PARADIGMA INDICIÁRIO FEMINISTA: UMA REANÁLISE DA …
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PARADIGMA INDICIÁRIO FEMINISTA: UMA REANÁLISE DA
OBRA DE CARLO GINZBURG A PARTIR DAS TEORIAS
FEMINISTAS DE SILVA FEDERICI
Manoel da Paixão Lordelo da Silva Junior
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos
Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras
da Universidade Estadual da Bahia
RESUMO: O artigo propõe uma reinterpretação do processo inquisitório de uma bruxa
apresentado no trabalho do historiador Carlo Ginzburg, a partir das novas contribuições das
reflexões e paradigmas propostos pela obra “O calibã e a bruxa: mulheres, corpos e acumulação
primitiva”, da historiadora ítalo-estadunidense Silva Federici. O texto apresenta as teorias desses
dois pensadores a fim de entender em uma perspectiva interseccional feminista a política da “caça
às bruxas” como uma ferramenta de representação e legitimação de controle e extermínio do
Outro, sobretudo das mulheres, trazendo ao debate a importância de algumas categorias de análise
na pesquisa histórica.
Palavras-chave: bruxa, feminismo, Silva Federici, Carlo Ginzburg.
As análises dos documentos dos processos de Inquisição da Igreja Católica na
Europa nos séculos XV à XVII apresentadas nas obras de Carlo Ginzburg, tornaram-se
importante referenciais para as pesquisas históricas, não só por inaugurar novas
possibilidades metodológicas investigativas, mas, sobretudo, por incluir temas e áreas de
conhecimento aparentemente dispares em perspectivas inovadoras além de tornar
protagonista diversos sujeitos negligenciados e marginalizados na história.
Ginzburg tem por excelência em seus trabalhos uma ampla investigação de
indivíduos e manifestações, que a partir de uma matriz religiosa foram julgados e
estigmatizados como hereges, diabólicos e monstruosos – como as bruxas, feiticeiros e
lobisomens. No seu mais famoso livro O queijo e os vermes (1976), o autor revela a
história de Menocchio, um moleiro italiano acusado de heresia por apresentar uma
cosmovisão diferente do pensamento da Igreja Católica vigente na época.
Em “Feitiçaria e piedade popular – Notas sobre um processo Modenense de
1519”, artigo que abre o livro Mito, emblemas, sinais (1989), o autor apresenta uma
análise do julgamento de Chiara Signorini, uma camponesa da região de Módena acusada
por feitiçaria em dezembro de 1518 e condenada em fevereiro de 1519 à prisão perpétua,
como pena alternativa a ser queimada (por ter se arrependido) após um longo processo de
interrogatório e tortura atribuído ao vigário da Inquisição na região, o frade Bartolomeo
da Pisa.
No caso descrito, Chiara Signorini foi denunciada por lançar um feitiço que
deixou enferma a senhora Margherita Pazzani, como vingança após ela ser expulsa com
o marido de uma herdade em que moravam de propriedade de Margherita. No relatório
do processo, algumas testemunhas e acusadores afirmam que a própria Chiara assumiu
publicamente ser a responsável pela enfermidade de Margherita – usando como
chantagem a possibilidade de cura com a condição de poder retornar a herdade.
Ao analisar este fato, Ginzburg menciona a possibilidade de que a feitiçaria era
muitas vezes utilizada como uma ferramenta de defesa dos camponeses mesmo quando
eles não tinham crenças reais em tais poderes. Em uma breve nota, ele apresenta a
possibilidade do “caráter de uma revolta social disfarçada, muitas vezes assumido pela
feitiçaria” (GINZBURG, 2016, p.224), contudo, a sua principal preocupação
investigativa refere-se ao aspecto do imaginário e crença das bruxas e inquisidores que
ele desenrola ao longo do texto (e praticamente em toda sua obra que se trata deste
assunto).
Para o autor, há um hiato nesses diferentes níveis de leituras da realidade,
sobretudo entre a Igreja e feiticeiras, entre a “fisionomia real da feitiçaria popular distinta
da feitiçaria “culta” dos tratados de demonologia” (ibidem., p.30). Deste modo, Ginzburg
alerta para as limitações e parcialidades da leitura dos documentos da Inquisição – já que
as confissões eram redigidas pelos inquisidores através de experiências de tortura e medo,
em que não é possível acessar o ponto de vista das acusadas, além de possíveis
“rachaduras indiretas” de um pensamento popular presente no relato.
Nos documentos do caso de Chiara, por exemplo, há “uma claríssima tentativa,
por parte do juiz, de fazer coincidir a confissão da acusada com a verdade que ele já
detém” (ibidem, p.30). Por isso, nessas declarações é impossível perceber o pensamento
dela, mas uma tentativa conduzida de seu relato para algo determinado pelo frade em que
busca arrancar “verdades” já esperadas. O método interrogatório utilizado, além de
recorrer a tortura, sugere implicitamente à acusada o conteúdo da resposta,
ressignificando suas falas até alcançar a confissão prevista.
No próprio relatório das confissões, Chiara modifica a todo momento seu discurso
em diversas versões a cada sessão, não só pelas práticas utilizadas, como ela mesmo
declara “que nada do que disse é verdadeiro, mas que tudo disse por temor da tortura”
(ibidem, p. 29), além de recorrer a elementos da liturgia cristã (a aparição da Virgem
Maria, por exemplo), possivelmente esperando ser liberta. Como alerta Ginzburg, são
documentos que devem ser lidos na sua parcialidade.
O próprio arrependimento final é algo em que não se pode determinar a sua
autenticidade. A declaração de arrependimento, descrita como feita de forma voluntária
por Chiara, sobrepõe diversos elementos entre as ideologias distintas da camponesa e do
inquisidor. É um documento historicamente importante pois registra a legitimação da
“caça às bruxas” e suas punições enquanto ferramenta utilizada pela Igreja. Este
arrependimento faz com que Chiara seja “salva” de ser queimada na fogueira, sendo
condenada à prisão perpétua.
Entre esses importantes pontos apresentados na análise deste caso, Ginzburg não
menciona dois “indícios” fundamentais – como ele próprio propõe em seu método
indiciário – para a leitura desses documentos: o novo regime de privatização das terras na
lenta construção do capitalismo e as relações de gênero estabelecidas entre os dois
agentes. Sendo que este segundo é completamente ignorado em toda análise, em que o
autor não refere em nenhum momento a acusada enquanto mulher. Tais recortes
possibilitariam entender em uma nova perspectiva a política de caça às bruxas durante o
início da Idade Moderna na Europa e no Novo Mundo.
Caça às mulheres: Uma leitura feminista
De certo que a compreensão do Sujeito Universal descrito no pensamento da
História Geral sempre foi entendida a partir do homem, eurocêntrico, cisheteropatriarcal
e branco – a própria forma da nossa linguagem usual em referir ao geral/todo usando o
gênero masculino das palavras torna-se uma denúncia dessa compreensão. Enquanto, xs
demais sujeitxs, que não se enquadravam no modelo androeurocêntrico, sempre foram
classificadxs como Outro. A filósofa Simone de Beauvoir vai trazer essa importante
evidência ao revelar a partir da dialética masculina a mulher como Outro, assim como “os
judeus são “outros para os anti-semita, os negros para os racistas norte americanos, os
indígenas para os colonos...” (BEAUVOIR, 1980, p. 11, apud RIBEIRO, 2017, p. 39)
Logo, as histórias na perspectiva da mulher e do feminino ocuparam por diversos
anos uma subcategoria nos diversos campos de saberes. Joan Scott, historiadora
estadunidense, analisando os novos paradigmas propostos nas obras das autoras
feministas, apresenta o recorte de gênero como uma categoria útil para a análise histórica,
de modo que
inscrever as mulheres na história implica necessariamente a redefinição e o
alargamento das noções tradicionais do que é historicamente importante, para
incluir tanto a experiência pessoal e subjetiva quanto as atividades públicas e
políticas. Não é exagero dizer que por mais hesitante que sejam os princípios
reais de hoje, tal metodologia implica não só em uma nova história das mulheres,
mas em uma nova história. (SCOTT, 1995, p. 73)
É a partir dessa perspectiva que o pensamento da historiadora Silvia Federici
apresentado em Calibã e a bruxa: mulheres, corpos e acumulação primitiva (2004) torna-
se um importante paradigma de ressignificação da compreensão da história geral em que
a experiência masculina é apresentada como única e invisibiliza as mulheres enquanto
agentes históricas.
Em seu livro, a autora denuncia como o processo de acumulação primitiva do
surgimento do capitalismo e o controle do corpo do proletariado descritos por Karl Marx
e Michel Foucault ignoraram completamente a sujeição das mulheres através de uma das
principais políticas adotadas pela Igreja e Estado neste período, que foi o extermínio das
“bruxas”. Para Federici, a perseguição às feiticeiras serviu como justificativa para o
controle do corpo feminino e das mulheres nas práticas sociais – foi um ataque genocida
contra as mulheres.
Ela discorre apesentando como a construção do capitalismo se deu através de
“uma acumulação de diferenças e divisões dentro da classe trabalhadora, em que as
hierarquias construídas sobre gênero, assim como sobre a “raça” e a idade, se tornaram
constitutivas da dominação de classe e da formação do proletariado moderno”
(FEDERICI, 2017, p. 119). A história não pode ser apenas compreendida como uma luta
de classes, sem perceber seus diversos aspectos interseccionais que envolve outras
categorias.
Partindo dessas novas conexões apresentadas por Federici em análise da caça às
bruxas, proponho uma apresentação de suas teorias intercalando com alguns indícios
presentes nos documentos inquisitórios do Caso Chiara não apresentados por Ginzburg
em sua análise. Não se trata de uma crítica anacrônica ou ideológica à obra do autor,
mediante as importantes contribuições de seu trabalho, mas uma maneira de construir
leituras possíveis de um mesmo fenômeno a partir de uma pluralidade de ângulos.
Um novo paradigma indiciário
O modelo epistemológico apresentado por Carlo Ginzburg de um método
heurístico que valoriza os resíduos, os detalhes, vestígios, sinais e dados marginais
presentes na fonte ou no relato da testemunha possibilitou uma importante ferramenta nas
pesquisas de construção das narrativas históricas e das análises sociológicas nas últimas
décadas.
Ao apresentar o modelo, o historiador cita em epígrafe: “Um objeto que fala de
perda, da destruição, do desaparecimento de objetos. Não fala de si. Fala de outros.
Incluirá também a eles?” (GINZBURG, 2016, p. 143). Este processo, cunhado pelo autor
como “paradigma indiciário”, possibilitou que pesquisadores e pesquisadoras se
atentassem aos vestígios ocultos e excluídos dos documentos históricos, fazendo o uso de
sua intuição e sensibilidade para revela-los.
Notoriamente, os trabalhos realizados pelas pesquisadoras feministas nas últimas
décadas contribuem de modo significativo para se pensar em um novo paradigma nas
pesquisas acadêmicas. Talvez sejam os trabalhos mais importantes que por excelência
tenha utilizado dos indícios de uma história apagada e marginalizada para uma proposição
de revisão e construção de novas epistemologias neste século.
Utilizando, por exemplo, da análise dos “atos falhos” e dos elementos de
construção de nossa linguagem para denunciar a construção da diferença de gênero,
discutindo a importância do lugar de fala para perceber o lugar histórico e social do
sujeito na desconstrução da ideia do sujeito universal, a necessidade de uma investigação
interseccional proposta pelo feminismo negro para denunciar os diferentes níveis de
opressão, da decolonização das formas de representação... 1 Além de centenas de
trabalhos científicos publicados recentemente, as autoras feministas apresentam um novo
panorama acadêmico, reivindicado esses elementos tangenciados à um segundo plano na
história.
Tais trabalhos incitam para além da sensibilidade e atenção ao “despercebido”, a
necessidade de deslocamentos e processos de alteridade das pesquisadoras e
pesquisadores. Há um importante alerta do poder que move a estrutura institucional do
conhecimento – não só exigindo mas apresentando mudanças em sua construção.
Em seu texto, por exemplo, tendo em vista que os processos inquisitórios foram
realizados de forma criminosa, Silvia Federici passa a se referir as mulheres que
enfrentaram esses julgamentos de feitiçarias não mais como “acusadas” mas como
“vítimas”. Parece ser uma mudança simples, mas há uma nova concepção que busca
reparar erros históricos cíclicos que permeiam as estruturas sociais até hoje.
Novos indícios de um processo
Retornando ao nosso caso, o problema de Chiara ter sido expulsa da terra
(herdade) que estava sobre o poder da família de Margherita Pazzani é um ponto crucial
1 Ver AKOTIRENE (2018); COLLINS (2017); CRENSHAW (2019); DAVIS (2016); GONZALES (1984); hooks (2019); OYEWÚMI (2017); PEDRO (2005); RIBEIRO (2017).
nesta narrativa, tendo em vista que é a partir deste fato que ocorrem as acusações de
feitiçaria. Abordado brevemente por Ginzburg como uma possibilidade de utilizar a
crença popular da feitiçaria como elemento de defesa dos bens, Silvia Federici,
conterrânea do autor, apresenta uma nova interpretação de elementos importantes que
cruzam a partir desse fato.
Frederici explica que o processo de privatizações das terras comunais no
desenvolvimento embrionário do capitalismo, resultou na dependência de uma classe de
maneira que destitui as principais formas de poder e atividades das mulheres na garantia
de sua autonomia, sociabilidade e proteção junto as outras mulheres. Para a autora é
possível dizer que “as terras comunais também foram o centro da vida social das
mulheres, o lugar onde se reuniam, trocavam notícias, recebiam conselhos e podiam
formar um ponto de vista próprio – autônomo da perspectiva masculina” (FEDERICI,
2019, p. 138).
É esta situação difícil e inconveniente dramatizada por Chiara neste momento do
cercamento das terras comunais. Viver em um território que não é seu não lhe permite
realizar com independência suas atividades. Esses grupos destituídos de autonomia são
enfraquecidos e desarticulados por políticas maiores – sobretudo da Igreja – que
permitiam a sua existência. Assim, passam a viver sob o olhar atento e inquisidor dos
seus próprios vizinhos, em um fator de proximidade e hostilidade que recai sobretudo nas
mulheres.
Jean Delumeau (2016, p. 87) lembra que
entre as pessoas que eram bem conhecidas na aldeia, havia aquele ou aquela
que assistia e que era procurado em caso de doença ou de ferimento porque ele
– ou ela – sabia as fórmulas e as práticas que curam. Essa atividade lhe conferia
poder e autoridade no horizonte de sua notoriedade. Mas tal pessoa era suspeita
para a Igreja porque empregava uma medicina não endossada pelas autoridades
religiosas e universitárias e, se suas receitas fracassavam, ela era acusada pelo
rumor público.
Neste campesinato polarizado pelas privatizações de terra e trabalhos
individualizados, as relações e discussões se encontravam situadas de um lado pela a
opinião pública odiosa e ressentida e do outro pela Igreja, controladora do saber, que
convergiam no processo regulador de caça às bruxas. Federici apresenta que por trás de
muitas acusações de feitiçaria estavam problemas relacionados à inadimplência de
aluguéis, à entrada de animais sem autorização na aldeia ou pedidos de ajuda não
solucionados. “A Igreja, por sua vez, usava a acusação de heresia para atacar toda forma
de insubordinação social e política” (FEDERICI, 2019, p. 73)
O outro aspecto que Ginzburg não menciona é situar Chiara Signorini em um
recorte de gênero – isto é, uma mulher no início do século XVI. Ora, em um período que
a Igreja pregava a submissão da mulher e a Lei Canônica permitia o direito ao marido de
bater em sua esposa (ibidem, p. 53), delinear as diferenças entre os gêneros da vítima e
do padre inquisidor fundamenta ainda mais a discrepância dos “hiatos” entre ambos e
suas relações no processos de tortura e interrogatório.
Isto nos é revelado também com outro indício: no processo contra Chiara haviam
dois homens acusados, seu marido e um frade, que nunca chegaram a ser punidos ou
mesmo interrogados. Na verdade, as acusações lançadas contra Chiara iniciaram como
secundárias no processo aberto contra o frade servita Bernadino de Castel Martino.
Bernadino havia sido acusado de recorrer a feitiçaria para curar Margherita,
segundo testemunhos tal frade “não desprezava à ajuda de estatuetas de cera”
(GINZBURG 2016, p.18) além de realizar exorcismos com “um grupo de mulheres
reconhecidamente endemoninhadas” (ibidem, p.18).
É a partir da citação desse grupo de mulheres e de um relato do irmão de
Margherita que o nome de Chiara aparece e de coadjuvante passa a protagonizar o caso.
Os testemunhos contra o frade Bernadino seguiram até dias antes da pena final assumida
por Chiara. Nos outros documentos pesquisados por Ginzburg, não há mais nenhuma
referência ou continuação das acusações contra o frade acusado de heresia.
Se Ginzburg afirma que há uma busca de comoção por elementos de uma piedade
popular, a forma em que se deu o encerramento do caso revela uma outra face da
expectativa pública: a punição de Chiara – mesmo que ela não tenha sido queimada na
fogueira. Mas a sua prisão perpétua é suficiente para que o litígio seja dado por encerrado,
e os demais envolvidos – todos homens - não só sejam “absolvidos”, como ao lhes relegar,
é retirado qualquer responsabilidade ou culpa.
A “bruxa” presa assume o poder do controle da Igreja e, neste contexto, satisfaz o
desejo público dos envolvidos na ocorrência. A mulher presa ou queimada é a reposta
esperada por todos os movimentos nesses inquéritos guiados com decisões previamente
estabelecidas pois este é o seu principal objetivo – camuflados por uma cortina religiosa,
que apresenta o feminino como misterioso e perigoso.
Como lembra Federici (2019, p. 83), “um dos aspectos mais significativos do
movimento herético é a elevada posição social que este designou às mulheres”. Nas seitas
hereges, as mulheres exerciam os mesmos direitos que os homens além de manter seu
trabalho fora do controle e subordinação masculina e monástica. No entanto, a partir da
catástrofe demográfica produzida pela Peste Negra, as coisas “mudaram drasticamente
logo que o controle das mulheres sobre a reprodução começou a ser percebido como uma
ameaça à estabilidade econômica e social” (ibidem, p. 85).
Diversos autores apontam a perseguição seletiva às mulheres, de modo que
“estivessem mais presentes na história da heresia que em qualquer outro aspecto da vida
medieval” (ibidem, p. 84), como fica evidente nos diversos tratados de demonologia ou
estatutos sinodais que circulavam nos diferentes grupos culturais. Estes processos
marcam uma
transição da perseguição à heresia para a caça às bruxas, [em que] a figura do
herege se tornou, cada vez mais, a de uma mulher, de forma que, no início do
século XV, a bruxa se transformou no principal alvo da perseguição aos hereges
(ibidem, p. 86)
Em o Martelo das Feiticeiras, famoso manual de combate a heresia publicado em
1486, existia um capítulo inteiro destinado a acusar como as parteiras/feiticeiras infligiam
os maiores males às crianças em seu nascimento – algumas inclusive acusadas de
provocar o óbito de crianças natirmortas, já que, no imaginário coletivo, Satã exigia que
crianças morressem sem batismo cristão (DELUMEAU, 2016).
No julgamento de Chiara, o padre-vigário conduz diversos interrogatórios
tentando a confissão de que ela tenha oferecido a alma de seus filhos ao demônio. Em um
testemunho, uma antiga patroa declara que “não quis admitir Chiara em sua propriedade
como colona [...] temendo que enfeitiçasse sua filha” ( GINZBURG, 2016, p.21)
Na suspeita e no medo popular criado pela Igreja sobre essas profissionais,
classificadas como feiticeiras ou abortadeiras em potencial, não demorou muito que o
Estado regulamentasse a profissão de parteiras e curandeiras, passando a ser realizada
principalmente por homens. Sobre o cruzamento do discurso de acusações religiosas e de
condições de higiene, essa ordem possibilitou que além do regimento dos ofícios, a Igreja
e o Estado passassem a ter controle e domínio completo nas decisões sobre o corpo
feminino, sobretudo no que referia ao processo de reprodução.
Tal processo ignorado por Marx em sua análise ao capitalismo, é apresentado por
Federici como uma das principais ferramentas usada por essa nova ordem econômica para
sujeitar o corpo feminino como uma máquina reprodutora de mão de obra. A autora
apresenta como essas novas políticas de biopoder que constituem o surgimento do
capitalismo estão intrinsicamente ligadas ao racismo e sexismo, fundamentado profundas
diferenças entre gênero, classe e raça.
Camponesa, mulher, acusada de praticar curas e sortilégios através de
encantamentos, malvista por seus patrões entre lutas trabalhistas e territoriais, Chiara
dramatiza enquanto vítima de uma das mais terríveis políticas de perseguição e
extermínio do “Outro” que sustentam ainda hoje o modelo capitalista, através de novas
nomenclaturas e agentes. Se Ginzburg conclui que o caso Chiara, mesmo nos seus
aspectos irredutivelmente individuais, assume importantes contribuições metodológicas,
de certo podemos afirmar que, nesta perspectiva, também assume uma nova forma
paradigmática feminista.
Considerações Finais
A proposta aqui realizada de reinterpretar a análise do caso Chiara feita por
Ginzburg teve por principal objetivo perceber como os novos trabalhos realizados por
autoras feministas podem contribuir de forma decisiva nas análises dos mais diversos
trabalhos acadêmicos das diferentes áreas de conhecimento, destacando, neste caso, o
trabalho de Silvia Federici pela aproximação temática.
Em sua própria obra, Federici traz importantes críticas ao trabalho de Ginzburg e
de outros autores homens que estudaram o fenômeno político da caça às bruxas. Ao
enquadrar as discussões no campo do imaginário, qualificando por exemplo as orgias
associadas ao sabá como alucinações de mulheres pobres, ele mantém a centralização de
culpa nas vítimas e ignora o fato de que quem discutiu exaustivamente essas
“alucinações” foi na verdade uma elite europeia masculina que dizia acreditar nelas.
Nessas políticas de biopoder, termo cunhado por Foucault para descrever o controle
estatal do corpo dos indivíduos, os regimentos sobre o corpo da mulher sempre utilizaram
de uma culpabilização da vítima para justificar sua penalidade. É deste modo que
investigar o quadro psicológico de mulheres acusadas de bruxaria equivale igualmente
nos dias atuais a famosa indagação “com que roupa estava?” feita normalmente às
vítimas de estupro.
A proposição teórica feita no título deste artigo sobre um paradigma indiciário
feminista não busca enquadrar as produções intelectuais feministas dentro de uma
metodologia histórica machocentrada, sem perceber tais conhecimentos em seus níveis
questionadores. Trata-se apenas de um “trocadilho” de palavras para classificar os pontos
de relações entre a obras comparadas, por usarem temas e documentos próximos em
diferentes perspectivas.
Foi apresentado apenas um recorte de alguns conceitos da obra de Federici que
possibilitassem a interpretação do caso Chiara a partir desses elementos. Em seu livro,
Federici desenvolve com mais aprofundamento uma análise surpreendente das relações
entre o capitalismo, colonialismo e ideologias religiosas, sendo um aporte elementar para
perceber ainda hoje como os discursos racistas, machistas e misóginos são fundamentados
por diversas esferas sociais, que, assim como no início da Idade Moderna, permitiram a
morte de inúmeras mulheres em nome de uma ordem.
Referências
AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? São Paulo: Letramento, 2018.
COLLINS, Patricia Hill Colins. “Se perdeu na tradução? Feminismo negro,
interseccionalidade e política emancipatória”. Parágrafo, v. 5, n.1, jan/jun 2017, pp. 6-
17.
CRENSHAW, Kimberlé. “Documento para o encontro de especialistas em aspectos
da discriminação racial relativos ao gênero”. Rev. Estud. Fem. 2002, vol.10, n.1,
pp.171-188
DAVIS, Ângela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São
Paulo, SP: Companhia de Bolso, 2009.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São
Paulo, SP: Elefante, 2017.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo, SP:
Companhia das Letras, 2016.
GONZALES, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais
Hoje, Anpocs, 1984, pp. 223-244.
hooks, bell. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019.
OYEWÙMI, Oyèronké. La invención de la mujeres. Una perspectiva africana sobre los
discursos occidentales del género. Colombia: Astrea, 2017.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte (MG): Letramento, 112
páginas, 2017.
SCOTT, Joan Wallach. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação
& Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2,jul./dez. 1995, pp. 71-99.