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    Resumo

    Mal estar de escrever: memrias de crcere em tempos de ditadura e

    de Guerra Fria

    A partir do dilogo que Silviano Santiago estabelece com Graciliano Ramos, um dos

    mais clebres escritores brasileiros, este artigo trabalha em paralelo tanto o livro de

    Santiago, Em Liberdade, escrito s vsperas do final da ditadura militar brasileira

    (1964-1985), como o de Ramos, Memrias do Crcere. Atravs de um mergulho emambos os textos, perseguimos a constante hesitao de Graciliano Ramos em

    rememorar seu tempo de priso durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945). Nesta

    hesitao, relembramos os compromissos assumidos pelo Partido Comunista brasileiro,

    especialmente em relao aos processos de transformao social e das mazelas

    estruturais do capitalismo em tempos de ditadura e de Guerra Fria.

    Mal estar de escrever: memrias de crcere em tempos de ditadura e

    de Guerra Fria

    Elizabeth Cancelli1

    Comeamos oprimidos pela sintaxe e acabamos s voltas com a

    Delegacia de Ordem Poltica e Social, mas, nos estreitos limites a que nos

    coagem a gramtica e a lei, ainda nos podemos mexer. (Graciliano Ramos)

    1A autora professora do Departamento de Histria da Universidade de So Paulo (USP). Esta pesquisacontou com financiamento do CNPq e da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo.

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    Em 1981, um dos mais importantes crticos literrios brasileiros e tambm

    escritor, , Silviano Santiago, publicou seu romanceEm liberdade, um pseudodirio de

    Graciliano Ramos, festejado autor brasileiro tambm por seu livro Memrias do

    Crcere. Os manuscritos originais de Em liberdade, explica Silviano Santiago, teriam

    sido entregues por Graciliano a um amigo de longa data, em 1946, logo aps a

    renncia de Vargas e o final do Estado Novo.

    A estratgia do livro de Santiago, no propriamente original. Trata-se da

    histria de um dirio inventado, como o fez, em 1996, alguns anos mais tarde, odinamarqus Jostein Gaarder, que supostamente teria achado a carta original da

    concubina de Agostinho, Flora Emlia, em um sebo de Buenos Aires2. A Santiago,

    teriam sidos entregues os originais do livro de Graciliano por um amigo portador

    secreto do manuscrito, logo aps a morte de Ramos. Graciliano, arrependido do

    manuscrito, havia solicitado sua destruio.

    Em liberdadesegue assim a narrativa de um dirio, mas de um dirio ficcionado.

    Seriam os primeiros dias e as primeiras impresses de Graciliano Ramos aps sua

    libertao, no Rio de Janeiro, do calvrio das prises a que fora submetido durante o Era

    Vargas, vtima, como tantas outras, da polcia de Getlio.

    Silviano Santiago preencheria aqui uma espcie de lacuna deixada pelo velho

    Graa, como Graciliano era carinhosamente chamado: discorria sobre as sensaes de

    liberdade que tivera logo aps ter sido libertado do crcere, em 1937. Estas sensaes

    de liberdade seriam justamente o tema que deveria ter composto o ltimo captulo dosdois volumes de Memrias do Crcereque Graciliano Ramos pretendia escrever, se a

    morte no o tivesse encontrado antes3.

    interessante como Silviano Santiago compe o seu romance. Ele uma

    espcie de (re)escritura em exerccio de pentimento: segue procura dos vestgios de

    2 GAARDER, Jostein. Vita Brevis: a carta de Flora Emlia para Aurlio Agostinho. Trad. Pedro MaiaSoares. So Paulo, Cia das Letras, 1997.3

    Vide a este respeito as consideraes sobre o projeto do ltimo captulo deMemrias do Crceredadaspor Ricardo Ramos, filho de Graciliano, na Explicao Final. Cf: RAMOS, Graciliano. Memrias doCrcere. Rio de Janeiro: Editora Record, 1987. p 317-319

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    uma composio que no era a sua, mas que teria se tornado visvel com o passar do

    tempo, por debaixo das camadas de tinta que a histria foi encobrindo. Silviano

    persegue mincias da vida de Graciliano Ramos e faz um rememorar quase suave do

    crcere, de seus algozes e de suas vtimas; uma rememorao acobertada pela

    delicadeza, posto que imersa por uma atmosfera de necessidade de liberdade que o

    escritor sentia na cidade do Rio de Janeiro.

    No decorrer das 253 pginas do livro, uma constante a hesitao da agora

    personagem de fico literria, Graciliano, em falar da priso. Esta hesitao que

    movimenta a personagem Silviano Santiago quem constri, como se fora Graciliano

    Ramos:

    Toda e qualquer poltica que repousa sobre a priso e o ressentimento

    conduz a nada, no mximo a uma ideologia de crucificados e mrtires, que

    terminam por ser os fracassados heris da causa.

    Livrar-me do raciocnio que considera a experincia como positiva para

    a luta poltica no significa cair em raciocnio oposto: aceit-la como negativa

    para a minha individualidade no campo social. Nem positiva para mim

    enquanto homem poltico, nem negativa para a mim enquanto cidado.

    Qualquer aproveitamento poltico da priso sinal de imaturidade no plano

    psicolgico e de fraqueza no campo partidrio: nada se constri sobre os

    pilares da perseguio4.

    O livro de Silviano Santiago, escrito s vsperas do final da ditadura militar

    brasileira, foi uma espcie de desabafo contra a priso de seu irmo Haroldo e da

    letargia da famlia em mover-se para tir-lo de l. Silviano deixa transparecer sua

    impotncia diante da ditadura militar, e se volta para este exerccio de retorno ao tempo

    para falar de uma outra ditadura, a de Vargas.

    4SANTIAGO, Silviano.Em liberdade. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p 57

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    Em 1937, ano em que se ambienta o dirio, Graciliano fora finalmente solto,

    apesar dos ventos glidos e speros anunciarem a chegada do Estado Novo. Era trs de

    janeiro quando as portas do crcere lhe foram abertas. Graciliano havia sido preso, em

    1936, sem qualquer denncia formal sobre sua participao no levante comunista de

    1935. Silviano fala agora deste tempo, atravs da fabulao de um dirio repleto de

    vestgios de vida e de hesitao. O que poderia estar rememorando este fictcio dirio?

    Graciliano, alm de reconhecido como grande escritor, evidentemente tornara-se

    uma espcie cone de independncia literria. A publicao pstuma de Memrias do

    Crcere, mesmo que apenas em 19535, publicizou no Brasil a chaga aberta que as

    prises da Era Vargas haviam cravado no autor e na vida poltica brasileira. Mas havia-

    se passado cerca de 16 anos para que elas pudessem aparecer e, mesmo assim, o livro

    no fora concludo. Graciliano morreria antes de (de)escrever o ltimo captulo. Na

    verdade, j desenganado pelos mdicos, ele dera prioridade a um novo projeto literrio:

    registrar suas impresses sobre a viagem que fizera Tchecoslovquia e Unio

    Sovitica, entre abril e junho de 1952. Viagem, lanado em 1954, jamais alcanaria a

    repercusso do livro inacabado. SuasMemrias do Crceretornar-se-iam o relato mais

    dramtico sobre a desumanidade das prises do regime inaugurado por Vargas em 1930.Do mesmo Vargas6 que cometeria suicdio um ano e cinco meses aps a morte de

    Graa, em 20 de maro de 1953.

    Uma indagao principal aparece no livro de Silviano Santiago sobre esta

    fictcia rememorao: seria possvel a Graciliano ser novamente um homem livre

    depois da experincia da priso? Seria possvel haver libertao?

    Silviano Santiago contempla neste dirio a dificuldade do autor em dizer do

    indizvel, em reviver a dor. sintomtico o incio do dirio com o uso de uma suposta

    epgrafe do prprio Graciliano, retirada de seu livroAngstia:

    No sou um rato. No quero ser um rato7.

    5

    Caets era de 1933; So Bernardo, de 1934; Angstia, de 1936; Vidas Secas, de 1938.6Getlio Vargas morreu em 24 de agosto de 1954.7SANTIAGO, Silviano. Op.cit. p 17.

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    Santiago trabalha seu dirio em dois tempos: o da ditadura de Vargas e o da

    ditadura militar. De ambas traz notcias, e de ambas faz com que pulule o tempo todo

    no dirio a luta contra este sentimento de ser rato. Aparentemente, trabalha as

    ditaduras pela rememorao de que elas so no a obra do diabo, mas a face

    escancarada e corriqueira da conduta humana, de sua misria.

    Trata-se de uma tenso aberta pelo livro de Santiago. Graciliano, que reluta em

    falar do horror, quer se sentir em liberdade, liberdade inclusive de seu corpo e de suas

    memrias8. Se a cabea estiver aberta e os msculos soltos, ele diz no dirio ter certeza

    de que lhe brotaria um novo tipo de inteligncia. Teria uma concepo mais acurada da

    realidade e dos homens, porque a percepo que teria da realidade no traria a marca do

    ressentimento inspirado pela carne que no se sente bem no mundo, recobrindo-o de um

    espesso vu roxo de infelicidade, como fazem as imagens dos santos na igreja, durante a

    Semana Santa9. Enfim, no faria mais a anlise crtica do homem a partir da tristeza.

    Seria outra pessoa, em paz com o mundo e com os homens. De cabea aberta10: num

    verdadeiro exerccio de libertao.

    Torna-se evidente no livro de Santiago a (re)escritura sobre a vacilao pessoal

    e poltica de Graciliano em falar da dor do arbtrio. A recomposio das mincias de

    vida do autor, o tempo que levou para deparar-se com a empreitada de escrever suas

    Memrias do Crcere teriam levado Graciliano ao encontro deste triste vacilo: o de

    relembrar o que se quer esquecer.

    Dizendo precisar manter a famlia, por exemplo, depois de ter passado aqueles

    10 meses e 11 dias de priso, Graciliano acabaria como colaborador da revista Cultura

    Poltica, rgo oficial do Estado Novo ligado ao DIP (Departamento de Imprensa e

    Propaganda), dirigida por Almir de Andrade11.

    A diretriz da Cultura Poltica era passar em revista os estudos brasileiros,

    especialmente os estudos das transformaes socioeconmicas do pas. Como a tnica

    da questo social, e da misria, havia tomado os espaos da poltica no sc. XX, no

    8Idem, ibidem. p. 989Idem, ibidem. p. 18810

    Idem, ibidem. p. 18911Graciliano Ramos foi nomeado Inspetor Federal do Ensino secundrio no Distrito Federal em 1939.Trabalhava tambm como jornalista no Correio da Manh.

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    Brasil e fora dele12, alm dos intelectuais orgnicos do regime - como o prprio Almir

    de Andrade, Francisco Campos, Azevedo Amaral, Lorival Fontes e Cassiano Ricardo -

    autores ligados a correntes liberais e de esquerda, inclusive ao Partido Comunista,

    tambm participavam como colaboradores da mais importante publicao intelectual da

    Era Vargas. Graciliano Ramos, na companhia de Nelson Werneck Sodr, Marques

    Rabelo, Luiz da Cmara Cascudo, Herberto Sales, Guerreiros Ramos, Peregrino Junior

    e Gilberto Freyre, tornar-se-ia assduo colaborador entre 1941 e 1944. A nfase de seus

    escritos: a vida sertaneja. Seu trabalho principal, Quadros e costumes do Nordeste13.

    Vtima do regime e ao mesmo tempo protagonista das preocupaes sociais do

    mesmo regime, estar agora em liberdade, na capital da Repblica, expunha

    duplamente a vida de Graciliano Ramos. De um lado, o reconhecimento da existncia

    de uma ditadura e de sua polcia desumanizada, o nosso pequenino fascismo

    tupinamb, dizia ele14 ; de outro, a crena de que havia um espao de justia a ser

    buscado: o do reconhecimento de perseguies injustas (como sempre fora reivindicado

    pelo prprio Graciliano, j que na poca do encarceramento ele nem mesmo era um

    comunista, como o acusaram ao ser preso) e de um regime preocupado com as agruras

    12Vide a respeito dois estudos sobre o sucumbir da esfera pblica frente s questes sociais: ARENDT,Hannah.A condio humana. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1983, especialmente o II captulo; eFOUCAULT. Michel. Governamentalidade. In: Microfsica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1992. p277-293.13RAMOS, Graciliano. Quadros e costumes do Nordeste II. In: Cultura Poltica. Ano 1, n.. 2; Quadros ecostumes do Nordeste III. In: Cultura Poltica. Ano 1, n. 3; Quadros e costumes do Nordeste IV. In:Cultura Poltica. Ano 1, n. 4; Quadros e costumes do Nordeste V. In: Cultura Poltica. Ano 1, n. 5;Quadros e costumes do Nordeste VI. In: Cultura Poltica. Ano 1, n. 6; Quadros e costumes do NordesteVII. In: Cultura Poltica. Ano 1, n. 7; Quadros e costumes do Nordeste VIII. In: Cultura Poltica. Ano 1,n. 8. Quadros e costumes do Nordeste X. In: Cultura Poltica. Ano 1, n. 8; Quadros e costumes do

    Nordeste XI. In: Cultura Poltica. Ano 1, n. 9; Quadros e costumes do Nordeste XII. In: Cultura Poltica.

    Ano 1, n. 10. Quadros e costumes do Nordeste XIII. In: Cultura Poltica. Ano 1, n. 11. Quadros ecostumes do Nordeste XVI. In: Cultura Poltica. Ano 2, n. 14. Alm deles, Est aberta a sesso do jri.In: Cultura Poltica. Ano 3, n. 23; Uma visita inconveniente. In: Cultura Poltica. Ano 2, n. 20; A vivaLacerda. In: Cultura Poltica. Ano 4, n. 39; A decadncia de um senhor de engenho ( Nordeste). In:Cultura Poltica. Ano2, n. 17; Recordaes duma indstria morta. In: Cultura Poltica. Ano 1, n. 44;Booker Washington. In:Cultura Poltica. Ano 4, n. 40. Cf.: PEANHA, Michelle dos Reis et alli. Os

    intelectuais e o Estado Novo: um estudo sobre o nacionalismo nas pginas da revista

    Cultura Poltica (1941-1945). In: http:\\www.newtonpaiva.br , acesso em 18 de

    outubro de 2007.

    14 Vide MORAES, Dnis. Graciliano Ramos, literatura e engajamento. In:www.lainsignia.org/2006/septiembre, acesso em 7 de fevereiro de 2008.

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    de um povo nobre e sofrido, que, de to miservel, no poderia ainda viver em

    democracia.

    Estaria a, neste debruar-se sobre a misria, a tentativa de Graciliano Ramos de

    dar sentido ao que no tem sentido; de reparar injustias, inclusive a que acontecera

    com ele prprio?

    Esta busca de justia contnua, impotente, perseverante, sofrida, praticamente

    impossvel, ressentida, como tanto alude Silviano Santiago, seria a justificativa pelas

    vacilaes de Graciliano Ramos em finalmente escrever suasMemrias do Crcere?

    Seria ainda esta busca por justia a explicao encontrada por Graciliano para

    sua colaborao na Cultura e Poltica? Era ela a razo para a adeso, em 1945, ao seu

    Partido Comunista15 ou a justificativa do PC para a campanha pela manuteno de

    Getlio Vargas no poder16- o Queremismo-, apesar do arbtrio, da tortura e da morte

    provocados pelo Regime?

    Em sua colaborao para a Cultura Poltica, Graciliano batia mais uma vez na

    tecla da escassez de recursos da vida miservel das populaes nordestinas em um

    mundo capitalista perifrico, viciado pela poltica. A questo social, portanto,

    carregava no pincelamento de um mundo que atribua uma espcie de glorificao deste

    homem sertanejo vtima da misria e dos vcios polticos. Na apresentao do primeiro

    e do segundo nmeros de seu trabalho na Cultura Poltica, as notas de cabealho no

    hesitam em apresentar Graciliano Ramos como um dos grandes intelectuais brasileiros

    engajados na luta pela inovao civilizadora inaugurada em 1930:

    O sistema eleitoral da Primeira Repblica criou, no interior do Brasil,

    curiosos tipos de caudilhos. Em torno deles girava a vida estadual e municipal.Todo um grupo de interesses pessoais se organiza em redor dessas figuras, que

    comandam os negcios sociais. Cada uma delas podia repetir a frase simblica

    de Luiz XIV: Letat cest moi. E era mesmo. Depois de novembro de 1937, as

    coisas mudaram de rumo. Essas figuras caram, se apagaram, se dissolveram na

    onda revolucionria que introduziu novos costumes e novos mtodos de

    15A filiao de Ramos ao PC de 1945.16

    Do slogan Queremos Getlio. Campanha que reivindicava, tendo em vista o esgotamento poltico doEstado Novo, o adiamento das eleies presidenciais e a convocao de uma Assemblia NacionalConstituinte. No caso de serem confirmadas as eleies, queriam Vargas como candidato.

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    conduzir a vida regional. Em sua crnica de hoje, o autor procura fixar esses

    tipos, encarado na pessoa de uma mulher. Era comum as pessoas manipularem

    tiranicamente os negcios do Estado. Elas faziam nomeaes, derrubavam

    prefeitos, elaboravam leis, faziam da administrao pblica, uma continuao

    do seu boudir. O caudilhismo feminino provocava manifestaes curiosas na

    vida pblica do Nordeste Brasileiro. E a pena segura de um dos maiores

    romancistas do Brasil de hoje que nos vai pintar, em novas palavras, esse

    quadro to familiar aos que conheceram o Nordeste h alguns anos atrs.17

    Assim como nos discursos de Getlio Vargas, a nfase de Graciliano era

    procurar um presente e um futuro onde as questes de infra-estrutura material seriam

    determinantes e livres dos injustos interesses polticos.

    No que diz respeito sensibilidade com os oprimidos e ao empenho em prol da

    questo social, especialmente como a mais importante questo poltica, estaria Vargas

    redimido?

    Em 26 de novembro de 1945, num inflamado discurso na Cidade de Recife, Luiz

    Carlos Prestes, Secretrio Geral do Partido Comunista desde 1943, explicava em

    palanque o espao de justia que estava sendo buscado atravs do lder do governo,

    que, na viso do Partido Comunista, ao qual Graciliano se juntaria atendendo a convite

    do prprio Prestes, havia sido desviado pelos inimigos do povo. Prestes, j liberto das

    prises do Estado Novo, conclamava a classe trabalhadora a apoiar Getlio Vargas para

    mais um termo no poder:

    Companheiros! Aproximava-se, no incio deste ano, a olhos vistos, a derrota

    militar do nazismo, e o Governo brasileiro, esse mesmo Governo, composto

    quase dos mesmos homens que tudo haviam feito para levar o Brasil aofascismo, cedia algo mais ao nosso povo, cedia no caminho da democracia. A

    17RAMOS, Graciliano. Quadros e costumes do Nordeste II. In: Cultura Poltica. Ano 1, n.. 2, 1941. p236. Quanto ao primeiro texto de apresentao que a Cultura Poltica fez, introduzindo GracilianoRamos, sob o ttulo de A vida social no Brasil, podemos ler: Escritor e romancista consagrado entre osmelhores do Brasil de hoje, tendo enriquecido a nossa literatura de fico com oras fortes e cheias de

    personalidade como So Bernardo, Vidas Secas, Caets, e com numerosos contos que se publicamincessantemente nos grandes jornais da capital da Repblica e dos Estados o autor dessa crnica tomouao seu encargo fixar costumes da regio do Brasil onde nasceu e viveu mais de trinta anos: O Nordeste.

    Neste nmero inaugural, ele nos d um flagrante da grande festa popular o Carnaval tal como ocorre

    nas cidades do interior nordestino. um pequeno pedao desse Brasil que ainda foge do mpeto inovadorda civilizao litornea desse Brasil to distante e to grande. Cf.: RAMOS, Graciliano. Quadros ecostumes do Nordeste II. In: Cultura Poltica. Ano 1, n.. 1, 1941. p 236.

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    liberdade de imprensa foi reconquistada pelo povo e reconquistado foi o direito

    de reunio, o de livre associao poltica, inclusive, concidados, para o

    Partido do proletariado, e isto pela primeira vez em nossa histria. Depois de

    23 anos de vida clandestina, o Partido Comunista alcanava a vida legal e os

    comunistas enfrentando a calnia, enfrentando a difamao de seus

    adversrios, desses homens que os acusavam de cambalachos com o Governo,

    que os acusavam de queremismo, ou continusmo, ou getulismo, ou no sei mais

    o que, os comunistas, sufocando paixes pessoais, esmagando ressentimentos,

    colocavam os interesses de nossa ptria acima de tudo e apoiavam, com

    convico, com orgulho, com audcia tambm, o Governo do Sr. Getlio Vargas

    porque este cedia ao povo e marchava para a democracia.

    Companheiros! E nesta poca, os nossos difamadores, esses que nos atacavam,

    eram esses mesmos velhos polticos que do ano de 1935 ao ano de 1937

    dispunham de uma tribuna parlamentar e nada faziam em defesa da

    democracia. Naquela poca aqueles senhores todos cediam ao Sr. Getulio

    Vargas a lei de segurana; nenhum protesto contra o fechamento da Aliana

    Nacional Libertadora; as emendas inconstitucionais do fim do ano de 1935;

    todos os estados de guerra em plena paz; esse imundo papel Cohen que

    aceitaram como verdadeiro, para acabar dissolvendo o Parlamento e a

    Democracia e facilitar o golpe de 10 de Novembro. Naquela poca, quando o sr.

    Getlio Vargas marchava para a reao e de mos dadas com o integralismo ,

    tudo fazia para levar o Brasil ao fascismo, aqueles senhores polticos o

    apoiavam, tudo lhe davam. Por qu? Porque temiam o povo, concidados. E

    agora atacavam Getlio Vargas. E se passavam a atac-lo, a causa era a

    mesma, era porque Getlio Vargas cedia ao povo e esses senhores continuamtemendo o povo.18

    18 PRESTES, Luiz Carlos. O Partido Comunista quer, precisa, deseja ser compreendido. Discursoproferido no Grande Comcio "O Nordeste a Luiz Carlos Prestes", no Parque 13 de Maio, no Recife.

    Fonte:: Problemas Atuais da Democracia, Editorial Vitria, 1947. Transcrio de html: ARAJO,Fernando Antnio de Souza, dezembro 2006. www.marxists.org/portugues/prestes/1945/11/, acesso em15 de outubro de 2007.

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    H a duas dimenses da liderana de Getulio Vargas que so pontificadas e

    reiteradas no s pelos prprios seguidores de Getlio, como sua filha Alzira Vargas,

    por exemplo, mas por aqueles que, poucos anos antes, haviam sido escolhidos como

    inimigos de Regime pelo prprio Regime e pela polcia de Vargas. A primeira dimenso

    a de que Getlio sempre estivera preocupado com o que se chamaria de povo (a

    massa), especialmente porque crtico ferrenho do liberalismo e de seus desvios polticos

    e sociais e porque toda sua nfase de governo fora desviada para a questo social,

    como to bem era de agrado das lideranas comunistas, especialmente no ps-Segunda

    Grande Guerra. A segunda dimenso diz respeito justamente ao fato dos velhos

    polticos terem sido os responsveis pelos enganos de Vargas. Nesta dimenso,

    especificamente, o lado sombrio do regime, representado pela ao da polcia poltica e

    supostamente ignorado pelo Presidente, deveria ser colocado de lado: sufocando

    paixes pessoais, esmagando ressentimentos, colocavam os interesses de nossa ptria

    acima de tudo, como queria em discurso Luiz Carlos Prestes. A final de contas, teriam

    sido de Vargas e de seus sindicatos corporativos as conquistas da classe trabalhadora!

    A imagem que Vargas construra de si mesmo e a maneira genial com que

    lidava com a estrutura do aparato policial, especialmente com a polcia secreta,

    contriburam para atenuar o que poderia aparecer e no era- uma aguda contradio.

    Era esta justamente a imagem que se perpetuaria do ditador: um grande homem,

    preocupado com a populao, mas trado pela germanofilia, especialmente de seu

    chefe de polcia, Filinto Muller (no cargo entre 1933 e 1942).

    Seguindo esta linha de raciocnio e segundo as prprias palavras da filha de

    Getlio, Alzira do Amaral Peixoto, ela teria obtido autorizao para interceder em

    favor de professores presos por suposta simpatia aos comunistas, depois da Intentona

    Comunista em 1935. Getlio teria ento recomendado:

    Criem o motivo para que o assunto venha ao meu conhecimento. Se nada

    tiverem apurado contra os professores, no h razo para que continuem

    presos. Mas nada de precipitaes. H famlias enlutadas por culpa dos

    comunistas e h um crime para o pas, irreparvel19.

    19 In: Fundao Getulio Vargas (CPDOC) Vargas, Getlio. Verbete bibliogrfico.http://www.cpdoc.fgv.br/dhbb/verbetes,acesso em 18 de outubro de 2007.

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    A maneira personalizada com que Vargas tratava os problemas de perseguio

    poltica da polcia, controlando-a de forma paralela e autnoma em relao lei e

    dando ao seu chefe20total autonomia em relao ao Ministrio da Justia e o dever de

    reportar-se apenas `a Presidncia da Repblica, evidenciavam por si s a importncia do

    aparato policial que era conferida no s pelo Regime, mas pela persona do ditador.

    Esta conduta havia sido oficializada em 10 de janeiro de 1933, quando Vargas colocou

    o servio policial do DF sob a inspeo suprema do Presidente da Repblica e sob a

    superintendncia do Ministrio da Justia21. Seria o prprio Filinto Mller, ao reclamar

    do ministro da Justia, Macedo Soares, quem diria:

    Somente ao presidente da Repblica devo dar conta de meus atos no

    exerccio do cargo com que sua confiana me honrou22

    A Polcia tornar-se-ia organizao prioritria na nova estrutura de Estado.

    Mas as iniciativas de Vargas, ao contrrio do que deixa entrever o discurso de

    Prestes em 1945, no eram determinadas por um pendor de cunho fascista em pr do

    Eixo atribudo apenas um grupo especfico de pessoas.

    Internamente, a dinmica de perseguies se modificaria paulatinamente pelo

    avano da guerra na Europa. Foi a que os servios policiais agregaram ao temor

    comunista o perigo da espionagem. bem verdade que por algum tempo persistiu o

    contato internacional entre as polcias para o combate aos vermelhos", mas a

    cooperao tornara-se mais complexa, e os servios de controle no seriam mais feitos

    fundamentalmente atravs da polcia. As foras militares comeariam agora a ser a

    principal instncia para a troca de informaes e para a represso entre as naes. A

    represso social e poltica, sob a tica da subverso de esquerda, no seria mais a

    grande tnica, mas sim o servio de contra-espionagem e a busca de simpatizantes

    estrangeiros. O que, significativamente, coincide com a sada de Filinto Mller da

    Chefia de Polcia do DF para o Ministrio da Guerra, em 1942, um ms antes de o

    Brasil entrar na Guerra ao lado dos aliados. Filinto permaneceria no Ministrio, como

    Chefe de Gabinete do general Dutra, at julho de 1943.

    20Antes de Muller, a Polcia do DF teve quatro diferentes chefes. Depois dele, at 1945, cinco.21 Cf.: CANCELLI, Elizabeth. O mundo da violncia: a polcia na Era Vargas. Braslia: Ed.

    Universidade de Braslia, 1994. p. 49-50.22Arquivo Getlio Vargas, vol. XXXVI, doc. 65. In: SILVA, Hlio. 1937. Todos os golpes se parecem.Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1970. pp. 581 e 582.

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    Se a sada de Muller da Chefia de Polcia vista por grande parte dos

    historiadores brasileiros como sinal de amenizao do regime Vargas, as investidas

    contra a populao de origem estrangeira (alemes, italianos e japoneses) durante a

    Guerra parecem desmentir o fato.

    Mesmo a IIIa Reunio de Consulta dos Ministros das Relaes Exteriores

    das Repblicas Americanas, realizada no Rio de Janeiro em 194223, recomendou

    que os "Governos americanos controlem a existncia de associaes dirigidas e

    mantidas por elementos de Estados extracontinentais, e mandem fech-las, se ficar

    provado que so ncleos de propaganda totalitria". Recomendava-se ainda que

    fossem controlados os estrangeiros perigosos; o trnsito atravs das fronteiras

    nacionais; que fossem evitados atos de agresso poltica, tais como propaganda por

    parte de Partidos polticos subversivos; e que fossem punidos atos de sabotagem e

    espionagem, etc."24.

    Irnico mesmo seria o fato de Muller ocupar, entre em julho de 1943 e o final

    do Estado Novo, o cargo de Presidente do Conselho Nacional do Trabalho, rgo

    precursor do Tribunal Superior do Trabalho. Ou seja, o ex-Chefe de Polcia do DF,

    contra quem pesavam as denncias sobre a brutalidade do regime contra as classes

    trabalhadoras, seria agora nomeado por Getlio Vargas como o mediador mais

    qualificado da nao para as questes que diziam respeito justamente aos direitos dos

    trabalhadores.

    De fato, a diretriz poltica do Partido Comunista, no Brasil, ao personalizar em

    Vargas as conquistas das classes trabalhadoras, veio ao encontro da prtica e da lgica

    da exaltao hiperblica de personagens conhecidos, como estava na moda entre os

    23A partir desta Reunio no Rio de Janeiro, ainda foi criado o Comit Consultivo de Emergncia para aDefesa Poltica, com sede em Montevidu, que desde abril de 1942 atuava "como centro decoordenao da defesa das Repblicas Americanas contra a agresso poltica iniciada pelo Eixo noHemisfrio Ocidental. Sob este mesmo prisma, o presidente dos Estados Unidos estabeleceu, extra-legalmente, o SIS (Servio Especial de Inteligncia do FBI), em 24 de junho de 1940. Rapidamente, soba cobertura de agentes comerciais de firmas americanas, foram estabelecidos servios de informao etroca de informaes pelos norte-americanos na Argentina, Brasil, Colmbia, Chile, Cuba e Mxico. OSIS chegou a cooperar com o DOPS no interrogatrio de suspeitos de espionagem, "olhando para o

    lado" quando os agentes brasileiros utilizavam a tortura. Cf.: HUGGINS, Martha . Vigilantism and theState in Latin America. New York: Praeger, 1991. p 225-227.24ANJ, IJ1 1329. Ministrio das Relaes Exteriores, 21 de fevereiro de 1951.

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    dirigentes do Partido Comunista25. Alm disso, encontrava-se atrelada poltica de

    apoio ao desenvolvimento do capitalismo e burguesia engajada no processo de

    transformao social, ou melhor dizendo, a uma modernizao no conservadora que

    supostamente poderia minimizar mazelas estruturais e conduzir a nao independncia

    em relao, especialmente, aos Estados Unidos e Inglaterra.

    Desde que a Unio Sovitica rompera com Hitler, em 1941, o Partido Comunista

    procurava apoiar as iniciativas do governo contra o fascismo europeu. Era o esforo de

    unio nacional. Na II Conferncia Nacional do Partido Comunista, em agosto de

    1943, a chamada Conferncia da Mantiqueira, a posio oficial era a de que o governo

    Vargas no era um governo fascista e que dele participavam reacionrios, sem dvida,

    mas igualmente homens que sinceramente lutavam pela democratizao do pas26.

    Alm disso, a Conferncia soube ainda alertar o nosso povo para a ao quinta-coluna

    que, em nome da democracia e da luta contra o fascismo, tudo fazia para desunir e

    lanar o povo contra o governo, visando diminuir nosso esforo de guerra27.

    Em seu dirio, Silviano Santiagoteria que resolver esta tenso que emanava dos

    trabalhos de Graciliano: a necessidade de falar do indizvel, do ser rato, e, ao mesmo

    tempo, de redimir o regime pelo seu apelo questo social e, em ltima instncia,

    compartilhar das diretrizes do Partido Comunista e de seu apoio a Vargas28.

    A tenso se resolveria fundamentalmente por caminhos narrativos: a reflexo

    que Silviano tece sobre o ressentimento e a identificao que cria entre Graciliano

    Ramos e Cludio Manuel da Costa, o inconfidente mineiro, morto na priso em 1789.

    Pensar na priso, quando em liberdade, seria, de certa forma, viver da

    possibilidade de alimentar o ressentimento, de viver da dor. Por isso, Silviano Santiago

    coloca a sua personagem em uma espcie de crise, j que a recorrncia ao ressentido

    seria a forma de colocar-se na esteira dos fracassados, de permanecer sempre neste

    gozo de vitimizao, at porque, como quis fazer acreditar Santiago sobre Graciliano:

    25GORENDER, Jacob. Graciliano Ramos: lembranas tangenciais. Estudos Avanados, vol. 9, no. 23,So Paulo, 1995. In: www.scielo.br/scielo.php?script=sci, acesso em 23 de outubro de 2007.26CARONE, Edgar. O P.C.B: 1943 a 1964. So Paulo: Difel, 1982 . vol. 2. p. 5127Idem, ibidem. P 5128 sintomtico de todo o ambiente que envolvia os intelectuais na dcada de 1940, as palavras

    proferidas por Getlio Vargas, que, ao ser empossado, em 1943, na Academia Brasileira de Letras, disseque era chegado o momento de os intelectuais se juntarem ao governo numa campanha tenaz e vigorosa

    em prol do levantamento do nvel mental e das reservas de patriotismo do povo brasileiro, colocando assuas aspiraes e as suas necessidades no mesmo plano e na direo em que se processa oengrandecimento da nacionalidade.

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    A linguagem do sofrimento menos original do que se pensa e por isso

    to abrangente. Todos e cada um acreditam-se idnticos na misria, na dor e no

    sofrimento, isto : desgraados todos, mas quem narra sempre o mais

    desgraado dos mortais. 29

    Uma severa crtica aos regimes polticos e uma narrativa repleta de pessimismo

    e morbidez tomam conta desta suposta rememorao feita por Santiago, mas esta vai

    alm da armadilha do ressentimento:

    Erro para dizer que a condio de perseguido e massacrado no serve

    de exemplo. Antes, atia mais a sanha dos sdicos algozes.30

    Livrar-se do ressentimento poderia abrir a cabea e os msculos, como o quer a

    personagem Graciliano, mas trazer tona o pessimismo e a morbidez, presentes ao

    longo de toda a fabulao do dirio, abre justamente a ferida mais profunda: a da

    recorrncia e identificao com a misria da conduta humana, capaz de ser expressa

    apenas naquilo que ela tem de corriqueira: seu cotidiano miservel. Como ele diz:

    Se aceito, para safar-me da misria econmica em que estou, os

    encargos que me oferecem alguns amigos e jornais, aceito tambm o meu

    silncio31.

    A mudez acaba sendo, portanto, o lava-mo de Pncio Pilatos. a

    conivncia a meio caminho de um trabalho feito e de uma expresso calada. 32

    na figura de Cludio Manuel da Costa, sobre quem a personagem Graciliano

    de Em Liberdade teria tido um sonho e se assumido como o poeta na noite de seu

    29SANTIAGO, Silviano. Op. Cit. p. 24.30In: SANTIAGO, Silviano. Op. Cit. p. 197. Quando o mrtir passa a ser exemplo, no o da pujana

    inicial (repito), mas da derrota final. Idem, ibidem. p. 198.31Idem, ibidem. p. 194.32Idem, ibidem. p. 195.

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    suicdio33, que Silviano Santiago pode fazer Graciliano falar do indizvel, daquilo que o

    romancista insistia em calar. Parece estar a um desejo de Silviano sobre o que

    Graciliano deveria ter falado. Um saber que se desloca a partir de sua prpria angstia

    pelo fato de sua famlia tentar ignorar a priso de seu irmo Haroldo durante o regime

    militar34.

    Nesta liberao da tenso, Silviano Santiago, primeiramente, reconhece que

    Graciliano, quando lembra de sua priso, em Macei, tenta adiar a lembrana 35. Num

    segundo momento, acaba se dando conta de que os mrtires tm pressa em chegar

    morte, para ter sua redeno, no por sabor de vitria, mas para se ver livre do peso da

    maldio que recobre sua vida36, at porque h no mrtir mais devoo a uma causa do

    que fora moral37. Estaria a a hesitao de Graciliano em falar do crcere?

    O certo que o livro sobre a cadeia poderia esperar, como teria confidenciado a

    personagem do dirio, Graciliano Ramos, a Manuel Bandeira: Falei-lhe das

    preocupaes em no escrever um livro de memrias em cima de minhas recentes

    experincias na cadeia. No sei escrever no calor da hora38. Ao invs disso, escreveria

    sobre Cludio Manoel da Costa, mas como se fosse ele prprio. Ficaria perdido nos

    meandros de Vila Rica, como se perdeu no poro doManaus, ou na cela imunda de Ilha

    Grande39. Seria assim que a personagem Graciliano Ramos escreveria algo mais

    significativo, enfrentaria o sonho40, sem martrio e sem traio41.

    Como dar sentido ao que no tem sentido? A personagem de Graciliano criada

    por Silviano Santiago, estava agora reconciliada pela rememorao atravs de Cludio

    Manuel da Costa.

    33At hoje no h consenso sobre a morte de Cludio Manuel da Costa, ocorrida aos 60 anos: suicdio ouassassinato na priso. H a tambm uma aluso morte do jornalista Vladimir Herzog, assassinado nasdependncias do DOI-CODI, onde se encontrava preso, em 25 de outubro de 1975.34Vide a este respeito entrevista de Silviano Santiago ao CPDOC, em 2 de maio de 2002, concedida aHelena Bomeny e Lcia Lippe de Oliveira: www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/336 , acesso em 10 de fevereirode 2008.35O devaneio a artimanha mais bvia que o meu esprito pode imaginar para reencontrar Cludio nasua cela. SANTIAGO, Silviano. Op. Cit. P. 218.36Idem, ibidem. p. 220.37Idem, ibidem. p. 219.38Idem, ibidem. p. 225.39

    Idem, ibidem. p. 226.40Idem, ibidem. p. 219.41Idem, ibidem. p. 227.

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    De certa forma, o inconfidente fazia com que o dever de Graciliano em

    rememorar, em tornar visvel o que ficara guardado, escondido, recalcado, fosse aberto.

    Na verdade, uma seqncia dos fatos, fora da imaginada por Silviano Santiago, abriria

    esta possibilidade para Graciliano Ramos tecer a memria sobre o crcere: o Partido

    Comunista acabaria rompendo com Getlio Vargas, tendo em vista seu alinhamento

    com o presidente Dutra e com os Estados Unidos. Alm disso, a cassao do Partido,

    em 1947, e uma profunda campanha anticomunista estavam ocorrendo no Brasil. Era

    aquilo que o prprio Partido Comunista chamaria de viragem42.

    Os ares da Guerra Fria sopravam.

    So estes ares que fazem, ao mesmo tempo, com que Memrias do Crcere

    seja, enfim, uma possibilidade de rememorao e objeto de adiamento de sua escrita

    final: a prioridade de Graciliano Ramos, mesmo desenganado pelos mdicos, foi

    escrever o seu Viagem. Mais uma vez asMemrias do Crcereficariam para trs.

    certo que viagens de delegaes estrangeiras Unio Sovitica haviam se

    transformado em rotina, especialmente depois da Guerra Fria. Em 28 de abril de 195243,

    vrios brasileiros, entre eles Graciliano e Heloisa Ramos, Sinval e Lourdes Palmeira e

    Mariuccia Iacovino Estrela e seu marido, o pianista Arnaldo Estrela, compadres de

    Jorge Amado e de Zlia Gatai, desembarcaram em Moscou. Diz-se que o resultado das

    impresses de Graciliano sobre a estada - seu livro Viagem desgostou profundamente

    a direo do Partido, bem como o pstumo Memrias do Crcere: ambos no eram

    suficientemente laudatrios ou sectrios. Um, Unio Sovitica e a Stalin; o outro, s

    lideranas aprisionadas durante a ditadura de Vargas, sobre as quais o escritor chega a

    evidenciar seu desprezo. Afinal, o relembrar do Partido deveria estar muito mais

    direcionado construo de seus heris do que s agruras do regime ou da priso.

    O engajamento de intelectuais brasileiros causa comunista, antes e depois das

    dissidncias provocadas pela publicizao dos crimes de Stalin por Kruschev, em 1956,

    estava bastante assentado nestas iniciativas que tentavam mostrar ao mundo uma nova

    maneira de viver, alternativa aos princpios da explorao capitalista do ocidente e de

    42

    CARONE, Edgar. Op. Cit. p. 80.43Foram 52 dias no exterior de abril a junho de 1952. Antes de Moscou, houve breve passagem porPortugal e pela Frana.

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    seu expansionismo blico. A presena de intelectuais progressistas, por isso, era

    fundamental. Em sua faceta alternativa, o Partido Comunista montara uma grande

    mobilizao em torno do Movimento pela Paz Mundial. A campanha havia sido

    inaugurada em agosto de 1948, na Conferncia Cultural pela Paz de Breslau, cuja tese

    principal era a associao do fascismo doutrina Truman, e teria fortes

    desdobramentos no Brasil.

    Homem de seu tempo, Graciliano Ramos havia assinado, em maro de 1949, o

    Manifesto pela Pazque circulava no Brasil. O documento era datado do mesmo ms do

    encontro de intelectuais realizado no Hotel Waldorf Astoria de Nova Yorque, cuja briga

    contra intelectuais comunistas, instigada por Sidney Hook, tornar-se-ia famosa44, e um

    ms antes do Congresso Mundial dos Partidrios da Paz, realizado simultaneamente no

    ms de abril, em Paris e Praga. Entre os delegados brasileiros do Congresso (Caio

    Prado Junior, Paulo Guimares da Fonseca, Belfort Matos, Mario Schemberg, Paulo

    Rodrigues, Carlos Scliar, Jacques Danon e Luiz Rei)45, tambm estavam Jorge Amado e

    Zlia Gatai, que acompanhariam de perto a viagem de Graciliano e Heloisa Ramos

    Unio Sovitica, em 1952.

    Vigilante, o delegado chefe do Servio Secreto do DOPS de So Paulo, Gilbertode Andrade, completava seu estudo em maio daquele ano identificando, entre os

    signatrios do Manifesto Pela Paz, aqueles que registravam antecedentes por atividades

    comunistas em So Paulo e no Rio de Janeiro. Graciliano Ramos estava l. Em sua

    companhia, outros 65 intelectuais46. Neste mesmo ano, o deputado Paulo Cavalcanti,

    44 CANCELLI, Elizabeth. Intelectualidade e poder: inconformidade na Guerra Fria. In: RevistaArtCultura,n.o 9, jul-dez. de 2004, Uberlndia: Editora UFU.45

    Jornal Crtica, 25 de maio de 1949. In: Dossi de Jorge Amado. Arquivo Histrico do Estado de SoPaulo, Coleo DEOPS, pronturio 5777.46No Rio de Janeiro: Mario Schenberg, Sinval Palmeira, Orgenes Lessa, Francisco da Costa Netto, LauraAustregsilo, Luiz Hildebrando Horta Barbosa, Milton Eloy Vaz, Nauta Berlet James, Paulo Cavalcanti,Pedro Paulo Sampaio Lacerda, Jos Mascarenhas Gonalves, Lia Correa Dutra, Milton Pedrosa, Modestode Souza, neves Manta, Oscar Niemeyer, Pedro Motta Lima, Alice Tibiria, lvaro Moreyra, AparcioTorelli, Astrogildo Pereira, Brasil Gerson, Candido Portinari, Dalcdio Jurandyr, Dorival Cayme, EgidioSqueff, Evandro Lins e Silva, Alcedo Coutinho, Anbal Machado, Afonso Schmidt, Arcelina Mechel,Aydano de Couto Ferraz, Caio Prado Junior, Dionlio Machado, Edison Carneiro, rico Verssimo,Fernando Luiz Lobo carneiro. Em So Paulo: Eduardo Guarnieri, Eduardo Kneese de Mello, AnitaCorrijo, Pedro Neme, Jos Eduardo Ferraz, Artur Neves, Augusto Gomes de Mattos, Laura de Andrade,Catulo Branco, Candido Silva, Camargo Guarnieri, Suzana Rodrigues, Villanova Artigas, Osrio Csar,Alteia Alimonda, Rafael de Barros, Rebolo Gonalves, Jos Maria Gomes, Rivadvia de Mendona,

    Celso Pereira da Silva, Ruth Monteiro Lobato, Souza Lima, Mario Barbosa, Di Cavalcanti, Wilson CuryRahal. In: Arquvo do Estado de So Paulo. In: Dossi Jorge Amado. Arquivo Pblico do Estado de SoPaulo, Coleo DEOPS, pronturio 5777. So Paulo, 25-05-1949

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    juntamente com Joo Saldanha e Luiza Ramos, filha de Graciliano, sairiam feridos

    quando do enfrentamento com a polcia carioca para a realizao do Congresso

    Brasileiro dos Partidrios da Paz na sede da UNE47.

    Mesmo que a construo sobre a memria de Graciliano insista em ressaltar

    sempre uma suposta independncia literria e intelectual em relao ao Partido e

    como prova estaria o desgosto dos dirigentes em relao Viagem e s Memrias -,

    Graciliano desempenhou o papel de um dos intelectuais de ponta na movimentao

    brasileira engajada no enfrentamento cultural (Cultural War) da Guerra Fria, que, do

    lado sovitico movimentava o Congresso pela Paz Mundial e, do lado norte-americano,

    o Congresso pela Liberdade da Cultura. Foi ele que assumiu legalmente a propriedade

    do jornal Partidrios da Paz, tendo sido jurado dos Prmios da Paz e diretor da

    Organizao Nacional de Defesa da Paz e da Cultura, participante do Congresso dos

    Partidrios da Paz, em So Paulo, e delegado do II Congresso Mundial dos Partidrios

    da Paz, realizado no Mxico, em 1949. Foi ainda eleito presidente da Associao

    Brasileira de Escritores, em 1951, uma tarefa de seu Partido.

    J doente e internado numa casa de sade do Rio, Graciliano, com um cigarro entre os dedos,

    deu entrevista ao jornal "Imprensa Popular", rgo extra-oficial do PCB. Desmentia notcia de

    um livro editado em Portugal sobre mudana de suas convices. "Quando passei por Lisboa eu

    ia a caminho de Moscou, da Unio Sovitica, realizar um velho sonho. Tudo o que vi reforou a

    minha confiana no socialismo, na causa da paz ", disse. No mesmo dia em que a entrevista foi

    publicada, 5 de maro de 1953, Stlin morreu. Graciliano morreria duas semanas depois, dia

    20, aos 60 anos. 48

    Conseguira acabar de escrever Viagem. Quanto aMemrias do Crcere, faltaria

    justamente o ltimo captulo: aquele sobre as impresses que teve ao ser libertado.

    Mais uma vez a tarefa estava postergada. Coube a Silviano Santiago, entretanto, fazer-

    lhe uma dupla homenagem: pensar este ltimo escrito com reconhecimento profundo

    47 Cf. BUONICORE, Augusto. Os comunistas brasileiros contra a guerra. In: Vermelhoonline:

    www.vermelho.org.br, acesso em 09 de maro de 2008.48MAGALHES, Mrio, . Memrias de um militante stanilista. In: Folha de So Paulo. 09-03-2006.biblioteca.folha.com.br/1/13/2003030902.html, acesso em 09 de maro de 2008.

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    queles que resistem com dignidade s ditaduras, mesmo porque, apesar do talento

    penoso, quase mortfero, falar do indizvel.