Celebração de Entreajuda -

análise de caso

Robert Rautmann1

Resumo

A espiritualidade experimentada na pós-modernidade tem como tendências principais a individualização e a subjetivação das crenças religiosas. Porém o aspecto que se destaca é a capacidade do indivíduo de "bricolar" seu próprio sistema de crenças, criando uma ritualidade própria para a sua espiritualidade. O que é válido aqui para o indivíduo, pensa-se que também seja válido para as instituições, que no afã de atender à grande demanda dos que nela buscam algum elemento para agregar ao seu panteão sagrado, oferece uma espiritualidade dita tradicional, porém permeada de outros elementos pinçados de várias tradições religiosas. A espiritualidade é, pois, temática relevante dada a retomada do interesse religioso em nosso tempo, seja por sua ligação com as grandes tradições religiosas e as implicações que disto derivam (o fundamentalismo e o individualismo exacerbado), seja pela intensa busca de sentido (re)apresentada a partir dos grandes conflitos mundiais e das mudanças que desde então advieram.Neste artigo esta reflexão será direcionada a uma celebração específica realizada na Igreja Católica na cidade de Curitiba. Nomeada de Celebração de Entreajuda reúne aproximadamente três mil pessoas semanalmente nos três horários disponibilizados.

Palavras-chave: Espiritualidade. Pós-modernidade. Celebração Eucarística. Celebração Entre-ajuda.

Abstract

The spirituality experienced in postmodernity's main trends individualization and subjectivity of religious beliefs. But the aspect that stands out is the individual's ability to "bricolage" their own belief system, creating a rituality for your own spirituality. What is true here for the individual, it is thought that is also true of the institutions that in their eagerness to meet the large demand that it seek an element to add to their sacred pantheon, offers a so-called traditional spirituality, but permeated with pinched other elements from various religious traditions.

1 Mestrando em Teologia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Aluno bolsista do CAPES.

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Spirituality is therefore a relevant topic given the resumption of religious interest in our time, whether by its connection with the great religious traditions and the implications that derive (fundamentalism and exacerbated individualism), is the intense search for meaning (re) submmited from the major global conflicts and the changes that have since thereby made.In this article this reflection will be directed to a specific celebration held in the Catholic Church in the city of Curitiba. Named Celebration of "Entreajuda", brings together about three thousand people every week in the three available times.

Key-words: Spirituality. Postmodernity. Eucharistic celebration. “Entreajuda”

celebration.

INTRODUÇÃO

Como ilustração para este artigo utilizarei uma celebração que ocorre

semanalmente em Curitiba, capital do estado do Paraná. A Celebração é conhecida como

Celebração de Entreajuda (a partir de agora CE).

O presente artigo se iniciará com uma apresentação descritiva da CE. Esta

descrição foi realizada a partir das informações oferecidas pela página da Paróquia na

qual a CE acontece, bem como por visita realizada no local da celebração durante o

referido rito.

Em seguida à descrição, refletir-se-á a respeito do rito em si. Por se tratar de um

fenômeno que pode-se dizer típico do ambiente pós-moderno, se faz necessária uma

breve explanação de algunss apectos deste período histórico atual. O artigo segue com

considerações a respeito do termo “bricolagem” e como ele pode ser aplicado à

espiritualidade e ao campo do fenômeno religioso. Ao final algumas considerações que se

pode depreender desta celebração e seu entorno.

1. Celebração de Entreajuda

A presente análise foi realizada através da leitura dos textos pertinentes à esta

celebração, vídeos realizados no local da celebração e testemunhos recolhidos daqueles

que dela participaram. A celebração em questão é conhecida como CE e é realizada

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semanalmente na Paróquia Nossa Senhora das Mercês, paróquia administrada pelos

padres capuchinhos2. Ela é relativamente bem conhecida no âmbito da Igreja Católica de

Curitiba, acontece todas as quintas-feiras, desde setembro de 2001 e reúne atualmente em

torno de três mil pessoas por semana (três horários de celebração – às 9h, às 15 e às 20h).

A CE é descrita no próprio site da paróquia3 e é neste mesmo site que se encontram seus

métodos e fundamentos, bem como um breve histórico.

1.1 Uma visão sobre o ambiente religioso da cidade

Curitiba é capital do Paraná e conta atualmente com uma população de

aproximadamente um milhão e oitocentos mil habitantes. Pelo último censo demográfico

(2010), a distribuição religiosa da população do município concentra-se principalmente

em três grupos: Igreja Católica (62%), Igrejas Evangélicas (24%) e Espiritismo (3%), esta

proporção corresponde de forma aproximada ao conjunto da população brasileira.

Percebe-se que, ainda que majoritária, o percentual de indivíduos que se autodenominam

católicos tem registrado uma queda acentuada, principalmente a partir dos anos 70. Os

grupos evangélicos registraram em todo território nacional um aumento significativo a

partir dos anos 90. Os autodenominados sem religião encontram-se em um patamar de

aproximadamente 7,5% (crescimento acentuado a partir dos anos 80). Estes dados nos

interessam na medida em que sinalizaram, já há algumas décadas, um alerta para a Igreja

Católica no Brasil de um significativo esvaziamento, resultando em várias tentativas de

estancar este declínio.

1.2 Descrição da CE

No que consiste, então, a CE? Resumidamente a Celebração tem a seguinte

sequência: relaxamento, leitura e explicação da Bíblia, distribuição da Eucaristia, partilha

através do toque físico, imposição de mãos, bênçãos e testemunhos. Ao longo de toda a

2 Ordem religiosa da família francisca (ligada à vida e obra de São Francisco de Assis). A ordem surge por volta de 1525. Instalam-se oficialmente no Brasil em 1642. O seu nome é derivado da utilização por seus membros de um capuz (capuccino em italiano).3http://www.ocapuchinho.com.br/EntreAjuda.php.

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Celebração é ressaltada a presença de sacerdotes que poderão realizar o rito do

sacramento da confissão, em locais apropriados, aos que assim desejarem. Passarei a

detalhar, na medida do interesse do artigo, cada um destes passos elencados.

A sequência ritual da CE assemelha-se com aquilo que é conhecido como

“Celebração dominical na ausência do Presbítero”4, ainda que aquele que preside a CE

seja um presbítero. Todos os elementos de um ambiente eclesial lá estão – o edifício

religioso, os objetos e vestes litúrgicas, a leitura e escuta da Bíblia, os cantos, o gestual, a

solenidade, o respeito, a veneração, as bênçãos e, inclusive, a distribuição da Eucaristia.

Acrescenta-se a este aparato, já de conhecimento dos participantes habituais das

celebrações católicas, alguns elementos que o próprio frei Alvadi5 informa sendo

integrantes da “metodologia da psicologia, parapsicologia e terapias alternativas”. Já no

início temos um rito denominado de “relaxamento” que, segundo a parapsicóloga Nelly

Kirsten6 (no mesmo site já citado) tem como benefício alcançar “o nível alfa, que é o

estado mental ideal para a oração e, portanto, para o contato mais íntimo e profundo com

Deus e consigo mesmo”. Este rito é conduzido por uma pessoa designada que, através de

palavras direcionadas, convida cada participante a interiorizar-se em busca deste nível

“alfa” de relamento. Cada participante deve permanecer sentado, em posição confortável

e, em silêncio, de olhos fechado, vai acompanhando mentalmente as palavras da pessoa

que dirige. A condução é dada para cada participante acalmar os sentidos, “entrar em si

mesmo” e se predispor à oração e ao restante da celebração.

No momento seguinte é realizada a leitura bíblica à semelhança de qualquer outra

celebração própria do catolicismo, ou seja, uma ou duas pessoas escolhidas anteriormente

dirigem-se ao local apropriado para a leitura (chama-se ambão este móvel) e, dali a

leitura é realizada em voz alta para que todos os participantes acompanhem ouvindo-a.

As leituras são escolhidas pelo critério de se referirem “ao cultivo da interioridade, da paz

4 É designado com esta expressão pelo Magistério da Igreja Católica as celebrações que ocorrem em diversas comunidades (especialmente aos domingos) que não são presididas por um sacerdote, mas por um leigo e, como tal, não poderia realizar a consagração eucarística. A celebração é semelhante à Celebração da Eucaristia. Alguns ritos são suprimidos e outros acrescentados, porém estas celebrações não podem ser modificadas ao “capricho” das comunidades, mas se deve seguir um ritual pré-estabelecido.5Frei Alvadi Pedro Marmentini é religioso da Ordem dos Capuchinos. É padre, psicólogo e parapsicólogo. Foi o iniciador da CE na Paróquia Nossa Senhora das Mercês no ano de 2001, quando era o pároco.6 Nelly Kirsten é parapsicóloga e uma das coordenadoras do Centro Franciscano de Voluntariado. Trabalha na Paróquia Nossa Senhora das Mercês com grupos de terapia e junto com Fr. Alvadi desenvolveu a dinâmica da CE.

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e alegria interior, do perdão e da alegria, da autoestima e partilha” (de acordo com o site

já mencionado). Logo após as leituras é feita uma breve explicação e dada alguma

mensagem adequada ao momento. Frei Alvadi informa ainda que todo este rito bíblico

tem a finalidade não de “transmitir teorias ou doutrinas, mas mensagens de libertação e

realização pessoal. Enfim, a glória de Deus é o homem vivente”.

Após algumas orações que seguem este momento, o rito seguinte é o da

distribuição da Eucaristia. Como já insistido anteriormente, a CE não é uma missa – na

qual poderia se ter o rito em que o presbítero, com os poderes a ele concedido e pela

força do Espírito Santo, realiza a consagração do pão e do vinho. Ainda que não se trate

de uma missa, realiza-se o rito de distribuir as hóstias consagradas em alguma missa

anterior. A distribuição é realizada pelo presbítero, mas também por outros leigos

anteriormente designados.

Imediatamente após a distribuição da eucaristia tem-se outro rito que é chamado

de “o poder do toque”. Os participantes da CE são convidados a “se darem as mãos ou a

tocarem os ombros ou a cabeça de quem está próximo”. O referido site recolhe textos e

informações de profissionais de diversas áreas7 que afirmam os efeitos benéficos do

toque físico para o bem-estar geral do indivíduo. Neste contexto o toque não é apenas um

registro físico da proximidade de um outro indivíduo, mas a possibilidade de ser “o canal

por onde se dá e se recebe esta energia que alivia, consola, fortalece e cura”. Há ainda o

intercâmbio de “bons desejos” entre os participantes e destes com aqueles que não estão

presentes fisicamente mas que poderiam estar unidos a este rito através da “comunicação

telepática subconsciente” que, ainda segundo o próprio site, é “uma realidade

comprovada científicamente”.

Antes de encerrar a CE, realiza-se o ritual da bênção. É costume nas várias

celebrações católicas que o último rito seja aquele no qual o dirigente da celebração

abençoa todos os presentes com uma fórmula oficial. O que ocorre na CE é que este ritual

de bênção não é dirigida somente às pessoas presentes, mas também a “fotos de pessoas,

pedidos escritos, água, sal, óleo, roupas, documentos, imagens, terços, remédios, carteiras

de motorista e de trabalho, inscrições em concursos e vestibulares, processos na justiça, e

outros projetos e objetos significativos”. O site da paróquia traz a justificativa para tal

7 É citado no site: Dr. Sidney Jourard (Flórida – EUA), Dra. Delores Krieger (Nova York – EUA), Dr. Joseph Rhine (Carolina do Norte – EUA) entre outros (ver site já referenciado).

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gesto: “O valor da bênção é a indução psicológica positiva que provoca e aumenta a fé

que realmente cura. A pessoa que se sente abençoada e utiliza objetos abençoados, entra

em estado de positividade e faz acontecer o que sente e acredita”.

Ao final da CE as pessoas são convidadas a darem o seu “testemunho” daquilo

que receberam através das CE. É o testemunho que “provoca nos ouvintes o aumento da

fé”. Os testemunhos devem ser relacionados com a CE e serem compreendidos como um

reconhecimento, “uma forma de gratidão”

1.3 Compreendendo a CE

Desde o primeiro momento da descrição da CE faz-se questão de frisar de que ela

não é uma missa, mas um “novo método de evangelização”. Este termo é destacado, pois

quer fazer eco ao documento emitido em 1996 pela CNBB8 de número 56 – “Rumo ao

Novo Milênio: Projeto de Evangelização da Igreja no Brasil em preparação ao grande

Jubileu do ano 2000”9, que apontava uma das diretrizes da Igreja Católica no Brasil –

“evangelização com novo ardor, novos métodos e novas expressões em diálogo com a

própria época” – palavras que por sua vez são também recuperação daquelas do então

Papa João Paulo II10.

É interessante notar o destaque dado no site ao fato de que a CE é uma iniciativa

pessoal fundamentada em documentos oficiais da Igreja Católica e possui a aprovação

dos bispos da Arquidiocese11 de Curitiba. O próprio Fr. Alvadi frisa esta aprovação ao

mencionar que: – “acima de tudo devo obediência como frei e sacerdote”.

8 Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.9CNBB. Rumo ao Novo Milênio: Projeto de Evangelização da Igreja no Brasil preparação ao grande Jubileu do ano 2000, nº 25: “[...] Deve, portanto, não repetir simplesmente as fórmulas do passado, mas buscar na evangelização novo ardor, novos métodos e novas expressões, em diálogo com a própria época, atenta aos sinais dos tempos”; ibidem, nº 62: “No limiar do Terceiro Milênio do cristianismo, fazemos uma vigorosa interpelação às nossas Igreja particulares, paróquias, comunidades, pastorais e movimentos eclesiais, para dar graças a Deus pelo Evangelho que recebemos e, ao mesmo tempo, prosseguir na missão de evangelizar como novo ardor, novos métodos e novas expressões diante de enormes desafios : a pobreza e a exclusão social, a secularização, o indiferentismo e o ateísmo prático, o diálogo com as culturas não-cristãs e interreligioso, buscando, o quanto possível, parceria com as outras Igrejas cristãs”.10 Como exemplos: Christifideles laici 35–36; Redemptoris Missio 33.41–60; Carta Apostólica Advento do Terceiro Milênio 21.11 (Arqui)diocese – Unidade territorial administrada por um (arce)bispo. Sua criação e a designação de seus bispos é responsabilidade do Papa.

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Ainda na página já citada da paróquia é mencionado que a CE é a primeira das

realizações que surgiram e que foram acompanhada de desdobramentos, como o Centro

Franciscano de Voluntariado reunindo profissionais de diversas áreas (“psicólogos,

parapsicólogos, massoterapeutas, energizadores, advogados, ministros, equipes de

liturgia, catequistas, serviços de pastorais em hospitais, creches, asilos e escolas

especiais”) que se revezam no atendimento individual ou em grupo daqueles que

necessitam de apoio psicológico ou espiritual. Este atendimento é realizado em horários

pré-determinados ou agendado com antecedência. Outro desdobramento é o “Curso de

Aprofundamento” realizado todos os domingos, a partir de 2002, das 15h às 19h,

considerado “prolongamento das CE”.

Um dos rituais católico mais conhecido da população em geral é a missa (some-se

a ela o batismo e o casamento). De certa forma existe uma expectativa para aquele que

participa de uma celebração em uma igreja Católica de estar participando de uma missa.

Ao frisar constantemente de que a CE não é uma missa, percebe-se a dificuldade de se

compreender um ritual diferente neste ambiente. E é justamente por isso que à CE é

sobreposta muitos dos ritos especificamente de uma missa, a ponto de um frequentador

da CE ficar em dúvida sobre sobre qual ritual teria participado. É o caso de Denise12:

Quando entrei, achei tudo muito diferente e, ao término da missa, vi que as

pessoas não foram para suas casas, mas sim, ficavam em filas diante de pessoas

com vestimentas onde estava escrito “Celebração da Entreajuda”. Só então,

compreendi que não tinha assistido a Missa mas sim participado de uma

Celebração da Entreajuda.

Como já dito anteriormente todo o conjunto simbólico presente na CE remete-nos

ao universo católico. O fato da divisão demográfica da cidade apontar para uma grande

maioria de católicos faz-nos crer que também esta proporção é espelhada nos

participantes da CE, em outras palavras – estamos diante de um ritual católico que é

frequentado por uma maioria católica.

Ao evidenciar certas diferenças da CE relativas às celebrações tradicionais

católicas percebe-se que a CE pretende atender aquela demanda dos não-católicos ou

12 Depoimento retirado do site já mencionado – não há outras informação sobre a identidade da mesma.

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ainda, dos católicos que mantém certa distância dos rituais católicos conhecidos, como é

o caso de Maria Cristina13, que menciona uma insatisfação inicial com a instituição

católica, na qual foi criada e o seu desejo de preencher o que ela chama de “vazio” dentro

de si:

Primeiramente, havia certa insatisfação com relação a minha religião. Sou católica apostólica romana desde que nasci. Aliás, toda minha família também. Frequentei grupos de encontros e até trabalhei, quando jovem na igreja, ajudando nos cânticos, corais e ajudei muitas missas.Na vida adulta continuava frequentando as missas, às vezes ocasionalmente, Há quatro anos, um vazio começou tomar conta de mim. Fui, então, procurar algo mais, que pudesse me chacoalhar. Fui convidada a ir a um culto evangélico na Igreja Quadrangular. Fui em todas as quintas-feiras durante um ano. Apesar de ter encontrado dentro de mim uma fé mais constante, sabia que lá ainda não era o meu lugar [...] Caros leitores, fui conhecer na quinta-feira seguinte com a minha amiga. Imaginem a emoção que eu senti quando deparei e vi com meus próprios olhos, centenas de pessoas sentadas, olhos fechados, escutando uma voz maravilhosa ao som de uma música suave.

Podemos depreender que a CE seja uma “Celebração dominical na ausência do

Presbítero” com alguns ritos sobrepostos. São eles: relaxamento, poder do toque,

imposição de mãos, bênçãos, depoimentos. E é justamente ao explicar este ritos que o site

faz uma conexão dos elementos religiosos e bíblicos com pesquisas científicas e/ou

terapias alternativas. Procura-se amparo nas pesquisas científicas para se justificar a

utilização de outros métodos ou de formas várias de ritos. E isso não é algo realizado de

forma velada, ao contrário, é apresentado pelo próprio Fr. Alvadi, no site já apontado,

como uma das motivações do início da CE: “As orientações e estudos ali recebidos [na

Loyola University – Washington (EUA)] eram de unir Fé à ciência como fundamentos, e

colocar em prática junto ao povo sofrido, técnicas e métodos não só religiosos, mas

também psicológicos para ajudar a libertar o Povo de Deus que sofre”.

2. Pós-modernismo: um tempo de bricolagem espiritual

É comum recorrer-se ao adjetivo “pós-moderno” para se referir ao ambiente atual,

predominantemente nas culturas ocidentais. Especificamente no Brasil podemos encaixar

13 Depoimento retirado do site já mencionado - Maria Cristina Puglielli Rydygier, psicóloga terapeuta e voluntária no Centro Franciscano de Voluntariado.

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perfeitamente o caso analisado nesta perspectiva. Entretanto pode-se encontrar certa

dificuldade pois o termo em questão abriga significados diversos e não há consenso

quando da utilização do mesmo. O teólogo Clodovis Boff (2014, p. 469) aponta as

variantes deste termo que supõe, inclusive, significados distintos:

Há hoje pensadores que recusam a designação ‘pós-moderno’ e a problemática que lhe é subjacente: o distanciamento do moderno. Em vez do pós-moderno, preferem falar em “modernidade radicalizada” ou ‘extremizada’ (A. Giddens), em ‘projeto inacabado da modernidade’ (J. Habermas), em ‘modernidade tardia’, em ‘hipermodernidade’ (G. Lipovetsky) ou em ‘nova modernidade’ (R.J. Schreiter).

Os termos possuem nuances interpretativas, mas todos autores estão, de alguma

forma, concordes que a época a que se referem está situada em um período, um momento

que é posterior à modernidade, como continuidade ou descontinuidade.

É no período histórico da Modernidade (situada a partir do século XVI) que

surgem correntes e processos que contribuiriam para a autonomização das esferas sociais,

como o mercantilismo, o humanismo. O catolicismo é confrontado diretamente em seu

monopólio da construção da subjetividade dos indivíduos que possibilita a pluralização

de ofertas de significados e de outras óticas possíveis do mundo (cfe. CARRANZA, p.

49).

A lógica do livre mercado é absorvida pelo indivíduo no campo do consumo de

bens e serviços, inclusive na esfera religiosa, propiciando a escolha da religião como um

objeto, selecionando o que mais lhe agrada. Acrescente-se aí de rejeição a qualquer

imposição externa que possa influenciar esta escolha – seja da instituição religiosa com

suas doutrinas e morais, seja de outros agentes. O papel da religião neste contexto

moderno é, aos poucos, deslocado da esfera pública para a esfera privada. As decisões

neste campo estão sujeitas ao indivíduo e não são mais herdadas.

Entre tantas mudanças acontecidas na sociedade moderna (especialmente ao longo

do século XX), destaco aqui o que importa ao tema em questão:

a. Uma sociedade de consumo: o estilo de vida pautado por escolhas individuais e o

incremento das trocas comerciais e culturais evidenciam a centralidade do poder

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aquisitivo e o consumo de bens e serviços é intensificado tornando-se um

distintivo social importante.

b. Cultura de massa: os meios de comunicação social e mais recentemente o

ciberespaço potencializaram a níveis outrora impensáveis o ideal do consumo e as

escolhas individuais.

Neste sentido é que se fala em “revolução espiritual”14 no contexto de pós-

modernidade. As causas desta efervescência espiritual, quando se pensava que Deus

estaria morto ou que não haveria mais espaço para a transcendência, são muitas. Entre

os pesquisadores destaca-se como uma das principais causas o desencanto com a

Modernidade e as suas promessas não completamente realizadas – que acreditavam o

ser humano como bastante capaz de solucionar todas as questões que lhe afetavam

enquanto indivíduo ou como ser social. Assim se expressa a teóloga brasileira Maria

Clara:

“Se na modernidade parecia que tudo apontava para um mundo sem Deus e sem perspectiva de religiosidade, na pós-modernidade ocorre uma volta ao transcendente. Há um ânsia cada vez maior de experiências e de práticas religiosas” (BINGEMER, 2013, p. 19).

A razão humana, que era vista como princípio fundamental da vida humana,

vai cedendo espaço a uma nova forma do ser humano compreender a sua própria

existência. A razão, isolada, se percebe incapaz de responder às grandes questões

existenciais.

Esta brevíssima síntese nos auxilia a compreender as atuais manifestações de

espiritualidade e/ou de religiosidade que encontramos em nossa sociedade e é neste

ambiente que é possível compreender a CE.

2.1 BricolagemO termo bricolagem surge nos Estados Unidos na década de 50

dentro do contexto do “do it yourself”, especialmente como forma de evitar os altos

valores de mão-de-obra. O antropólogo Claude Levi-Strauss retoma este termo em sua

obra “O pensamento selvagem” (p. 32–49) em relação aos mitos – a tarefa do “bricoleur”

14 Tacey (p.11) utiliza este termo para introduzir a temática de seu livro: “A spirituality revolution is taking place in Western an Eastern societies as politics fails as a vessel of hope and meaning. This revolution is not to be confused with the rising tide of religious fundamentalism, although the two are caught up in the same phenomenon: the emergence of the sacred as a leading force in contemporary society.

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está condicionada pela matéria-prima disponível, o universo de seu instrumental é

fechado e com estes elementes ele pode ressignificar os fatos, organizando e

reorganizando os elementos dados. Este vocábulo é emprestado pelos sociológos e

cientistas da religião, bem como os teólogos para compreender o fenômeno atual.

Aproximando os significados anteriores usa-se “bricolagem” para se referir à atitude de

harmonização que os indivíduos (chamados “buscadores” espirituais) realizam,

utilizandos elementos dos vários sistemas de crença e criando um sistema personalizado

que produza sentido espiritual e de vida para si.“O fiel escolhe dogmas que ele acha aceitáveis,

segue ritos e práticas éticas conforme julga conveniente para ele próprio. [...] A religião tradicional baseia-

se na promessa de uma recompensa momentosa no pós-morte, mas o individualismo moderno tem pressa,

prefere um ter a uma dupla promessa insegura, entender desfrutar satisfação desde esta vida, com a maior

rapidez e plenitude possíveis” (LEPARGNEUR, 2004, p. 284).Pelo que se depreende, o critério das

formas de bricolagem ou dos elementos a serem bricolados é simplesmente a

conveniência para o indivíduo, levando-se em consideração a sua situação atual, as

opções religiosas de que ele dispõe, a facilidade ao acesso a estas opções. Assim são

também os critérios de escolha de um determinado serviço ou produto para qualquer

consumidor – a facilidade de acesso a este produto/serviço, seu preço, sua conveniência.

O bricoleur acaba sendo um consumidor de bens e serviços do tipo religioso, orientado

por princípios individualizantes e subjetivistas.A instituição que se bricola

Diante de um novo tipo de crente, as instituições religiosas que « administram »

os bens simbólicos do sagrados, que detém o poder sobre os sistemas de crença, amoldam

o seu discurso e sua prática para poder atender esta demanda. Isto ocorre de maneira mais

ou menos intensa ou explícita. Relacionando diretamente esta atitude com uma prática

mercadológica assim se expressa Karla (PATRIOTA):

Prega-se o que os consumidores-alvo anseiam. Promete-se o que os clientes potenciais precisam. E, assim, cria-se uma relação contratual entre “anunciante” e mass media. Dessa forma, o pronto atendimento das carências mais latentes do homem, ancoradas pelo inegociável desejo de auto-realização e consumo desenfreado, faz com que as igrejas da pós-modernidade usem estrategicamente os meios de comunicação de massa, e através deles, convoquem e “arrebanhem” para as suas dependências, este novo sujeito religioso.

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Nas reflexões realizadas por fr. Alvadi a respeito do início das CE no site já

anterioremente citado fica claro este desejo de utilizar-se de “novos métodos, novas

expressões” para atender e “dar resposta e ajuda a tantos que (me) procuravam”. A CE

oferta, portanto, um amplo leque de possibilidades aos crentes e novos-crentes ao propor

um rito que é de fato um processo de bricolagem.

A relação instituição religiosa ↔ participante passa por um processo de

inculturação que se apresenta como uma moeda de dupla face. Por um lado, o que a

instituição possui ela oferece: sua tradição, seus ritos, suas convicções, sua moral, seus

dogmas, de outro lado, no diálogo com os indivíduos contemporâneos, ela é influenciada

e se transforma. Diferentemente da inculturação dentro da modernidade, aquela realizada

na pós-modernidade se dá através de um experiência de espiritualidade interior, do

silêncio, e da contemplação (CARDITA, p. 179–181).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O exemplo escolhido é, portanto, paradigmático das possibilidade de

“bricolagem” que os indivíduos realizam por si a partir de seu sistema de crenças e,

principalmente aquela realizada pelas instituições religiosas (aqui a Igreja Católica).

O termo espiritual ou espiritualidade tem tido uma ampla aceitação em vários

ambientes – entre os profissionais da saúde, do empresariado, dos meios de comunicação,

no ciberespaço e, obviamente, no âmbito religioso. Ao contrário das palavras “religião”,

“religioso” que têm sido identificadas à ideia de “controle”, “exterioridade”,

“dogmatismo”, “práticas rituais vazias”, “moralismos”, a noção de “espiritual” ou

“espiritualidade” aponta para atitudes como “abertura à transcendência”, “interioridade”,

“experiência e crença pessoal”, “arte de bem viver” etc. (cfe. CADRIN, p. 404). O

ambiente pós-moderno é propício para o desenvolvimento de experiências ligadas ao

espiritual, à espiritualidade. A religião e o religioso, ao contrário, imprimem uma

conotação de algo antigo, ultrapassado, arbitrário, dogmático.

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Esta importante separação é relacionada por Eugen Drewermann15 entre a mística

(como é conhecida também a espiritualidade) e a Igreja. A mística que supõe a verdade

de Deus habitando no interior do ser humano; Deus relacionando-se com o ser humano

diretamente e que estabelece o primado do indivíduo. A Igreja sendo aquela que pretende

que a verdade de Deus esteja nas mãos do magistério; que compreende a comunicação de

Deus com o ser humano somente através da mediação daqueles que possuem uma função

oficial e que estabelece o primado do coletivo sobre o indivíduo.

As instituições religiosas sofrem neste momento da pós-modernidade com a

descrença generalizada que assola todas as instituições. A sociedade como um todo não

se tornou menos crente, mas efetiva as suas práticas espirituais ou de crenças à margem

das instituições “oficiais”. É esta a posição de Hervieu-Léger (p. 42):

Contrariamente ao que se diz, não é a indiferença dos crentes que caracteriza nossas sociedades. É o fato que esta crença escapa grandemente ao controle das grandes igrejas e das instituições religiosas16.

Como uma tentativa de « adaptação de linguagem» ou adaptação de métodos por

parte da Igreja Católica que encontramos a CE. Podemos afirmar que há uma grande

parte da população que, mesmo afastada das instituições religiosas “oficiais” (aqui

pensamos nos que se declaram “sem-religião”, mas também os que, ainda que se

autodenominando cristãos não participam de suas respectivas igrejas), têm buscado

algum senso de espiritualidade. Esta população o faz através das mais variadas formas

disponíveis criando para si um painel espiritual que lhe faça sentido, Esta lógica é válida

inclusive para os que participam regularmente das celebrações de suas próprias

instituições. Percebemo, então, que as próprias instituições religiosas (em nosso caso

especificamente a Igreja Católica) como que “bricola” os elementos que lhe são próprios

com práticas estranhas a ela, retiradas de outras tradições religiosas ou de métodos e

terapias alternativas.

15 Eugen Drewermann, Dieu en toute liberté, p. 128. Citado por BERGERON, p. 189-190.16 Contrairement à ce qu’on nous dit, ce n’est donc pas l’indifférence croyante qui caractérise nos sociétés. C’est le fait que cette croyance échappe très largement au contrôle des grandes églises et des institutions religieuses.

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A CE procura exprimir um movimento de aproximação do que se designa por

“religioso” com aquilo que chamamos de “espiritual”. Esta forma ritual bricolada

representa uma (entre tantas outras) iniciativas que respondem ao novo contexto pós-

moderno que estamos inseridos. Estas iniciativas tendem a provocar distensões no corpo

ritual, doutrinal e magisterial da Igreja Católica ou dissensões. É o que se verá.

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