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    DILEMAS DOS ESTUDOSTNICOS NORTE-AMERICANOS:MULTICULTURALISMO IDENTITRIO,COLONIZAO DISCIPLINAR EEPISTEMOLOGIAS DESCOLONIAIS

    Ramn GrosfoguelTraduo: Flvia Gouveia

    Os estudos tnicos nos Estados Unidos constituem umespao contraditrio que condensa posies rivais divi-didas, atualmente, entre dois discursos hegemnicos(multiculturalismo identitrio e colonizao disciplinar)e um contra-hegemnico (epistemologias descoloniais).

    diferena de outras partes do mundo, nos Estados Unidos os estudos

    tnicos surgem como parte do movimento de direitos civis das minoriasdiscriminadas. No final dos anos 1960 e incio dos 1970, ocorreramvrias greves estudantis e ocupaes de universidades, organizadas pelasminorias discriminadas. Esses movimentos conduziram criao de estu-dos afro-americanos, portorriquenhos, chicanos (estadunidenses de ori-gem mexicana), asiticos e indgenas atravs de todo o pas. Tal insur-gncia epistmica foi fundamental para abrir espaos a professoresprovenientes de grupos etno-raciais discriminados e epistemologias no-ocidentais, no que at aquele momento eram universidades monopoliza-das por professores e estudantes brancos e epistemologias eurocentradasque privilegiam a ego-poltica do conhecimento (1) .Se a epistemologia eurocntrica se caracteriza no apenas por privilegiarum padro de pensamento ocidental mas tambm por estudar o outrocomo objeto e no como sujeito que produz conhecimentos (encobrindo,ao mesmo tempo, a geopoltica e a corpo-poltica do conhecimento, a par-tir das quais pensam os pensadores e intelectuais acadmicos brancos), aentrada de professores de cor, com os programas de ao afirmativa e acriao de programas de estudos tnicos dirigidos a estudar os problemasque confrontam as minorias discriminadas, constituiu uma mudanaimportante na produo de conhecimentos acadmicos. Muitos dos pro-fessores das minorias discriminadas daquela poca (final dos anos 1960 edcada de 1970) eram intelectuais ativistas que privilegiavam a geopol-tica do conhecimento e a corpo-polt ica do conhecimento sobre a ego-poltica do conhecimento. Pela primeira vez em um espao universitrioocidental se rompe com a dicotomia sujeito-objeto da epistemologia car-

    tesiana. Em vez de um sujeito branco estudando sujeitos no-brancoscomo objetos do conhecimento, assumindo-se a si mesmo como um obser-vador neutro no situado em nenhum espao nem corpo (ego-poltica doconhecimento), o que lhe permite portanto reclamar uma falsa objetivi-dade e neutralidade epistmica, temos a nova situao de sujeitos das mino-rias discriminadas estudando a si mesmos como sujeitos que pensam e pro-duzem conhecimentos a partir de corpos e espaos subalternizados einferiorizados (geopoltica e corpo-poltica do conhecimento) pela epis-temologia racista e o poder ocidental. exagero dizer que seus trabalhosquestionaram a viso hegemnica branca acerca das minorias discriminadas

    que se concentravam em tornar estes ltimos responsveis pela marglizao e pobreza da sociedade norte-americana (paradigmas da culda pobreza e a modernizao), encobrindo o seu racismo (2). Isso apenas provocou o racismo epistmico, que atribui e reconhece a proo de teoria aos sujeitos ocidentais brancos enquanto os no-branproduzem folclore, mitologia ou cultura mas no conhecimento de i

    para igual com o ocidente, mas abriu um potencial para a descolonizado conhecimeto ao desafiar a ego-poltica do conhecimento cartesdas cincias ocidentais, opondo-lhe a geopoltica e a corpo-polticconhecimento dos sujeitos subalternos. Digo potencial porque tal pcesso descolonial no est terminado e enfrenta vrios obstculos. Etrabalho busca identificar os obstculos que ainda se confrontam nos edos tnicos, mas antes necessrio esclarecer alguns conceitos indispeveis discusso.

    RACISMO EPISTMICO O racismo epistmico um dos racismos mais isibilizados no sistema-mundo capitalista/patriarcal/ moderno/ colon(1). O racismo em nvel social, poltico e econmico muito mais recon

    cido e visvel que o racismo epistemolgico. Este ltimo opera privilegiaas polticas identitrias (identity politics) dos brancos ocidentais, ou seja, adio de pensamento e pensadores dos homens ocidentais (que quase nuinclui as mulheres) considerada como a nica legtima para a produconhecimentos e como a nica com capacidade de acesso universidad verdade. O racismo epistmico considera os conhecimentos no-ocitais como inferiores aos conhecimentos ocidentais. Se observarmos o c

    junto de pensadores que se valem das disciplinas acadmicas, vemostodas as disciplinas, sem exceo, privilegiam os pensadores e teorias ocidtais, sobretudo aquelas dos homens europeus e/ou euro-norte-americaEssas identity politicshegemnicas so to poderosas e to normalizadaso discurso de objetividade e neutralidade da ego-poltica do conhmento das cincias humanas que quando se pensa em identity politiassume imediatamente como senso comum que se trata das minoriascriminadas. De fato, sem negar a existncia de identity politicsentre setdas minorias discriminadas, as identity politicshegemnicas do disceurocntrico utilizam esse discurso identitrio racista para descartar interveno crtica proveniente de epistemologias outras (3). O mitoentretanto subjaz academia o discurso cientificista da objetividadneutralidade que esconde o locusde enuciao, ou seja, quem fala e a tir de qual corpo e espao epistmico nas relaes de poder se fala (4) Smito da ego-poltica do conhecimento (que na realidade sempre fala a tir de um corpo masculino branco e uma geopoltica do conhecimento ecentrada) se desautorizam as vozes crticas provenientes dos pensadoregrupos subalternos inferiorizados pelo racismo epistmico hegemnico.

    epistemologia tem cor, como bem destaca o filsofo africano EmmaChukwudi Eze (5),ento a epistemologia eurocentrada dominante nas ccias sociais tambm tem. A construo desta ltima como superior e aresto do mundo como inferiores forma parte inerente do racismo epistelgico imperante no sistema-mundo h mais de quinhentos anos.O privilgio epistmico dos brancos foi consagrado e normalizado cocolonizao das Amricas no final do sculo XV. Desde renomear o mucom a cosmologia crist (Europa, frica, sia e, mais tarde, Amrica), caterizando todo conhecimento ou saber no-cristo como produto do denio, at assumir, a partir de seu provincianismo europeu, que somente

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    tradio greco-romana, passando pelo renascimento, o i luminismo e ascincias ocidentais, que se pode atingir a verdade e universalidade,inferiorizando todas as tradies outras (que no sculo XVI foram carac-terizadas como brbaras, convertidas no sculo XIX em primitivas, nosculo XX em subdesenvolvidas e no incio do sculo XXI em antidemo-crticas), o privilgio epistmico das indentity politicsbrancas eurocentra-

    das foi normalizado ao ponto invisibilizar-se como identity politicshegem-nicas. Por isso os estudos tnicos, desde sua formao at fins dos anossessenta nos Estados Unidos, foram sempre objeto de ataque por parte doracismo epistmico das disciplinas das cincias humanas ocidentais (cin-cias sociais e humanidades), argumentando a inferioridade, parcialidade, efalta de objetividade de seus saberes e da produo de conhecimentos.

    IDENTITY POLITICS Frente s identity politicshegemnicas que sempreprivilegiaram a beleza, conhecimentos, tradies, espiritualidades e costu-mes brancos, europeus, cristos e ocidentais, inferiorizando e subalterni-zando a beleza, conhecimentos, tradies, espiritualidades e costumesno-europeus, no-cristos e no-ocidentais, os sujeitos discriminados/

    inferiorizados por esses discursos hegemnicos desenvolveram suas pr-prias identity politicsem reao ao racismo inicial. Esseprocesso foi necessrio como parte de um processo devalorizao de si mesmos em um mundo racista que osinferioriza e desqualifica de sua humanidade. Contudo,esse processo de afirmao identitria tem seus limites sese converte em propostas fundamentalistas que inver-tem os termos binrios do racismo branco/eurocntricohegemnico. Por exemplo, se se assume que os gruposetno/raciais subalternizados (no-brancos) so superio-res e que os dominantes (brancos) so inferiores, o quese faz inverter os termos do racismo branco hegem-nico sem superar o problema de fundo: o racismo, isto, a inferiorizao cultural e/ou biolgica de alguns sereshumanos, elevando outros categoria de superiores (2). Outro exemplo se se aceita, como fazem alguns fundamentalismos islmicos e afrocentris-tas, o discurso eurocntrico hegemnico de que somente a tradio euro-pia natural e inerentemente democrtica, enquanto os outros no-europeus so natural e inerentemente autoritrios, negando discursosdemocrticos e formas de institucionalidade democrtica ao mundo no-ocidental (logicamente, distintas democracia liberal ocidental) e, porconseguinte, apoiando formas de autoritarismo poltico. Isso o quefazem todos os fundamentalismos terceiro-mundistas ao aceitarem a pre-missa eurocntrica de que a nica tradio democrtica a ocidental e,portanto, ao assumirem que a democracia no se aplica sua cultura e s

    suas sociedades, defendendo formas monrquicas ou ditatoriais de auto-ridade poltica. Assim se reproduz um eurocentrismo invertido.

    A balcanizao que se deriva dessas polticas identitrias acaba reprodu-zindo invertidamente o mesmo essencialismo e fundamentalismo do dis-curso hegemnico eurocentrado. Se o fundamentalismo assume sua pr-pria cosmologia e epistemologia como a nica verdadeira e superior,inferiorizando e sem reconhecer igualdade a nenhuma outra, ento oeurocentrismo apenas uma forma de fundamentalismo, seno o funda-mentalismo hegemnico no mundo atualmente. Os fundamentalismosterceiro-mundistas (afrocentristas, islamistas, indigenistas etc), que sur-

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    gem em reao ao fundamentalismo eurocntrico hegemnico, so for-mas subordinadas de fundamentalismo eurocentristas na medida em quedeixam intactas as hierarquias binrias e raciais do fundamentalismoeurocntrico (1). Nos estudos tnicos norte-americanos, lamentavel-mente h uma minoria vociferante de fundamentalistas afro-centristas,indigenistas, asitico-centristas e hispanistas que questionam a validade e

    legitimidade desses programas. Entretanto, felizmente esses grupos souma minoria insignificante, ainda que, infelizmente, os supremacistasbrancos exagerem sua influncia para desprestigiar os departamentos/pro-gramas de estudos tnicos nos Estados Unidos devido a suas agendas decrtica ativa anti-racista e anti-eurocentrista.

    IDENTIDADES NA POLTICA E TRANSMODERNIDADEAs polticas iden-titrias partem de um reducionismo identitrio e culturalista que acabaessencializando e naturalizando as identidades culturais. Nesses projetosidentitrios no h espao ou h uma forte reticncia para grupos cujaorigem etno-racial seja distinta do grupo. Eles normalmente mantmfronteiras identitrias ainda entre os prprios grupos subalternos, im-

    possibilitando o dilogo e as alianas polticas. Em alguns casos acabaminvertendo o racismo hegemnico e reproduzindo umracismo invertido ao fazer do grupo etno-racial subal-terno um grupo cultural e/ou biologicamente superioraos brancos.Muito diferentes das identity politicsso as identidadesna poltica. Estas ltimas se baseiam em projetos tico-epistmicos abertos a todos, no importa a origem etno-racial da pessoa. Por exemplo, os zapatistas no sudoestedo Mxico so um movimento insurgente indgena, pen-sando epistemicamente a partir de epistemologias/cos-mologias amerndias, aberto a todas as pessoas e gruposque apiem e simpatizem com suas propostas polticas.No interior do movimento zapatista h brancos e mesti-

    os. O movimento liderado por Evo Morales na Bolvia um movimentoindgena que pensa e desenvolve uma descolonizao do Estado brancoboliviano a partir da cosmologia do Ayll das comunidades aymaras. Essemovimento possui entre seus lderes e em suas filas militantes brancos e mes-tios que assumiram o projeto poltico tico-epistmico Aymara. Outroexemplo so as prticas espirituais africanas nas Amricas que, mesmo par-tindo de cosmologias/epistemologias de origem africana (yoruba, bantetc), esto tambm abertas participao de todos. Isso quer dizer que noh correspondncia entre a identidade tico-epistmica do projeto (nestecaso de origem indgena ou africana) e a identidade tnica/racial dos indiv-duos que militam em tais movimentos. Por conseguinte, de forma muito

    diferente das identity politics, no se exclui nada que apie o projeto porrazes de origem tnico-racial.Se o eurocentrismo busca desqualificar essas epistemologias alternadas parainferioriz-las, subalterniz-las e desautoriz-las e, desse modo, construirum mundo de pensamento nico que no permite pensar outros mun-dos possveis mais para alm da mundializao capitalista neoliberal brancamasculina, o projeto que propomos aqui seria um que transcenda o mono-plio epistmico eurocntrico do sistema-mundo moderno/colonial. Reco-nhecer que existe diverdidade epistmica no mundo apresenta um desafio modernidade/colonialidade do mundo existente. J no possvel construir

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    O MOVIMENTOLIDERADO POREVO MORALESNA BOLVIA

    UM MOVIMENTOINDGENA QUE

    PENSA EDESENVOLVE...

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    a partir de uma s epistemologia um desenho global como soluo nicaaos problemas do mundo, seja da esquerda (socialismo, comunismo etc) ouda direita (desenvolvimentismo, neoliberalismo, democracia liberal etc). Apartir dessa diversidade epistmica h propostas anticapitalistas, antipa-triarcais e antiimperiais diversas, que aprensentam diferentes maneiras deenfrentar e solucionar os problemas produzidos pelas relaes de poder

    sexuais, raciais, espirituais, lingsticas, de gnero e de classe no presentesistema-mundo capitalista/patriarcal moderno/colonial (1). Essa diversi-dade de propostas de epistemologias outras subalternizadas e silenciadaspela epistemologia eurocntrica aprensentaria uma maneira de transcendera modernidade eurocentrada para alm das propostas de culminar namodernidade (6) ou de desenvolver a ps-modernidade. Essas ltimas cons-tituem crticas eurocntricas ao eurocentrismo (4).Trata-se, portanto, de desenvolver o que o filsofo de liberao EnriqueDussel (7) chama transmodernidade como projeto para culminar no namodernidade nem na ps-modernidade, mas no projeto incompleto e ina-cabado da descolonizao. Trans aqui se usa no sentido de mais alm damodernidade. Na transmodernidade h tantas propostas de liberao da

    mulher e da democracia quantas epistemologias h no mundo. As feminis-tas da diferena parisienses no podem impor suas solues e maneiras delutar contra o patriarcado s feministas islmicas no Ir, s feministas ind-genas Zapatistas no Mxico ou s feministas negras nos Estados Unidos. Damesma forma, o mundo ocidental no pode impor seu conceito liberal dedemocracia s formas de democracia indgena, islmicas ou africanas. Porexemplo, o zapatismo de cosmologias tojolabales redefine a democraciacomo mandar obedecendo e sua institucionalidade prtica constitui oscaracis. Conceitos muito distintos democracia ocidental em que o quemanda no obedece e o que obedece no manda e cuja institucionalidadeprtica so os parlamentos ou assemblias nacionais.

    A transmodernidade no um relativismo de everything goespois se tratado pensamento crtico anticapitalista, antipatriarcal, antieurocntrico(nunca antieuropeu) e antiimperial que nasce da diversidade espistmicado mundo. Para o pensamento descolonial no h qualquer epistemolo-gia que possa reclamar o monoplio sobre o pensamento crtico no pla-neta, como pretendeu o imperialismo da epistemologia acidental no sis-tema-mundo nos ltimos 500 anos. A proposta que fao aqui redefiniros departamentos/programas de estudos tnicos como estudos descolo-niais transmodernos.

    OS ESTUDOS TNICOS NORTE-AMERICANOS Uma vez esclarecidos osconceitos antes mencionados, passemos agora discusso pertinente aeste trabalho. Os estudos tnicos norte-americanos debatem-se atual-mente entre dois problemas da colonialidade do poder global: 1) as iden-

    tity politicsdo multiculturalismo liberal norte-americano; e 2) a coloniza-o disciplinar das cincias ocidentais sobre tais espaos.Comecemos pelo primeiro ponto. A organizao de departamentos e pro-gramas de estudos tnicos base de identidades etno/raciais (afro-america-nos, asitico-americanos, latinos, indgenas etc) foi um dos legados maisperniciosos dos estudos tnicos norte-americanos a contribuir para repro-duzir o pior das identity politics. Em vez de estudos descoloniais, as identitypoliticslevam a reproduzir estudos coloniais que se manifestam em duas ten-dncias principais: uma baseada no multiculturalismo lightliberal brit-nico-americano e outra baseada na absolutizao chauvinista e nacionalista

    de sua prpria identidade etno-racial em detrimento do dilogo e das alas com outros grupos. O multiculturalismo liberal hegemnico permque cada grupo discriminado tenha seu espao e celebre sua identidade/tura sempre que no questionar as hierarquias etno-raciais do podesupremacia branca e deixe o status quo intacto. Assim privilegiam-se amas elites dos grupos discriminados/inferiorizados outorgando-lhes

    espao com recursos como tokens, model minorityou vitrines simblique dem uma maquiagem multicultural ao poder branco, enquanmaioria dessas populaes vtimas do racismo crescente vive a colonialiddo poder quotidianamente. Condoleeza Rice um dos exemplos mais exmos dessa poltica. Essa mulher afro-norte-americana umas das arquitda poltica exterior racista do imprio euro-norte-americano (elites bracapitalistas) no Oriente Mdio e no Iraque, dando uma aparncia aracista e multicultural ao imprio.Por outro lado, os estudos tnicos que absolutizam e privilegiam as idtity politicsde seu prprio grupo etno/racial os levam a suspeitar e veem competncia com os outros grupos tnicos/raciais, includos aquque compartilham uma situao similar de discriminao etno/ra

    Assim, os estudos tnicos organizados por meio de identidades tnicasbam: 1) celebrando sua prpria identidade, deixando intactas as hierarqetno/raciais; ou 2) enfatizando em seu prprio grupo tnico-racial, foco em seus prprios umbigos e, portanto, concebendo-se em compecia constante com os outros grupos igualmente discriminados e conbuindo para reproduzir o divide e vencers que igualmente manintacto o status quo das hierarquias etno/raciais. Ambas as posies das idtity politics(a multicultural identitria liberal e a identitria militanterminam em cumplicidade com as hierarquias etno/raciais da suprembranca ao deixarem de lado o status quo.

    A outra tendncia da colonialidade do saber (8) a colonizao disciplacadmica dos estudos tnicos. A colonizao disciplinar ocorre quanddividem os campos do conhecimento dentro dos estudos tnicos baseaem especialidades disciplinares das cincias humanas (cincias sociahumanidades) e se fazem estudos tnicos sobre e no dos e junto grupos tnicos/ raciais. Em vez de produzir conhecimentos a partir do psamento crtico que os sujeitos discriminados/inferiorizados produzemdisciplinas impem o padro de pensamento e a epistemologia ocidentaponto zero (9) o ponto de vista que no se assume como ponto de vprprio, da perspectiva que se assume como o olho de Deus da filosocidental moderna desde Descartes at nossos dias nas cincias humocidentais. Isso afetou a produo de conhecimentos nos departamtos/programas de estudos tnicos porque em vez de produzir conhecimtos dos e com os grupos etno-raciais dirigidos a sua liberao, privilese a produo de conhecimentos sobre os outros seguindo a trad

    epistemolgica colonial que vai desde os missionrios cristos do sXVI at os cientistas sociais de nossos dias e que fazem do sujeito discrnado/inferiorizado um objeto de estudo para dominar e explorar. engendra as seguintes perguntas: Conhecimento para que e para quempossvel produzir conhecimentos neutros em uma sociedade divididatermos raciais, sexuais, espirituais e de classe? Se a epistemologia no aptem cor mas tambm tem sexualidade, gnero, espiritualidade cosmolgclasse etc, no possvel assumir o mito ou a falsa premissa da neutralide objetividade epistemolgica (o ponto zero da ego-poltica do conhmento) como pretendem as cincias ocidentais.

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    Por outro lado, a corrente que pretende fazer dos estudos tnicos estudosinterdisciplinares reproduz os mesmos problemas mencionados antes. Ainterdisciplinaridade mantm intactas as identidades disciplinares (com seupadro e epistemologia eurocentrada) e somente se abre ao dilogo interdis-ciplinar no interior da epistemologia ocidental, fechando-se ao dilogotransmoderno entre diversas epistemologias. Se pensamos no a partir das

    disciplinas acadmicas mas a partir da transdisciplinaridade, no sentidode ultrapassar os saberes disciplinares, ento o projeto dos estudos tnicos seabriria diversidade epistemolgica em lugar dos atuais monotopismo emonlogo da epistemologia eurocntrica ocidental dominante que noadmite nenhuma outra epistemologia como espao de produo de pensa-mento crtico nem cientfico. A colonizao disciplinar dos estudos tnicosconstitui uma colonizao epistmica j que as disciplinas acadmicas pro-vilegiam o padro epistmico eurocentrado.Com isso no pretendo descartar trabalhos crticos importantes e teis pro-duzidos pelos campos disciplinares da academia ocidental. Estou simples-mente questionando a pertinncia de fazer departamentos/programas deestudos tnicos se simplesmente restringirem-se a fazer sociologia de raa e

    etnicidade, antropologia das identidades etno/raciais, histria sobre (nodos e com os) negros, economia da insero laboral dos indgenas etc.Colonizar os estudos tnicos pelas disciplinas ocidentais no constitui nadainovador no campo do conhecimento. Pode-se faz-lo j a partir das respec-tivas disciplinas acadmicas e no faltam programas nem departamentos deestudos tnicos para isso. Muito diferente seria se os programas ou departa-mentos de estudos tnicos se abrissem transmodernidade, isto , diversi-dade epistmica do mundo, e se redefinissem como estudos descoloniaistransmodernos, propondo pensar a partir dos e com os outros subal-ternizados e inferiorizados pela modernidade eurocentrada e oferecendodefinir suas perguntas, seus problemas e seus dilemas intelectuais dos ecom os prprios grupos discriminados. Isso introduziria uma metodolo-gia descolonial muito diferente da metodologia das cincias sociais e dashumanidades (10). Implicaria tambm um dilogo transmoderno entrediversos projetos tico-epistmicos e uma organizao temtica no interiordos departamentos/programas de estudos tnicos baseados em problemas(racismo, sexismo, xenofobia, cristianocentrismo, epistemologias outras,eurocentrismo etc) e no com base em identidades etno/raciais (negros,indgenas, asiticos etc) nem em disciplinas coloniais ocidentais (sociologia,antropologia, histria, cincias polticas, economia etc). Os estudos tnicosredefinidos como estudos descoloniais transmodernos dariam uma con-tribuio importantssima no somente ao saber acadmico seno libera-o como projeto de descolonizao (epistmica, social, poltica, econ-mica e espiritual) dos grupos oprimidos e explorados pelo racismocapitalista/patriarcal ocidental do sistema-mundo moderno/colonial (11).

    Ramn Grosfoguel professor no Departamento de Estudos tnicos da Universidade da Cali-frnia, em Berkeley (EUA).

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