Artigo - Jessé de Souza, a voz da ralé brasileira.

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Jessé de Souza, a voz da “ralé” brasileira. Francisco Augusto – Cientista Social [email protected] Natal, 07 de Maio de 2010. Miséria é miséria em qualquer canto Riquezas são diferentes Índio, mulato, preto, branco Miséria é miséria em qualquer canto Miséria, Titãs O professor Jessé de Souza esteve recentemente em Natal-RN, apresentando seus novos livros aos alunos do Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais e foi capaz em pouco mais de uma hora de conferência, de provocar e manifestar sua imensa preocupação com o que nas Ciências Sociais ele denomina de “Sociologia da Dominação Brasileira”. Jessé José Freire de Souza é um sociólogo com um amplo currículo dedicado especialmente à discussão de questões ligadas à pobreza brasileira. Ele possui formação básica em Direito (UNB - 1981), mas dedicou-se em seguida ao mestrado em Sociologia (UNB - 1986), e doutorado na Alemanha (Universität Heidelberg - 1991) no mesmo curso, conquistando a livre docência naquele mesmo país alguns anos depois, pela Universität Flensburg (2006). Suas publicações e organizações de trabalhos já chegam a 21 livros dedicados às teorias sociais clássicas, ao pensamento social brasileiro, à desigualdade e às classes sociais e especialmente às questões da pobreza e miséria. Atualmente seus estudos são desenvolvidos na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), onde coordena o Centro de Pesquisa sobre a

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Artigo escrito a partir da conferência proferida pelo Prof. Jessé de Souza em sua visita ao CCHLA da UFRN.Maio - 2010

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Jessé de Souza, a voz da “ralé” brasileira.

Francisco Augusto – Cientista Social

[email protected]

Natal, 07 de Maio de 2010.

Miséria é miséria em qualquer cantoRiquezas são diferentes

Índio, mulato, preto, brancoMiséria é miséria em qualquer canto

Miséria, Titãs

O professor Jessé de Souza esteve recentemente em Natal-RN, apresentando seus novos

livros aos alunos do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e foi capaz em pouco

mais de uma hora de conferência, de provocar e manifestar sua imensa preocupação com o que

nas Ciências Sociais ele denomina de “Sociologia da Dominação Brasileira”.

Jessé José Freire de Souza é um sociólogo com um amplo currículo dedicado

especialmente à discussão de questões ligadas à pobreza brasileira. Ele possui formação básica

em Direito (UNB - 1981), mas dedicou-se em seguida ao mestrado em Sociologia (UNB -

1986), e doutorado na Alemanha (Universität Heidelberg - 1991) no mesmo curso,

conquistando a livre docência naquele mesmo país alguns anos depois, pela Universität

Flensburg (2006). Suas publicações e organizações de trabalhos já chegam a 21 livros dedicados

às teorias sociais clássicas, ao pensamento social brasileiro, à desigualdade e às classes sociais e

especialmente às questões da pobreza e miséria. Atualmente seus estudos são desenvolvidos na

Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), onde coordena o Centro de Pesquisa sobre a

Desigualdade Social e viajando por todo o mundo ministrando cursos e conferências.

O professor Jessé de Souza foi assistido por um público de aproximadamente 200

pessoas em um dos auditórios da Centro de Ciências Humanas Letras e Artes (CCHLA) da

UFRN. Alunos e professores de diversas áreas trouxeram seus livros para serem autografados e

o aguardaram ansiosamente para a conferência.

Ao iniciar sua conferência, Jessé de Souza destacou que não a faria de modo tradicional,

onde geralmente fala-se de modo amplo sobre tudo o que estudou e produziu de forma

retrospectiva, mas foi enfático ao afirmar: “Eu falarei daquilo que sempre fui e sou contra”, para

que depois pudéssemos compreender a que modelo de pensamento social ele é favorável.

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Jessé de Souza realiza atualmente duas pesquisas que se complementam: a primeira é

um estudo nacional referente à “ralé” de despossuídos brasileiros, com o objetivo de ampliar a

discussão sobre as causas e conseqüências da reprodução da exclusão social no Brasil, na

perspectiva de distanciar-se de termos economicistas e se diferenciar dos trabalhos tradicionais

sobre a mesma temática; a segunda pesquisa está ligada aos “trabalhadores” brasileiros,

destinada a compreender o universo daqueles que são despossuídos de condições de ascensão

social. As duas pesquisas complementam-se e oferecem bases para se perceber tanto a

reprodução das mudanças ocorridas nas classes sociais brasileiras, como para revelar os passos

iniciais para a construção de uma nova sociologia que reflita de forma crítica a modernidade

periférica brasileira, que a seu ver, é marcada por numerosos mitos.

“Eu sou contra. Contra a tradição hegemônica do pensamento social: aquela que pega o

mito brasileiro e nega as virtudes do corpo. Isto é problemático, porque se vive [na sociologia]

um conto de fadas para adultos”. Sua crítica central refere-se à grande parte da teoria

sociológica que por muitos anos tentou explicar o processo de nascimento e desenvolvimento da

sociedade brasileira. Segundo o pesquisador, a tradição hegemônica da sociologia foi capaz de

em muitas décadas, construir o que ele chama de “mito” da sociedade brasileira. O exemplo que

Jessé de Souza utiliza é o do pensamento que se desenvolveu a partir de Gilberto Freyre.

Segundo Jessé, a teoria social foi capaz de legitimar o mito de formação da sociedade

brasileira que foi institucionalizado ao longo do tempo pelo campo da política. A “ideologia

brasileira é marcada pela idéia de que a política se transformou em um ninho de corrupção”,

afirma o sociólogo, e explica que o grande desafio da sociologia atual é reverter o engano que se

tem de culpar exclusivamente a corrupção pelas conseqüências negativas do desenvolvimento

brasileiro. Jessé continua enfatizando que “o grande problema da ciência ideológica é que ela

legitimou o mito brasileiro e o disseminou, unificando o discurso entre o dominador e o

dominado”. Segundo ele, a sociedade brasileira recebeu sem nenhum questionamento mais

profundo a idéia que vincula as mazelas sociais do Brasil à corrupção política. A “Sociologia da

dominação” é uma ciência que reproduziu a idéia cômoda de “ser a corrupção o centro das

questões nacionais”, que eufemiza a miséria brasileira e “não mostra que a desigualdade social é

a questão principal para se compreender o Brasil”, afirma Jessé.

Segundo suas pesquisas realizadas em duas classes sociais distintas, a ralé e os ricos,

Jessé pôde perceber o quanto o discurso da corrupção ou do Estado corrupto é uma visão

distorcida e interessada, configurando-se como violência simbólica por abstrair a possibilidade

de se perceber as verdadeiras causas das desigualdades no Brasil. É possível se perceber a

pobreza, mas a sociologia da dominação desvirtuou as verdadeiras causas que permitiriam

perceber todos os conflitos sociais reais.

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“Além da piada “a ralé”, outra piada é “a nova classe média”, quando se refere aos

estudos mais atuais sobre o desenvolvimento brasileiro e surgimento de uma classe média mais

satisfeita com o trabalho e capaz de ascensões sociais destacáveis. Neste mesmo sentido, a

sociologia criou o mito da “Nova Classe Média”, legitimando uma realidade onde uma classe

que se denomina e é tratada pela Sociologia como “média”, é segundo Jessé “uma classe que

sofre, trabalha 14 horas por dia, não tem férias, não tem lazer, está endividada com o banco por

10 anos e pensa que é livre. A sociologia da dominação não é capaz de mostrar que nesta “Nova

Classe Média” o capitalismo continua se alimentando do sangue de quem trabalha. Como então

falar de uma Nova Classe Média?”.

Quem então, segundo Jessé, é esta “ralé”? É uma grande parte da sociedade brasileira

que foi e ainda é ignorada pelo pensamento social, vítima da reprodução e manutenção causada

por leituras seletivas e interessadas do mundo. Jessé assinala para o equívoco das Ciências

Sociais que sobrerepresenta pelo preconceito de classe que está “maquiado” o olhar para a

pobreza e para a “ralé”.

Um interessante exemplo apresentado pelo sociólogo são dois casos distintos de

realidades que não são compreendidos como merecem. “Numa família rica”, diz Jessé, “uma

criança vê em casa bons exemplos vindos daqueles que ele ama, como ter um pai que lê o jornal

3 horas todos os dias, a criança (salvo exceções) chegará à escola aos seis anos como um herói.

Já uma criança que vê o pai trabalhando 10 horas por dia com um carro de mão e diz ao seu

filho: “meu filho, a escola ajudará você a ter uma vida melhor” e ouve como resposta “se a

escola não ajudou você, porque me ajudará?”. São interpretações da realidade desvirtuadas e

legitimadas por interesses de um grupo privilegiado. A voz da “ralé” não recebe atenção, é

rapidamente sufocada por uma série de interpretações equivocadas e com interesses na

manutenção desta realidade.

É por uma compreensão mais fiel à realidade que Jessé de Souza se diz empenhado. A

“ralé” brasileira tornou-se invisível ao longo das décadas. “É uma estupidez ligar os estudos das

classes sociais à renda”, assinalando para outro equívoco da Sociologia, e diz que “um professor

universitário com título de Mestre ou Doutor recebe no sudeste algo em torno de seis mil reais,

e um mecânico da Renault no Rio Grande do Sul recebe um pouco mais do que este valor, mas

cada um vive realidades imensamente distintas”. Como então ligar a compreensão de uma

classe à sua renda? Segundo Jessé, “Fala-se em “classes sociais”, para não se falar de verdade

em Classes Sociais”. Esta é a tendência dos estudos sobre as desigualdades.

A “Sociologia da Dominação” que também desenvolve teorias sobre um novo

capitalismo que surge nos últimos anos, está pautada em fatos distantes da realidade. Ela

desenvolve uma aparente “crítica social”, mas que esconde a manutenção dos privilégios reais.

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No novo capitalismo que se desenvolve fortemente, esta sociologia que se diz crítica, tornou

invisíveis situações de exploração e miséria características do capitalismo tradicional. “Na

Inglaterra a prioridade é contratar funcionários sem passado sindical, que não gostam de política

e não possuem um espírito nacionalista”. Jessé segue afirmando que “o novo capitalismo é onde

o indivíduo está trabalhando em casa, pensa que não tem patrão, trabalha 14 horas por dia, deve

tudo que tem ao banco, e pensa que é livre. A sociologia dominante tornou isso invisível”.

A hipótese defendida por Jessé é de que esta “Nova Classe Média” vive em uma

sociedade perversa, num sistema político que não está preocupado com ela e a mídia contribui

diretamente com a manutenção desta realidade, porque ambos estão pautados nas orientações do

mercado. A “nova classe média” não sabe que é tão escrava quanto a classe trabalhadora.

A corrupção reproduz esta realidade e a ciência (Sociologia Clássica brasileira)

legitima. “Na “ralé” se está abaixo do reconhecimento possível. Para a “ralé” brasileira, existem

políticas públicas extra-oficiais que são mais eficientes que as oficiais. O SUS transforma os

mortos, as vítimas, os pobres em estatísticas, o sistema carcerário apresenta estatísticas e a ralé

torna-se um sujeito apenas com “corpo”, sem nenhuma forma de espírito”. A ciência e a política

dão espaço apenas às questões grandes, estruturais, esquece que por trás dos números estão

seres humanos miseráveis.

O professor Jessé encerra sua conferência afirmando: “Na ralé não existe subjetividade

visível”. “É por esta Sociologia da Dominação que eu sou contra”.