Artigo - Maus-tratos aos animais: a crueldade e sua coibição no Brasil

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------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ NASSARO, Adilson Luís Franco. Maus-tratos aos animais: a crueldade e sua coibição no Brasil. In: Anais da XXX Semana de História: memórias, imagens e narrativas. Assis: UNESP, 2013. p. 16 a 29. -------------------------------------------------------------------------------------------------------------- Maus-tratos aos animais: a crueldade e sua coibição no Brasil Adilson Luís Franco Nassaro* Resumo: o artigo estuda os maus-tratos contra os animais no Brasil, sua incidência e o aperfeiçoamento das regras de proteção, especialmente a partir da década de 1930. Analisa os excessos no aproveitamento do animal doméstico e a exploração da fauna silvestre como manifestação das relações entre sociedade e natureza, junto com a atuação do policiamento ambiental voltada à coibição de práticas ilegais, com ênfase no tráfico dos animais silvestres. 1. Introdução Recentemente ganharam destaque manifestações de artistas de projeção mundial, como Paul McCartney e Brigitte Bardot em defesa do bem-estar dos animais, com críticas à crueldade praticada contra espécimes em várias partes do mundo 1 . Apesar de o Brasil não ser normalmente citado como símbolo de maus-tratos aos animais, e sim de uma expressiva biodiversidade ameaçada, também no país têm-se divulgado frequentemente cenas de agressões, abandono e outras práticas consideradas crueis contra animais domésticos e silvestres 2 . Com o apelo popular de noticiários televisivos, imagens igualmente postadas na rede mundial de computadores mostram o sofrimento de espécimes pela ação ou omissão humana. Crescem também, na torrente de informações da sociedade em rede, as iniciativas de pessoas e de grupos organizados de proteção aos animais que circulam mensagens e denúncias, promovendo intervenções em espaço público como meio de despertar a atenção coletiva ao que se denomina abuso na relação entre homens e os demais animais. * Concluiu mestrado em Historia /UNESP/Assis em 2013. Orientador: Paulo Henrique Martinez. Trabalho apresentado e publicado nos Anais da XXX Semana de História da UNESP de Assis, em 2013. 1 O VEGANISMO e o ativismo de Paul McCartney. Anda, Agência de Notícias de Direitos Animais. Disponível em: <http://www.anda.jor.br/19/11/2010/o-veganismo-e-ativismo-de-paul-mccartney-pelos- animais>. Acesso em: 30 mar. 2013 e BRIGITTE BARDOT denuncia crueldade em matadouros. Blog Direito dos Animais. Disponível em: <http://direitodosanimais.spaceblog.com.br/1449897/BRIGITTE-BARDOT- DENUNCIA-CRUELDADE-EM-MATADOUROS/>. Acesso em: 30 mar. 2013. 2 Animais silvestres, ou simplesmente “fauna silvestre” no Brasil, são aqueles animais identificados de forma ampla na Lei Federal nº 9.605, de 1998, pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites do território brasileiro, ou águas jurisdicionais brasileiras (parágrafo 3º, do artigo 29). O que diferencia os animais da fauna silvestre dos animais da fauna doméstica é a característica dos primeiros viverem naturalmente fora do cativeiro, na acepção do artigo 1º, da Lei Federal nº 5.197, de 1967 (Lei de Proteção à Fauna). 16

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O artigo estuda os maus-tratos contra os animais no Brasil, sua incidência e o aperfeiçoamento das regras de proteção, especialmente a partir da década de 1930. Analisa os excessos no aproveitamento do animal doméstico e a exploração da fauna silvestre como manifestação das relações entre sociedade e natureza, junto com a atuação do policiamento ambiental voltada à coibição de práticas ilegais, com ênfase no tráfico dos animais silvestres. Trabalho apresentado e publicado nos Anais da XXX Semana de História da UNESP de Assis, em 2013.

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Maus-tratos aos animais: a crueldade e sua coibição no Brasil

Adilson Luís Franco Nassaro*

Resumo: o artigo estuda os maus-tratos contra os animais no Brasil, sua incidência e o

aperfeiçoamento das regras de proteção, especialmente a partir da década de 1930. Analisa os

excessos no aproveitamento do animal doméstico e a exploração da fauna silvestre como

manifestação das relações entre sociedade e natureza, junto com a atuação do policiamento

ambiental voltada à coibição de práticas ilegais, com ênfase no tráfico dos animais silvestres.

1. Introdução Recentemente ganharam destaque manifestações de artistas de projeção mundial, como

Paul McCartney e Brigitte Bardot em defesa do bem-estar dos animais, com críticas à crueldade

praticada contra espécimes em várias partes do mundo1. Apesar de o Brasil não ser normalmente

citado como símbolo de maus-tratos aos animais, e sim de uma expressiva biodiversidade

ameaçada, também no país têm-se divulgado frequentemente cenas de agressões, abandono

e outras práticas consideradas crueis contra animais domésticos e silvestres2.

Com o apelo popular de noticiários televisivos, imagens igualmente postadas na rede

mundial de computadores mostram o sofrimento de espécimes pela ação ou omissão humana.

Crescem também, na torrente de informações da sociedade em rede, as iniciativas de pessoas

e de grupos organizados de proteção aos animais que circulam mensagens e denúncias,

promovendo intervenções em espaço público como meio de despertar a atenção coletiva ao

que se denomina abuso na relação entre homens e os demais animais.

* Concluiu mestrado em Historia /UNESP/Assis em 2013. Orientador: Paulo Henrique Martinez. Trabalho

apresentado e publicado nos Anais da XXX Semana de História da UNESP de Assis, em 2013. 1 O VEGANISMO e o ativismo de Paul McCartney. Anda, Agência de Notícias de Direitos Animais.

Disponível em: <http://www.anda.jor.br/19/11/2010/o-veganismo-e-ativismo-de-paul-mccartney-pelos-

animais>. Acesso em: 30 mar. 2013 e BRIGITTE BARDOT denuncia crueldade em matadouros. Blog Direito

dos Animais. Disponível em: <http://direitodosanimais.spaceblog.com.br/1449897/BRIGITTE-BARDOT-

DENUNCIA-CRUELDADE-EM-MATADOUROS/>. Acesso em: 30 mar. 2013. 2 Animais silvestres, ou simplesmente “fauna silvestre” no Brasil, são aqueles animais identificados de forma

ampla na Lei Federal nº 9.605, de 1998, pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras,

aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites do território

brasileiro, ou águas jurisdicionais brasileiras (parágrafo 3º, do artigo 29). O que diferencia os animais da fauna

silvestre dos animais da fauna doméstica é a característica dos primeiros viverem naturalmente fora do cativeiro,

na acepção do artigo 1º, da Lei Federal nº 5.197, de 1967 (Lei de Proteção à Fauna).

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Comportamentos distorcidos ainda compõem o cenário dos maus-tratos como a

conduta de “acumuladores”, expressão que designa pessoas que reúnem grande número de

animais (especialmente gatos e cães) em condições insalubres em casas e pequenos

quintais, sob o pretexto de cuidar dos espécimes. A coibição dessa prática denunciada

mobiliza voluntários de organizações não-governamentais que, por vezes, na falta de

melhores recursos para destinação, acabam reunindo os animais em novos pontos de

acumulação.

As representações mais comuns de maus-tratos podem ser sistematizadas em:

abandono (deixar em local impróprio, não dispensar cuidados mínimos, não prover

alimentação e abrigo adequados); indevida utilização (em rinhas, emprego em tração com

excesso de peso, submissão a experimentos desautorizados, práticas sexuais, entre outros);

e direta violência física manifesta em agressões com resultado de lesão ou morte. Contra os

animais silvestres, em especial, os maus-tratos se manifestam durante o ciclo do tráfico

ilegal, na retirada do meio natural por meio da caça ou apanha, durante o transporte,

cativeiro e na própria negociação; ainda, a caça irregular sem relação com o tráfico

constitui igual expressão de maus-tratos, com a ressalva de excepcionais e discutíveis casos

de prática para subsistência no tempo presente.

Sob o prisma legal, os animais sempre foram considerados objetos e não sujeitos de

direitos no país; a própria expressão “direito dos animais” divide ainda os estudiosos

quanto a sua amplitude, apesar da existência de dispositivos legais de proteção que, por

exemplo, proibiram a violência contra animais em diversos períodos. Mesmo os

especialistas do recente Direito Ambiental, novo ramo do Direito Público relacionado

principalmente com o Direito Administrativo e com o Direito Penal, resistem à ideia de que

os animais seriam “sujeitos de direito” e a maior parte continua defendendo que os animais

são “objetos de direito” cuja titularidade pertence sempre ao homem em uma visão

tradicionalmente antropocêntrica e dominante nas Ciências Jurídicas. Cito Fiorillo:

Os animais são bens sobre os quais incide a ação do homem. Com isso, deve-se frisar que

animais e vegetais não são sujeitos de direitos, porquanto a proteção do meio ambiente existe

para favorecer o próprio homem e somente por via reflexa para proteger as demais espécies3.

3 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2000.

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Em sentido diverso à noção puramente jurídica dominante não somente no Brasil,

autores como o filósofo australiano Peter Singer defendem com ênfase, desde a década de

1970, a necessidade de novas formas éticas que estabeleçam equilíbrio entre os homens e

os animais, uma nova bioética que transforme o modo como os animais desde tempos

imemoriais são tratados pelo homem4.

Interessa ao presente estudo a evolução do aparato normativo em defesa dos animais

no Brasil, no que se identificou como maus-tratos na expressão do próprio texto legal, junto

ao esforço de coibição de tais práticas.

2. A necessidade de regras para o aproveitamento dos animais.

A experiência milenar de domesticação de animais para a utilização do homem,

desde o período Neolítico há cerca de 10.000 anos, quando surgiu a agricultura e a vida

sedentária, trouxe contrastes no relacionamento entre as espécies – a humana e as não-

humanas – sob a novidade da liderança do ser racional capaz de estabelecer classificações e

juízos de valor sobre os demais: o doméstico e o silvestre, o animal companheiro

(estimação) e o animal selvagem (arisco), o animal útil e o inútil, o animal bom e o ruim5.

As explicações para a sujeição do mundo natural, incluindo todas as espécies

animais, encontraram fundamentos teológicos e filosóficos diversos ao longo do tempo,

sempre destacando a singularidade da espécie no predomínio humano, como acentuou

Keith Thomas:

(...) os teólogos e intelectuais que sentissem a necessidade de justificá-lo podiam apelar

prontamente para os filósofos clássicos e a Bíblia. A natureza não fez nada em vão, disse

Aristóteles, e tudo teve um propósito. As plantas foram criadas para o bem dos animais e

esses para o bem dos homens. Os animais domésticos existiam para labutar, os selvagens

para serem caçados. Os estoicos tinham ensinado a mesma coisa: a natureza existia

unicamente para servir os interesses humanos6.

A utilização comum de certos animais domesticados pelo homem fez surgir a

categoria das espécies domésticas, ou “fauna doméstica”. Trata-se do conjunto dos animais

que, por meio de processos tradicionais e sistematizados de manejo e/ou melhoramento

4 SINGER, Peter. Libertação Animal. Trad. Marly Winckler. Porto Alegre/ São Paulo: Lugano, 2004.

5 ELIAS, Rodrigo. A religião dos bichos. Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 5, n. 60, 2010.

6 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e animais (1500-

1800). Tradução de João Roberto Martins Filho. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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zootécnico, ao longo do tempo, passaram a apresentar características biológicas e

comportamentais em estreita dependência do homem (espécies domesticadas), podendo

apresentar fenótipo variável, diferente da espécie silvestre que os originou7.

Do ponto de vista zoológico, por exemplo, todos os cães pertencem à subespécie

Canis lupus familiares (na classificação de Lineu), originários do Canis lupus (o lobo). O

cão teria sido a primeira espécie domesticada, antes da cabra, do carneiro e do porco:

Podemos imaginar as circunstâncias da primeira domesticação. A atração foi provavelmente

mútua: atração do ser humano pelo lobo, que ele observava caçando e cujos uivos serviam de

meio de comunicação e de ponto de referência; atração do lobo pelo ser humano, que lhe

deixava restos de comida ou permitia se beneficiar da proteção do fogo do acampamento.

Sem dúvida, ambos colaboram em seguida para a defesa do território de caça8.

No caso do Brasil, antes do Descobrimento, os índios não conheciam os animais

domésticos e nem mantinham a prática de criar para o abate; seu sustento era tirado apenas

da caça e da coleta. No entanto, ainda no século XVI, em razão da introdução de espécies

pelos colonizadores, passou-se a registrar a presença de todos os animais domésticos, ou

considerados “domáveis” à época. Assim, proliferaram no país os domésticos, reconhecidos

como animais “bons”, ao ponto de somarem hoje mais de 200 milhões de cabeças de gado e

em torno de 20 milhões de cães, entre outras espécies9.

O grande número de espécimes da fauna doméstica e sua proximidade com o

homem são fatores que explicam a maior frequência de ocorrências de maus-tratos aos

animais domésticos em comparação com as ocorrências envolvendo os silvestres (que

permanecem alvo da caça ilegal e do tráfico, também geradores de maus-tratos). O

aproveitamento da fauna doméstica – considerada propriedade privada – tradicionalmente

não depende de concessão, autorização ou permissão do poder público no Brasil; todavia, o

grande número de situações envolvendo excessos na relação utilitária estabelecida

determinou o avanço da tutela legal ao longo do tempo.

7 Definição extraída do atual ordenamento jurídico brasileiro, baseada no inciso III, do artigo 2º, da portaria

IBAMA nº 93, de 1998. Ainda, a listagem de fauna atualmente considerada doméstica no Brasil foi trazida no

Anexo 1 da mesma Portaria para fins de operacionalização do IBAMA, contendo 49 espécies listadas em

ordem alfabética, com nome comum e nome científico, observando-se que a espécie “avestruz-africana”, por

exemplo, foi acrescida à listagem em 2002 pela portaria IBAMA nº 36, do mesmo ano. 8 ROUSSELET-BLANC, Pierre. Larousse do cão e do cãozinho. São Paulo: Larousse do Brasil, 2010.

9 PRIORE, Mary Del. Mato com cachorro. Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 5, n. 60, 2010.

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A disponibilidade do animal doméstico como bem particular passou a ser limitada pela

lei, que o diferenciou de um simples objeto de uso, de um motor, ou de uma peça de decoração.

3. Evolução do aparato normativo em defesa da fauna

O Brasil era ainda um país predominantemente agrícola até 1930. Não houve censo

nesse ano, mas o censo de 1920 indicou apenas 16,6% da população vivendo em cidades de

20 mil habitantes ou mais e 70% com ocupação em atividades agrícolas10

. No meio rural, a

caça de animais, além da manutenção de domésticos, significava importante recurso para

alimentação e aquisição de valiosos produtos para troca ou comercialização.

No início do século XX, a proteção legal da fauna no Brasil manteve uma perspectiva

privada quanto à relação existente entre o homem e os animais, influenciada pela recorrente

visão patrimonialista, apesar de algumas iniciativas anteriores de proteção legal aos animais

pontualmente registradas. O legislador preocupou-se em coibir condutas lesivas aos

semoventes – animais em geral –, objetivando protegê-los enquanto bens jurídicos

incorporados ou passíveis de incorporação ao patrimônio particular pelo valor econômico a

eles agregado e classificando-os como bens móveis, “suscetíveis de movimento próprio”, na

definição precisa do artigo 47 do Código Civil de 1916, em redação de Clóvis Bevilacqua11

.

Superada a fase revolucionária que marcou o início da década de 1930, o cenário

político e institucional favoreceu inovações legislativas também relacionadas à proteção

dos recursos naturais no Brasil, incluindo a proteção dos animais em geral. Explicam-se as

mudanças pela influência de lideranças em defesa da natureza e a construção de um projeto

político para o país que priorizava a modernização e a maior inserção internacional12

.

Sobreveio o Código de Caça e Pesca de 02 de janeiro de 193413

que restringia, mas não

proibia a caça (e o nome do Código assim o indicava). Curiosamente, durante a vigência desse

Código, surgiu a chamada “Lei de Proteção dos Animais” de 10 de julho do mesmo ano que,

10

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 11

Com texto integral aprovado e consignado na Lei nº 3.071, de 01 de janeiro de 1916, para regular os direitos e

obrigações de ordem privada concernentes às pessoas, aos bens e às suas relações, o Código Civil entrou em

vigência em 01 de janeiro de 1917 e permaneceu em vigência por 86 anos, sendo revogado apenas em 10 de

janeiro 2003, com o início da vigência do novo Codex (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002). 12

FRANCO, José Luiz de Andrade & DRUMMOND, José Augusto. Proteção à natureza e identidade

nacional no Brasil, anos 1920-1940. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2009. 13

Decreto Federal nº 23.672, de 02 de janeiro de 1934 (Código de Caça e Pesca).

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com seus 19 artigos, definiu os “maus-tratos” aos animais por um rol de condutas descritas nos

31 incisos do artigo 3º e, ainda, estabeleceu sanções variáveis (detenção, multa ou ambos) aos

infratores pelas agressões dirigidas tanto aos animais silvestres quanto aos domésticos14

.

Algumas das condutas relacionadas nessa norma exemplificaram os maus-tratos:

obrigar animais a trabalhos excessivos ou superiores às suas forças e a todo ato que resulte

em sofrimento para deles obter esforços que, razoavelmente não se lhes possam exigir

senão com castigo; golpear, ferir ou mutilar voluntariamente qualquer órgão ou tecido de

economia, exceto a castração, só para animais domésticos, ou operações outras praticadas

em beneficio exclusivo do animal e as exigidas para defesa do homem, ou no interesse da

ciência; abandonar animal doente, ferido, extenuado ou mutilado, bem como deixar de

ministrar-lhe tudo o que humanitariamente se lhe possa prover inclusive assistência

veterinária; não dar morte rápida, livre de sofrimento prolongado, a todo animal cujo

extermínio seja necessário para consumo ou não, e outras condutas.

Por uma ficção jurídica, os atos de caça não resultavam maus-tratos. A ressalva

consistia na situação de caça irregular como na hipótese prevista no inciso XXXI (do referido

artigo 3º), que estabelecia como infração de maus-tratos as ações de transportar, negociar ou

caçar em qualquer época do ano, aves insetívoras, pássaros canoros, beija-flores e outras aves de

pequeno porte, exceção feita às autorizações para fins científicos, consignadas em lei anterior.

Notoriamente, as situações em que atos de caça irregular configuravam maus-tratos

eram coincidentes com as restrições do próprio Código de Caça e Pesca. Portanto,

estabeleceu-se o critério de que não se podia maltratar animal silvestre (assim como o

doméstico), mas caçar era permitido, desde que obedecidas as restrições legais.

Em 1941, entrou em vigor a Lei das Contravenções Penais (LCP), que estabeleceu

dispositivo intitulado “crueldade contra animais” (artigo 64) com previsão de pena de

prisão simples ou multa, que vigorou por quase cinquenta anos, mesmo sem a definição do

que seria exatamente “tratar animal com crueldade” ou “submetê-lo a trabalho excessivo”.

Por não existir incompatibilidade com a lei anterior (Lei de Proteção dos Animais),

entendeu-se que aquela não fora revogada para a finalidade de suplementar a interpretação

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Decreto-Lei Federal nº 24.645, de 10 de julho de 1934 (Lei de Proteção dos Animais).

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da mais nova e continuou, desse modo, sendo utilizada como referência pelo amplo rol

exemplificativo de condutas caracterizadoras de maus-tratos.

Já em 1967, sobreveio a chamada Lei de Proteção à Fauna que regrou somente as

relações com a fauna silvestre, apesar do seu título não revelar tal limitação. Acompanhando

a lógica dos anteriores Códigos de Caça, ela não considerou particularmente a questão dos

maus-tratos e sim as restrições quanto à caça e as restrições quanto ao transporte, cativeiro,

comércio e utilização de espécimes silvestres. Partindo-se de sua descrição de “silvestres”

como aqueles animais que vivem naturalmente fora do cativeiro (artigo 1º), restou claro que

os atos de caça - utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha - já absorviam a

circunstância da crueldade a eles dirigida, pela ação do caçador em situação ilegal15

.

Durante a década de 1970, quando em todo o mundo ocorria movimentação crítica

em defesa da natureza e de seus atributos, também surgiram instrumentos internacionais

voltados à tutela dos animais. A Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência

e Cultura (UNESCO), em sessão realizada em Bruxelas em 27 de janeiro de 1978,

proclamou a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, contendo quatorze artigos que

descreveram direitos naturais que deveriam ser respeitados pelo homem na sua relação com

os animais, documento subscrito por quase todos os países do mundo, incluído o Brasil16

.

Uma das justificativas constantes do preâmbulo do documento relatou o desconhecimento e

o desprezo quanto aos chamados “direitos dos animais” que teriam levado o homem a

“cometer crimes contra a natureza e contra os animais”. A Declaração representou um

conjunto de princípios recomendados e não vinculou obrigações, como havia feito antes a

“Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em

Perigo de Extinção” (CITES), firmada ainda em 1973 e voltada ao controle das transações

desses bens naturais em nível internacional17

.

15 Lei Federal nº 5.197, de 03 de janeiro de 1967 (Lei de Proteção à Fauna).

16 LEVAI, Laerte Fernando. Direito dos animais: o direito deles e o nosso direito sobre eles. Campos do

Jordão: Mantiqueira, 1998. 17 A CITES firmada em Washington, a 03 de março de 1973, foi recepcionada oficialmente pelo Brasil em

1975, por meio de Decreto Legislativo Federal e de Decreto Federal que, respectivamente, aprovaram e

promulgaram o acordo, com todos os efeitos dele decorrentes no ordenamento jurídico do país. Além de

apresentar listas de espécies com risco de desaparecimento em várias partes do mundo, atualizadas

periodicamente, a Convenção impôs regras e rigorosas condições para o comércio de animais silvestres em

perigo de extinção.

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Já em 1988, no Brasil, com a alteração dos dispositivos da vigente Lei de Proteção à

Fauna, gravou-se o caráter de inafiançabilidade dos crimes contra a fauna silvestre e

elevou-se a pena prevista ao infrator para o patamar de 2 a 5 anos de reclusão18

. Isso gerou

uma gritante diferença do rigor de tratamento entre os delitos relacionados a animais

silvestres (crimes então inafiançáveis e com penas aumentadas) e os específicos maus-

tratos dirigidos a animais domésticos (ainda contravenção penal da LCP). Criou-se um

abismo entre as condutas contrárias às formas de vida silvestre ou doméstica, somente

explicável por uma estreita e insistente visão utilitarista da relação do homem com a fauna.

A dualidade se manteve até 1998, quando surgiu a Lei dos Crimes Ambientais que

consolidou as normas e harmonizou as penas das infrações relacionadas à fauna, todas

concentradas nos artigos 29 a 37, sob o título “Dos Crimes contra a Fauna”19

. Os maus-tratos

receberam nova tipificação prevista no seu artigo 32, voltada para qualquer espécie de

animal, silvestre ou doméstico. Tal como os delitos relacionados aos atos de caça e as

restrições quanto ao transporte, cativeiro, comércio e utilização de animais silvestres (com

mesma pena, no artigo 29: detenção, de três meses a um ano, e multa), os maus-tratos

passaram a receber tratamento de infração de menor potencial ofensivo, em razão da pena

máxima inferior a dois anos de detenção20

.

Note-se que os atos de caça sempre foram relacionados juridicamente aos animais

silvestres, porque na prática os animais domésticos apenas são caçados em situação

excepcional, quando se assemelham em comportamento aos silvestres por se tornarem

eventualmente bravios nos termos reiterados dos sequenciais “Códigos de Caça”, desde

1934. Por esse motivo, é compreensível que os domésticos têm sido tradicionalmente

protegidos pelos “maus-tratos”, ao passo que os silvestres sempre foram objeto de proteção

legal mais ampla. Com a harmonização das penas estabelecida pela Lei dos Crimes

Ambientais no final da década de 1990, possibilitou-se a tipificação de condutas sem

superveniência de distorções – como até então ocorria – por tratamentos jurídicos desiguais

entre domésticos e silvestres.

18

Lei Federal nº 7.653, de 12 de fevereiro de 1988 (conhecida por “Lei Fragelli”). 19

Lei Federal nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 (Lei dos Crimes Ambientais). 20

Lei Federal nº 9.099, de 26 de setembro de 1995 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, com a

definição das infrações penais de menor potencial ofensivo).

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Além dos dispositivos da Lei dos Crimes Ambientais, surgiram outras avançadas

restrições como as recentes proibições no Estado de São Paulo, de apresentação de animais

em espetáculos circenses e a regulamentação do seu uso em experiências científicas

(aspectos de vivissecção) e durante o abate pelo chamado Código de Proteção aos Animais,

(Lei Estadual nº 11.977, de 25 de agosto de 2005), com punições que vão de advertência e

multa até a perda da guarda do animal ou a interdição de instituições e empresas. Também

no Estado de São Paulo, foram vetados, em provas como rodeios, instrumentos que

induzem o animal à realização de atividade ou comportamento que não se produziria

naturalmente sem o emprego de artifícios21

, além da proibição de vaquejadas, rinhas e

touradas em locais públicos ou privados. A realidade dos outros Estados e suas restrições

legais, no entanto, não são as mesmas em razão de aspectos culturais regionais

apresentados como justificativa para a permanência de alguns espetáculos com animais,

apesar de denunciadas práticas identificáveis como maus-tratos a eles associadas em razão

da legislação federal vigente.

A questão da criação de animais, o abate para consumo e sua forma de execução

constitui tema complexo, por envolver concepções éticas e também religiosas diversas.

Mas, nota-se uma crescente movimentação em nível mundial pela diminuição do

sofrimento dos animais, resultando iniciativas legislativas que pretendem mudar o quadro

de imposição de absoluto confinamento e sacrifício de animais criados para o corte:

Leis que protegem os animais existem desde a Inglaterra vitoriana – quando se proibiu a

tosquia de ovelhas arrancando-se o pelo com as mãos. O movimento em defesa dos

animais que agora toma corpo, no entanto, tem alcance planetário. Ele é resultado da

criação em escala industrial de aves, bovinos e suínos, inicialmente a partir de meados do

século XX com o advento de novas tecnologias e avanços científicos nos processos de

alimentação animal e nas vacinas. O preço do aumento na produtividade das fazendas foi

a submissão dos animais a uma série de procedimentos que lhes causam sofrimento. O que

as entidades defensoras dos animais alegam, e seus argumentos têm convencido governos

e cidadãos, é que boa parte desses maus-tratos pode ser evitada22

.

21

Antes da citada Lei Estadual, a Lei Federal nº 10.519, de 17 de julho de 2002 (conhecida como “Lei dos

Rodeios”) já tratava da fiscalização e da defesa do animal nos referidos eventos. Em nível nacional, a norma

proibia o uso de esporas pontiagudas ou qualquer outro instrumento que cause sofrimento aos animais,

incluindo-se dispositivos com choques elétricos, o que também configura o crime de maus-tratos. 22

ROMANINI, Carolina. Abaixo a crueldade humana. Revista Veja, ed. 08 set. 2010.

24

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------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ NASSARO, Adilson Luís Franco. Maus-tratos aos animais: a crueldade e sua coibição no Brasil. In: Anais da XXX Semana de História: memórias, imagens e narrativas. Assis: UNESP, 2013. p. 16 a 29.

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Sem a pretensão de discutir o mérito das várias concepções que envolvem a questão,

destacadamente pela diversidade cultural característica da sociedade brasileira e de sua

composição étnica, o presente estudo objetivou apresentar um panorama da evolução

legislativa que alcançou, por exemplo, o chamado “abate humanitário” consolidado no

citado Código de Proteção aos Animais, de 2005, em São Paulo. Notadamente, a Lei

Estadual 10.470, de 20 de dezembro de 1999 (de São Paulo), já determinava a utilização,

nos frigoríficos e abatedouros, de técnicas que insensibilizem os animais, reduzindo o

sofrimento no momento do abate, enquanto o novo Código determinou a morte rápida e

indolor a todo animal cujo abate seja necessário para consumo (artigo 2º, inciso IV)23

.

4. O tráfico de animais silvestres e os maus-tratos

O objeto de estudo “tráfico”, ora associado aos chamados “maus-tratos”, constitui

cumulativa ou isoladamente crime ambiental contra a fauna silvestre no Brasil. Apesar de

surpreendentemente não existir ainda em toda a legislação brasileira um crime com o título

“tráfico de animal silvestre” (mesmo com a popularização da expressão na década de 1980),

várias condutas relacionadas à caça comercial, ao transporte, ao cativeiro e à negociação

envolvendo animal silvestre, seu produto ou subproduto, constituem ações próprias ou etapas

de um identificável ciclo do tráfico ilícito, sob um ponto de vista sistêmico. No tráfico, quase

sempre a conduta está associada aos maus-tratos que sofrem os animais objeto de negociação.

No ciclo do tráfico, o momento do transporte e, depois, o tempo de permanência no

cativeiro transitório – ou mesmo no definitivo – quase sempre significam novos

sofrimentos ao espécime silvestre.

Curiosamente, a forma de transportar os animais em condições que diminuam sua

capacidade de reação e permitam sua ocultação não é nova no Brasil, pois desde o tempo da

colonização, quando se transportavam grandes quantidades de animais considerados

exóticos em navios para a Europa, já se adotavam práticas semelhantes. Essa circunstância

liga o passado ao presente na realidade brasileira de um mesmo extrativismo animal

23

Em 1978 a Declaração Universal dos Direitos dos Animais (UNESCO) já havia preconizado, em seu artigo

9º, que o animal criado para servir de alimentação deveria ser nutrido, alojado, transportado e morto sem

que para ele resulte ansiedade e dor.

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associado a tratamento contrário a qualquer padrão ético desejável na relação atemporal

entre homens e outros animais:

O transporte se dava por navios e trens (no período colonial) e os animais eram

transportados amontoados de maneira que não dava para alimentá-los. Ficavam

estressados e para acalmá-los e facilitar o transporte, muitas vezes eram oferecidas aos

animais bebidas alcoólicas, como rum com açúcar. Atualmente, apesar de existirem

técnicas de manejo e transporte adequadas às espécies, no comércio ilegal os animais

continuam sendo transportados confinados em pouco espaço, sem água e alimento, presos

em caixas superlotadas, onde se estressam, brigam, se mutilam e se matam. Além da

ingestão de bebidas alcoólicas, muitas vezes os animais são submetidos a práticas cruéis

que visam a amortecer suas reações e fazê-los parecer mais mansos ao comprador e

chamar menos atenção da fiscalização. É comum dopar animais com calmantes, furar ou

cegar os olhos das aves, amarrar asas, arrancar dentes e garras, quebrar o osso esterno das

aves, entre muitas outras técnicas cruéis24

.

A experiência de fiscalização no trabalho de policiamento ambiental tem

demonstrado que a prática de maus-tratos a animais silvestres durante o transporte e o

cativeiro é um indicador do possível propósito de comércio. Isso ocorre, principalmente em

relação aos espécimes menos valiosos, geralmente os pequenos, como alguns

passeriformes, que são os mais traficados e em quantidades também maiores por viagem e

por espaço de cativeiro. Por outro lado, maltratar um espécime valioso durante o transporte

ou cativeiro sempre representou um risco de perda total do lucro da pretendida negociação

irregular, o que não significa que o espécime mais caro seja “bem tratado” em tal condição.

Independente do propósito daquele que detém a posse do animal – voltada ou não

ao tráfico – a referência para caracterização dos maus-tratos continuou e continua

consubstanciada nas descrições de condutas trazidas pela antiga Lei de Proteção dos

Animais, de 1934, como é o caso do item II do seu artigo 3º, que proíbe manter animais em

lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou

os privem de ar ou luz. E os boletins de ocorrência com apreensão de animais em tais

circunstâncias continuaram a ser registrados no período posterior a 1998, relatando ações

policiais que combateram direta ou indiretamente o tráfico de animais25

.

24

RENCTAS (ONG). Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres. Relatório Nacional

sobre o Tráfico de Fauna Silvestre, com a colaboração do IBAMA, da Polícia Florestal, da Polícia

Federal, das Secretarias do Meio Ambiente e do Ministério do Meio Ambiente, 2001. Disponível em:

<http://www.renctas.org.br/pt/trafico/default.asp>. Acesso em: 12 jan. 2011. 25

Exemplo é o Boletim de Ocorrência Policial Ambiental (BOPAmb) de nº 068001, de 18.02.2006, lavrado

em Assis, que relatou a permanência, no interior de uma residência fechada e em condições insalubres (em

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Em boa parte das fiscalizações, na inexistência de provas ou elementos suficientes

para indicar o envolvimento com o tráfico – apesar de alguns indícios nessa direção –, a

responsabilização penal e também a administrativa foram viabilizadas pelos registros de

maus-tratos a animais, devidamente comprovados26

.

Também foram registrados casos em que o possuidor utilizava os espécimes para

“chamar a atenção”, atraindo pessoas pela sua exibição. Quase sempre, nessa condição, o

animal também é maltratado. O registro da ocorrência 04.02.2009, no município de Pereira

Barreto descreveu bem essa circunstância, com a apreensão de vários animais presos em

gaiolas e expostos no pátio de uma borracharia, submetidos a condições estressantes devido

ao barulho no local e outras condições de insalubridade naquele ambiente27.

Os registros de maus-tratos com decorrentes apreensões de animais silvestres

integraram a estratégia de repressão ao tráfico adotada pelo policiamento ambiental em São

Paulo no período recente. Em face da nova legislação, após 1998, passou-se a privilegiar a

responsabilização penal e administrativa do infrator, como na hipótese das rinhas (brigas

provocadas) em que, além da contravenção do jogo de azar, caracteriza-se o crime

ambiental de maus-tratos envolvendo animais domésticos, silvestres nacionais ou silvestres

exóticos. Diante da complexidade de configuração do tráfico propriamente dito durante a

fase do transporte e do cativeiro – salvo os casos de inquestionáveis evidências – registros

policiais destacaram, no início do Século XXI, a circunstância objetivamente constatável de

ilegal tratamento (no aspecto físico) dirigido ao animal e que configura “maus-tratos”.

chácara da “Água dos Paulistas”), de 17 (dezessete) pássaros silvestres em cativeiro, sendo 12 (doze)

coleirinhas, 04 (quatro) sabiás e 01 (um) papagaio, capturados recentemente da natureza. 26

Artigo 32 da Lei Federal nº 9.605/98 (responsabilidade penal pelo crime de maus-tratos) e parágrafo único

do artigo 27 da Resolução da Secretaria do Meio Ambiente (SMA) de São Paulo nº 37/05

(responsabilidade administrativa pela prática de infração ambiental): “artigo 27: Praticar ato de abuso,

maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos.

Parágrafo Único - Aplicam-se, isolada ou cumulativamente, as sanções previstas nos incisos II, III, IV, IX,

X e XI, do artigo 5º, desta Resolução”. 27

Conforme histórico do Boletim de Ocorrência Ambiental nº 098003, de 24.02.2009, lavrado no município

de Pereira Barreto/SP, por policiais do 2º Pelotão, da 1ª Companhia, do 2º Batalhão de Polícia Ambiental.

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Portanto, associado ao tráfico, tem sido identificado o crime de crueldade ou maus-tratos

contra os animais silvestres e, em vários casos, ainda a formação de quadrilha, na circunstância

de criminosos agindo em unidade de propósitos para completar o ciclo do tráfico28

.

5. Considerações finais

Mesmo reconhecendo-se a existência de leis do século XIX, ou ainda lei anteriores,

voltadas à proteção de algumas espécies animais no Brasil, evidencia-se o surgimento de

iniciativas sistematizadas do poder público central, a partir de 1934, em favor da fauna em

geral, tanto em defesa do valor inerente aos espécimes e dos potenciais benefícios aos

homens dele decorrentes, quanto à proteção do animal em si mesmo considerado.

Basicamente três dimensões passaram a configurar o aparato protetivo em favor dos

animais: as restrições quanto aos atos de caça (independente de eventual propósito de

comércio dos espécimes capturados); as restrições quanto ao transporte, cativeiro,

comércio e utilização de animais silvestres; e restrições propriamente quanto à prática de

abusos na relação homem e animal, o que se denominou “crueldade” ou “maus-tratos”

contra espécimes domésticos ou silvestres.

A própria Constituição Federal que sobreveio em 1988 consolidou essas três frentes

de proteção quando impôs ao Poder Público, no inciso VII do artigo 225, a obrigação de:

“proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua

função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.

Nesse sentido, as decorrentes políticas públicas de proteção ampla à fauna vêm

representando a garantia para efetivação do direito de todos ao ambiente (e ecologicamente

equilibrado), na condição de “bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de

vida” nos termos do caput do referido artigo 22529

.

28

No campo jurídico-penal, a crueldade, ou maus-tratos dirigidos a animais (silvestres ou domésticos) constitui

conduta prevista como crime no artigo 32, da Lei Federal nº 9.605/98, com a seguinte descrição: “Praticar ato

de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos.

Pena: detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa”. Já a formação de quadrilha tem tipificação prevista

no artigo 288, do Código Penal (Decreto-Lei Federal nº 2.848 de 1940): “Associarem-se mais de três pessoas,

em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes. Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos”. 29

A vigente Constituição da República Federativa do Brasil foi promulgada em 15 de outubro de 1988.

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Considerando as intrínsecas e complexas relações entre os diversos espécimes e o

meio, na sua dimensão física e também cultural que envolve o componente humano, a

ampla proteção da fauna significa a proteção da natureza e, reflexamente, a proteção do

próprio homem contemporâneo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRIGITTE BARDOT denuncia crueldade em matadouros. Blog Direito dos Animais. Disponível em: <http://direitodosanimais.spaceblog.com.br/1449897/BRIGITTE-BARDOT -DENUNCIA-CRUELDADE-EM-MATADOUROS/>. Acesso em: 30 mar. 2013. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. ELIAS, Rodrigo. A religião dos bichos. Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 5, n. 60, 2010. FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2000. FRANCO, José Luiz de Andrade & DRUMMOND, José Augusto. Proteção à natureza e identidade nacional no Brasil, anos 1920-1940. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2009. LEVAI, Laerte Fernando. Direito dos animais: o direito deles e o nosso direito sobre eles. Campos do Jordão: Mantiqueira, 1998. O VEGANISMO e o ativismo de Paul McCartney. Anda, Agência de Notícias de Direitos Animais. Disponível em: <http://www.anda.jor.br/19/11/2010/o-veganismo-e-ativismo-de-paul-mccartney-pelos-animais>. Acesso em: 30 mar. 2013. PRIORE, Mary Del. Mato com cachorro. Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 5, n. 60, 2010. RENCTAS (ONG). Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres. Relatório Nacional sobre o Tráfico de Fauna Silvestre, 2001. Disponível em: <http://www.renctas. org.br/pt/trafico/default.asp>. Acesso em: 12 jan. 2011. ROMANINI, Carolina. Abaixo a crueldade humana. Revista Veja, ed. 08 set. 2010. ROUSSELET-BLANC, Pierre. Larousse do cão e do cãozinho. São Paulo: Larousse do Brasil, 2010. SINGER, Peter. Libertação Animal. Trad. Marly Winckler. Porto Alegre/ São Paulo: Lugano, 2004. THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e animais (1500-1800). Tradução de João Roberto Martins Filho. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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