Artigo - Diogo Guedes Duarte Da Fonseca

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A OBRA ABERTA EM LAERTE: AS TIRAS COMO UM PROJETO ARTÍSTICO Diogo Guedes Duarte da Fonseca¹ Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Pernambuco Artigo para área temática de “HQ e Arte” Resumo Este artigo visa estudar a produção de tiras diárias do quadrinista Laerte Coutinho, um dos mais debatidos e importantes do país. A partir de uma referência do próprio autor ao conceito de obra aberta, como definido por Umberto Eco (2005), propomos uma investigação das proposições artísticas contidas em suas tiras, usando também das noções de Engardo e Diretrizes de Michael Baxandall (2006). Com a análise de duas obras de Laerte, nossa defesa é a de que, ainda que não problematize sempre a abertura nem que a enuncie claramente, ele a usa como um recurso programático para tentar experimentar dentro do espaço de tiras e reinventar esse gênero. Palavras-chave: Laerte; obra aberta; Umberto Eco; Michael Baxandall; quadrinhos. Abstract This paper studies the comic strip production of the comic writer and drawer Laerte Coutinho, one of the most important of Brazil. Starting by a reference made by the author of the concept of open work, as theorized by Umberto Eco (2005), it proposes an investigation about the artistic propositions of his comic strips,

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Este artigo visa estudar a produção de tiras diárias do quadrinista Laerte Coutinho, um dos mais debatidos e importantes do país. A partir de uma referência do próprio autor ao conceito de obra aberta, como definido por Umberto Eco (2005), propomos uma investigação das proposições artísticas contidas em suas tiras, usando também das noções de Engardo e Diretrizes de Michael Baxandall (2006). Com a análise de duas obras de Laerte, nossa defesa é a de que, ainda que não problematize sempre a abertura nem que a enuncie claramente, ele a usa como um recurso programático para tentar experimentar dentro do espaço de tiras e reinventar esse gênero

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A OBRA ABERTA EM LAERTE: AS TIRAS COMO UM PROJETO

ARTÍSTICO

Diogo Guedes Duarte da Fonseca¹

Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Pernambuco, Recife,

Pernambuco

Artigo para área temática de “HQ e Arte”

Resumo

Este artigo visa estudar a produção de tiras diárias do quadrinista Laerte Coutinho, um dos mais debatidos e importantes do país. A partir de uma referência do próprio autor ao conceito de obra aberta, como definido por Umberto Eco (2005), propomos uma investigação das proposições artísticas contidas em suas tiras, usando também das noções de Engardo e Diretrizes de Michael Baxandall (2006). Com a análise de duas obras de Laerte, nossa defesa é a de que, ainda que não problematize sempre a abertura nem que a enuncie claramente, ele a usa como um recurso programático para tentar experimentar dentro do espaço de tiras e reinventar esse gênero.

Palavras-chave: Laerte; obra aberta; Umberto Eco; Michael Baxandall; quadrinhos.

Abstract

This paper studies the comic strip production of the comic writer and drawer Laerte Coutinho, one of the most important of Brazil. Starting by a reference made by the author of the concept of open work, as theorized by Umberto Eco (2005), it proposes an investigation about the artistic propositions of his comic strips, using also the notions of the book Patterns of intention (2006), by Michael Baxandall. With the analysis of two works made by Laerte, the article defends that, even though he doesn’t always use the openness of the artistic object as a creation problem and doesn’t clearly says that it is his prior concern, he sometimes uses the notion to make experimental works and to try to reinvent the comic strip space.

Keyword: Laerte; open work; Umberto Eco, Michael Baxandall; comic strip.

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1 - Introdução

No presente artigo, vamos abordar a trajetória artística do quadrinista Laerte

Coutinho, considerado um dos maiores autores brasileiros de HQ. A pesquisa, parte

da pesquisa do Mestrado em Comunicação em 2011.1 no Programa de Pós-

Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, está em

fase inicial, mas o seguinte texto já apresenta algumas análises previamente

desenvolvidas sobre a relação entre as obras de Laerte e o conceito de obra aberta,

como definido por Umberto Eco.

Além de fazer um breve resumo sobre como o autor modificou sua forma de

fazer tiras diárias, preocupamo-nos aqui em tentar estabelecer a problemática

artística e produtiva que o motiva a realizar, em seus quadrinhos, respostas e

soluções a essas inquietações. Para isso, usamos alguns conceitos do livro Padrões

de intenção (2006), de Michael Baxandall, declarações do autor e elementos que

ficam visíveis nas suas obras escolhidas para análise. O artigo ainda pretende fazer

uma descrição do conceito de Umberto Eco (2005), relacionando-o contextualmente

aos quadrinhos.

2 - Laerte hoje

Laerte é um dos autores com a produção mais discutida nos circuitos

especializados em HQ e na grande mídia. Boa parte desse interesse recente se

deve ao fato de ter vindo a público se assumir como crossdresser – pessoa que tem

como hábito usar roupas ou acessórios normalmente relacionados ao sexo oposto –

em uma entrevista para a revista Bravo! de 2010, assunto que foge a este artigo. Na

verdade, buscamos aqui investigar uma mudança - anterior a sua notoriedade pela

forma de se vestir - na abordagem e no estilo de sua produção de tiras para a Folha

de São Paulo.

O próprio Laerte costuma enunciar em entrevistas esse fato. Respeitado por

suas tiras e histórias de humor, iniciadas nas revistas Circo e Piratas do Tietê e que

tiveram sequência depois de sua contratação pelo jornal paulista em 1991, ele diz

viver desde 2004 uma crise pessoal e criativa, agravada com a morte de um dos

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filhos em 2005. Disse à Bravo! na mesma entrevista:

“As primeiras insatisfações surgiram em 2001 ou 2002, no vácuo de uma tempestade maior que causara o fim do meu terceiro e último casamento. Pouco depois, em 2004, o incômodo cresceu e resolvi abdicar de vários elementos que marcavam minha trajetória. Abandonei personagens famosos, como o Overman, os Gatos e os Piratas do Tietê, certo tipo de humor, menos sutil, e a preocupação com a linearidade das histórias. Iniciei, ali, uma fase mais ‘filosófica’, que muitos intitulam de nonsense e que ainda me caracteriza” (COUTINHO, 2010a).

Influenciada por questões pessoais, a produção do autor mudou

significativamente, levando inclusive ao cancelamento de sua publicação nos jornais

Zero Hora e Tribuna de Vitória, supostamente atendendo a queixas de leitores, que

achavam os trabalhos “estranhos” (COUTINHO, 2010b). Na verdade, é esse próprio

estranhamento causado pelo novo estilo de suas tiras que as tornaram um assunto

tão relevante e recorrente para críticos e leitores ocasionais. Em artigo, Paulo

Ramos, abordando um corpo de autores mais amplo, inclui Laerte como um dos

nomes de destaque dentre os que produzem as tiras livres, um tipo de produção que

foge dos gêneros convencionados para o formato. São obras de “temática livre, não

humorística, quase pensatas ou crônicas construídas no limitado espaço da tira”

(RAMOS, 2010).

De fato, Laerte não é o único a investir em produções que fogem do humor –

ou pelo menos do humor como é convencionado para o espaço –, que abandonam o

uso de personagens ou mesmo que se usam de uma imensa gama de assuntos e

temáticas. Rafael Sica, em seu blog Ordinário, e os gêmeos Fábio Moon e Gabriel

Bá, na Folha, dois dos citados por Ramos, trazem também essas características,

mas, ao mesmo tempo, parecem estar a um degrau de distância das tiras de Laerte,

ao menos no estranhamento despertado no leitor.

3 - A obra como projeto artístico

Nossa hipótese, assim, é de que essa inquietação provocada pelas tiras de

Laerte é resultado, em certa medida, de um projeto artístico, aqui entendido como no

sentido proposto por Baxandall. Baxandall, analisando pinturas, fala dos conceitos

de Encargo e Diretrizes. Ele, na sua proposta de estudo – que não pretendemos

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seguir integralmente neste trabalho, por fugir do próprio sentido do artigo –, vê como

ponto primordial e inicial de uma obra a tentativa de criar uma resposta a um

determinado problema (o Encargo) obedecendo a algumas necessidades ou

exigências (Diretrizes) (BAXANDALL, 2006). Mais do que mergulhar fundo nas

consequências dessas proposições para a metodologia do teórico galês, buscamos

argumentar que a produção de Laerte é de certa forma um registro, como são outras

realizações artísticas, de suas formas de solucionar as questões que aparecem

durante a execução de uma obra.

É claro que essa hipótese traz implicações quando é analisada junto à

biografia do autor. É difícil pensar que os problemas mobilizados pelo quadrinista no

momento de fazer suas tiras antigas tivessem o mesmo nível de complexidade das

atuais questões que ele se impõe e que lhe são impostas para suas tiras livres, ou

“filosóficas” – “Fugir da burocracia virou o xis da questão”, disse em entrevista

(COUTINHO, 2010c). Ainda assim, isso não significa que não houvesse essa

preocupação antes, pois, como o próprio Baxandall defende, qualquer ação humana

de produzir algo obedece a Diretrizes e Encargos e traz as marcas das escolhas

feitas por um sujeito.

Portanto, na tentativa de entender o projeto artístico de Laerte e as

problemáticas dele resultantes, passaremos a usar uma referência a uma teoria

crítica feita pelo próprio autor. Em agosto de 2010, respondendo a comentários em

seu blog sobre o sentido de uma tira específica sua (Figura 1), ele mencionou o

conceito de obra aberta do autor italiano Umberto Eco (2005). O quadrinista

declarou:

“Tiras, assim como esfihas, podem ser abertas ou fechadas - segundo o Umberto Eco, que estabeleceu este modelo, tão mais abertas serão quanto mais possibilidades de leitura oferecerem, e tão mais fechadas quanto mais estrito for o campo de interpretação.Na minha produção, tem de tudo, com vários índices de abertura” (COUTINHO, 2011).

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Figura 1: tira da série Almanaque

Fonte: Manual do Minotauro, 2011

A descrição, curta, obviamente não abrange por inteiro a complexidade do

conceito do acadêmico italiano. Mas, nesse breve texto, Laerte deixa transparecer

não só conhecimento do modelo estrutural da obra aberta, como também expõe que

vê diferentes níveis de abertura em suas produções. Assim, por sua própria

enunciação e pela capacidade nossa de identificar a relação do conceito com parte

da obra do quadrinista, defendemos que essa noção construída por Eco é uma das

problemáticas com que ele lida ao produzir suas tiras e ela que se torna relevante

para entender seus questionamentos (e suas soluções) estéticos e programáticos.

4 - A abertura como projeto artístico

Umberto Eco teceu o conceito de obra aberta ainda na década de 1960, em

seu primeiro livro. Ele notou, ao observar uma parte das produções artísticas de sua

época, uma preocupação consciente de seus autores em privilegiar a ambiguidade,

adjetivada por ele também como abertura, no resultado criado. O principal exemplo

dele vem do campo da música clássica: se as obras tradicionais buscam fazer que o

intérprete as realize de uma maneira a mais parecida possível da proposta inicial do

compositor, isso que dizer que as novas obras musicais

“não consistem numa mensagem acabada e definida, numa forma univocamente organizada, mas sim numa possibilidade de várias organizações confiadas à iniciativa do intérprete, apresentando-se (...) como obras ‘abertas’, que serão finalizadas pelo intérprete no momento em que as fruir esteticamente” (ECO, 2005, p. 39).

O conceito claramente prioriza a ideia de execução de uma obra, mas, como

ele demonstra através de referências à literatura de James Joyce e de Stéphane

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Mallarmé, também inclui a ideia de fruição artística – seja em leitura ou observação

– como uma ativação e uma interpretação. O cuidado em defendê-las como um

outro nível de execução do objeto artístico não é sem razão: mais do que uma

característica de uma composição ou de livro, a abertura diz respeito à estrutura

dessas obras quando postas em uma relação fruitiva com seus receptores, ou seja,

ela só existe quando traz consigo a consciência do papel fundamental dos leitores.

Na verdade, a abertura, ou ambiguidade, é uma condição de todos os objetos

artísticos. Mas, se nos trabalhos de Dante e Mozart existem diversas interpretações,

eles sempre buscam transmitir uma mensagem única, definida. Nessa nova

categoria contemporânea, chamada também de obras em movimento, estão as

produções cuja estrutura resulta sempre em mensagens diferentes e que obedecem

a uma lógica estrutural, mas não são encerradas em uma unidade por elas. Na

literatura – dentre as linguagens e formatos abordados por Eco, a que melhor pode

render analogias aos quadrinhos – o exemplo fundamental para o italiano é Livre, de

Mallarmé, com seu texto permutável. Finnegans Wake, de Joyce, é um exemplo que

fica no meio desse caminho: o resultado material e organização narrativa são

sempre os mesmos, mas cada leitura traz uma nova relação fruitiva, e é impossível

que uma “execução” seja exatamente igual à outra. Trata-se de um universo

“acabado, mas por isso mesmo ilimitado” (ECO, 2005, p. 48).

Nessas obras abertas ou em movimento, o intérprete, executante ou não, é

exigido num ato de congenialidade – caso contrário, elas não são entendidas. Sobre

Livre, ele comenta:

“cada execução a explica mas não a esgota, cada execução realiza a obra mas todas são complementares entre si, enfim, cada execução nos dá a obra de maneira completa e satisfatória mas ao mesmo tempo no-la dá incompleta pois não nos oferece simultaneamente todos os demais resultados com que a obra poderia identificar-se”. (ECO, 2005, p. 57)

Assim, para Eco, a preocupação com a abertura da obra de arte como um

aspecto programático da produção termina por oferecer ao fruidor uma obra por

acabar, ainda que não seja incompleta. É um objeto que só se conclui quando a

opção por uma execução (que pode ser um sentido narrativo ou uma interpretação

textual) é feita – e fica claro que as obras em movimento ilustram melhor essa

questão –, mas que nunca deixa de ser a proposta original do autor, sua produção.

A natureza multiforme desta relação com a obra aberta deixa o leitor-

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espectador ao mesmo tempo satisfeito e insatisfeito por sua variedade. A partir de

outras recepções e execuções, segundo Eco, é que lembranças e significados

diferentes das iniciais emergem, gerando o que ele chama de “uma nova hierarquia

dos estímulos” (2005, p. 85). Diferentemente das produções clássicas, apenas com

a abertura tradicional da própria arte, a obra aberta traz novas interpretações sem

manter unívoca, ou seja, cresce em seu universo. “E quanto mais a compreensão se

complica, tanto mais a mensagem originária – tal como ela é, constituída pela

matéria que a realiza – em vez de gasta, aparece renovada, pronta para ‘leituras’

mais aprofundadas” (ECO, 2005, p. 86).

5 - A abertura em Laerte

Antes de começar a análise propriamente dita, é importante tentar definir os

Encargos e Diretrizes gerais do quadrinista ao fazer suas obras. Em geral, objetivo

geral e condições específicas variam de obra para obra de um mesmo artista, mas,

por se tratar de produções para um mesmo espaço, nos parece interessante

esboçá-los de maneira ampla.

O Encargo poderia ser superficialmente fixado como o de “produzir tiras em

quadrinhos, com traços e manchas, buscando produzir um interesse visual que

tenha um objetivo” (1). Dentre as suas mais gerais Diretrizes, que tendem a mudar

bastante entre os trabalhos, estariam desafios como os de “fugir da burocracia de

seu estilo anterior” (COUTINHO, 2010b), “desenvolver tiras que escapem do formato

humorístico convencionado para o espaço do jornal”, “trabalhar com histórias que se

encerram em si, sem personagens fixos”, “experimentar técnicas plásticas e

narrativas” e “reinventar o gênero das tiras” (COUTINHO, 2010c). Outras

problemáticas e condições surgem no próprio fazer das obras, variando de acordo

com elas, e só fazem sentido em uma análise mais extensa e demorada.

Assim, ainda que definir as tiras de Laerte na Folha como “obras em

movimento” seja impossível, dada a sua própria estrutura relativamente

convencional, as relações de sua produção com a ideia de uma obra aberta são

claras. Primeiro, porque ele mesmo, ao abordar o conceito, demonstra a

preocupação estrutural – que não é a única, é bom ressaltar – de criar objetos com

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diversos significados e que possibilitem variadas interpretações. Segundo, porque

parte de sua produção de fato corresponde à descrição de Eco de uma obra que não

se esgota em uma leitura e que não propõe uma mensagem unívoca, tendo sido

feita não para ser apenas lida, mas sim relida e reinterpretada inúmeras vezes.

Figura 2: tira da série Mundo

Fonte: Manual do Minotauro, 2011

Longe de ser simplesmente “nonsense” – adjetivo vez ou outra utilizado para

descrever a produção antigo ou atual de Laerte –, a obra da série Mundo (Figura 2)

é uma narrativa curta com múltiplas provocações. A representação icônica do

mundo, em textura gelatinosa e instável, é por si só de um simbolismo poderoso e,

junto com a representação dos humanos como externos a ele, em uma atitude de

observação quase kafkiana só rompida no último quadro, é obviamente um

elemento-chave de leitura do trabalho. Mas o que quer dizer o gotejamento do

planeta em cima das pessoas? Qualquer resposta unívoca – como, por exemplo,

uma interpretação de relação com questões ambientais, ou mesmo com a filosofia

contemporânea – parece condenada a um simplismo reducionista, que encerraria a

própria validade da obra.

Identificar a abertura no caso acima, portanto, parece fácil pela pluralidade e

indefinição explícitas. No entanto, para defini-la como obra aberta, é necessário

apontar na sua estrutura elemento que revelem a preocupação de Laerte na

construção de uma mensagem não só complexa, mas múltipla.

A ausência de falas ou mesmo onomatopéias – o último quadro aceitaria a

redundância do desespero dos personagens – é, com certeza, uma escolha que

favorece a abertura. A própria ausência de um título ou mesmo de uma definição

maior da temática da série, que sequer tem o nome citado na versão impressa, faz

da tira uma narrativa quase gratuita. No entanto, cada nova leitura feita por um

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fruidor que conhece, supõe ou reconhece o projeto artístico e estético atual de

Laerte parece poder encontrar novas mensagens e interpretações na obra, como se

o próprio autor tivesse conscientemente pensado em todas elas e ao mesmo tempo

não quisesse restringir-se a apenas uma.

Reconhecer a possibilidade de ser essa a sua intenção, é claro, não é afirmá-

la. As tiras que o próprio Laerte define como “fechadas” – Eco, pensando em objetos

artísticos, rejeitaria a alcunha – são uma aparente maioria, mesmo nas obras em

que ele se usa de temáticas mais filosóficas ou existenciais.

Figura 3: tira da série Drágeas

Fonte: Manual do Minotauro, 2011

Neste outro exemplo (Figura 3), vemos uma nova abordagem possivelmente

aberta: em tom de koan zen (narrativas cujo mistério foge à razão, normalmente

provocando a iluminação budista), um mestre e um discípulo – também personagens

típicos dessas histórias – dialogam. O cenário se resume à água que os cerca, e os

traços são simplificados, enquanto a escolha de ponto de vista nunca nos mostra a

expressão do aprendiz – efeito fundamental para que não se tenha total consciência

do que ele quer dizer com suas palavras. A ruptura final sugere um sentido direto,

mas a imprecisão de qual seria a falha do discípulo e qual seria o exato engano do

mestre são convites a uma leitura nunca completamente saciada, que mantém o

frescor da tira depois de sucessivas leituras e reflexões.

Como as complexas obras abertas da literatura moderna citadas por Eco,

Laerte nesta obra também parece deixar pistas, ainda que mais definidas que as da

Figura 2, de que uma de suas tentativas de reinvenção do gênero das tirinhas é

justamente o investimento em obras de ampla ambiguidade, com uma preocupação

estrutural com sua abertura. De certa forma, são produções que, para serem fruídas,

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demandam do espectador uma relação que suponha a intenção de uma abertura,

que ele esteja disposto a interpretá-la de forma não redutiva e ciente dos limites de

qualquer conclusão, que pode se dissipar em outro momento.

6 - Considerações

Laerte pode até não fazer “tiras em movimento”, como, num exemplo

novamente literário, faz Julio Cortázar em o Jogo da amarelinha, ou sequer deixar

claro que a abertura é sua prioridade programática. De fato, suas questões e

problemáticas vão além disso, e dizem respeito ao próprio gênero com que ele

trabalha e às convenções das tiras em jornais – hábitos que ele mesmo seguia antes

de sua crise. O que podemos notar, como falamos em nossa análise, é que, além de

ciência do próprio conceito de obra aberta, o quadrinista tem uma preocupação em

deixar em suas obras – e também em seu blog Manual do Minotauro –

ambiguidades que não podem ser solucionadas em uma interpretação unívoca,

como prevê Eco para as obras artísticas clássicas.

Nossa defesa é que é importante reconhecer a relevância do conceito de obra

aberta ao se fazer uma análise crítica da produção do autor, e que esta noção por si

só enriquece os seus dados analíticos. Ainda nos parece lógico sugerir que uma de

suas tentativas conscientes de experimentar dentro das tiras e reinventar o gênero

são motivadas pela ideia de abertura da obra de arte - e, portanto, tentam ser

solucionadas também a partir dela.

Além disso, dando sequência a identificação da tendência recente do

surgimento de tiras livres feita por Paulo Ramos, avaliamos que a própria noção de

abertura, mesmo que em um sentido menos histórico e conceitual do que o proposto

por Eco, pode ser uma das motivações tomadas pelos autores desse novo gênero

como um valor a ser buscado. Caso isso seja verdade, Laerte é sem dúvida o líder

dessa busca e prova o porquê de ser um dos autores mais relevantes e discutidos

no Brasil atualmente.

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Notas:

1 - Pode parecer uma definição excessivamente geral, mas o próprio Baxandall o faz

assim. Ao analisar O retrato de Kahnweiller, de Pablo Picasso, ele aponta como

Encargo do pintor espanhol “fazer manchas ou traços numa superfície plana de

modo que o interesse visual dessas marcas tenha um objetivo” (BAXANDALL, 2006,

p. 82).

Referências bibliográficas

BAXANDALL, Michael. Padrões de intenção: a explicação histórica dos quadros. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

COUTINHO, Laerte. Laerte: 'Tenho vergonha de quase tudo que desenhei'. Bravo!: set. 2010a. Entrevista concedida a Armando Antenore.

_________. Perfil - Laerte fala sobre "não-personagens" e novo livro. Uol Mais: 23 out. 2010b. Disponível em: <http://mais.uol.com.br/view/1xu2xa5tnz3h/perfil--laerte-fala-sobre-naopersonagens-enovo-livro-0402983766DCB97326?types=A&>

________. Laerte. Vice Magazine: dez. 2010c. Entrevista concedida a Amauri Stamboroski. Disponível em: <http://www.viceland.com/br/v2n11/htdocs/laerte-634.php?page=1>

ECO, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2005.

MANUAL DO MINOTAURO. Blog de Laerte Coutinho.. Disponível em: <http://verbeat.org/laerte/>.Acesso em: 19 jun. 2011.

RAMOS, Paulo. Tiras livres: um gênero em processo de consolidação. Disponível em: <http://blogdosquadrinhos.blog.uol.com.br/arch2010-09-01_2010-09-30.html#2010_09-06_00_04_38-135059040-28>. Acesso em 26 set 2011.