Artigo sobre Comunidade e Empatia_para a Fundação Serralves Final

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Comunidade, Empatia e a Arte Quando somos crianças, as nossas réplicas de casas, carros, ou bonecos têm por vezes um carácter pragmático e simultaneamente inacabado: criamos uma casa com o simples gesto de pendurar um lençol entre dois sofás. O espaço torna-se realmente uma casa quando inventamos a sua história e damos significado a cada elemento da casa, através da nossa imaginação. Nestes momentos fluímos. Estamos em perfeita consonância, em empatia connosco e com tudo o que nos rodeia. Mesmo depois de terminarmos a obra ( se é que alguma vez terminamos), o diálogo continua, com novos actores e criadores que inspirados pela obra inicial imaginam novas possibilidades. Este aspecto transitório e em permanente adaptação da vida, acompanha-nos quando nos tornamos adultos: novas escolas, novas casas, novas comunidades, novos países. Apercebemo-nos, tal como Heráclito de Efeso que “a única constante é a própria mudança”. Nascem e desaparecem novos padrões, novos organismos, novos sistemas. De acordo com Tom Atlee “As coisas estão a melhorar e simultaneamente a piorar, a uma velocidade cada vez maior”. Muitas destas mudanças acontecem ao nível do clima: com o aumento das temperaturas, dos níveis do mar, catástrofes naturais, o pico de petróleo(o fim do petróleo barato e abundante); ao nível da tecnologia: na forma como nos desligamos na presença do Outro para nos “ligarmos” a Outros, virtualmente. Estas e outras mudanças acontecem a uma velocidade que o nosso corpo não consegue acompanhar, entender ou reagir e com impactos directos na nossa saúde. Como humanos, vivemos um momento importante: Estaremos conscientes de que as decisões que tomamos serão determinantes para o planeta e para as gerações futuras? A ambição do crescimento económico desregrado tornou-nos a todos, responsáveis pela destruição da Terra e o enfraquecimento das comunidades. Como vamos explicar isto às gerações futuras?

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Comunidade, Empatia e a ArteQuando somos crianas, as nossas rplicas de casas, carros, ou bonecos tm por vezes um carcter pragmtico e simultaneamente inacabado: criamos uma casa com o simples gesto de pendurar um lenol entre dois sofs. O espao torna-se realmente uma casa quando inventamos a sua histria e damos significado a cada elemento da casa, atravs da nossa imaginao. Nestes momentos flumos. Estamos em perfeita consonncia, em empatia connosco e com tudo o que nos rodeia. Mesmo depois de terminarmos a obra ( se que alguma vez terminamos), o dilogo continua, com novos actores e criadores que inspirados pela obra inicial imaginam novas possibilidades.Este aspecto transitrio e em permanente adaptao da vida, acompanha-nos quando nos tornamos adultos: novas escolas, novas casas, novas comunidades, novos pases. Apercebemo-nos, tal como Herclito de Efeso que a nica constante a prpria mudana. Nascem e desaparecem novos padres, novos organismos, novos sistemas.De acordo com Tom Atlee As coisas esto a melhorar e simultaneamente a piorar, a uma velocidade cada vez maior. Muitas destas mudanas acontecem ao nvel do clima: com o aumento das temperaturas, dos nveis do mar, catstrofes naturais, o pico de petrleo(o fim do petrleo barato e abundante); ao nvel da tecnologia: na forma como nos desligamos na presena do Outro para nos ligarmos a Outros, virtualmente. Estas e outras mudanas acontecem a uma velocidade que o nosso corpo no consegue acompanhar, entender ou reagir e com impactos directos na nossa sade. Como humanos, vivemos um momento importante: Estaremos conscientes de que as decises que tomamos sero determinantes para o planeta e para as geraes futuras? A ambio do crescimento econmico desregrado tornou-nos a todos, responsveis pela destruio da Terra e o enfraquecimento das comunidades. Como vamos explicar isto s geraes futuras? Ainda vivemos ecos da cultura individualista e das teorias que colocavam o Homem no centro ou acima do planeta. O desenvolvimento destas ideias contriburam para o isolamento, o salve-se quem puder e a competio que vemos nossa volta. As comunidades em transio - grupos que perante o desafio do Pico do petrleo e da mudana climtica assumiram a responsabilidade de reduzir as suas pegadas de carbono e, aumentar a sua resilincia perante as mudanas deste declnio- so um exemplo do que possvel fazermos. Mas importa que todos reconheamos a complexidade dos desafios que enfrentamos e tenhamos este dilogo, neste momento de transio.Talvez possamos comear por um processo de auto-empatia: pararmos, ouvirmo-nos e prestarmos ateno ao que est a acontecer connosco, olharmos para dentro e conectarmo-nos com o nosso corpo. Que dir a nossa criana interior? Que sinais fsicos sentimos quando pensamos a nossa sociedade? Importa, tambm, conectar com o Outro, entender a experincia e o significado que a vida tem para o Outro. A dificuldade que, por vezes temos, de olhar nos olhos, de cumprimentar o nosso vizinho ou do contacto fsico so influncias de uma viso do mundo fragmentada, em que cada ser humano uma ilha. Esta iluso de separao tem raiz no jogo do ganha-perde, em que uns ganham e outros tm de perder, e na noo de poder sobre - em que o Homem tem poder sobre a natureza, justificando assim a explorao insustentvel do planeta. Se entendemos que existe escassez no planeta, passamos a lutar e defender o que temos e o Outro passa a ser aquele que quer ficar com a nossa parte, justificando-se assim, toda a violncia e abuso de poder. atravs da ligao emptica, que criamos relaes que vo alm das barreiras entre o Eu e o Outro, e que so essenciais para um dilogo genuno, onde a vulnerabilidade e a serendipidade so elementos chave. Por outro lado, e perante mudanas rpidas e imprevisveis como as que vivemos, temos a oportunidade de olhar para a abundncia que j existe, para o que nos liga, e construir, a partir daqui, os alicerces que libertam a inteligncia colectiva humana, em larga escala. A noo de poder com, foca na importncia e necessidade de recuperar a ideia de comunidade como forma de resistncia, perante os desafios complexos e as mudanas que vivemos. Uma comunidade pode ser definida de vrias formas, uma delas entend-la como um sistema vivo - com vrios elementos que interagem entre si; que tem uma hierarquia, funcionando dentro de limites identificveis, e que muda ao longo do tempo medida que desafiada por factores externos ou internos a ele. Uma comunidade partilha valores e interesses comuns e tem na empatia e na solidariedade um alicerce primordial para a sua sobrevivncia.As ligaes entre todos os membros da comunidade so estruturantes para a criao da identidade da comunidade. O fortalecimento destas ligaes permite-nos passar do foco unicamente no individuo para o foco no Outro, no colectivo. Este Outro que pela sua existncia ajuda-nos definir-nos e a perceber quem somos. Nesta dana sinrgica, a que chamamos empatia, andamos quilmetros nos sapatos do Outro e aprendemos que a experincia do Outro tambm a nossa e que possvel alarga-la a toda a humanidade. Vemos os outros como eles mesmos se veem, algo que requere imaginao e uma sofisticada aptido para reconhecer emoes e comunica-las com preciso.

Bren Brown cita Theresa Wiseman, na atribuio das quatro qualidades de empatia: 1. Ser capaz de ver o mundo como os outros veem; 2. No julgar;3. Entender os sentimentos da outra pessoa,4. Ser capaz de comunicar o que entendemos dos sentimentos da outra pessoa.Brown entende que empatia uma competncia que deve de ser praticada diariamente: dar e receber empatia.Como podemos manifestar e colocar em aco estas ideias, de empatia e comunidade, num contexto de rpidas mudanas? A empatia e o sentido de comunidade so dois elementos trabalhados em Dragon Dreaming, uma metodologia de gesto de projectos colaborativos de sucesso e sustentveis. Esta metodologia nasceu na Austrlia nos anos 80, e foi desenhada por John Croft e Vivianne Elanda fundadores da Gaia Foundation of Australia. Simbolicamente, Dragon (representa os nossos medos, anseios, inseguranas) e Dreaming (representa os nossos sonhos, as nossas ideias e vises). Dragon Dreaming tem como princpios: o crescimento pessoal do individuo; o fortalecimento de comunidades e o servio ao planeta e a todos os seres. Esta metodologia e filosofia foi largamente inspirada na cultura aborgene australiana - uma das culturas mais antigas e mais sustentveis do planeta.Um das ferramentas utilizadas no Dragon Dreaming a "comunicao carismtica", que consiste em desligarmos a voz que fala dentro das nossas cabeas, que julga e interpreta tudo o que ouvimos- para nos conectarmos com nossa energia interna e com os nossos sentimentos. Ao conectamos com o presente, podemos expressar os nossos sentimentos de verdade e deixamos sair o que temos dentro. Este um processo que inclui cada pessoa, dando-lhe a oportunidade de poder exprimir o que realmente sente. Comunicar desta forma muda tudo. Abdicamos de ter sempre razo e passamos a tentar descobrir, dando espao curiosidade, ao inesperado e aprendizagem do que no sabamos que no sabamos. Na comunicao carismtica para conseguirmos silenciar a voz dentro das nossas cabeas importante a escuta profunda ou o Pinakarri, que consiste em relaxar e libertar as tenses que sentimos no corpo. Permanecer em silncio durante somente 30 segundos permite-nos ouvir o que se passa dentro de ns, avaliar o que realmente importa, superar a nossa tendncia de dominao, para podermos ser mais autnticos. Contribuindo assim, para uma comunidade, em que cada individuo escutado e percebido, assim como as suas necessidades e sonhos. O Dragon Dreaming incorpora tambm os princpios da Comunicao No-violenta: 1-Cada um responsvel pelos seus sentimentos, palavras e aces; 2-No sentir-se responsvel pelo o que outros sentem em relao a ns; 3-No forar outros a sentirem, a pensarem ou a agirem da forma como desejamos, 4-Reconhecer que ao julgarmo-nos e aos outros, bloqueamos a possibilidade de uma comunicao honesta; 5-Todas as pessoas esto ligadas ao nvel dos sentimentos e das necessidades.So tambm influncias a filosofia da Ecologia profunda desenvolvida por Joanna Macy, que defende que cada elemento da natureza, inclusive a humanidade, deve ser preservado e respeitado para garantir o equilbrio do sistema da biosfera.Em Dragon Dreaming cada projecto passa por quatro fases: Sonhar, Planear, Fazer e Celebrar. precisamente na fase da celebrao que procuramos algo para apreciar no Outro: reconhecemos o seu percurso ao longo do projecto, desafios ultrapassados e reconhecemos todas a suas foras e fraquezas. Tenho tido a oportunidade de testemunhar, o poder desta ferramenta quando facilito processos de mudana e aprendizagem com grupos de estudantes, empresrios, comunidades existentes ou intencionais, em contextos urbanos e tambm rurais. O simples gesto de sentarmos em crculo - onde possvel ter cada pessoa mesma distncia e ao mesmo nvel, favorece que as relaes sejam horizontais e mais fortes.Tenho verificado que muitas pessoas sentem uma forte perda de identidade e de sentido de comunidade na sociedade moderna ocidental e veem a possibilidade da reconstruo dos alicerces da comunidade como uma prioridade para o futuro. A realizao de projectos colaborativos permite no s perceber estes princpios chave, como experiencia-los na prtica. Ao longo deste processo de aplicar o Dragon Dreaming em projectos e tambm na minha vida, aprendi que o crescimento pessoal do indivduo essencial para que os projectos sejam sustentveis, pois fortalece a sua motivao, resilincia e a persecuo dos seus sonhos. A comunidade tem um papel primordial na realizao dos nossos sonhos, uma vez que para que os nossos sonhos sejam sustentveis precisamos de uma equipa ou uma comunidade volta do sonho. Segundo Marshall Rosenberg, tal como a necessidade que temos de alimento, segurana, honestidade, propsito, contribuio e amor - fazer parte de uma comunidade que nos aceite e nos nutra uma necessidade humana bsica. Para que o projecto tenha sucesso e seja sustentvel necessrio cuidar para que as pessoas, as comunidades e o planeta tambm sejam sustentveis. Cuidar da comunidade permitir um conhecimento das emoes, valores, identidades que quando comparadas s nossas, nos ajudam a perceber e a definir quem realmente somos, alm da mscara e dos papis que, por vezes, usamos, diariamente. deixarmo-nos ver, com os nossos erros e as nossas fraquezas. Este gesto essencial para a criao da confiana, gerir conflitos e para nos conectarmos a um nvel mais profundo. sabermos ouvir um no e conseguirmos ter a capacidade de ter empatia, pela pessoa e pelas razes da sua recusa. Mostra-nos que a experincia do outro tambm a nossa, de toda a comunidade e da humanidade.Esta competncia de suma importncia para uma revoluo global nas relaes humanas e para a libertao da inteligncia colectiva. Carece de ser ensinada nas nossas escolas, s nossas crianas e adultos. Comeamos a testemunhar o surgimento de projectos como o Start Empathy no Reino Unido, o Roots of Empathy no Canad ou o Empathy Museum que esto a trabalhar com crianas, agindo precocemente, para que esta transformao e reconexo com o Eu, o Outro e o Planeta sejam uma realidade hoje e no futuro.A arte tem um papel essencial nesta descoberta do mundo fora de ns, pois atravs da arte que samos de ns prprios para conhecer como o Outro v o universo- que por vezes, no a mesma forma como ns vemos. Assim, em vez de ver um s universo, passamos a ver mltiplas possibilidades e universos.Em 2004 desenvolvi, em parceria com um conjunto de artistas de diversas disciplinas, um projecto artstico para jovens multiculturais de um bairro ilegal no concelho da Amadora. Geograficamente e visualmente, a imagem deste bairro semelhante s favelas e morros do Brasil: casas construdas pelos prprios moradores, estradas por alcatroar e uma vida comunitria vibrante e dinmica. Era um territrio onde viviam pessoas com poucas posses, muitas vezes estigmatizado, marginalizado e associado ao crime.Desafiamos um grupo de jovens (com idades 17 e os 24 anos) - alguns acompanhados pela Comisso de Proteco da Criana e do Jovem- a escrever um argumento e a criar uma performance que envolvesse teatro, msica, dana e outras disciplinas que permitissem traduzir melhor as suas ideias.O resultado de 8 meses de trabalho foi a criao do musical chamado O outro lado do bairro - que mostrou o estigma existente na cidade em relao ao bairro mas tambm o sentido de comunidade, de partilha e cooperao, de criatividade e empatia; os medos e as vulnerabilidades, as alegrias e as celebraes, a diversidade e essncia humana dos moradores do bairro. Capturar esta vida e traduzi-la numa performance, um acto de profunda empatia e este grupo de jovens conseguiu faz-lo.A pea O Outro lado do bairro foi apresentada pela primeira vez na comunidade de Santa Filomena, de onde os jovens so oriundos, depois na principal sala de espectculos do concelho da Amadora. Seguiu-se uma apresentao no teatro Maria Matos em Lisboa, depois em Roterdo na Holanda, no festival Urban Act e finalmente em Londres, no Reino Unido. As vidas destes jovens mudaram porque acreditaram ser possvel contar a histria da sua comunidade de uma forma diferente, algo que lhes deu identidade, pertena. Mas tambm porque acreditaram no poder reparador e transformador da comunidade. Tal como dizia R. Buckminster Fuller No existe nada na lagarta que nos indique ela ir transformar-se numa borboleta A arte tem uma relao estreita com o sonho, com as possibilidades dentro do impossvel. Est constantemente virada para o futuro, em constante construo. Ela ajuda a comunidade a falar daquilo que difcil falar, cria o espao, o silncio, o contexto para o dilogo entre as partes. Mostra o que foi perdido ou apagado, o que est em falta e o que preciso fazer, de uma forma potica. Existem outros exemplos desta ligao entre a arte e a comunidade, o projecto Favela Painting dos artistas Jeroen Koolhaas e Dre Urhahn, que pintaram uma favela inteira do Rio de Janeiro com o envolvimento e participao de toda a comunidade. Ou ainda o projecto O Bairro i o Mundo no bairro social Quinta do Mocho, que teve como objectivo mudar o estigma de um dos bairros mais sensveis de Loures, convidando artistas de graffiti a pintarem fachadas inteiras dos prdios. Estas pinturas deram alento aos moradores e inspiraram crianas e jovens a falar de arte, a experiencia-la, criando-a e transformando o bairro numa verdadeira galeria de arte a cu aberto. possvel fluirmos com o Outro, nas comunidades onde vivemos e com a natureza. Somos autores e criadores de comunidade todos os dias; quando samos rua e damos um bom dia, ou preocupamos com um elo menos forte na corrente invisvel que nos faz vizinhos, amigos, e seres humanos. Quando encontramos algo para apreciar no Outro. Perante os desafios que enfrentamos, precisamos de criar comunidades resilientes, aliceradas na empatia e no profundo reconhecimento de que s juntos, libertando a inteligncia colectiva, conseguimos deixar um legado de um planeta saudvel para a gerao futura. Somos construtores de comunidades todos os dias: pela forma como lidamos connosco, com os Outros e pelos projectos que criamos. Umas das sabedorias do Dragon Dreaming que no existem projectos sustentveis sem pessoas sustentveis. A arte, a empatia e as comunidades so pontes para esta viagem humana que nos ajuda a explorar os novos caminhos e a reconstruirmo-nos de forma sustentvel.