Artigo O eletrocardiograma na fase aguda da Doença de Chagas … · Na Tabela 1 acham-se resumidas...

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Rev Bras Cardiol. 2013;26(2):127-130 março/abril 127 Souza et al. ECG na fase aguda da Doença de Chagas via oral Ar Ar Ar Ar Artigo Or tigo Or tigo Or tigo Or tigo Original iginal iginal iginal iginal O eletrocardiograma na fase aguda da Doença de Chagas por transmissão oral O eletrocardiograma na fase aguda da Doença de Chagas por transmissão oral O eletrocardiograma na fase aguda da Doença de Chagas por transmissão oral O eletrocardiograma na fase aguda da Doença de Chagas por transmissão oral O eletrocardiograma na fase aguda da Doença de Chagas por transmissão oral Electrocardiograms in the acute phase of Chagas Disease through oral transmission Electrocardiograms in the acute phase of Chagas Disease through oral transmission Electrocardiograms in the acute phase of Chagas Disease through oral transmission Electrocardiograms in the acute phase of Chagas Disease through oral transmission Electrocardiograms in the acute phase of Chagas Disease through oral transmission Resumo Fundamentos: A região amazônica sempre foi considerada área de baixo risco para a doença de Chagas (DC). Objetivo: Relatar as alterações eletrocardiográficas observadas na fase aguda da DC transmitida por via oral. Métodos: Foram analisados os traçados eletrocardiográficos de 161 pacientes com quadro clínico, sorológico e parasitológico da DC em sua fase aguda, todos provavelmente contaminados por via oral, de janeiro 2009 a abril 2010, atendidos no Hospital das Clínicas Gaspar Viana, em Belém, PA, Brasil. Resultados: Os resultados mostraram basicamente as mesmas alterações eletrocardiográficas clássicas descritas na fase aguda da doença, sugerindo não haver diferenças significativas entre as miocardites ocasionadas pela transmissão oral em comparação àquelas da transmissão vetorial e sanguínea. Conclusão: As alterações eletrocardiográficas da DC na fase aguda são similares às da doença contraída pela forma vetorial em zonas endêmicas. Palavras-chave: Cardiomiopatia chagásica; Doença de Chagas; Eletrocardiograma Dilma do Socorro Moraes de Souza 1 , Adriana de Jesus Benevides de Almeida 1 , Francisco de Assis Costa 2 , Elenild de Goes Costa 1 , Maria Tereza Sanches Figueiredo 1 , Rui Manoel dos Santos Póvoa 3 6 1 Faculdade de Medicina - Universidade Federal do Pará - Belém, PA - Brasil 2 Serviço de Cardiologia - Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas - Maceió, AL - Brasil 3 Disciplina de Cardiologia - Escola Paulista de Medicina - Universidade Federal de São Paulo - São Paulo, SP - Brasil Correspondência: Dilma do Socorro Moraes de Souza Rua Augusto Correa, 1 - Guamá - 66073-044, Belém, PA - Brasil E-mail: [email protected] Recebido em: 29/01/12 | Aceito em: 06/02/13 Abstract Background: The Amazon region has always been rated as a low-risk area for Chagas disease (CD). Objective: To report on electrocardiographic changes observed in the acute phase of orally transmitted CD. Methods: ECG tracings were analyzed for 161 patients with clinical, serological and parasitological acute phase CD, all probably infected orally, between January 2009 and April 2010, seen at the Hospital das Clínicas Gaspar Viana in Belém, Pará State, Brazil. Results: The results showed basically the same classic electrocardiographic changes described for the acute phase of the disease, suggesting no significant differences between myocarditis caused by oral transmission compared to blood and vector transmission. Conclusion: Electrocardiographic changes in acute phase CD are similar to those found when this disease is contracted through vectors in endemic areas. Keywords: Chagas cardiomyopathy; Chagas disease; Electrocardiogram Artigo Original Introdução Durante muito tempo a Amazônia foi considerada área de baixo risco para a DC. Todavia, recentemente vem sendo reconhecida como problema emergente e, infelizmente, negligenciado na região, com centenas de casos descritos nas últimas décadas, a maioria no estado do Pará, em microepidemias ou em casos isolados 1 . Também têm sido relatadas séries de casos de cardiopatia chagásica crônica (CCC) em pacientes autóctones da Amazônia 2 .

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Souza et al.ECG na fase aguda da Doença de Chagas via oralArArArArArtigo Ortigo Ortigo Ortigo Ortigo Originaliginaliginaliginaliginal

O eletrocardiograma na fase aguda da Doença de Chagas por transmissão oralO eletrocardiograma na fase aguda da Doença de Chagas por transmissão oralO eletrocardiograma na fase aguda da Doença de Chagas por transmissão oralO eletrocardiograma na fase aguda da Doença de Chagas por transmissão oralO eletrocardiograma na fase aguda da Doença de Chagas por transmissão oral

Electrocardiograms in the acute phase of Chagas Disease through oral transmissionElectrocardiograms in the acute phase of Chagas Disease through oral transmissionElectrocardiograms in the acute phase of Chagas Disease through oral transmissionElectrocardiograms in the acute phase of Chagas Disease through oral transmissionElectrocardiograms in the acute phase of Chagas Disease through oral transmission

Resumo

Fundamentos: A região amazônica sempre foiconsiderada área de baixo risco para a doença deChagas (DC).Objetivo: Relatar as alterações eletrocardiográficasobservadas na fase aguda da DC transmitida por viaoral.Métodos: Foram analisados os traçadoseletrocardiográficos de 161 pacientes com quadro clínico,sorológico e parasitológico da DC em sua fase aguda,todos provavelmente contaminados por via oral, dejaneiro 2009 a abril 2010, atendidos no Hospital dasClínicas Gaspar Viana, em Belém, PA, Brasil.Resultados: Os resultados mostraram basicamente asmesmas alterações eletrocardiográficas clássicasdescritas na fase aguda da doença, sugerindo nãohaver diferenças significativas entre as miocarditesocasionadas pela transmissão oral em comparaçãoàquelas da transmissão vetorial e sanguínea.Conclusão: As alterações eletrocardiográficas da DCna fase aguda são similares às da doença contraídapela forma vetorial em zonas endêmicas.

Palavras-chave: Cardiomiopatia chagásica; Doença deChagas; Eletrocardiograma

Dilma do Socorro Moraes de Souza1, Adriana de Jesus Benevides de Almeida1, Francisco de Assis Costa2,Elenild de Goes Costa1, Maria Tereza Sanches Figueiredo1, Rui Manoel dos Santos Póvoa3

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1Faculdade de Medicina - Universidade Federal do Pará - Belém, PA - Brasil2Serviço de Cardiologia - Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas - Maceió, AL - Brasil3Disciplina de Cardiologia - Escola Paulista de Medicina - Universidade Federal de São Paulo - São Paulo, SP - BrasilCorrespondência: Dilma do Socorro Moraes de SouzaRua Augusto Correa, 1 - Guamá - 66073-044, Belém, PA - BrasilE-mail: [email protected]

Recebido em: 29/01/12 | Aceito em: 06/02/13

Abstract

Background: The Amazon region has always beenrated as a low-risk area for Chagas disease (CD).Objective: To report on electrocardiographicchanges observed in the acute phase of orallytransmitted CD.Methods: ECG tracings were analyzed for 161patients with clinical, serological and parasitologicalacute phase CD, all probably infected orally, betweenJanuary 2009 and April 2010, seen at the Hospitaldas Clínicas Gaspar Viana in Belém, Pará State,Brazil.Results: The results showed basically the same classicelectrocardiographic changes described for the acutephase of the disease, suggesting no significantdifferences between myocarditis caused by oraltransmission compared to blood and vectortransmission.Conclusion: Electrocardiographic changes in acutephase CD are similar to those found when thisdisease is contracted through vectors in endemicareas.

Keywords: Chagas cardiomyopathy; Chagasdisease; Electrocardiogram

ArtigoOriginal

Introdução

Durante muito tempo a Amazônia foi consideradaárea de baixo risco para a DC. Todavia, recentementevem sendo reconhecida como problema emergentee, infelizmente, negligenciado na região, com

centenas de casos descritos nas últimas décadas, amaioria no estado do Pará, em microepidemias ouem casos isolados1. Também têm sido relatadas sériesde casos de cardiopatia chagásica crônica (CCC) empacientes autóctones da Amazônia2.

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Informações do Ministério da Saúde indicam que de2005 a 2009 foram notificados 455 casos de DC agudano Brasil, dos quais 389 (85,5%) ocorreram na regiãonorte do país, sendo 310 (68,1%) no Pará e 29 (6,3%)casos no estado do Amazonas3,4.

O objetivo deste estudo foi relatar as alteraçõeseletrocardiográficas observadas na fase aguda da DCtransmitida por via oral e alertar a comunidadecientífica e autoridades de saúde para essa forma decontaminação pelo Trypanosoma cruzi, menosconhecida, porém não menos grave, dada a facilidadede contaminação com alimentos mal processados.

Métodos

De janeiro 2009 a abril 2010 foram analisados ostraçados de eletrocardiograma (ECG) de 166 pacientesatendidos no Hospital das Clínicas Gaspar Viana, emBelém, PA, Brasil. Os indivíduos apresentavam quadroclínico, sorológico e parasitológico da DC em sua formaaguda, e eram provenientes de diversas áreas daAmazônia Brasileira, sem histórico de viagens paraoutros locais, razão por que foram considerados casosautóctones.

Figura 1Eletrocardiograma típico depaciente com doença deChagas em fase aguda.Observar complexos de baixavoltagem nas derivações doplano frontal, taquicardiasinusal e alterações darepolarização de V1 a V4.

Foram excluídos do estudo cinco pacientes, porsuspeita clínica de doença cardíaca prévia. O estudofoi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa daUniversidade Federal do Pará, sob o nº 070/2009.

O diagnóstico laboratorial foi feito de modo direto eindireto. Foram considerados casos agudos aquelesque apresentaram exames parasitológicos diretos (afresco, gota espessa ou método de Strout) e/ou IgManti-Tripanossoma cruzi positivos no teste dehemaglutinação, ELISA e/ou imunofluorescênciaindireta, com títulos ≥1:40. Todas as análises foramrealizadas no Instituto Evandro Chagas e noLaboratório Central do Pará.

A grande maioria dos pacientes, cerca de 90% doscasos, tinha, sabidamente, histórico de ingestão desuco de açaí ou bacaba (açaí branco) nas últimas trêssemanas.

EletrocardiogramaRealizou-se ECG de 12 derivações, em repouso, como paciente em posição supina, velocidade de registrode 25 mm/s, calibração padronizada para 1,0 mV/cm,aparelho digital da marca TEB (São Paulo, SP, Brasil).

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O traçado foi decodificado e, para isso, utilizou-se lupacom escala em milímetros em sua face de contato com otraçado, o que permitiu maior precisão da análise. Asvariáveis: onda P, intervalo PR, complexo QRS, onda T,intervalo QT e segmento ST foram avaliadas pelomesmo observador, um cardiologista com mais de 30anos de experiência em eletrocardiografia.

Resultados

Dos 161 pacientes incluídos no estudo, 68 (57,8%)eram mulheres. A média de idade foi 33,5±16,1 anos(18 a 84 anos). Na Tabela 1 acham-se resumidas asprincipais alterações eletrocardiográficas verificadasna série estudada. Foi comum a simultaneidade devários distúrbios num mesmo paciente. Três pacientesevoluíram ao óbito por quadro de insuficiênciacardíaca refratária ao tratamento clínico.

enfrentado pelos órgãos de vigilância sanitária. Nainfecção por tal via a apresentação da doença é, quasesempre, aparente e polissintomática, mas com relativabenignidade de prognósticos imediatos1,4, embora napopulação aqui avaliada tenham ocorrido três (1,8%)óbitos por insuficiência cardíaca aguda e refratáriaao tratamento instituído.

Os indivíduos que se contaminam por via oral, adepender da quantidade do inóculo, podem evoluircom infecções parasitárias maciças ou eliminar oparasito, antes mesmo que ele possa causar infecção.Entretanto, cargas maiores de inóculo ou cepas maisagressivas podem determinar doença mais grave4. Aforma oral de contaminação da DC é um desafio a servencido pelos serviços públicos de saúde do Brasil.

Em se tratando de agente etiológico, têm sido descritos,na Amazônia, o Trypanosoma cruzi dos gruposzimodemas 1, 3 ou híbrído Z1/Z3, cepas diferentesdas encontradas nas zonas tradicionalmenteendêmicas do Brasil, onde predomina o zimodema 25.Não se conhece completamente a patogenicidade dascepas amazônicas, porém acredita-se que acarretemmorbidade menor do que aquelas observadas em áreasendêmicas do país2,5.

Quanto às alterações eletrocardiográficas, são muitocomuns na CCC e, frequentemente, constituem oprimeiro indicador do surgimento da doença6.Inicialmente, essas alterações são caracterizadas porretardos transitórios ou fixos da conduçãoatrioventricular, da condução pelo ramo direito,alterações da repolarização ventricular ouextrassístoles ventriculares6. Na evolução do quadro,sobretudo quando aparece disfunção contrátil, globalou segmentar, as alterações eletrocardiográficas setornam marcantes e têm implicações prognósticas6,7.

Na CCC é usual a ocorrência de vários distúrbios doritmo e da condução atrioventricular, sendo aconcomitância do bloqueio completo do ramo direito edo bloqueio divisional anterossuperior esquerdo amais presente (>50% dos pacientes)6. Já na fase agudada DC, as alterações mais comumente descritas sãotaquicardia sinusal, baixa voltagem dos complexosQRS, prolongamento do intervalo PR e/ou QT ealterações da repolarização ventricular5. As arritmiasventriculares, fibrilação atrial e bloqueio do ramodireito são situações que apontam para piorprognóstico8.

Na série aqui estudada quase todas as modificaçõeseletrocardiográficas classicamente descritas naliteratura foram encontradas, merecendo destaque aalta ocorrência de alterações da repolarizaçãoventricular, presente em mais de 70% dos casos. Além

Discussão

A Amazônia é considerada hipoendêmica para DC2.Contudo, ultimamente têm ocorrido casos agudos, emsurtos, conforme salientado na parte introdutória destetrabalho. Em relação à doença crônica, estima-se aprevalência na região em 1% a 3%, com risco maiselevado em algumas subregiões4,5. Surtos da DC têmsido descritos em áreas às margens de rios Negro eSolimões e algumas características sugeremtransmissão por via oral, relacionada ao consumo desuco de açaí ou bacaba frescos, com precáriahigienização do fruto ou dos equipamentos para aprodução artesanal do sumo2,4 .

Esta forma de transmissão da DC é objeto de interesseem publicações recentes e um novo desafio a ser

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das já citadas, cabe ressaltar a presença de sobrecargaatrial esquerda, zonas eletricamente inativas,dissociação atrioventricular e complexo QRSalargado (≥0,12 ms) sem, no entanto, nenhum registrode bloqueio do ramo esquerdo, sugerindo que nãohaja diferença significante na miocardite agudacausada pela transmissão oral, comparativamente àmiocardite ocasionada pela contaminação vetorial ousanguínea, meios de contaminação mais conhecidose estudados em regiões endêmicas.

Conclusão

As alterações eletrocardiográficas da fase aguda sãosimilares àquelas observadas quando a doença écontraída de outras formas, em zonas endêmicas.

Potencial Conflito de InteressesDeclaro não haver conflitos de interesses pertinentes.

Fontes de FinanciamentoO presente estudo não teve fontes de financiamentoexternas.

Vinculação AcadêmicaO presente estudo não está vinculado a qualquer programade pós-graduação.

Referências

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