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    Rev. Neurocincias 8(2): 70-75, 2000MUSZKAT, M.; CORREIA, C.M.F. & CAMPOS, S.M. Msica e Neurocincias

    ARTIGO

    Msica e NeurocinciasMauro Muszkat*Cleo M. F. Correia**Sandra M. Campos***

    INTRODUO

    O tema que iremos discorrer sobre as vrias faces entre msica eneurocincia, principalmente no que tange importncia dos estudos em relao organizao cerebral das chamadas funes musicais. O interesse crescentenas pesquisas da relao msica e crebro, a meu ver, so reflexo de doisfatores. O primeiro relaciona-se introduo recente de novas tcnicas deneuroimagem, como a tomografia com emisso de psitrons (TEP) e aressonncia magntica funcional (RMF), que permitem visualizar asmudanas funcionais e topogrficas da atividade cerebral durante a realizaode funes mentais complexas1,2,3,4. Assim, j possvel estudar as mudanasregionais do fluxo sangneo do metabolismo e da atividade eltrica cerebraldurante tarefas de natureza cognitiva, como, por exemplo, enquanto umindivduo processa estmulos sonoros, sejam estes meros sons puros senoidais,rudos, padres rtmicos ou mesmo msica, em sua acepo ampla. Ointeresse pela msica relaciona-se ou reflete uma mudana de paradigma, queest ocorrendo tanto nas cincias humanas como nas cincias biolgicas, einsere-se no terreno da interdisciplinaridade, no qual as especializaes dolugar s fronteiras e unificao de reas, antes seccionadas do conhecimentocomo as cincias e as artes. Neste contexto, no de surpreender o crescenteinteresse na pesquisa das intricadas relaes entre a msica e a medicina,com nfase fisiologia, neurologia e psiquiatria.

    MSICA E CREBRO

    Inicialmente, importante ressaltar aquilo que ns chamaremos de msicaem nossa exposio. Consideramos como msica, independentemente de todaconotao esttico-cultural que esta envolve, todo o processo relacionado organizao e estruturao de unidades sonoras, seja em seus aspectos temporais(ritmo), seja na sucesso de alturas (melodia) ou na organizao verticalharmnica e tmbrica dos sons. Entendemos por funes musicais o conjunto deatividades motoras e cognitivas envolvidas no processamento da msica5. Amsica no resulta apenas da disposio de vibraes sonoras, mas sim da

    * Mdico Neuropediatra e Doutor emNeurologia, EPM Unifesp.

    ** Musicoterapeuta e Mestra em Neurocincias,EPM Unifesp.

    *** Musicoterapeuta.

    RESUMO O artigo analisa a relao da msica com asneurocincias, particularmente a organizaocerebral das funes musicais. Os estudos deneuroimagem funcional revelam que a latera-lizao e a topografia da ativao cerebraldurante o estmulo musical relacionam-se amlt iplos fatores, como famil iar idade aoestmulo, estratgia cognitiva utilizada para oreconhecimento meldico, rtmico e tmbrico emesmo treinamento musical prvio. A relaoentre a msica e as mudanas na atividadeeltrica cerebral sugerida a partir dos casosda chamada epilepsia musicognica, dasdescries das manifestaes musicais decr ises parcia is psquicas ou dos relatosanedticos de mudanas dos padreseletrencefalogrficos interictais durante aaudio de msicas de Mozart.

    UNITERMOSMsica, funo cerebral, assimetria funcionalcerebral.

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    estruturao dessas vibraes em padres temporaisorganizados de signos, cuja forma, sintaxe e mtricaconstitui-se em um verdadeiro sistema independente ecomplexo, no qual significante e significado iroremeter-se estrutura da prpria msica, isto , forma eao estilo musical. Assim, falar sobre as relaesfisiolgicas, comportamentais, psquicas e afetivas entre amsica e o crebro humano remetermo-nos ao dilogoentre esses dois sistemas cibernticos complexosautnomos e interdependentes a msica e o crebro.Assim, o processamento musical envolve a integraobidirecional entre os componentes da estrutura e da sintaxemusicais (ritmo, estrutura, intencionalidade) e oscomponentes funcionais do prprio crebro6,7. Oreconhecimento de alteraes fisiolgicas, acompanhandoo processamento musical, pode auxiliar o desenvolvimento,em bases funcionais, de procedimentos para intervenomusical adequados. Assim, as alteraes fisiolgicas daestimulao sonora podem refletir-se nas mudanas dospadres, no reflexo de orientao, na variabilidade dasrespostas fisiolgicas envolvidas em processos de atenoe expectativa musicais ou na mudana de freqncia,topografia e amplitude dos ritmos eltricos cerebrais6,7,8,9.

    importante ressaltar que o interesse pela relaomsica-crebro no reside somente no fato de a estimulaosonora envolver funes neuropsicolgicas bastantecomplexas com ativao de reas corticais multimodais, maspelo fato de a msica estar, historicamente, inserida no campodas artes, com toda a conotao cultural e simblica queisso acarreta. O fazer musical encerra e integra as funesdo sentir, do processar, do perceber em estruturas ou emuma esttica de comunicao que , por si s, forma econtedo, corpo e esprito, mensageiro e mensagem.

    A msica, nas suas vrias manifestaes enquantoesttica, terapia ou ritual, evoca o humano e suacontradio. Seus elementos de lgica, proporo esimetria esto intimamente relacionados e imbricadosaos elementos de tenso, de relaxamento, que sosentidos, ou conceitualmente interpretados somente embases abstratas que requerem a definio do homem,suas formas de sentir e pensar o mundo, e, portanto, seusistema cultural e social de decodificao. Assim, no de se estranhar que a evoluo da esttica musical doocidente esteja intimamente relacionada com a evoluodo pensamento cientfico de maneira indissocivel.

    HISTRIAS PARALELAS MSICA ECREBRO

    A msica, em seus aspectos estruturais e na suaorganizao estritamente temporal, traduz e reflete a

    conscincia que o homem tem do prprio tempo, sejaeste relacional (que lida com correlao linear entre oseventos, antecedente/conseqente), ou psquico (quetraduz os processos perceptivos, cognitivos e afetivosem uma ordem que reflete ritmos circadianos internos,estados neurovegetativos e emocionais de expectativa,tenso ou repouso7,10).

    No perodo medieval, a viso unidimensional douniverso fsico e a forma de pensamento intuitivo, detendncia espiritual, eram representadas por uma msicamonodimensional, de idioma modal, que expressavauma maneira de estar no mundo no dividida. Igual-mente, o crebro era interpretado como massa homo-gnia, um reservatrio que distribua seus humores vitaispelos ventrculos cerebrais. A partir do Renascimento,com a criao da perspectiva na pintura e daconvergncia tonal e harmnica na msica, h aemergncia de uma viso racionalista de um mundodividido, que separa o eu (self) do espao newtonianoque o circunda (mundo), no qual o tempo, mtrico efacetado, representa e reflete as relaes de causa-efeito.A msica, basicamente temtica, com um tempo mtrico,sendo pulso, marcado na msica barroca como o tique-taque de um relgio, reflete o pensamento deterministade tendncia racionalista e materialista. Essa msicatemtica e mtrica a msica que dominou a estticaocidental por mais de 500 anos. A viso dualista eracional desse perodo apresenta o crebro como centroorgnico privilegiado da vida psquica. Na viso dosfrenologistas do sculo XIX, o crebro era comparti-mentado em vrias reas, abrigando as diferentesfunes psquicas, como as emoes e os comporta-mentos humanos mais sutis, inclusive o amor musica.A msica contempornea do incio do sculo XXcaracteriza-se pelo abandono a referncias fixas comoa tonalidade, organizando as estruturas sonoras a partirde configuraes e inserindo a criao musical noprobabilstico e na capacidade criadora do intrprete edo ouvinte. Neste enfoque, o tempo vivencial (nomedido pelo relgio), o silncio expressivo, a estruturatemporal assimtrica integram um fluxo multidirecionalde sons em representaes grficas que evidenciam otratamento dos signos sonoros enquanto eventos nolineares. Tais conceitos de espao-tempo esto tambmintimamente ligados ao pensamento cientfico moderno,traados nos fundamentos tericos da fsica quntica eda teoria da relatividade. Neste sentido, aproximamo-nosda viso fsica ou material do mundo sob a ptica estticada nova msica, uma vez que ambas traduzem aconscincia auto-reflexiva, a maneira pela qualdimensionamos, relacionamos temporalmente e mesmonomeamos nossos prprios processos psquicos de ver,

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    decodificar, e reinterpretar o mundo em que vivemos.Atualmente, o crebro visto como um sistemacomplexo de reas especficas e no-especficas,colaborando integrao das funes cognitivas,afetivas e sensoriais. Esse sistema funcional atua demaneira concntrica e complementar, atribuindodistintos papis funcionais ao hemisfrio cerebral direitoe ao esquerdo (assimetria funcional hemisfrica), etambm com hierarquias distintas entre as diferentesreas subcorticais e neocorticais. A maneira com que acincia v a relao entre o crebro e as funes musicaissurgiu conjuntamente aos estudos da chamada Assime-tria Funcional Hemisfrica, e os trabalhos verda-deiramente pioneiros s foram realizados na segundametade do nosso sculo, principalmente em pacientesportadores de epilepsia. Entre esses trabalhos, podemosressaltar os de Critchley11 na descrio da epilepsiamusicognica; os de Penfield12, que durante estimulaoeltrica cerebral, por procedimentos neurocirrgicos,descreveram alucinaes auditivas complexas quandoda estimulao do giro temporal superior; os de Wada eRasmussen13, que utilizando o teste de WADA, com ainativao temporria de um hemisfrio cerebral pelainjeo intracarotdea de amital sdico, verificaram, emalguns casos, a dificuldade para cantar, apesar dapreservao da fala; o de Kimura14 com as provas deestimulao auditiva (dictica) de melodias demons-trando a superioridade do hemisfrio direito para oprocessamento meldico, e os trabalhos mais recentesde Zatorre et al.4,15 e Chauvel et al.16 sobre as disfunesmusicais em pacientes submetidos lobectomiatemporal.

    MSICA E NEUROIMAGEM

    A msica, mais que qualquer outra arte, tem umarepresentao neuropsicolgica extensa. Por nonecessitar, como msica absoluta, de codificaolingstica, tem acesso direto afetividade, s reaslmbicas, que controlam nossos impulsos, emoes emotivao. Por envolver um armazenamento de signosestruturados, estimula nossa memria no-verbal (reasassociativas secundrias). Tem acesso direto ao sistemade percepes integradas, ligadas s reas associativasde confluncia cerebral, que unificam as vriassensaes, incluindo a gustatria, a olfatria, a visual ea proprioceptiva em um conjunto de percepes quepermitem integrar as vrias impresses sensoriais emum mesmo instante, como a lembrana de um cheiro oude imagens aps ouvir determinado som ou determinadamsica. Tambm ativa as reas cerebrais tercirias,

    localizadas nas regies frontais, responsveis pelasfunes prxicas de seqenciao, de melodia cinticada prpria linguagem, e pela mmica que acompanhanossa reaes corporais ao som17,18.

    Recentemente, os recursos de neuroimagemfuncional tm contribudo para novos e interessantesachados, enfatizando-se a importncia da lateralizaohemisfrica na percepo musical. Tais trabalhossugerem certo grau de independncia funcional eanatmica para o processamento (ou para estratgia deprocessamento) dos vrios parmetros sonoros. Nestesentido, foi possvel mapear, pelos trabalhos com TEP,as mudanas na ativao metablica durante o proces-samento perceptivo e cognitivo dos constituintes damsica. Assim, Mazziota et al.3 observaram que, emtarefas de discriminao tmbrica, havia maior ativaode reas frontais e temporais do hemisfrio no-dominante. Lauter et al.19 confirmaram a organizaotonotpica do crtex auditivo com ativao anterior elateral para sons graves e mdio e posterior para sonsagudos. Zatorre et al.9 observaram que a audiomeldica passiva envolvia, principalmente, regiestemporais do hemisfrio direito, enquanto em provasmais ativas, que exigiam memria tonal, havia ativaode reas frontais do hemisfrio cerebral direito. Platelet al.13, em trabalho mais recente, estudaram a ativaode diferentes reas cerebrais durante provas queenvolviam alguns parmetros psicoacsticos da msica,a dizer: identificao de mudanas de altura, regula-ridade rtmica, familiaridade meldica, identificao demudana tmbrica. Nas provas envolvendo fami-liaridade, havia maior ativao do giro temporalesquerdo e do giro frontal esquerdo. O reconhecimentotmbrico ativava o giro frontal superior e o giro ps-central direitos, enquanto as provas rtmicas envolviamreas frontais inferiores e a nsula do hemisfrioesquerdo (dominante). Interessante tambm foi o fatode terem observado ativaes de regies occipitais,durante tarefa envolvendo o reconhecimento das alturassonoras, sugerindo existir um recrutamento de reasenvolvidas nos processamentos das imagens como umaestratgia visual para a decodificao das alturas dossons. Alm disso, observaram, tambm, que durantetarefas rtmicas, ocorrem ativaes na rea de Broca (AB44/6) estendendo-se nsula vizinha, sugerindo que essaregio cerebral tem um importante papel no proces-samento de sons seqenciais, o que sugere existir umelo neurobiolgico entre o ritmo musical e a falaexpressiva.

    De um modo geral, as funes musicais parecem sercomplexas, mltiplas e de localizaes assimtricas,envolvendo o hemisfrio direito para altura, timbre e

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    discriminao meldica, e o esquerdo para ritmos,identificao semntica de melodias, senso de familia-ridade, processamento temporal e seqencial dos sons.No entanto, a lateralizao das funes musicais podeser diferente em msicos, comparado a indivduos semtreinamento musical, o que sugere um papel da msicana chamada plasticidade cerebral16,19,20.

    MSICA E LINGUAGEM

    Msica tambm linguagem. Segundo o eminentemaestro e compositor Koellreutter, a msica uma arteque se utiliza de uma linguagem. linguagem, uma vezque util iza um sistema de signos estabelecidosnaturalmente ou por conveno, que transmite infor-maes ou mensagens de um sistema (orgnico, social,sociolgico) a outro. Existem paralelos entre alinguagem verbal e a musical. Ambas dependem, doponto de vista neurofuncional, das estruturas sensoriaisresponsveis pela recepo e pelo processamentoauditivo (fonemas, sons), visual (grafemas da leituraverbal e musical), da integridade funcional das regiesenvolvidas com ateno e memria e das estruturaseferentes motoras responsveis pelo encadeamento epela organizao temporal e motora necessrias para afala e para a execuo musical. No entanto, diferen-temente da linguagem verbal, o cdigo utilizado namsica no separa significante e significado, uma vezque a mensagem da msica no est condicionada aconvenes semntico-lingsticas, mas sim a umaorganizao que traduz idias por uma estruturasignificativa que a prpria mensagem: a prpriamsica.

    Do ponto de vista neuropsicolgico, as estruturasenvolvidas para o processamento musical so funcio-nalmente autnomas e diferentes daquelas envolvidas coma linguagem, isto , fala, leitura e escrita18. Pesquisas empacientes com leso cerebral tm mostrado que a perdada funo verbal (afasia) no necessariamenteacompanhada de perda das funes musicais (amusia).A existncia de afasia sem amusia e a de amusia semafasia indicam uma autonomia funcional dos processosneuropsicolgicos inerentes aos sistemas de comunicaoverbal e musical e uma independncia estrutural de seussubstratos neurobiolgicos. A dissociao entre afasia eamusia flagrante quando se analisam as manifestaesneurolgicas de grandes msicos vtimas de lesescerebrais localizadas. Assim, o compositor russo V. I.Shebalin (1902-1963), aps sofrer dois episdios deacidente vascular cerebral em territrio da cerebral mdiaesquerda, apresentou afasia intensa, mantendo intacta sua

    habilidade para compor. O organista e compositor francsJean Langlais (1907-1991) tornou-se afsico, alxico eagrfico aps hemorragia temporoparietal esquerda,mantendo, no entanto, inalterada sua capacidade paracompor, improvisar e ler notao musical. Maurice Ravel(1875-1937), em virtude de uma provvel doenadegenerativa progressiva, apresentava dificuldade natransposio musical, isto , na passagem da modalidadeauditiva para a visual e/ou motora, estando preservadas apercepo e a idia sonoras, que embora intactas em suamente, estava incapacitado para express-las pela escritae pela execuo musical5.

    EPILEPSIA E MSICA

    Quando se analisam as relaes entre a epilepsia e amsica, dois aspectos devem ser ressaltados: a epilepsiamusicognica e o estudo das funes musicais empacientes portadores de epilepsia parcial.

    A epilepsia musicognica corresponde ocorrnciade crises epilpticas desencadeadas por estmulosmusicais11,21,22. No constitui uma sndrome epilptica,razo pela qual deve-se falar em crises epilpticasdesencadeadas por msica. Trata-se de uma afecorara (1 indivduo em 10 milhes), ocorrendo geralmenteaps os 20 anos de idade. Muitos estudos indicam queesses pacientes so pessoas interessadas em msica.

    Neurologicamente, as crises so geralmente parciaiscomplexas, com freqente generalizao secundria eusualmente coexistindo com outros tipos de crisesespontneas. Etiologicamente so, muitas vezes, crisessintomticas, relacionadas epilepsia lesional. Notrabalho original de Critchley11, descrevem-se 3 tipos deepilepsia denominada de acstico-motora. Um tipo seriaa resposta surpresa ou ao susto; o outro, peranteestmulos musicais intolerveis (para o indivduo),evocadores ou que produzissem desagrado; e o terceirotipo, mais raro, provocado por um estmulo de cartermontono. O fato de diferentes tipos de crises coexistiremsignifica um indcio fisiopatolgico particularmenteimportante, por permitir a interpretao da epilepsiamusicognica como o efeito da msica em um crebroepilptico. As anormalidades eltricas (EEG) sogeralmente temporais, em ambos hemisfrios, e apenaspoucos estudos assumem a localizao temporal direitaou foco mdio-temporal21,22. O autor refere-se grandecontrovrsia relativa fisiopatologia, de ser a crise osimples resultado de um ou vrios estmulos que excitamo crtex cerebral, ou do recrutamento de reas subcorticaise corticais amplas relacionadas com ateno, memria eassociao musical11,21,22.

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    Em relao epilepsia parcial, podemos considerarque as pesquisas sobre estimulaes eltricas realizadasem pacientes portadores de epilepsia do lobo temporaltm contribudo para o conhecimento de aspectosespecficos das funes psicofsicas do crebro,incluindo as funes musicais. Leses e disfunes dolobo temporal podem incapacitar seriamente ashabilidades musicais, como o canto ou a execuo desons, reconhecimento de sons e manuteno deritmos5,8,16,23.

    Mediante estimulao eltrica do lobo temporal,principalmente do giro temporal superior, Penfield eJasper12 surpreenderam-se com o nmero de vezes queo paciente relatava estar ouvindo msica. Essaocorrncia verificava-se a partir de 17 pontos diferentesde estimulao eltrica, ocorrendo em uma freqnciade 3% dos casos com epilepsia do lobo temporal. Amultiplicidade de experincias relatadas pelos pacientesera grande, variando desde vozes, piano tocando ou umaorquestra executando peas musicais complexas.

    Outras pesquisas envolvendo epilepsia e msicatambm tm merecido especial ateno, como as que sereferem s chamadas crises parciais psquicas simples,durante as quais o paciente epilptico pode relatar o quePenfield denominou resposta experiencial, a qual podeser essencialmente auditiva e musical. O paciente poderecordar canes ouvidas na infncia, ouvir vozesfamiliares, padres sonoros complexos (rudos) e atmesmo msica orquestral24,25,26.

    As crises epilpticas pem em evidncia o mecanis-mo de funcionamento das reas cerebrais, possibilitandoo estabelecimento de uma relao entre determinadasalteraes do comportamento e funes psquicas coma localizao e a lateralidade do foco ou da leso.

    Frana Correia et al.5 realizaram um estudo sobre alateralizao das funes musicais em pacientes comepilepsia parcial e sem conhecimento musical econcluram que a presena do foco no hemisfriocerebral direito afeta o desempenho de funes dereconhecimento meldico, enquanto nos casos com focono hemisfrio esquerdo, a reproduo e a organizaortmicas so mais comprometidas.

    EFEITO MOZART

    O efeito Mozart, descrito por Rausher et al.27,bastante divulgado na mdia e alvo de inmerascontrovrsias na literatura, refere-se descrio demelhora no desempenho neuropsicolgico em provasespaciais, bem como mudanas neurofisiolgicas,induzidas pela audio da msica de Mozart. Mais

    recentemente, esse efeito foi investigado por Hughes etal.28 em relao atividade paroxstica eletrencefalo-grfica de pacientes epilpticos. Os autores observaramque a audio de Mozart (Sonata para dois pianos emR Maior, K448) produziu uma significativa reduoda atividade paroxstica interictal em 23 de 29 pacientes(79%), incluindo pacientes em coma. Observaram,ainda, que no s a freqncia da atividade paroxsticadiminua, mas tambm a amplitude das descargas. Omapeamento cerebral realizado durante a sonatamostrava diminuio da atividade teta e alfa nas regiescentrais, com aumento da atividade delta nas regiescentral e mdia. Os autores sugeriram que a arquiteturacomplexa da msica de Mozart poderia relacionar-setemporoespacialmente com a tambm complexamicroorganizao colunar do crtex cerebral (modelotrion), e semelhantemente estimulao eltrica empadro (como a observada aps a estimulao daamgdala na freqncia de 1 Hz) poderia levar aoaumento do limiar convulsivo e diminuio dasdescargas paroxsticas no EEG29. Embora interessante,tais achados requerem confirmao em novos trabalhos.

    CONSIDERAES FINAIS

    importante que os trabalhos de msica emneurocincias surjam da interao multidisciplinar demsicos, musicoterapeutas, neurologistas, neurofi-siologistas, possibilitando a ampliao de nossoshorizontes em uma prtica que integra profissionais queantes tinham suas atividades seccionadas. Isso podepermitir uma comunicao mais eficiente, inclusive emnvel musical e esttico propriamente dito, com doentesem busca de contato, isolados da comunicao por suasdisfunes cerebrais e mentais. A busca de melhorescorrelaes da msica com a funo cerebral ir exigirum trabalho multidisciplinar que considere a prpriaestrutura musical na formulao metodolgica dostrabalhos. Tal intento poder levar inclusive criaode msicas, especficas para determinadas situaes dedisfuno neurolgica, baseadas nos registros e navariabilidade dos prprios sinais biolgicos tempo-dependentes, como, por exemplo, a atividade eltricacerebral. O esforo de trazer a msica para as cinciasde sade poder representar, por um lado, a trans-cendncia de uma prtica musical hedonista baseadaapenas no ouvir-prazer e, por outro, a ampliao da visoda prpria neurocincia, para alm do enfoqueracionalista, que negligencia o subjetivo e o relativoexpresso nas artes.

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    SUMMARYMusic and Neurosciences.This article discusses the relationships between music and neuroscienceparticularly the brain organization of musical functions. Functional imagingstudies found that lateralization and topography of brain activation dependon multiple factors such as familiarity to musical stimuli, cognitive strategyevolving melodic, rhythmic and timbre perception and previous musicaltraining. Changes in brain electrical activity is suggested by musicogenicepilepsy, through phenomenological descriptions of partial seizures withmusical symptoms and anedoctical reports of changes of interictal activityinduced by listening to Mozart music.

    KEYWORDSMusic, brain function, functional brain asymmetry.

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    Endereo para correspondncia:Mauro MuszkatRua Borges Lagoa, 564 - conj 121 Vila ClementinoCEP 04038-031 So Paulo, SPE-mail: [email protected]

    MUSZKAT, M.; CORREIA, C.M.F. & CAMPOS, S.M. Msica e Neurocincias Rev. Neurocincias 8(2): 70-75, 2000