(ARTIGO) GINZBURG Sinais Raízes de Um Paradigma Indiciário

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  • 20/9/2014 8. As razes do paradigma indicirio segundo Carlo Ginzburg | Marcoaydos's Blog

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    janeiro 8, 2013

    8. As razes do paradigma indicirio segundoCarlo Ginzburg

    Por marcoaydosNo ensaio que me inspirou a adotar o subttulo desta teoria da prova, o historiador italianoCarlo Ginzburg sintetiza sua proposta dizendo que tentar

    mostrar como, por volta do sculo XIX, emergiu silenciosamente no mbito das cinciashumanas um modelo epistemolgico (caso se prefira, um paradigma) ao qual at agora no seprestou suficiente ateno. A anlise desse paradigma, amplamente operante de fato, aindaque no teorizado explicitamente, talvez possa ajudar a sair dos incmodos da contraposioentre racionalismo e irracionalismo. (Ginzburg, 2011, p. 143).

    O ensaio de Ginzburg estrutura-se em duas partes: (1) descreve o paradigma indicirio, e (2)descreve a genealogia de um caso de conhecimento indicirio, contando as origens doconhecimento pericial que hoje conhecemos como papiloscopia.

    O paradigma indicirio descrito a partir do chamado mtodo morelliano de atribuio deautoria nas artes plsticas. Entre 1874 e 1876, Giovanni Morelli publicou em alemo, sobpseudnimo de Ivan Lermolieff, suposto estudioso russo, uma srie de artigos sobre a pinturaitaliana em que props um mtodo novo de atribuio de autoria. Segundo Morelli, paraatribuir corretamente autoria a obras no-assinadas e outras atribudas de modo incorreto,mais que viso total da obra seria preciso prestar ateno aos detalhes, aos pormenores maisnegligenciveis, e menos influenciados pelas caractersticas da escola a que o pintor pertencia:os lbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mos e dos ps (Ginzburg, 2011, p.144).

    Os escritos de Morelli apresentavam catlogos de orelhas tpicas, com os quais o autor julgavaatribuir corretamente um quadro que retratava uma orelha de Botticelli, por exemplo. Omtodo foi considerado grosseiro, positivista e mecnico: estamos na idade de ouro dacriminologia positivista: Cesare Lombroso publica em 1876 sua obra sobre O homem criminoso,cujo horizonte histrico bem descrito em livro de Pierre Darmon, Mdicos e assassinos na Bellepoque (1991, pp. 36ss). Mas Morelli no foi completamente ignorado: a pesquisa sobre acarreira do mtodo morelliano leva Ginzburg a associao desse mtodo medicina, a partir derevelao de Sigmund Freud, em ensaio de 1914 sobre O Moiss de Michelangelo, cuja autoriaFreud admitiu apenas mais tarde na edio de suas obras completas:

    Muito tempo antes que eu pudesse ouvir falar da psicanlise vim a saber que um especialistade arte russo, Ivan Lermolieff, cujos primeiros ensaios foram publicados em alemo entre 1874e 1876, havia provocado uma revoluo nas galerias de Europa recolocando em discusso aatribuio de muitos quadros a cada pintor () Foi depois muito interessante para mim saberque sob o pseudnimo russo escondia-se um mdico italiano de nome Morelli () Creio que oseu mtodo est estreitamente aparentado tcnica da psicanlise mdica. Esta tambm tem

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    por hbito penetrar em coisas concretas e ocultas, atravs de elementos pouco notados oudesapercebidos, dos detritos ou refugos da nossa observao (Freud, citado por Ginzburg,2011, p. 147).

    O mtodo morelliano tambm havia sido comparado ao mtodo atribudo, na mesma poca, aSherlock Holmes, por seu criador, Arthur Conan Doyle, o qual antes de dedicar-se literaturahavia sido mdico.

    Bem se v que no casual a confluncia de trs mdicos na investigao de pistasnormalmente negligenciadas dos fatos. A medicina hipocrtica, lembra Ginzburg, definiuseus mtodos refletindo sobre a noo decisiva de sintoma (semeon) [transliterao alterada,MA]. Esse paradigma indicirio na medicina constituiu um paradigma implcito: esmagadopelo prestigioso (e socialmente mais elevado) modelo de conhecimento elaborado por Plato(Ginzburg, 2011, p. 155).

    Ginzburg debita a marginalizao do mtodo indicirio cesura definitiva sofrida pelasnoes de rigor e cincia com o aparecimento da fsica galileana, pois o grupo dedisciplinas que chamamos de indicirias (includa a medicina) no entra absolutamente noscritrios de cientificidade deduzveis do paradigma galileano. Trata-se, de fato, de disciplinaseminentemente qualitativas, que tm por objeto casos, situaes e documentos individuais,enquanto individuais. Mais adiante, aponta a diferena em relao ao outro paradigma, pois:

    A cincia galileana tinha uma natureza totalmente diversa, que poderia adotar o lemaescolstico individuum est ineffabile, do que individual no se pode falar. O emprego damatemtica e o mtodo experimental, de fato, implicavam respectivamente a quantificao e arepetibilidade dos fenmenos, enquanto a perspectiva individualizante exclua por definio asegunda, e admitia a primeira apenas em funes auxiliares (Ginzburg, 2011, p. 157).

    Ginzburg aproxima a medicina cincia da historiografia porque ambas descartam oparadigma galileano e assumem que quando as causas no so reproduzveis, s resta inferi-las a partir dos efeitos (2011, p. 169). Na segunda parte do ensaio, Ginzburg busca na origemda papiloscopia a vertente marginal do paradigma indicirio, um tipo de saber que no seafeioa por abstraes mas por detalhes do evento nico, irrepetvel, individual. Relata como omtodo indicirio de identificao de criminosos surgiu na Europa por conta de umanecessidade social: a extino do estigma. Antes, o criminoso reincidente, por exemplo, eramarcado no corpo com o estigma do crime. Com a abolio do estigma (na Frana em 1832),surgiu um problema: como identificar o reincidente? E com o problema surgiram propostas desoluo, entre elas a antropometria, a constituio do chamado retrato falado, por Bertillon(p. 174). At que Willian Herschel, administrador do distrito de Hooghly, em Bengala,descobriu que no Oriente costumava-se imprimir nas cartas e documentos uma ponta de dedoborrada de piche ou tinta. Essa prtica estava associada ao desenvolvimento de umasensibilidade para a leitura dos sinais individuais, nicos, de cada indivduo. A descoberta foirelatada por Herschel em 1880, na revista Nature, ao contar como depois de dezessete anos deexperincias, as impresses digitais foram introduzidas oficialmente no distrito de Hooghly,onde j eram usadas havia trs anos com timos resultados (p. 176). Desse artigo surgiuinspirao para a elaborao sistemtica da papiloscopia por Galton, depois o mtodo deidentificao foi introduzido na Inglaterra, e gradualmente em todo o mundo (p. 177).

    A concluso junta as duas partes do ensaio. Interessado na revalorizao da prova na

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    A concluso junta as duas partes do ensaio. Interessado na revalorizao da prova nahistoriografia, Ginzburg ope ao paradigma dominante daabstrao/quantificao/reprodubitilidade das cincias fsicas que ele chama de paradigmagalileano o paradigma da qualidade/individuao/irreprodutibilidade, do saber indiciriomdico e policial (que associa ao conhecimento historiogrfico). Ao descrever o mtodoindicirio, Ginzburg conclui que aqui entram em jogo (diz-se normalmente) elementosimponderveis: faro, golpe de vista, intuio. E interessante registrar como o autor fugia ede repente libera o uso dessa palavra perigosa: intuio.

    At aqui abstivemo-nos, escrupulosamente, de empregar esse termo minado. Mas, se seinsiste em querer us-lo, como sinnimo de processos racionais, ser necessrio distinguir entreuma intuio baixa e uma intuio alta. A antiga fisiognomia rabe estava baseada na firasa:noo complexa, que designava em geral a capacidade de passar imediatamente do conhecidopara o desconhecido, na base de indcios. () Essa intuio baixa est arraigada nos sentidos(mesmo superando-os) e enquanto tal no tem nada a ver com a intuio supra-sensvel dosvrios irracionalismos dos sculos XIX e XX. difundida no mundo todo, sem limitesgeogrficos, histricos, tnicos, sexuais ou de classe e est portanto muito distante dequalquer forma de conhecimento superior, privilgio de poucos eleitos. patrimnio dosbengaleses, expropriados do seu saber por sir Willian Herschel, dos caadores, dosmarinheiros, das mulheres. Une estreitamente o animal homem s outras espcies animais(Ginzburg, 2011, p. 179).

    Problemtica

    Se descontarmos a retrica politicamente correta da concluso anti-eurocntrica de Ginzburg, oensaio interessante, principalmente porque, no contexto do que desenvolvemos at aqui nestateoria da prova, suscita mais problemas que solues. Pois: 1. Ser possvel falar numparadigma indicirio que resolva o problema da contraposio entreracionalismo/irracionalismo? 2. Que tipo de racionalidade est envolvida nessa capacidadeidentificada pelo tal paradigma indicirio? 3. Se esse paradigma aplicvel medicina e sinvestigaes policiais, em que medida estas duas prticas so parecidas com a historiografia,para que nos seja autorizado associ-las na mesma classe? 4. Isso que Ginzburg identifica comomodo indicirio um paradigma ou uma epistemologia? No ser preciso discutir antes emque sentido se pode falar em epistme na historiografia? 5. E outro problema que no pequeno: que sentido pode ter falar em intuio numa teoria da prova? 6. Que intuio ecomo funciona? 7. Como possvel, enfim, seguir usando de emprstimo a expresso deGinzburg de modo consistente com a moldura filosfica geral de nossa teoria da prova? 8. Masqual era mesmo a moldura filosfica de nossa teoria da prova?

    Referncias:

    Darmon, Pierre 1991: Mdicos e assassinos na Belle poque: a medicalizao do crime. Traduo deRegine Grisse de Agostino. Rio de Janeiro, Paz e Terra; Ginzburg, Carlo 2011: Mitos, emblemas,sinais: morfologia e histria. Traduo de Federico Carotti. 2ed. So Paulo: Companhia das Letras.