artigo Josenildo

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Renata Carvalho Silva 1 RESUMO: PALAVRAS-CHAVE: História, Cultura, Conceitos, Identidade, Indígena. Inúmeras e significativas foram as reformulações pelas quais as categorias analíticas passaram ao longo do tempo levando à tendência, cada vez maior, de um redirecionamento do olhar e da capacidade interpretativa dos objetos e acontecimentos que comumente nos são dados enquanto realidade. Tais tendências, muito mais do que uma diluição dos dados que dão sentido a experiência do real, nos levam a uma profícua desnaturalização de tais categorias, nos fazendo atentar para o fato de serem essas mesmas categorias, elementos construídos histórica e semanticamente como forma de satisfazer nossos anseios de apreensão de um real possível. Com relação ao fazer historiográfico, essa tendência pode ser observada no abandono de uma perspectiva arqueológica de realidade em que as coisas, ou o próprio real, seriam sempre os mesmos através dos tempos. Abandono mesmo da perspectiva de uma compreensão total do passado, uma vez que do passado só nos é possível apreender vestígios, indícios que nos levam a verdade não como fim em si, mas enquanto inferência, enquanto uma “possibilidade crível” 2 . 1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em História Social (PPGHIS) da Universidade Federal do Maranhão.

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Renata Carvalho Silva[footnoteRef:2] [2: Mestranda do Programa de Ps-graduao em Histria Social (PPGHIS) da Universidade Federal do Maranho.]

RESUMO: PALAVRAS-CHAVE: Histria, Cultura, Conceitos, Identidade, Indgena.

Inmeras e significativas foram as reformulaes pelas quais as categorias analticas passaram ao longo do tempo levando tendncia, cada vez maior, de um redirecionamento do olhar e da capacidade interpretativa dos objetos e acontecimentos que comumente nos so dados enquanto realidade. Tais tendncias, muito mais do que uma diluio dos dados que do sentido a experincia do real, nos levam a uma profcua desnaturalizao de tais categorias, nos fazendo atentar para o fato de serem essas mesmas categorias, elementos construdos histrica e semanticamente como forma de satisfazer nossos anseios de apreenso de um real possvel.Com relao ao fazer historiogrfico, essa tendncia pode ser observada no abandono de uma perspectiva arqueolgica de realidade em que as coisas, ou o prprio real, seriam sempre os mesmos atravs dos tempos. Abandono mesmo da perspectiva de uma compreenso total do passado, uma vez que do passado s nos possvel apreender vestgios, indcios que nos levam a verdade no como fim em si, mas enquanto inferncia, enquanto uma possibilidade crvel [footnoteRef:3]. [3: GINZURG, Carlo. Prefcio edio Italiana. In: O Queijo e os Vermes. So Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 11-26.]

Nesse sentido, dentre as inmeras contribuies metodolgicas, o enfoque ao social, a perspectiva em longa durao e o dilogo com as outras cincias humanas nos parece ter sido as mais significativas da chamada Nouvelle Histoire para a ampliao do horizonte de possibilidades dos historiadores contemporneos. Mais do que isso e levando em considerao as prprias readequaes operadas pela terceira gerao dos Annales, a perspectiva culturalista, com todas as suas indagaes acerca da validade e variabilidade identitria, fizeram emergir questionamentos que veem contribuindo sobremaneira para a construo do saber histrico.

Inmeros foram os debates acerca das reformulaes concernentes prtica do fazer historiogrfico desde sua concepo, fruto da erudio clssica grega, passando pela Diplomtica de Mabillion at o refinamento das provas com a Escola Metdica do XIX [footnoteRef:4] - que em muito refletiram nas mudanas e transformaes no contexto mesmo em que foram produzidos, apontando, dessa forma, para aquela que se tornaria uma das mais significativas reelaboraes na sua escrita e que se operaria entre os franceses dos Annales de incios do XX [footnoteRef:5]. Dentre tantas contribuies metodolgicas, o enfoque ao social, a perspectiva em longa durao e o dilogo com as outras cincias humanas nos parece ter sido as mais significativas da chamada Nouvelle Histoire para a ampliao do horizonte de possibilidades dos historiadores contemporneos. [4: Ver COLLINGWOOD, R. G. A ideia de Histria. Editorial Presena, Lisboa, 1981, p. 34-37 e DOSSE, Franois. A Histria. Bauru, SP: EDUSC, 2003, p. 13-26. ] [5: Ver BURKE, Peter. A Escola dos Annales: a revoluo francesa da historiografia (1929-1989). So Paulo: Unesp, 1991. ]

Nesse sentido, pertinente perceber que tambm essa transio se deveu a anseios de um perodo em transformao e que, portanto, tal demonstrao nos faz atentar para o carter dinmico no s da mudana dos contextos relacionais dos indivduos e sociedades, mas tambm, e por seu reflexo, da prpria atividade da escrita da Histria. Logo, da mesma forma como os horrores e desesperanas da guerra levaram nossos contemporneos a repensarem as estruturas do saber histrico, tambm as aproximaes interdisciplinares e questionamentos surgidos a partir da segunda metade desse mesmo sculo, levariam a uma profunda readequao das bases conceituais em que esta, at ento, se vinha apoiando [footnoteRef:6]. [6: CARDOSO, Ciro Flamarion. Histria e Paradigmas Rivais. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domnios da Histria: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 38-49.]

Portanto, no s torna-se importante perceber as mudanas acionadas quanto tais categorias de anlise, como tambm quanto aos conceitos, at ento, fundamentais para o desenvolvimento de nossa prtica. De todas essas, nenhuma se fez sentir com maior pungncia que aquela operada, nas certezas e pressupostos de cientificidade, pelas teorias lingusticas, literrias e discursivas de fins do sculo XX:Tais proposies viriam pr em xeque assertivas tais como as de verdade e realidade histrica que passariam, ento, a ser percebidas, tais como tantas outras, sob novos aspectos. Terico fundamental para essa nova guiada historiogrfica, Michael Foucault lanaria as bases para a reestruturao desse novo exame, que para alm de uma verdade posta e palpvel do escrito, v na anlise das intencionalidades dos discursos a alternativa para uma melhor apreenso dos vrios contextos sociais. Tal exame passaria, ento, a no mais fixar em categorias estticas a compreenso da totalidade de um real vivido, estando assim, todas elas, encerradas na origem das prticas que as concebem, inventam, e que so fundadas e refundadas nas diferentes pocas [footnoteRef:7]. [7: FOUCAULT, Michael. A Verdade e as Formas Jurdicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 1999, p. 12-15. ]

Seu exame acerca da construo do conceito de conhecimento com base no estudo dos filsofos modernos, nos alerta para a concepo de que o mesmo s pode ser entendido a partir dos embates e das relaes de fora estabelecidos entre aquele que pretende conhecer e aquilo que deve ser conhecido em cada contexto social:Ora, se com base nessa acepo no h mais relao direta entre as coisas e suas denominaes - os conceitos so dados sobre as coisas, a partir delas - h ento uma quebra no entendimento de que a verdade emanaria das coisas, j estaria dada de antemo. A verdade vista, dessa forma, como uma conveno imposta ao objeto, fruto das disputas de poder que determinam as conceituaes, classificaes. Estaria a, ento, a impossibilidade do carter cientfico reivindicado pela Histria? Ao contrrio do que por muito tempo se pensou a resposta claramente no. Para alm do carter ambguo da pretenso de verdade em Histria, j que, a verdade seria uma constante que a cada momento se faz crer, dada a cada momento e em cada lugar e se o passado entendido enquanto alteridade, um outro que se ope a ns, ento, para ns, tal constante no seria produtora de linearidades, mas diferenas adequadas ao tempo e aos sujeitos:Superada a polmica cartesiana, a que se ocupariam ento os vrios campos da Histria? Segundo Paul Veyne com inspirao em Foucault - apreciao da lgica do sentido que dado s verdades em cada perodo, s prticas que determinam os sujeitos e os objetos em cada contexto. Buscar antes no fazer o que /foi feito - das prticas a sua determinao, sua orquestrao: As coisas, os objetos no so seno os correlatos das prticas. A iluso do objeto natural (os governados atravs da histria) dissimula o carter heterogneo das prticas (amimar crianas no administrar fluxos); da todas as confuses dualistas, da, tambm, a iluso de escolha racional. [footnoteRef:8] [8: ___________. Como se Escreve a Histria; Foulcault Revoluciona a Histria. Braslia: Editora da Universidade de Braslia, 1998, p. ]

Sendo assim, as novas tendncias de anlise em Histria Social - pensando-a em um sentido mais amplo, ou seja, uma investigao da variabilidade de relaes estabelecidas entre os homens em sociedade - apontam para os igualmente complexos modelos e conceitos de apreciao. Tais contribuies em muito se devem aos modelos tomados de emprstimo s cincias auxiliares como a sociologia, a antropologia e mesmo de uma filosofia da linguagem. Essa apreciao mais acurada das prticas, toma o exame do social a partir do que o antroplogo Cliford Geertz entende enquanto uma descrio densa, ou seja, atravs das dimenses culturais particulares construdas pelos indivduos, no sentido de buscar uma interpretao dos cdigos e determinantes simblicas e materiais de sociedades historicamente localizadas, os sentidos e significados dinmicos que so empregados reproduo cotidiana de existncia por esses mesmos grupos, uma compreenso da lgica cultural do ponto de vista do outro[footnoteRef:9]. To logo, evidencia-se que apenas nos permitido entender os mecanismos de ao e retrao histricos das sociedades, se estes forem estudados dentro das suas respectivas esferas e estruturas scio-simblicas: [9: Ver GEERTZ, Clifford. Uma Descrio Densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: ____________. A Interpretao das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 33-36.]

Da perspectiva de Geertz, toda ao humana (e no apenas o hbito ou o costume) culturalmente informada para que possa fazer sentido num determinado contexto social. a cultura compartilhada que determina a possibilidade de sociabilidade nos agrupamentos humanos e d inteligibilidade aos comportamentos sociais. Deste ponto de vista, no apenas as representaes, mas tambm as aes sociais so textos, passveis de serem culturalmente interpretados, o que determina um especial interesse do ponto de vista da anlise social. [footnoteRef:10] [10: CASTRO, Hebe. Histria Social. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domnios da Histria: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 86.]

E, com base nessas novas abordagens, afloram estudos acerca dos grupos nativos da Amrica com foco na anlise das experincias desses sujeitos em relao s interelaes que se foram construindo ao longo do tempo com as outras esferas sociais em contato, desnaturalizando conceitos e verdades impostas como imanentes e tentando perceber, a partir da fragmentao das fontes, as disputas e interesses postos em jogo na construo e perpetuao de memrias e identidades. Essa passagem, ento, dos grandes processos e das estruturas em longa durao para os exames em menor escala, proporcionou, acima de tudo, a possibilidade de se reintroduzir no campo historiogrfico, a ao de seus agentes e entend-los enquanto produtos dinmicos das relaes que so construdas a partir do contato com o estrangeiro:A realidade histrica cada vez menos examinada como um objeto dotado de propriedades que preexistam anlise, mas como um conjunto de interelaes que se movem no interior de configuraes em constante adaptao[...] a passagem das massas s margens, das anlises estticas aos estudos de caso, dos objetos s prticas e s lgicas sociais (como demonstra Dominique Julia a propsito da multido) provocou, entre outras coisas, a reintroduo dos agentes nos grandes processos histricos e a diversificao dos instrumentos analticos. [footnoteRef:11] [11: BOUTIER, Jean e JULIA, Dominique. Em que pensam os historiadores. In: _____________. Passados Recompostos: campos e canteiros da histria. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ: Ed. FGV, 1998, p. 31.]

Nesse contexto, o prprio o conceito indgena pode ser percebido, para alm das leituras tradicionais que o apontam como fruto de uma imposio denominativa, no s como integrante de um dado processo de assimilao por parte dos diversos grupos, como os tantos outros conceitos de auto-identificao e autodeterminao passaram e ainda passam - por constantes processos de redefinio e readequao na medida em que os contextos se mostram mais ou menos propcios, como possvel perceber no trecho apontado por John Manuel Monteiro ao analisar a obra do sertanista portugus Gabriel Soares de Sousa acerca dos Tupinamb do XVI:Ao buscar, deste modo, melhor entender a natureza e condio dos Tupinamb, Gabriel Soares implicitamente captou a necessidade de se reconhecer que as sociedades indgenas encontravam-se imbricadas numa trama histrica, na qual a determinao de identidades especficas se mostrava to flexvel quanto varivel. Os Potiguar, Tupiniquim, Tememin e Tupina todos eram Tupinamb num certo sentido, porm no contexto colonial, nitidamente no o eram. Neste sentido, para se entender este Brasil indgena, preciso antes rever a tendncia seguida por sucessivas geraes de historiadores e de antroplogos que buscaram isolar, essencializar e congelar populaes indgenas em etnias fixas, como se o quadro de diferenas tnicas que se conhece hoje existisse antes do descobrimento ou da inveno dos ndios. [footnoteRef:12] [12: MONTEIRO, John Manuel. Unidade, Diversidade e a Inveno dos ndios: entre Gabriel Soares de Sousa e Francisco Adolfo Varnhagen. In: Revista de Histria. So Paulo: USP, 2003, n. 149, vol. 2, p. 121-122.]

Tal ampliao conceitual torna-se importante no s como forma de desmistificar interpretaes vigentes e simplistas pautadas na anttese dominao/dominado, mostrando, de fato, o carter relacional da ideia de poder, como nos faz atentar para as diversas artimanhas de embate e negociao em vigor nos diferentes momentos estudados, ou, como chama De Certau, as tticas que permitem aos sujeitos se movimentarem dentro do campo de viso do inimigo [...] e no espao por ele controlado [footnoteRef:13], um fazer com que se reapropria, que redefine e subverte as determinantes que lhes so impostas em proveito prprio, sem que se precisem orquestrar elaboradas estratgias de combate, muita das vezes mortais e dizimadoras. Em outras palavras, a ttica a arte do fraco [footnoteRef:14]. [13: CERTEAU, Michel de. A Inveno do Cotidiano: artes de fazer. Petrpolis: Ed. Vozes, 1998, p. 94-95.] [14: Idem, p. 101.]

Portanto, at que novos redirecionamentos de mtodo venham nos apontar outros caminhos para a explorao do vasto e intrincado campo das experincias e relaes humanas, a riqueza trazida para o trabalho historiogrfico pelo debate epistemolgico que se travou nas ltimas dcadas, no apenas os aqui brevemente apontados nos ajudam, cada vez mais, a perceber que no s no possvel se reconstituir uma realidade passada em sua totalidade - a no ser atravs dos vestgios e indcios que nos so passveis de interpretao - como de desacralizar os conceitos que nos so colocados enquanto verdades, a compreender que quem controla o passado s o faz pelo aval da crena coletiva nesse mesmo controle.

REFERNCIAS

ARSTEGUI, Julio. La Investigacin Histrica: teoria y mtodo. Barcelona: Editorial Crtica, 2001.BOUTIER, Jean e JULIA, Dominique. Em que pensam os historiadores. In: _____________. Passados Recompostos: campos e canteiros da histria. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ: Ed. FGV, 1998.BURKE, Peter. A Escola dos Annales: a revoluo francesa da historiografia (1929-1989). So Paulo: Unesp, 1991.CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domnios da Histria: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.CERTEAU, Michel de. A Inveno do Cotidiano: artes de fazer. Petrpolis: Ed. Vozes, 1998.COLLINGWOOD, R. G. A ideia de Histria. Editorial Presena, Lisboa, 1981.DOSSE, Franois. A Histria. Bauru, SP: EDUSC, 2003.FOUCAULT, Michael. A Verdade e as Formas Jurdicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 1999.GEERTZ, Clifford. Uma Descrio Densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: ____________. A Interpretao das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 33-36.GINZURG, Carlo. Prefcio edio Italiana. In: O Queijo e os Vermes. So Paulo: Companhia das Letras, 2006.MONTEIRO, John Manuel. Unidade, Diversidade e a Inveno dos ndios: entre Gabriel Soares de Sousa e Francisco Adolfo Varnhagen. In: Revista de Histria. So Paulo: USP, 2003, n. 149, vol. 2, p. 121-122.VEYNE, Paul. O Inventrio das Diferenas. So Paulo: Brasiliense, 1983, p. 16-17.___________. Como se Escreve a Histria; Foulcault Revoluciona a Histria. Braslia: Editora da Universidade de Braslia, 1998.ORWELL, George.1984.4 ed. Madri: Mestas, 2008.