Artigo Estrategico 13 Minustah Issn

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BRASIL E HAITI: REFLEXÕES SOBRE OS 10 ANOS DA MISSÃO DE PAZ E O FUTURO DA COOPERAÇÃO APÓS 2016 Eduarda Passarelli Hamann (org.) UMA PUBLICAÇÃO DO INSTITUTO IGARAPÉ ARTIGO ESTRATÉGICO 13 | JANEIRO 2015 Edição especial - Coletânea de artigos Base do contingente brasileiro na MINUSTAH, destruída pelo terremoto de janeiro de 2010. Crédito: Foto ONU/Sophia Paris.

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Brasil e Haiti

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  • Brasil e Haiti:reflexes sobre os 10 anos da misso de paz e o futuro da cooperao aps 2016

    eduarda passarelli Hamann (org.)

    uma publicao do instituto igarap artigo estratgico 13 | Janeiro 2015

    edio especial - coletnea de artigos

    Base do contingente brasileiro na MINUSTAH, destruda pelo terremoto de janeiro de 2010. Crdito: Foto ONU/Sophia Paris.

  • 22 BRASIL E HAITI - Edio especial

    lista de acrnimos ......................................................................................................3

    prefcio .........................................................................................................................4

    apresentao................................................................................................................6

    VisO Geral................................................................................................................8

    1 - reflexes sobre a contribuio da minustaH segurana e estabilidade (2004-2014).............................................................................................9

    O enGajamentO de militares e pOliciais BrasileirOs .....................................15

    2 - treinamento para o batalHo brasileiro desdobrado na minustaH: a consolidao de um modelo.................................................................................16

    3 - a manuteno da paz (no Haiti) e a Justia (no brasil): uma reflexo sobre o impacto da minustaH no sistema Jurdico militar brasileiro............26

    4 - participao policial brasileira na minustaH.................................................35

    a cOBertura pela imprensa Brasileira ................................................................43

    5 - a tensa relao entre militares e Jornalistas no incio da misso no Haiti ...........................................................................................................44

    as relaes sul-sul...................................................................................................52

    6 - os dez anos da minustaH: um olHar sobre a participao sul-americana.....53

    7 - a cooperao regional frente transformao da minustaH...................60

    8 - ViVa rio no Haiti: lies aprendidas, pelo sim, pelo no e o talVez..................65

    a aBOrdaGem de GnerO nO Haiti ............................................................................68

    9 - da poltica implementao: preencHendo as lacunas para a promoo de uma abordagem de gnero no Haiti...............................................69

    sumrio

  • 33INSTITUTO IGARAP | ARTIGO ESTRATGICO 13 | JANEIRO 2015

    lista de acrnimos

    agnu assembleia geral das naes unidasalcopaz - associao latino-americana dos centros de treinamento de operaes de pazbrabatt brazilian battalion (batalho brasileiro)caricom comunidade do caribeccopab centro conjunto de operaes de paz do brasilcioppaz centro de instruo de operaes de pazcoter/eb comando de operaes terrestres do exrcito brasileirocsnu conselho de segurana das naes unidas delbrasonu delegao do brasil junto onudfs department of field support (departamento de apoio ao terreno)diH direito internacional Humanitriodirops direction of operations (direo de operaes)dpa departament of political affairs (departamento de assuntos polticos)dpaz/mre diviso de paz e segurana internacional do ministrio das relaes exteriores dpKo department of peacekeeping operations (departamento de operaes de manuteno da paz)eb exrcito brasileiroforce commander comandante da fora (comandante do contingente militar)fpu formed police unit (unidade de polcia constituda)glo garantia da lei e da ordemgoH governo do Haitigrulac latin american and caribbean group (grupo da amrica latina e caribe)iaptc - international association for peace training centers idp internally displaced people (pessoas internamente deslocadas)igpm/coter/eb - inspetoria geral das policias militares e dos corpos de bombeiros militares, vinculada ao comando de operaes terrestres do exrcito brasileiro (coter/eb)md ministrio da defesamif fora multinacional interina minustaH misso das naes unidas para a estabilizao do Haitimonusco misso de estabilizao das naes unidas na repblica democrtica do congompog ministrio de planejamento, oramento e gesto do brasilmre ministrio das relaes exterioresong organizao no governamentalonu organizao das naes unidaspcc police contributing countries (pases contribuintes de policiais)pdpnH plano de desenvolvimento da polcia nacional Haitiana pm policial militar ou polcia militarpmdf polcia militar do distrito federal pnH polcia nacional Haitianasgnu secretrio-geral das naes unidastcc troop contributing countries (pases contribuintes de tropas)un country team representao da onu em cada estado-membrounasul unio das naes sul-americanasunic-rio - centro de informaes das naes unidas no brasilunodc - escritrio da onu para drogas e crimeunpol polcia da onuunsas - united nations stand-by arrangement system us$ dlares norte-americanos

  • 44 BRASIL E HAITI - Edio especial

    embora o Haiti faa parte da famlia da amrica latina e caribe, e sua Histria, como primeira repblica negra nas amricas, tenha inspirado processos libertadores no sculo xix, o pas foi, por muito tempo, rfo sem irmos na regio onde se situa. por ocasio das comemoraes do bicentenrio de independncia do Haiti, em 2004, thabo mbeki, ento presidente da frica do sul, foi o nico chefe de estado que compareceu ao significativo evento para o povo haitiano.

    passados dez anos, o Haiti , hoje, membro da comunidade do caribe (caricom) e da comunidade dos estados latinoamericanos e caribenhos (celac) e est plenamente integrado a seu entorno geopoltico. nesse contexto, pode-se afirmar que a misso das naes unidas para estabilizao no Haiti (minustaH) contribuiu para aproximar no s o brasil -mas tambm os outros pases da regio- do antes negligenciado irmo caribenho. a ltima dcada, ademais, representou uma experincia nica e sem precedentes para o brasil de participao em uma misso de paz, permitindo o exerccio do comando das tropas da minustaH: o desdobramento de aproximadamente trinta mil soldados ao longo de dez anos exps as foras armadas a um cenrio com caractersticas especficas de tenso e instabilidade, o qu em si mesmo pode ser considerado valioso pelo aporte ao treinamento de nossas tropas e aprimoramento de doutrinas no centro conjunto de operaes de paz do brasil (ccopab).

    alm dessa circunstncia, essa experincia contribuiu para que haitianos e brasileiros, tanto agentes do governo como representantes da sociedade, se conhecessem melhor, revelando uma ampla afinidade associada s razes comuns, compartilhadas pelos escravos trazidos para o brasil e para o Haiti do antigo reino do daom - atual repblica do benin. a dimenso scio-cultural, portanto, no deve ser subestimada e contribui para que os brasileiros avancem no processo de reconciliao com seu prprio passado de injustias, discriminao e sofrimento, associados escravido e luta dos afrodescendentes por igualdade de direitos e melhores condies de vida.

    superado o trauma do terremoto de 2010, cuja devastao teria sido ainda maior se no fosse o apoio prestado pela onu - e em que 21 brasileiros perderam a vida, entre eles luiz carlos da costa e zilda arns - observa-se contexto de crescente progresso econmico no pas, onde o pib cresce a taxas de 4,5% e os indicadores sociais comeam a melhorar. o desafio que se coloca, doravante, de dar sustentabilidade ao progresso dos ltimos anos, permitindo a reduo gradual da presena das tropas da onu e a evoluo do pas para uma etapa de estabilidade com progresso institucional, econmico e social. nesse processo, a relao com o brasil e demais parceiros dever orientar-se cada vez mais pelo estabelecimento de parcerias capazes de melhorar a condio de vida dos haitianos - nico pas das amricas ainda categorizado como de menor desenvolvimento relativo(pmdr).

    Brasil e Haitireflexes sobre os 10 anos da misso de paz e o futuro da cooperao aps 2016edio especial - coletnea de artigos

    prefcio

  • 55INSTITUTO IGARAP | ARTIGO ESTRATGICO 13 | JANEIRO 2015

    a partir desta ltima dcada, em que tantos brasileiros aprenderam a apreciar a resilincia e a coragem do povo haitiano, e sem deixarmos de reconhecer os enormes desafios que o pas ainda enfrenta para se modernizar, acredito que podemos olhar para o futuro do Haiti com otimismo. segundo o economista paul collier, o pas rene condies e caractersticas que o posicionam favoravelmente: inexistncia de conflito inter-tnico; localizao em regio de paz e crescente cooperao; proximidade do maior mercado consumidor do mundo; e presena de dispora com elevado grau de estudo em vrios pases desenvolvidos. para o brasil e os brasileiros que descobriram o Haiti nesses ltimos dez anos, militares ou civis, a experincia na minustaH significa via de mo dupla, por sua assistncia valiosa ao pas, reconhecida pela comunidade internacional e pelo secretrio-geral da onu, mas tambm pelo inestimvel aprendizado profissional e a gratificante experincia humana.

    embaixador antonio de aguiar patriotarepresentante permanente do brasil junto organizao das naes unidas

  • 66 BRASIL E HAITI - Edio especial

    apresentao

    os anos de 2014-2016 so fundamentais para a atuao da onu no Haiti. ganha cada vez mais fora a discusso sobre a reconfigurao da misso das naes unidas para a estabilizao do Haiti (minustaH), sob o comando militar do brasil. alm disso, em janeiro de 2015, somos convidados a refletir sobre os 5 anos do terremoto que destruiu prdios pblicos, ruas e casas e ceifou a vida de centenas de milhares de haitianos. tal destruio forou uma reconfigurao indita da misso da onu que, em 2014, celebrou 10 anos de existncia. no s no escopo como tambm na durao, excedeu e muito as seis misses internacionais que lhe antecederam no Haiti.1

    Os dez anos da minustaH

    Quando a crise no Haiti se agravou, o brasil era membro no-permanente do conselho de segurana da onu. durante a negociao que deu origem resoluo csnu 1529 (2004), que criou a minustaH, o pas buscou inserir aspectos que fossem alm da segurana e refletissem um compromisso de longo prazo com o Haiti.2 o brasil tambm batalhou para que a misso no estivesse sob o captulo Vii, como queria Washington. com a referncia a tal captulo somente na seo de segurana, demonstrou-se que no se tratava de interveno estrangeira.3 tal manobra poltica foi negociada com pases do entorno e garantiu ao brasil a liderana regional, indispensvel para a legitimidade de sua ao no Haiti - e a da prpria misso - alm de reforar o seu status ascendente no plano internacional.

    no terreno desde junho de 2004, o brasil passou a adotar a estratgia de pacificao de bairros violentos de porto prncipe em meados de 2005, em bel air, e em 2007-2009, em cit soleil. o treinamento das tropas ganhou fora em 2007, com a criao de um centro de instruo de operaes de paz do exrcito, convertido em 2010 no centro conjunto de operaes de paz do brasil (ccopab). apesar do uso da fora em diversas operaes, no h evidncias de abusos por parte dos peacekeepers brasileiros, o que fez com que alguns falassem em brazilian way of peacekeeping.

    ainda h pouca reflexo sobre o panorama geral do engajamento do brasil com a misso da onu no Haiti, sobretudo sob as perspectivas poltico-estratgica, diplomtica, humanitria, jurdica, militar e policial. nesses anos, como se deu a evoluo do treinamento militar e policial? e quais os impactos sobre a doutrina relacionada ao engajamento do brasil em misses de paz e, particularmente, em aes sob o captulo Vii?

    1 de 1993 a 2001, o Haiti recebeu seis misses multinacionais. a 1 teve natureza hbrida (onu e oea): International Civilian Mission in Haiti

    miciViH (1993). as demais foram criadas pela onu: United Nations Mission in Haiti - unmiH (1993-1996), United Nations Support Mission in Haiti

    - unsmiH (1996-1997), United Nations Transition Mission in Haiti untmiH (1997), United Nations Civilian Police Mission in Haiti miponuH (1997-

    2000) e United Nations General Assembly International Civilian Support Mission in Haiti micaH (2000-2001).

    2 Ver eduardo uziel (2010), o conselho de segurana, as operaes de manuteno da paz e a insero do brasil no mecanismo de segurana

    coletiva das naes unidas. braslia: funag. disponvel em: http://funag.gov.br/loja/download/678-conselho_de_seguranca_e_a_insercao_do_

    brasil.pdf (p. 179).

    3 Ver uziel (2010) e Kai Kenkel (2013), contribution profile: brazil, international peace institute, www.ipinst.org/images/pdfs/brazil_kenkel-130315.pdf.

  • 77INSTITUTO IGARAP | ARTIGO ESTRATGICO 13 | JANEIRO 2015

    Qual a relevncia da minustaH para as corporaes policiais brasileiras? em que aspectos ficou fortalecida a cooperao com os demais pases da amrica latina e caribe, sobretudo da amrica do sul? esperamos que esta coleo responda a algumas dessas perguntas.

    cooperao Brasil-Haiti aps 2016

    a reconfigurao da atual misso uma necessidade e dever ocorrer aps o plano de consolidao que est em vigor at 2016. apesar de crticas nacionalistas, o governo e a sociedade do Haiti ainda so muito dependentes do apoio internacional, mas a situao no terreno cada vez mais estvel, tanto em termos de segurana, como em termos polticos.

    os principais desafios hoje incluem a falta de capacidade institucional e de recursos prprios da polcia nacional Haitiana (pnH) e a deficincia do sistema prisional, com problemas de superpopulao e inmeros casos de detenes prolongadas. alm disso, em um contexto voltil e de certa forma permissivo para a violncia armada, a falta de prestao de servios essenciais pode se tornar um estopim para a instabilidade.a cooperao do brasil com o Haiti j existia antes de a minustaH ser implementada, sobretudo na rea de agricultura e sade. Que novos contornos ela obteve no perodo em que os holofotes da poltica externa brasileira miravam o Haiti? Quais as perspectivas para os prximos anos? Que reas sero reforadas e que reas no precisam de mais apoio? Que lies podem ser aprendidas e que prticas merecem reflexes mais aprofundadas?

    a contribuio do instituto igarap

    a ttulo de contribuio para este histrico momento de reflexo, o instituto igarap convidou eminentes autores brasileiros e brasilianistas para participar de uma coleo de artigos curtos nos quais avanam diferentes perspectivas sobre o engajamento do brasil com o Haiti. nesta publicao, compartilham suas vises um especialista em desenvolvimento internacional, um militar, um policial, uma promotora de justia militar, um jornalista, um acadmico, integrantes da sociedade civil brasileira/haitiana e latino-americana, e uma especialista em gnero e operaes de paz. o recorte temporal inclui os ltimos 10 anos, bem como o que se desprender da cooperao brasil-Haiti no futuro prximo, sobretudo aps 2016.

    para conferir maior honraria publicao, temos o privilgio de contar com um prefcio elaborado pelo embaixador antonio de aguiar patriota, representante permanente do brasil junto organizao das naes unidas.

    eduarda passarelli Hamanninstituto igarap, janeiro de 2015

  • 88 BRASIL E HAITI - Edio especial

    VisO Geral

    1reflexes sobre a contribuio da minustaH segurana e estabilidade (2004-2014)dr. robert muggah

    O subcomandante do contingente militar da MINUSTAH participa de cerimnia para o novo Force Commander. Crdito: Foto ONU/ Marco Dormino

  • 99INSTITUTO IGARAP | ARTIGO ESTRATGICO 13 | JANEIRO 2015

    introduo

    aps uma longa dcada, a misso das naes unidas para a estabilizao do Haiti (minustaH) comeou a sofrer uma reduo. a misso de paz foi criada em 2004, logo depois da sada do presidente aristide. desde ento, recebeu o crdito por grandes melhorias na segurana nacional, na expanso e treinamento da polcia nacional Haitiana (pnH) e na reforma do sistema judicirio. a misso tambm enfrentou grandes crticas, incluindo acusaes sobre a propagao do clera e a incapacidade de promover o desenvolvimento sustentvel. essas questes continuam levantando polmicas e ressentimentos e a pergunta que se faz agora o que vir a seguir?. os estados membros da onu estaro debatendo justamente as possibilidades de resposta nos corredores da assembleia geral da onu em 2014-2015.

    neste artigo, consideram-se a experincia e o impacto da minustaH nos ltimos 10 anos e seus futuros cenrios. faz-se um apanhado de importantes reflexes feitas por especialistas, de todo o brasil, em segurana, poltica externa e desenvolvimento. a perspectiva brasileira bastante relevante, ainda que subestimada. o brasil desempenhou, afinal, um papel de liderana na superviso das operaes da minustaH e tambm por ter colocado mesa toda a sua experincia no terreno. ainda assim, esta contribuio considera sobretudo a influncia da minustaH

    dr. robert muggah

    Diretor de Pesquisa do Instituto Igarap e diretor de pesquisa e polticas da Fundao SecDev. Leciona no Instituto de Relaes Internacionais da PUC-Rio, em Oxford e em San Diego, e d assessoria para o Banco Mundial e agncias da ONU sobre questes de segurana e desenvolvimento. Trabalha com a MINUSTAH e outras vrias organizaes no Haiti desde 2004, alm de ter realizado mais de 20 pesquisas de opinio no pas na ltima dcada.

    sobre o autor:

    reflexes sobre a contribuio da minustaH segurana e estabilidade (2004-2014)

    O Subsecretrio Geral das Operaes de Paz da ONU, Herv Ladsous, visita o Batalho Brasileiro na MINUSTAH (jan.2013). Crdito: Foto ONU/Logan Abassi

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    10 BRASIL E HAITI - Edio especial

    na criao de um ambiente seguro e estvel, destacando as fortalezas e as fraquezas da misso da onu, bem como o contexto geral da assistncia ao Haiti e seus crticos. ao final, o artigo tambm reflete sobre a experincia brasileira e, em particular, o surgimento do chamado brazilian way of peacekeeping.

    crime e violncia

    ainda que descrita, com frequncia, com termos apcrifos, o Haiti apresenta baixos nveis de violncia. as taxas de homicdio do pas so relativamente baixas para os padres regionais, mesmo que tenham sofrido alteraes em anos recentes. algumas organizaes, como o escritrio da onu para drogas e crime (unodc), fazem os registros dos dados, mas difcil saber qual era a real taxa de homicdio antes da chegada da minustaH, em 2004. em 2007, a taxa nacional foi estimada em torno de 5 para cada 100 mil habitantes, ficando abaixo da mdia mundial (cerca de 7 por 100 mil). em 2012, subiu para pouco mais de 10 por 100 mil, o que ainda considerado baixo. as taxas so obviamente mais altas nas cidades. de acordo com os ltimos relatrios da minustaH, o nmero de homicdios caiu novamente em mais de 20% em 2013. a maioria dessas mortes violentas mais de 75 por cento ocorreu na capital, porto prncipe. importante ressaltar que o Haiti menos violento do que muitos pases do caribe, como Jamaica (52 a cada 100 mil) e trinidad e tobago (35 a cada 100 mil).

    pesquisadores associados ao instituto igarap j realizaram mais de 20 pesquisas de opinio com parceiros locais para aferir os padres de vitimizao e crime letal e no letal no Haiti desde 2004. quase certo que, no perodo 2004-2014, a violncia esteja em declnio no Haiti, se comparado aos anos instveis que levaram ao exlio do ex-presidente aristide. porm, as pesquisas do instituto tambm revelam que a violncia no Haiti episdica, geralmente vinculada a inquietaes polticas e eleies. por exemplo, documentamos um surto de violncia em 2012 e depois em 20131, ambos associados a agitaes polticas2. a real incidncia da violncia fsica em relao a crimes contra a propriedade, roubo, assdio e sequestro de fato bem mais baixa do que geralmente se presume.

    neste pas, o crime no se limita violncia letal e no alcana toda a populao. em uma pesquisa de opinio de 2012, por exemplo, o instituto igarap registrou aumentos de crimes contra a propriedade, violncia contra mulheres e relatos de m conduta policial. nas reas mais carentes, os residentes tinham 20 vezes mais chances de sofrerem crime contra a propriedade e 27 vezes mais chances de sofrerem assdio sexual do que em reas mais ricas. parte da razo para esses aumentos tem ligao com o carnaval (Karnaval) e eventos relacionados. tambm tem conexo com o descontentamento associado qualidade e quantidade de

    1 o Haiti experimentou um rpido declnio nas taxas de criminalidade e vitimizao entre 2007 e 2009, ficando relativamente estveis depois do

    terremoto de 2010 e com um forte aumento entre agosto de 2011 e fevereiro de 2012. tambm houve uma queda no ndice de confiana no governo

    e na pnH no mesmo perodo. para colocar em perspectiva, registramos um aumento significativo das taxas de homicdio em porto prncipe neste

    perodo, alcanando pouco acima de 60 a cada 100 mil, o que foi o recorde desde a chegada da minustaH (isso no inclui os mais de 176 mortos

    entre os funcionrios da onu).

    2 as razes so evidentes, mas a maioria est associada crise poltica no governo (inclusive a excluso do lavalas das eleies e a renncia do primeiro

    ministro) e crescente assertividade das gangues criminais e polticas que chegavam a novas vizinhanas.

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    servios, bem como um crescente ressentimento relacionado falta de oportunidades econmicas, incluindo o fracasso do programa dinheiro-por-trabalho. o Haiti teve flutuaes semelhantes entre 2013 e 2014, em parte por causa de impasses polticos no parlamento e manifestaes populares.

    estabilidade geral

    uma questo recorrente em que medida a minustaH contribuiu para a queda da violncia letal e no letal no Haiti. importante mencionar que a minustaH tem um mandato geminado. por um lado, trata-se de uma misso militar com mandato de garantir um ambiente seguro e estvel. tambm tem um componente civil desenhado para fortalecer as instituies nacionais. a grande presena da minustaH em 2010, no auge, chegou a ter 8.940 militares, 4.391 policiais e mais de 1.500 civis virtualmente garantiu que ela tivesse impacto. o oramento da minustaH estimado em us$ 576.619.000 para 2013-2014 tambm assegurou que a misso se tornasse o principal ator internacional no pas.

    mesmo os crticos mais duros acreditam que a minustaH contribuiu para a reduo geral de vrios tipos de violncia e desordem no Haiti desde 2004. e, apesar da polmica sobre ser muito securitizada, tambm h indicadores no sentido de que a segurana pblica melhorou bastante depois das operaes de estabilizao entre 2007 e 2009. essas redues da violncia organizada nem sempre foram duradouras. no entanto, apesar das muitas crticas feitas por organizaes de direitos humanos nacionais e internacionais, os peacekeepers da onu que trabalham com a pnH conseguiram, com sucesso, recuperar o territrio e expulsaram as gangues locais dos centros urbanos. a minustaH tambm ajudou a equipar a pnH e parece estar no caminho para alcanar a meta do governo de 15 mil policiais at 2016.

    a minustaH tambm tem mandato de apoiar as instituies civis, essenciais para a garantia da estabilidade poltica e da promoo do estado de direito no pas. para tanto, a minustaH investe no apoio ao parlamento, inclusive trabalhando com novas leis sobre violncia baseada em gnero. especialistas civis tambm trabalharam com a comisso eleitoral, com o sistema carcerrio e judicirio, bem como com autoridades distritais do norte e nordeste para ajud-las a reforar suas prprias capacidades. H um debate sobre at que ponto os investimentos civis da minustaH levaram ao dividendo da reduo da violncia. dado o grande volume de outras organizaes e agncias no pas h algo entre 3 mil e 10 mil organizaes no governamentais internacionais tambm difcil separar o impacto da minustaH do resultado coletivo de outros atores.

    O que est por vir

    o mandato da minustaH foi estendido por 10 vezes desde 2004, sempre com o objetivo de garantir a segurana e a estabilidade. e enquanto a minustaH avanou em algumas reas, teve tambm um enorme revs com o terremoto de 2010 que devastou o pas, efetivamente acabando com muitos dos investimentos feitos nos seis anos anteriores. alm das cerca de 158 mil pessoas mortas e milhes de deslocados, aproximadamente 25% da pnH foram considerados no operacionais, mais de 80 edificaes foram destrudas e centenas de oficiais e tcnicos do judicirio foram mortos ou ficaram machucados. dos cerca de us$ 10 bilhes solicitados

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    12 BRASIL E HAITI - Edio especial

    logo depois do terremoto, menos de 10% chegou a ser efetivamente gasto nos quatro anos subsequentes. verdade que a violncia e a vitimizao sofreram um declnio, mas o escopo e a escala das necessidades no pas continuam imensos.

    existe hoje uma srie de cenrios sobre o futuro da minustaH, desde a reduo at a sada do Haiti. alm de reduzir a pegada do componente militar e civil, h outras quatro metas para organizar a sua retirada. a misso tambm est trabalhando com a representao da onu no pas (un country team) no planejamento de uma reforma que prev a retirada completa em 2016. a misso dever manter presena depois de 2016, evidente, mas com um foco mais especfico no treinamento e seleo da pnH, apoio continuado a instituies polticas e assistncia para a promoo de direitos humanos. de alguma forma, parece inevitvel que a onu se mantenha no pas, mas j est claro que o apetite para sustentar a minustaH praticamente desapareceu.

    apesar de a minustaH ser concluda em 2016, espera-se que a onu e seus parceiros mantenham uma forte presena no Haiti nos anos que se seguiro. o nmero de tropas e policiais deve cair bastante, sobretudo por causa da alta demanda em outros lugares do mundo. da mesma forma, o oramento operacional para as misses de estabilizao (incluindo o treinamento da pnH) e para a reforma carcerria e judicial deve ser reduzido. importante lembrar que, antes da minustaH, houve nove misses diferentes da onu no pas. compreensvel que haja um alto nvel de fatiga entre os financiadores, assim como um crescente ressentimento com a presena da minustaH no pas. dada a escala dos desafios no Haiti, no existe uma sada simples.

    a onu j elaborou algumas opes para o que dever ocorrer depois de 2016. uma delas poder envolver o fim do mandato de manuteno da paz e a designao de um enviado especial da onu. isso depender se a pnH ter capacidade de lidar com as necessidades nacionais de segurana. a segunda opo envolve o trmino do mandato de manuteno da paz e a criao de uma misso poltica para apoiar especificamente a pnH. a terceira opo tambm vislumbra o fim da minustaH, mas cria uma nova misso de manuteno da paz com papel poltico e presena reduzida. a quarta alternativa semelhante, mas inclui uma estratgica fora militar de reserva. a quinta possibilidade basicamente prope a permanncia da minustaH, mas com retirada progressiva. em funo da situao atual, mais provvel que a segunda opo se torne realidade.

    Futuros desafios para o desenvolvimento

    importante separar as respostas que a comunidade internacional deu ao Haiti, nas dimenses de manuteno da paz, humanitria e de desenvolvimento. no imediato ps-terremoto de 2010, o foco de milhares de funcionrios da onu, agncias de ajuda humanitria e financiadores foi, de forma rpida, garantir a entrega de suprimentos para salvar vidas, alm de enviar pessoal e equipamentos e ainda restaurar a estabilidade. uma grande quantidade de fundos foi direcionada s necessidades emergenciais, com pouco investimento em instituies ou infraestrutura de longo prazo. essas organizaes contornaram o governo haitiano, em parte porque o prprio governo praticamente desapareceu. observadores internacionais estavam preocupados com a possibilidade de o dano e os deslocamentos gerados pelo terremoto levassem a um desastre humanitrio em virtude tambm do impacto da crise financeira mundial em relao aos preos dos alimentos.

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    13INSTITUTO IGARAP | ARTIGO ESTRATGICO 13 | JANEIRO 2015

    alguns meses depois do terremoto, a onu tambm liderou um processo para organizar uma resposta mais coordenada ao desenvolvimento. muitos falaram em reconstruir de maneira melhor, incluindo enviados como bill clinton. o problema que muitos dos compromissos firmados nunca foram efetivamente cumpridos financiamento real. foram poucos os recursos enviados para os rgos nacionais responsveis pela coordenao dos esforos e para organizaes locais da sociedade civil. a maioria do apoio que realmente chegou ao terreno foi transferida para um grupo pequeno de organizaes internacionais e gasta em assistncia temporria e salrios de profissionais expatriados. iniciativas ousadas para reerguer o Haiti em grande medida fracassaram porque, em muitos casos, no tinham qualquer participao local.

    para piorar a situao, existe a fatiga dos doadores. o chamado sistema de clusters da onu, desenhado para organizar a resposta, terminou em 2012. mas o rgo central que deveria coordenar a reconstruo de longo prazo est paralisado. os novos apelos da onu para lidar com a febre chikungunya, clera, falta de moradia, insegurana alimentar e outras necessidades no recebem a devida ateno por parte dos doadores. a comunidade internacional ainda evita enviar fundos diretamente ao governo haitiano por medo de corrupo ou por sua falta de capacidade de gerenciar os gastos, o que mina ainda mais sua credibilidade e legitimidade. isso no novidade j acontece h dcadas. no momento atual, o presidente confia na petrocaribe, um esquema de petrleo apoiado pela Venezuela, que d ao governo cerca de us$ 400 milhes por ano. mas mesmo esta iniciativa tem futuro incerto.

    manuteno da paz brasileira

    o brasil assumiu um papel de liderana na definio da direo geral da minustaH, desde a sua criao em 2004. alm de participar com outros cinco pases do chamado grupo do Haiti3, o brasil assumiu a frente do componente militar da misso. desdobrou 1.266 militares e 223 veculos antes do terremoto de 2010, o equivalente a quase 15% do total das foras da onu. e apesar das significativas perdas decorrentes do desastre, o brasil ainda aumentou sua fora para 2.200 tropas para apoiar as operaes de assistncia humanitria e recuperao.

    importante destacar que o apoio do brasil teve um custo. os pases tiveram que esticar seus recursos para fazer frente iniciativa. diferente de outros pases contribuintes de tropas que tm renda mais baixa, o reembolso que o brasil recebe da onu somente cobre parte de seus investimentos. alm disso, alguns de seus aliados tradicionais questionaram a poltica externa do brasil em relao ao Haiti, a exemplo de pases membros do caricom e da unio africana. alguns governos tambm questionaram a legitimidade do mandato da minustaH e, por conseguinte, o engajamento do brasil logo depois da queda do aristide, um presidente eleito de forma legtima.

    3 os outros pases so argentina, canad, chile, estados unidos e frana.

  • 14

    14 BRASIL E HAITI - Edio especial

    no entanto, as vantagens estratgicas e tticas do envolvimento brasileiro so destacadas pelos analistas para contrabalancear os custos. o engajamento robusto com a minustaH parece ter ajudado na demanda por um assento permanente no conselho de segurana da onu uma ambio de longa data. alm disso, as bem sucedidas operaes tticas realizadas pelo brasil no Haiti tambm aumentaram a sua reputao internacional destacando o status do pas como potncia regional e como parceiro de confiana. ademais, a participao do pas na minustaH tambm ajudou na modernizao das foras armadas brasileiras, garantindo aos soldados uma experincia real de combate.

    um dos dividendos menos reconhecidos tem sido a evoluo de sua abordagem em relao s operaes de manuteno da paz, de maneira mais geral. o brasil, junto com outros pases sul-americanos, tem um envolvimento histrico com operaes sob o captulo Vi da carta, baseadas no consentimento. a deciso de liderar uma misso cujo mandato est sob o captulo Vii foi um marco, devido quebra da adeso ao princpio da no-interveno. no surpreende que o brasil tenha usado a fora de maneira cautelosa em suas operaes. isso tambm demonstra um alto grau de imparcialidade e relutncia em recorrer violncia. alguns analistas comearam a falar em brazilian way of peacekeeping.

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    15INSTITUTO IGARAP | ARTIGO ESTRATGICO 13 | JANEIRO 2015

    O enGajamentO de militares e pOliciais BrasileirOs

    2treinamento para o batalHo brasileiro desdobrado na minustaH: a consolidao de um modelocoronel Jos ricardo Vendramin nunes

    3a manuteno da paz (no Haiti) e a Justia (no brasil): uma reflexo sobre o impacto da minustaH no sistema Jurdico militar brasileirodra. najla nassif palma

    4participao policial brasileira na minustaHmajor srgio carrera de albuquerque melo neto

    Militar brasileiro durante uma operao de segurana em Cit Soleil (jul.2011). Crdito: Foto ONU/Victoria Hazou

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    16 BRASIL E HAITI - Edio especial

    1 as opinies expressas no artigo no coincidem necessariamente com as posies do ministrio da defesa e das foras armadas sobre o tema.

    2 a minustaH foi estabelecida como misso de paz do captulo Vii da carta das naes unidas, pelo csnu, por meio da resoluo 1542, de 30

    de abril de 2004.

    O incio

    ao final do ano de 2003 e no princpio de 2004, quando da deciso brasileira de participar da nova misso das naes unidas no Haiti, e em particular do acordo com o departamento de operaes de manuteno da paz (dpKo) de que o pas tomaria a liderana militar da operao de paz, o treinamento de contingentes para este tipo de misso possua como referncia os procedimentos levados a cabo para o desdobramento dos contingentes em angola, na dcada de 1990.

    em todo o histrico da participao brasileira em operaes de paz da onu, o brasil no havia ainda se deparado com o desafio proposto pela misso de estabilizao das naes unidas no Haiti (minustaH)2, o de preparar-se adequadamente para atuar com um batalho de infantaria em uma operao de paz a ser conduzida sob os ditames de um mandato de captulo Vii da carta da onu. especialmente, no princpio dos anos

    coronel jos ricardo Vendramin nunes 1

    Comandante do Centro Conjunto de Operaes de Paz do Brasil. responsvel pela orientao e treinamento do contingente brasileiro que desdobra na MINUSTAH.

    sobre o autor:

    treinamento para o batalHo brasileiro desdobrado na minustaH: a consolidao de um modelo

    O Force Commander da MINUSTAH, o brasileiro Gen Heleno (centro), cumprimenta militares no primeiro dia da misso (jun.2004)Crdito: Foto ONU/Evan Schneider

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    17INSTITUTO IGARAP | ARTIGO ESTRATGICO 13 | JANEIRO 2015

    3 o csnu posicionou-se claramente atravs da resoluo 1296 (2000), no sentido de enfatizar a relevncia da proteo de civis como elemento

    central de mandatos de misses multidimensionais.

    4 depois de anos de discusses e deliberaes sobre o novo formato que as misses complexas deveriam tomar e o processo de planejamento,

    o primeiro documento endossado pelo secretrio geral das naes unidas (sgnu) data de 13 de junho de 2006 e foi chamado de processo de

    planejamento para misses integradas.

    5 relatrio do sgnu sobre o Haiti de 16 de fevereiro de 2004 trata de grupos armados organizados com base em comunidades e gangues, e

    paramilitares e milcia como ameaas a segurana e estabilidade.

    6 comunicado do presidente do csnu, de 26 de fevereiro de 2004: a Questo relativa ao Haiti.

    2000, as resolues do conselho de segurana das naes unidas (csnu), que expediam mandatos de captulo Vii, j estavam sofrendo mudanas substanciais derivadas do consenso em torno da necessidade de proteo de civis e da adoo de uma postura robusta pelo componente militar da misso. o mandato da minustaH, claramente definido como de captulo Vii, no fugiu a essa viso, concedendo ao componente militar, detentor do monoplio do uso da fora no terreno, o uso da fora em autodefesa e em defesa do mandato, o que facultava o emprego de meios, tcnicas e tticas ofensivas para a implementao dos objetivos da misso3.

    era significativa a dicotomia existente poca, entre, de um lado, a preparao e o treinamento para a misso de Verificao das naes unidas em angola (unaVem), uma misso de paz sob o captulo Vi, com limitadas possibilidades de uso da fora, e, de outro lado, as exigncias operacionais em funo do mandato e das tarefas esperadas pelo contingente militar na minustaH. o Haiti recebia ento a sua quinta misso da onu nos ltimos dez anos (entre 1994 e 2001, houve outras quatro intervenes no bem sucedidas). os conceitos atuais de misso integrada e multidimensional somente seriam firmados, por consenso, e documentados pelo dpKo, anos mais tarde4.

    O desdobramento em 2004

    as anlises produzidas no dpKo, recebidas pelo secretrio-geral5 e submetidas ao csnu6, direcionadas minustaH apontavam a uma presena adversa de grupos que provavelmente oporiam resistncia armada s tropas militares. isso se apresentava em duas vertentes: de natureza poltica, partidrios do ex-presidente; e de natureza criminosa, composta de gangues armadas que dominavam grandes pores urbanas da capital porto prncipe e de outros ncleos populacionais do pas.

    a brigada brasileira, formada e bem treinada, mas com uma postura mais centrada no uso da fora como autodefesa, to logo desdobrada, deparou-se com pesados desafios que a colocaram frente a frente com a necessidade de empregar a fora, at a fora letal, para implementar a tarefa de estabilizao afirmada no mandato da misso. enfrentamentos com grupos armados tornaram-se freqentes.

    uma rpida e intensa adaptao quela realidade foi feita pelos contingentes brasileiros iniciais com vigor, mas no sem dificuldades. as informaes recebidas dos batalhes brasileiros, reportando operaes urbanas complexas, patrulhamento robusto e intensivo, domnio territorial, aes de busca, cerco e vasculhamento

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    18 BRASIL E HAITI - Edio especial

    e muitas outras, instruram o treinamento. este pde, ento, encontrar lugar frtil e prosperar na criao do centro de instruo de operaes de paz (cioppaz)7, em 2005, predecessor do centro conjunto de operaes de paz do brasil (ccopab, criado em 2010)8.

    treinamento especfico

    foi dessa forma, ajustando o treinamento no cioppaz, que os obstculos apresentados por uma leitura e entendimento iniciais de um ambiente operacional, que exigiam melhor qualidade na preparao, foram adaptados. estgios e cursos especficos foram especialmente concebidos para proporcionar a lderes juniores, como sargentos e tenentes, mas tambm a comandantes de companhia, oficiais de estado-maior e comandantes de batalho, as condies necessrias para entender as tarefas do mandato, tomar e implementar decises, enfrentar riscos e atingir os objetivos planejados.

    slido treinamento prtico nas regras de engajamento da minustaH foi pensado e desenvolvido, com a progressividade, a gradao e a durao necessrias para que soldados e comandantes pudessem fazer uso do armamento e aproveitar o terreno de modo competente. nfase foi dada naquela fase da misso para mdulos de tiro, combate urbano e liderana.

    J nos anos de 2006 e 2007, o desenvolvimento de novas idias para enfrentar os desafios na rea de responsabilidade do batalho brasileiro (brabatt) vinha frutificando. a adoo de um modelo de pacificao urbana baseado em pontos fortes9, expanso de permetros de segurana e patrulhamento intensivo para a negao do territrio a grupos armados funcionou muito bem. toda uma doutrina de pacificao urbana foi paulatina e exitosamente ajustada e desenvolvida em funo da realidade existente no Haiti. estas lies resultaram em novos ajustes no treinamento de contingentes.

    Quando as operaes militares de desarticulao de grupos armados urbanos comearam a migrar para aes tipo polcia10, no correr do ano de 2008, o ento cioppaz regulou o treinamento de modo conforme. o treinamento ajustado produziu as inseres necessrias no treinamento, em assuntos como deteno temporria de indivduos, mandatos de priso, policiamento ostensivo, controle de distrbios e muitos outros.

    7 o cioppaz foi criado por portaria do comandante do exrcito nr 090, de 23 de fevereiro de 2005.

    8 em 15 de junho de 2010, a portaria n 952-md, de mesma data, designa o centro de instruo de operaes de paz (cioppaz), do exrcito

    brasileiro, para a preparao de militares e civis brasileiros e de naes amigas a serem enviados em misses de paz e altera a sua denominao, para

    centro conjunto de operaes de paz do brasil (ccopab).

    9 segundo o prprio general Heleno, primeiro comandante da fora, em entrevista bbc em 19 de outubro de 2004, uma de suas decises

    fundamentais foi a determinao para a ocupao de pontos fortes: com o aumento da instabilidade, as tropas da onu comearam a fazer uso mais

    intenso do patrulhamento com helicpteros na capital porto prncipe e procuram ocupar pontos estratgicos, ainda que com um nmero aqum do

    necessrio.

    10 relatrio do sgnu sobre o Haiti, de 27 de agosto de 2008, descreve as modificaes na situao de segurana relacionadas com operaes de

    controle e manuteno da ordem.

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    19INSTITUTO IGARAP | ARTIGO ESTRATGICO 13 | JANEIRO 2015

    O terremoto como marco

    todo este processo progrediu de modo satisfatrio e com reflexos muitos positivos no terreno. por volta do ano de 2009, a minustaH j era vista internacionalmente como uma das raras misses da onu de captulo Vii de sucesso e em possvel processo de transio de tarefas para o governo Haitiano, em um futuro no muito distante11. poca, o dpKo costumava tratar da misso com uma das mais exitosas e hbeis em resolver problemas e avanar um processo poltico sob a proteo proporcionada por um ambiente estvel e seguro. o terremoto destruidor de janeiro de 201012 cobrou um preo incomensurvel em vidas e estruturas, liquidando anos de avano da misso e do pas. o csnu agiu com celeridade para aprovar resolues para ajustar a minustaH nova e terrvel realidade13.

    o brasil rapidamente enviou um segundo batalho de infantaria para apoiar a coordenao da ajuda humanitria emergencial e, simultaneamente, restabelecer a estabilidade e a segurana em porto prncipe.

    fato, tambm, que o terremoto ocasionou uma mudana significativa no treinamento, que passou a abordar enfaticamente tcnicas e tticas para realizar sepultamentos, proteger deslocados e refugiados, prover e efetuar a segurana de pontos de distribuio de alimentos e gua e muitas outras atividades de coordenao essenciais para o retorno do Haiti a uma normalidade mnima, em especial na castigada regio da capital.

    no ps-terremoto, em junho de 2010, o ccopab foi criado como um centro conjunto, em uma evoluo do ento cioppaz, permanecendo como uma unidade do exrcito, mas integrada por militares das trs foras singulares e vinculada ao ministrio da defesa, com mandato para planejar e executar o treinamento de indivduos e tropas que sejam desdobrados em operaes de paz da onu e de desminagem humanitria.

    11 relatrio do sgnu sobre o Haiti, de 01 de setembro de 2009, esclarece que: aps cinco anos do processo de estabilizao, existe razes

    substanciais para crer que o Haiti est saindo de um passado de conflito em direo a um futuro mais brilhante de desenvolvimento pacfico.

    12 relatrio do sgnu sobre a minustaH, de 22 de fevereiro de 2010, e relatrio das naes unidas no Haiti 2010: situao, desafios e Viso geral.

    13 aps o terremoto em 12 de janeiro de 2010, o csnu expediu as resolues 1908 e 1927, incrementando os nveis gerais de efetivos da

    minustaH para capacitar a misso a lidar com a situao e iniciar a fase de reconstruo.

    Militares brasileiros distribuem gua e comida em Porto Prncipe, no imediato ps-terremoto (jan.2010). Crdito: Foto ONU/Marco Dormino

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    20 BRASIL E HAITI - Edio especial

    a esta altura, j havia sido implementado um sistema de avaliao de treinamento e desempenho, gil e composto de visitas ao terreno, entrevistas eletrnicas e pessoais, avaliao de cursos e estgios, orais e escritas e anlise regular de relatrios. neste sistema que o ccopab at hoje baseia fortemente os ajustes de rumo que se faam necessrios ao treinamento, de modo que a instituio esteja sempre atualizada em relao ao cotidiano das misses.

    a era ps-terremoto e o modelo atual de treinamento

    devido ao empenho e engajamento do brasil na soluo da crise provocada pelo desastre natural, a era ps-terremoto propiciou a maturao de uma posio estratgica favorvel no contexto das misses de paz da onu e fortaleceu a consolidao de um modelo de preparao e treinamento. Vale ainda lembrar, talvez como reflexo do prestgio e da confiana internacionais, que o brasil at o momento o nico pas a experimentar a manuteno da posio chave e altamente cobiada de comandante da fora, de modo permanente, em mais de dez anos, em uma misso de paz da onu.

    uma sistemtica de designao de batalhes a serem formados em diferentes regies do pas, com rodzio a cada seis meses, propiciou que militares de todas as regies fossem contemplados com a oportunidade de participar de uma operao de paz que trouxe dinamismo e acentuado grau de realidade ao treinamento, permitiu a modernizao de equipamento e a incorporao de tcnicas, tticas e procedimentos operacionais e logsticos.

    aps mais de dez anos, um efetivo superior a 25 mil militares, homens e mulheres, de todas as foras pde adquirir experincia em uma misso de carter real com benefcios individuais e institucionais evidentes.

    das muitas necessidades de treinamento para uma misso de paz do quilate da minustaH, uma das mais relevantes o imperativo de dotar o militar, individualmente, e as equipes, coletivamente, de efetiva capacidade de emprego operacional em tiro, cuja preciso e controle de execuo so maisculos em um ambiente urbano em que a distino entre grupos armados hostis e civis da populao extremamente difcil14.

    tratando-se do treinamento de batalho15, deve-se considerar que as necessidades de treinamento apresentadas pela complexidade da misso e as exigncias curriculares da onu, as dimenses continentais brasileiras e a sistemtica de rodzio de tropas de cada regio condicionam o ccopab a executar um planejamento que mescla o treinamento de instrutores com o envio de equipes mveis de treinamento.

    no atual modelo16, o comandante do batalho, seu estado-maior conjunto, os comandantes de companhia e os comandantes de peloto (pessoal da marinha, do exrcito e da fora area) recebem no ccopab treinamento genrico relativo onu e especfico relativo minustaH, para retornar imediatamente a plos de instruo aonde, na qualidade de instrutores treinados, multiplicam o conhecimento e adestram os seus

    14 conceito operacional de proteo de civis do departamento de operaes de manuteno da paz da onu, de maro de 2010.

    15 manual de batalho de infantaria da onu, captulo 10: treinamento, agosto de 2012.

    16 programa acadmico do ccopab, de fevereiro de 2014.

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    21INSTITUTO IGARAP | ARTIGO ESTRATGICO 13 | JANEIRO 2015

    subordinados. a metodologia de treinamento no ccopab inclui trabalhos em grupo, exerccios de tiro, simulaes, exerccios de posto de comando e de liderana e outras modalidades de vis prtico.

    o ccopab conduz ainda uma srie de estgios especializados para o estado-maior da unidade na busca da qualificao de funes-chave para o desempenho do brabatt no Haiti, como logstica e reembolso, coordenao civil-militar e tradutores e intrpretes. aps treinados, estes oficiais tambm ministram contedo especfico da funo e da misso aos seus auxiliares.

    o modelo inclui, em fases seguintes, o treinamento em plos de instruo que correspondem aos locais onde esto as fraes que compem o brabatt, at que, nas ltimas quatro semanas, tem-se uma concentrao de todo o efetivo e o batalho avaliado pelo ccopab em exerccios no terreno na regio do pas aonde foi formada a unidade.

    treinamento aps 2016, reconfigurao da minustaH

    a reconfigurao da minustaH, no sentido de transio para outra modelagem operacional, vem sendo estudada h algum tempo. uma misso tcnica de avaliao foi enviada pelo dpKo ao Haiti em junho de 201417 para apresentar opes para o encerramento da misso ou a sua reconfigurao, e uma transio de suas responsabilidades em futuro prximo para o governo do Haiti. o csnu deliberar em outubro de 2015 sobre um novo mandato e a forma que a misso tomar nos prximos anos.

    para efeito de treinamento, tanto a extino como a reconfigurao da misso tero impacto no contexto atual da preparao.

    no caso da adoo da opo de extino da misso e de no ocorrer a participao do brasil por meio de um batalho em outra misso de paz, haver logicamente modificaes substantivas no contedo e no modelo. nesta situao, sem desdobramento imediato, mas com desdobramento potencial, o compromisso brasileiro com a onu18 de manuteno de um batalho de infantaria (entre outros elementos) em sistema de espera (stand by) pode indicar o treinamento de ncleos de comando de unidade em diferentes comandos militares de rea por equipes mveis do ccopab. isto permitiria a manuteno de uma capacidade de mobilizao suficiente em cada regio.

    com os mesmos condicionantes e a mesma situao de no participao em nova misso de paz aps o Haiti, uma outra possibilidade seria a designao de organizao(es) militar(es) vocacionada(s) para operaes de manuteno da paz da onu, sistemtica adotada pelo exrcito por alguns anos em perodo anterior ao Haiti. neste caso, o ccopab poderia fazer cumprir o previsto em um programa de treinamento para um batalho brasileiro de fora de paz em toda a sua extenso.

    17 relatrio do sgnu sobre a minustaH, de 29 de agosto de 2014.

    18 unsas (united nations stand by arrangement systems): sistema pelo qual um estado-membro se compromete a manter certo nvel de prontido

    e contribuio para operaes de manuteno da paz da onu.

  • 22

    22 BRASIL E HAITI - Edio especial

    na concretizao da hiptese, considerada por muitos a mais provvel, de reconfigurao da minustaH, com a presena de um componente militar reduzido (ainda com um batalho brasileiro) nos anos de 2015 e 2016, at que ocorra a sua liquidao ou modificao para uma misso poltica especial, o ccopab poder manter o modelo atual de treinamento, com possveis alteraes em virtude de ajustes no mandato, nas tarefas ou no ambiente operacional.

    Observaes finais

    o brasil engajou-se decisivamente no Haiti. desde o princpio, o pas no se limitou a fazer a maior contribuio militar e assumir as responsabilidades de liderana do componente militar. o brasil props projetos de desenvolvimento, liderou esforos polticos, enfatizou o apelo por doaes humanitrias, fez gestes diplomticas junto onu e atuou firmemente na condio de membro no permanente do csnu. a reputao brasileira de pas solidrio e comprometido com a paz internacional foi reforada com justia nos mais de dez anos da minustaH.

    o treinamento pr-desdobramento evoluiu concomitante ao surgimento de novos desafios, o monitoramento da situao no terreno e as solues tticas adotadas no momento. considerado pelo dpKo como referncia positiva.

    o entendimento da importncia do treinamento para o desempenho das tropas se refletiu no apoio, ao ccopab, de toda a ordem dos escales superiores. este apoio foi vital para que o treinamento atingisse nveis elevados. a confirmao de qualidade da metodologia utilizada e do contedo ministrado no ccopab veio por meio da certificao de treinamento realizada pelo dpKo19, do treinamento de contingentes em 2009, e do treinamento de observadores militares e oficiais de ligao em 2013. em outubro de 2014, uma nova equipe do dpKo retornar ao ccopab para avaliar o curso de oficiais de estado-maior para misses de paz.com mensagem final, importante ressaltar que o ccopab continuar atento s necessidades de treinamento dos contingentes brasileiros, sabendo adaptar-se s circunstncias do momento, mas com a viso de permanente vigilncia na manuteno do bom nvel de instruo de indivduos e adestramento de tropa, com a expectativa de nova participao brasileira em outras operaes de paz da onu.

    19 reconhecimento de treinamento pelo dpKo (its 2009).

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    23INSTITUTO IGARAP | ARTIGO ESTRATGICO 13 | JANEIRO 2015

    referncias

    brasil. comando do exrcito. portaria n 090, de 23 de fevereiro de 2005, de criao do cioppaz. ______. ministrio da defesa. portaria n 952-md, de 15 de junho de 2010, de criao do ccopab.

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  • 25

    25INSTITUTO IGARAP | ARTIGO ESTRATGICO 13 | JANEIRO 2015

    ______. report of the secretary-general on the united nations stabilization mission in Haiti. agosto de 2008. disponvel em: . acesso: 09 set. 2014.

    ______. report of the secretary-general on the united nations stabilization mission in Haiti. setembro de 2009. disponvel em: . acesso: 09 set. 2014.

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    ______. report of the secretary-general on the united nations stabilization mission in Haiti. agosto de 2014. disponvel em: . acesso: 15 jan. 2014.

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    26 BRASIL E HAITI - Edio especial

    apesar da distncia, das diferenas culturais e religiosas e da barreira do idioma, o brasil aceitou imenso desafio: integrar, junto com outros estados, o contingente militar da misso das naes unidas para a estabilizao do Haiti (minustaH), cujo mandato manter um ambiente seguro e estvel2 em um estado falido, assolado por catstrofes naturais, e cuja instabilidade econmica, poltica e social histrica.

    da sua tradicional participao em misses de paz da onu3, a minustaH foi a que o brasil se engajou de forma mais expressiva. por l j passaram mais de 30.000 militares das trs foras armadas4 e o comando do contingente militar da misso exerccio por um oficial-general brasileiro desde a sua criao, em 2004.

    1 as consideraes expressas no presente artigo so de responsabilidade da autora e no necessariamente coincidem com a posio do ministrio

    pblico militar sobre a matria.

    2 cf. o item 7 da resoluo s/res/1542 (2004) do conselho de segurana da onu, que criou a minustaH.

    3 desde 1947, o brasil participou de mais de 30 misses das naes unidas. atualmente, 1.743 militares brasileiros das trs foras participam de

    nove misses de paz ao redor do mundo (brasil/md 2014a).

    4 incluindo o 20 contingente, j foram empregados 30.259 militares brasileiros na minustaH, sendo 4.965 da marinha, 24.664 do exrcito e 237

    da fora area (brasil/md 2014b).

    dra. najla nassif palma1

    Promotora de Justia Militar. Tem mestrado em Direito Internacional Humanitrio (DIH) pela Universidade de Genebra (L.L.M.) e professora de DIH em cursos de ps-graduao em Direito Militar, em Escolas Militares, na Escola Superior de Guerra (ESG) e no Centro Conjunto de Operaes de Paz do Brasil (CCOPAB).

    sobre a autora:

    a manuteno da paz (no Haiti) e a Justia (no brasil): uma reflexo sobre o impacto da minustaH no sistema Jurdico militar brasileiro

    Dra. Najla profere palestra sobre direito humanitrio no CCOPAB, durante a preparao de militares brasileiros. Crdito: CCOPAB

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    27INSTITUTO IGARAP | ARTIGO ESTRATGICO 13 | JANEIRO 2015

    festejada por muitos e criticada por alguns, a participao militar brasileira na minustaH completou 10 anos em 2014, colocando o brasil em evidncia no cenrio internacional e destacando-o como um importante ator na promoo da paz mundial.

    ao ceder tropas para participar de uma misso de paz da onu, o estado assume a jurisdio exclusiva sobre os crimes cometidos pelos seus militares5. desta feita, se um militar brasileiro cometer um crime no Haiti, compete Justia brasileira, em regra Justia militar da unio, processar e julgar este delito.

    as presentes linhas objetivam inaugurar uma reflexo sobre as seguintes questes: Que efeitos a minustaH gerou no mbito do sistema jurdico militar brasileiro? Quais os desafios do ministrio pblico militar e da Justia militar6 para investigar, processar e julgar crimes praticados por militares brasileiros em misses de paz? foram praticados muitos crimes pelos peacekeepers brasileiros nestes 10 anos de minustaH? em que reas podemos avanar?

    efeitos da minustaH no mbito do sistema jurdico militar brasileiro

    se ainda no se pode afirmar que h uma cultura estabelecida entre os operadores do direito militar brasileiro no que tange ao acompanhamento do aparato normativo que envolve as misses de paz, j se pode constatar que a temtica, a partir da minustaH, tem se revelado cada vez mais importante e atual na agenda das instituies ligadas Justia militar.

    o ministrio pblico militar, instituio civil integrada exclusivamente por civis especialistas em direito militar, a quem incumbe a defesa da ordem jurdica no mbito das foras armadas, incluiu em seu planejamento estratgico (2010-2015) a preocupao com o acompanhamento das misses de paz7.

    no ano de 2011, o assunto foi tema do colgio de procuradores de Justia militar, encontro bienal da carreira. posteriormente, em agosto de 2014, foi realizada no centro de informaes das naes unidas no brasil (unic-rio), com sede no rio de Janeiro, uma oficina de trabalho da escola superior do ministrio pblico da unio (esmpu) para debater as formas de atuao do ministrio pblico militar frente participao das foras armadas nas misses de paz da onu8.

    5 conforme art. 51 (b) do acordo entre as naes unidas e o governo do Haiti sobre o status da operao das naes unidas no Haiti (sofa Status

    of Forces Agreement), os membros militares do contingente militar da minustaH esto sujeitos exclusiva jurisdio do seu respectivo estado no que

    diz respeito a qualquer crime que possa ser cometido por eles no Haiti.

    6 compete Justia militar da unio julgar os crimes militares definidos em lei, em regra cometidos por integrantes das foras armadas e

    excepcionalmente por civis (cf. art. 124 da constituio federal). J s Justias militares estaduais compete julgar os crimes militares praticados por

    militares dos estados (policiais militares e bombeiros militares) e as aes judiciais contra atos disciplinares (cf. art. 125 da constituio federal). no

    presente texto, a expresso Justia militar se refere Justia militar da unio.

    7 dentro do objetivo estratgico, fortalecimento da atuao finalstica da instituio consta a estratgia nr. 7, qual seja, a de Viabilizar o

    acompanhamento pelo ministrio pblico militar das misses de paz das foras armadas brasileiras no exterior.

    8 uma reportagem sobre a oficina pode ser vista no site: www.onu.org.br/atuacao-do-ministerio-publico-militar-em-missoes-de-paz-da-onu-e-tema-

    de-oficina-no-rio.

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    28 BRASIL E HAITI - Edio especial

    alm de sua atuao repressiva, processando eventuais militares que tenham cometido crimes no contexto de uma misso de paz, o ministrio pbico militar tambm tem desenvolvido uma importante atuao preventiva. desde 2010, quando foi inaugurada uma parceria com o centro conjunto de operaes de paz do brasil (ccopab), so realizadas palestras sobre direito para os futuros peacekeepers brasileiros.

    outro reflexo da experincia adquirida pelo sistema jurdico militar ao processar crimes cometidos fora do territrio nacional, dentre os quais os perpetrados pelos militares que participaram da minustaH, diz respeito a estudos de alterao da legislao militar para aprimorar a prestao jurisdicional9.

    as aes de garantia da lei e da ordem (glo) implementadas pelas foras armadas nas comunidades do rio de Janeiro tambm foram impactadas pela participao militar brasileira na minustaH.

    o sucesso no Haiti tornou o ambiente mais frtil e propcio no brasil para a retomada das reflexes sobre o emprego das foras armadas no combate a criminalidade no mbito interno. foi neste contexto que aconteceram alteraes da lei complementar 97/99 que dispe sobre a organizao, preparo e emprego das foras armadas10. tais mudanas, associadas ao alinhamento poltico existente nas esferas de governo, deram origem a um indito acordo realizado entre a unio e o estado do rio de Janeiro11, propiciando a incurso das foras armadas no conjunto de comunidades denominado complexo do alemo e da penha, no perodo de 2010 a 2012 e, mais recentemente, no complexo da mar.

    se, por um lado, o aparato normativo internacional das misses de paz diferente daquele que envolve as aes de glo, as regras fundamentais de direitos humanos a serem respeitadas, em especial quanto ao uso da fora12, seguem os mesmos princpios. ademais, no plano operacional, as atividades de natureza policial realizadas pelas foras armadas no so muito divergentes nestes dois universos. at a nomenclatura fora de pacificao, utilizada nas aes de glo empreendidas nas comunidades do rio de Janeiro, induz uma referncia s misses de paz da onu.

    9 a oficina de trabalho debates sobre a Justia militar da escola superior do ministrio pblico da unio (esmpu), realizada de 22 a 24 de abril de

    2014 na procuradoria geral da Justia militar, em braslia/df, com a participao de membros do ministrio pblico militar e da magistratura castrense,

    concluiu pela necessidade de alterao do art. 91 do cdigo de processo penal militar, a fim de retirar a exclusividade da competncia das auditorias

    da capital federal para processar e julgar os crimes militares praticados fora do territrio nacional. uma das justificativas da proposta diz respeito

    demora nos processos causada pelas necessrias expedies de cartas precatrias de braslia/df para o local da unidade, navio, fora ou rgo onde

    estiver servindo, no brasil, o militar que cometeu, sofreu ou testemunhou um crime fora do territrio nacional.

    10 a lc 97/99 foi alterada pela lc 117/2004 e, posteriormente, pela lc 136/2010.

    11 aqueles que criticam o acordo implementado entre a unio e o estado do rio de Janeiro versando sobre segurana pblica, advogam que, por

    ser a matria de atribuio exclusiva do estado federado, no poderia a unio intervir sem que o estado decretasse sua falncia, havendo, desta forma,

    a necessidade de interveno federal (ver arruda, 2007).

    12 no caso de necessidade do uso da fora pelos peacekeepers, tambm devem ser respeitados os princpios e normas do direito internacional

    Humanitrio. cf. notas 22 e 23.cf. os princpios bsicos sobre utilizao da fora e de armas de fogo por funcionrios responsveis pela aplicao

    da lei (bpuff), adotados no oitavo congresso das naes unidas sobre a preveno do crime e o tratamento de infratores, realizado em Havana,

    cuba, em 1990, e cdigo de conduta para os funcionrios responsveis pela aplicao da lei (cceal), adotado pela assembleia geral da onu

    (resoluo 34/169, de 1979).

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    29INSTITUTO IGARAP | ARTIGO ESTRATGICO 13 | JANEIRO 2015

    no momento atual de releitura da Justia militar brasileira, no qual sua existncia, competncia e estrutura tm sido debatidas13, a participao de militares brasileiros em misses de paz pode trazer mais um importante aporte para esta reflexo. nos contextos especficos destas operaes, onde tropas brasileiras atuam em ambientes instveis fora do territrio nacional, uma justia especializada, clere, composta por civis e militares e, se necessrio, com mobilidade para seguir a tropa, tem sua razo de ser.

    desafios para investigar, processar e julgar crimes praticados por militares brasileiros em misses de paz

    durante uma misso de paz, um peacekeeper brasileiro poder cometer crimes comuns14, crimes militares15 ou at mesmo crimes internacionais16. em qualquer destas hipteses, compete primeiramente jurisdio brasileira apreciar a questo.

    independente da natureza do delito, o maior desafio da investigao em ambientes vulnerveis e reas de instabilidade a preservao do palco dos acontecimentos, sobretudo quando o crime ocorre fora das instalaes da misso de paz, envolvendo militares e civis. essa dificuldade pode afetar as buscas e apreenses de armas e instrumentos do delito e a elaborao de percias. a identificao e localizao de vtimas e testemunhas civis, em um pas desestabilizado e castigado por catstrofes naturais, tambm pode ser um problema17.

    com efeito, a preocupao com a correta colheita das evidncias no calor dos fatos deve ser redobrada no contexto de uma operao de manuteno da paz, pois ser mais difcil reproduzir, ou mesmo complementar,

    13 aos 17/03/2013, por meio da portaria nr 60, o conselho nacional de Justia (cnJ) criou uma comisso para fazer um diagnstico da Justia militar

    do brasil. em 12/02/2014, foi realizada pelo cnJ e pela escola superior do ministrio pblico da unio (esmpu) a oficina de trabalho Justia militar:

    perspectivas e transformaes.o relatrio final da comisso do cnJ foi divulgado em 17/11/2014.

    14 consideram-se crimes comuns aqueles previstos no cdigo penal brasileiro, ou em legislao extravagantes, que, embora possam ser praticados

    por um militar, no so considerados crimes militares. so exemplos um furto, um estupro ou um estelionato praticado por militar contra civil, fora de

    lugar sujeito administrao militar, e quando o militar no estava de servio.

    15 os crimes militares esto previstos art. 9 do cdigo penal militar. embora haja divergncias doutrinrias, em linhas gerais, pode-se dizer que os

    crimes militares so divididos em: (a) crimes impropriamente militares que, embora no sejam crimes especficos da caserna, tornam-se militares por

    uma circunstncia legal (por exemplo, furto, estupro ou estelionato praticado por militar contra militar, ou em lugar sujeito administrao militar ou

    por militar em servio contra civil); e (b) crimes propriamente militares que dizem respeito as especificidades da vida militar (desero, abandono de

    posto, insubordinao, violncia contra inferior ou contra superior, desrespeito a superior, recusa de obedincia, rigor excessivo, oposio ordem

    de sentinela etc.).

    segundo a legislao brasileira, um civil poder cometer um crime militar se atentar contra o patrimnio militar, se cometer um crime contra um militar

    dentro de um quartel ou contra um militar em funo de natureza militar, ainda que fora de lugar sujeito administrao militar.

    16 so considerados crimes internacionais aqueles que necessitam de cooperao internacional para sua represso e que, devido sua natureza

    horrenda, transformam-se em tema de interesse e preocupao de toda a comunidade internacional. os bens jurdicos protegidos so a paz e a

    segurana internacionais, bem como os direitos humanos lato sensu, e o sujeito passivo destes crimes a humanidade como um todo. o crime de

    genocdio, os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e o crime de agresso so considerados os mais graves crimes internacionais e esto

    previstos no estatuto de roma que criou o tribunal penal internacional (tpi).

    17 para mais consideraes sobre os desafios da investigao no contexto de misses de paz, conferir o captulo 3 da monografia operaes

    armadas multinacionais. aspectos penais e processuais. soberania e cooperao jurisdicional, do subprocurador-geral de Justia militar mrio

    srgio marques soares, elaborada em 2003, por ocasio da concluso do curso de ps-graduao lato sensu em direito internacional dos conflitos

    armados da universidade de braslia em parceria com a universidade de rhur de bochum.

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    30 BRASIL E HAITI - Edio especial

    uma prova posteriormente. as provas efetivamente instrutrias colhidas durante as investigaes sero muito importantes na fase judicial18.

    outra questo peculiar da investigao se refere barreira do idioma. no Haiti, o francs a lngua oficial, mas 90% da populao fala o dialeto local, conhecido como crole. a inquirio de testemunhas civis dever ser feita por meio de intrpretes. por outro lado, devido superposio de outras instncias investigativas da onu no universo das misses de paz, por vezes tambm poder ser imprescindvel a anlise de documentos em ingls que possam colaborar nas apuraes. se a vtima ou testemunha do crime for um militar de outra nacionalidade, a inquirio, em regra, ser na sua lngua materna. a necessria traduo oficial de todos os elementos da investigao para o portugus demanda tempo e pode gerar dvidas de interpretao, alm de gerar mais custos para o estado.

    embora de menor complexidade, a desmobilizao dos contingentes e a lotao dos militares em organizaes diferentes, por ocasio do retorno ao brasil, podem representar um desafio a mais na investigao dos crimes cometidos durante a misso de paz.

    mais uma lio aprendida do incipiente knowhow inaugurado entre os operadores do direito militar e os titulares e delegados da atividade de polcia judiciria militar diz respeito necessria conscientizao acerca das peculiaridades jurdico-polticas que permeiam o ambiente internacional, as quais diferem, e muito, dos contextos internos nos quais esto habituados a atuar. neste universo no domstico, o xito da investigao poder repousar na cooperao e na coordenao com outras instncias investigativas da onu, ou, at mesmo, com a polcia local.

    J no que diz respeito ao plano normativo, o maior desafio se refere ao deficit legislativo que impera no ordenamento jurdico nacional quanto a alguns crimes internacionais previstos no estatuto de roma (1998), tratado que criou o tribunal penal internacional (tpi)19.

    sob a gide do princpio da complementaridade, o tpi somente atuar quando um estado no julgar ou no julgar bem um criminoso internacional. ocorre que, para no perder a oportunidade de demonstrar uma posio firme perante a comunidade internacional, o brasil ratificou o estatuto de roma20 sem operar mudanas legislativas imprescindveis ao exerccio primrio da jurisdio nacional no que se refere a determinados crimes contra a humanidade e crimes de guerra21.

    18 segundo o pargrafo nico do art. 9 do cdigo de processo penal militar, so efetivamente instrutrios da ao penal os exames, percias e

    avaliaes realizados regularmente no curso do inqurito, por peritos idneos e com obedincia s formalidades previstas neste cdigo.

    19 o tribunal penal internacional, sediado em Haia, na Holanda, uma organizao internacional criada por tratado (estatuto de roma), em 1998,

    para processar e julgar o crime de genocdio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agresso.

    20 o brasil assinou o estatuto de roma que cria o tribunal penal internacional em 07/02/2000; o congresso nacional aprovou-o em 06/06/2002,

    atravs do decreto legislativo nr. 112 e, aps apresentao do instrumento de ratificao em 14/06/2002, o estatuto de roma passou a ter vigncia

    no brasil em 01/09/2002. no plano interno, o tratado foi promulgado em 25/09/2002 por meio do decreto n 4.388.

    21 segundo exigncias constitucionais decorrentes da compreenso estrita do princpio da legalidade dos delitos e das penas, quando se tratar de

    incriminao de condutas, imprescindvel a aprovao de uma lei interna descrevendo os tipos penais. dos crimes previstos no estatuto de roma,

    o crime de genocdio o nico que j estava previsto na legislao brasileira (lei 2889/1956 e arts. 208, 401 e 402 do cpm). J os crimes contra a

    humanidade e os crimes de guerra, previstos no estatuto de roma, no encontram plena equivalncia no direito ptrio.

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    31INSTITUTO IGARAP | ARTIGO ESTRATGICO 13 | JANEIRO 2015

    22 a tramitao do projeto de lei nr.4038/2008 est disponvel em www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idproposicao=410747. 23 o direito internacional Humanitrio o ramo do direito internacional que tem o objetivo de limitar os efeitos dos conflitos armados, protegendo

    quem no participa, ou no participa mais, das hostilidades e restringindo meios e mtodos de combate. tambm conhecido como direito

    internacional dos conflitos armados (dica) e antigamente era chamado de direito da guerra (ius in bello). suas principais fontes so as

    convenes de genebra de 1949 e seus protocolos adicionais de 1977 e 2005.24 cf. circular do secretrio-geral da onu em 06/10/1999. 25 cf. art. 8 do estatuto de roma. so exemplos de crime de guerra: (a) atacar intencionalmente a populao civil em geral ou civis que no

    participem diretamente nas hostilidades; (b) lanar intencionalmente um ataque, sabendo que o mesmo causar perdas acidentais de vidas humanas

    ou ferimentos na populao civil, danos em bens de carter civil ou prejuzos extensos, duradouros e graves no meio ambiente que se revelem

    claramente excessivos em relao vantagem militar global concreta e direta que se previa; 26 cf. art. 7 do estatuto de roma.so exemplos de crime contra humanidade quando cometidos de forma generalizada ou sistemtica, contra

    qualquer populao civil: homicdio, extermnio, escravido, deportao ou transferncia forada, tortura, violncia sexual, desaparecimento forado

    de pessoas.27 segundo art. 17 do estatuto de roma, para que um caso seja admitido no tpi, alm de aferir a incapacidade e/ou no vontade do estado em

    processar e julgar um criminoso internacional, tambm ser avaliada a gravidade do caso.

    com o objetivo de colmatar estas lacunas legislativas, tramita no congresso nacional um projeto de lei22 que dispe sobre o crime de genocdio, define os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e os crimes contra a administrao da justia do tpi, alm de instituir normas processuais especficas e dispor sobre a cooperao com o referido tribunal.

    mas afinal qual a relao deste deficit legislativo nacional com os capacetes azuis?

    embora no sejam considerados tecnicamente combatentes e sim soldados da paz, os integrantes de uma misso de paz devem respeitar os princpios e normas do direito internacional Humanitrio (diH)23 quando engajados no combate, em legtima defesa da misso ou se estritamente necessrio para o cumprimento do mandato24. nestas excepcionais hipteses de uso da fora, se houver grave violao do diH, poderemos estar diante de um crime de guerra25 praticado por um peacekeeper.

    um integrante de uma misso de paz tambm poder cometer um crime contra a humanidade se violar gravemente o direito internacional dos direitos Humanos de forma generalizada ou sistemtica em determinadas circunstncias26.

    nestes contextos, dependendo da natureza e da gravidade da conduta praticada por um militar brasileiro, no teramos ainda o crime especfico previsto no ordenamento jurdico nacional, o que poderia dar ensejo atuao complementar do tpi27. este cenrio possvel, ainda que pouco provvel atestaria a incapacidade do brasil de cumprir seu compromisso internacional de processar e julgar criminosos internacionais. da a necessidade de se aprovar o projeto de lei que internaliza os crimes internacionais previstos no estatuto de roma.

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    32 BRASIL E HAITI - Edio especial

    28 em 16/09/2011, a auditoria militar de braslia (11 cJm) condenou um militar que integrava a minustaH pena de seis meses de deteno, pela

    prtica do crime de oposio ordem de sentinela (ver brasil/stm, 2011).29 o contingente de polcia do exrcito (pe) da minustaH fica a cargo da guatemala, sob a orientao do chefe da polcia militar da misso (force

    provost marshal).

    a boa disciplina dos peacekeepers brasileiros nestes 10 anos de minustaH

    os nmeros existentes na Justia militar evidenciam poucos registros de desvios de condutas dos militares nestes 10 anos de minustaH (2004-2014). segundo levantamento de dados do sistema de acompanhamento processual, desde 2004, foram instaurados apenas 44 inquritos policiais militares. destes, 5 viraram processos, tendo havido, at hoje, apenas uma condenao28.

    poder-se-ia cogitar que no estariam sendo iniciadas investigaes sobre eventuais condutas criminosas e, por isso, o nmero de registros de inquritos policiais militares instaurados seria muito baixo se comparado ao efetivo de militares que j passou pela minustaH.

    contudo, outros indicadores permitem uma leitura mais positiva destes dados.

    o primeiro deles se refere aos vrios rgos de investigao de desvios dos peacekeepers que se sobrepem no contexto de uma operao de manuteno da paz. com efeito, ao integrar uma misso de paz, o capacete azul estar sujeito s normas penais e regulamentos disciplinares, nacionais e internacionais.

    o fato de incumbir ao contingente militar brasileiro a investigao dos desvios de seus integrantes, uma vez que compete Justia brasileira processar e julgar eventuais crimes praticados, no afasta a possibilidade de que outras instncias da onu, dentro e fora da minustaH, tambm detenham a atribuio de investigar condutas irregulares ou criminosas dos capacetes azuis. o caso, por exemplo, do contingente de polcia do exrcito (Military Police)29 e do setor de conduta e disciplina (Conduct & Discipline Team), ambos da misso, e do escritrio de superviso interna da organizao (Office of Internal Oversight Services - oios).

    luz deste cenrio, considerando que os peacekeepers esto sob o olhar concomitante de vrias instncias investigativas que compem o sistema onusiano (em especial quanto aos crimes mais graves),restariam frgeis os argumentos de que as estatsticas da Justia miliar brasileira seriam baixas porque os crimes perpetrados por militares brasileiros no estariam sendo devidamente investigados no mbito da minustaH.

    sob este aspecto, ainda impende consignar que inexiste notcia de investigao preliminar sobre o Haiti no tpi, organizao que tem competncia complementar aos estados na represso dos mais graves crimes internacionais.

    outro indicador que refora uma interpretao positiva do baixo nmero de feitos registrados na Justia militar diz respeito formao do contingente no brasil. as tropas brasileiras recebem um treinamento de alto nvel no centro conjunto de operaes de paz do brasil (ccopab), no rio de Janeiro, unidade militar que faz constante acompanhamento dos contingentes.

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    33INSTITUTO IGARAP | ARTIGO ESTRATGICO 13 | JANEIRO 2015

    podem tambm contribuir para a boa disciplina da tropa brasileira na minustaH as seguintes circunstncias: seleo rigorosa com base no voluntariado; rotatividade semestral do contingente; liderana positiva; internalizao das regras de engajamento; boa infraestrutura das instalaes que abrigam a tropa; regime disciplinar rgido; implementao de aes cvico-sociais; folgas monitoradas dos militares tiradas dentro do batalho brasil (brabatt) da minustaH ou fora do territrio haitiano; medo do repatriamento; e remunerao suplementar recebida pela participao na misso.

    em verdade, existe um reconhecimento internacional do bom trabalho militar brasileiro realizado no Haiti, inclusive, atestado pela prpria onu. o brasil o nico estado que ocupa permanentemente o posto de comandante militar em uma misso de paz da instituio.

    e mais, em 2013, foi convidado um oficial brasileiro, general carlos alberto dos santos cruz, o qual j havia exercido o comando do contingente militar da minustaH de 2007 a 2009, para ser o comandante militar da maior e mais complexa misso de paz da onu: a misso de estabilizao das naes unidas na repblica democrtica do congo (monusco)30. nesta misso foi ineditamente autorizado o uso preventivo da fora para a proteo de civis, tendo sido criada uma brigada de interveno, tropa com capacidade blica mais robusta.

    por sua vez, o general floriano peixoto Vieira neto, oficial brasileiro que comandou a minustaH durante o terremoto de 2010, ser o nico militar, dentre 14 especialistas, que participar do recm-criado painel independente convocado pelo secretrio-geral da onu para avaliar a arquitetura das operaes de paz das naes unidas e sugerir adaptaes frente aos seus atuais desafios31.

    desafios e consideraes finais

    mesmo que persista o debate sobre a melhor estratgia de retirada total das tropas do Haiti, por enquanto, o mandato da minustaH permanece32 e o fortalecimento do poder Judicirio local uma das maiores preocupaes da misso.

    nesta linha, renova-se uma oportunidade do brasil se engajar mais em outros nveis, que no o militar, podendo contribuir com uma maior participao de especialistas civis na misso33. operadores do direito brasileiros podem participar do esforo de apoio s autoridades haitianas na implementao da reforma da justia, para assegurar a independncia e a efetividade das instituies judiciais e tratar de questes como prises provisrias prolongadas, superpopulao carcerria e condio de mulheres e crianas detidas.

    30 a monusco tem um componente militar de aproximadamente 20.000 soldados (ver onu/monusco, 2014).31 painel criado em 31/10/2014 cujas sugestes e concluses so esperadas para a assembleia geral da onu em setembro de 2015. as operaes

    de paz da onu j foram objeto de uma reviso externa em 2000, cujo estudo ficou conhecido como relatrio brahimi. 32 o mandato da minustaH foi estendido at 15 de outubro de 2015 por meio da resoluo 2180 do conselho de segurana da onu, de 14 de

    outubro de 2014.33 o instituto igarap tem pioneiramente se dedicado a esta temtica no brasil, tendo organizado o workshop preparo de civis para atuar em contextos

    instveis: promessas e desafios em braslia, em 03/11/2014.

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    34 BRASIL E HAITI - Edio especial

    por outro lado, no plano interno preciso avanar na conscientizao e capacitao dos operadores do direito quanto s questes jurdicas que envolvem s misses de paz. essa temtica deve ser um aspecto importante no projeto das instituies ligadas Justia militar. favorecer o intercmbio entre brasileiros e haitianos no campo do direito tambm pode ser bastante construtivo.

    embora decorridos 10 anos da participao militar brasileira na minustaH, o brasil conhece muito pouco sobre o Haiti. ao lado do xito militar preciso mais esforo na implementao de uma participao civil brasileira mais expressiva na misso que possa refletir em progressos nas condies de vida do to sofrido povo haitiano.

    referncias

    arruda, Joo rodrigues. uso poltico das foras armadas e outras questes militares. mauad, 2007.brasil. ministrio da defesa/md (2014a). relaes internacionais misses de paz. . acessado em 03/11/2014.

    ______. (2014b) relaes internacionais: o brasil na minustaH. . acessado em 03/11/2014.brasil. constituio da repblica federativa do brasil (1988)..

    brasil. superior tribunal militar/stm. notcias de 2011: ex-soldado de misso de paz no Haiti condenado pela Justia militar. .acessado em 03/11/2014.

    onu. monusco misso de estabilizao das naes unidas na repblica democrtica do congo. pgina inicial. http://monusco.unmissions.org. acessado em 03/11/2014.

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    35INSTITUTO IGARAP | ARTIGO ESTRATGICO 13 | JANEIRO 2015

    a contribuio de policiais militares brasileiros na misso das naes unidas para a estabilizao do Haiti (minustaH) deu-se logo nos primeiros meses aps a criao da misso: em 18 de setembro de 2014, trs oficiais chegaram ao pas para integrar o componente policial1, o united nations police (unpol)2.

    nos primeiros anos, durante a fase de estabilizao do pas, os policiais militares (pms) atuaram na estruturao administrativa e operacional 3. nessa fase,as operaes eram constantes e os confrontos, diretos e rotineiros, eram levados a cabo com ou sem a presena da polcia nacional Haitiana (pnH). Havia operaes policiais reais conduzidas em grande parcela pelos militares. a partir de 2007, aps questionamentos do poder Judicirio haitiano quanto legalidade das prises e aes da minustaH sem a presena da pnH, houve uma mudana substancial na conduo das atividades, na qual as operaes passaram a contar, necessariamente, com membros da pnH. por outro lado, a direo de operaes (dirops) da unpol passou a ter a responsabilidade de

    maj pmdF sergio carrera de albuquerque melo neto

    Serviu na MINUSTAH por 5 tours de misso (reas operacionais, gesto de recursos humanos e instrutor da Academia de Polcia do Haiti). Foi selecionador oficial de policiais para misses de paz da ONU (2013/2014) e foi coordenador e instrutor de cursos para UNPOLs no Brasil, Sucia, Canad e Noruega.

    participao policial brasileira na minustaH

    1 melo neto e melo, 2011, p.35.2 o termo unpol utilizado tanto para o componente policial como para os policiais em si.3 algumas das funes mais importantes exercidas foram as de chefe do centro conjunto de operaes; chefe do centro nacional conjunto de

    operaes; oficial de ligao entre os componentes policial e militar (funo existente apenas no primeiro perodo); chefe de departamento regional;

    conselheiro tcnico e chefia da segurana pessoal (Vip) de autoridades do governo do Haiti (goH).

    Policial brasileira atua em campo de deslocados para evitar a violncia contra as mulheres. Crdito: UNIC Rio/Damaris Giuliana

    sobre o autor:

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    36 BRASIL E HAITI - Edio especial

    planejar aes, coordenar reunies, elaborar as ordens de servio e os planos de operaes, bem como a comandar in locu (incident commander) as operaes, tanto de carter estritamente policial ou como as conjuntas, com os demais componentes da minustaH.

    os abalos ssmicos que afetaram o Haiti em 12 de janeiro de 2010 mudaram completamente o rumo da misso, e o plano de reforma da pnH foi colocado em stand by. a destruio de boa parte da capital do pas, porto prncipe,e a morte de aproximadamente 220 mil pessoas,4 desviou o foco da misso para um carter estritamente humanitrio, com a mudana de todos os projetos em progresso, com vistas a atender as necessidades causadas pelo terremoto. por aproximadamente 18 meses, a unpol focou na crtica situao existente especialmente na capital, rea mais afetada e de ma