Artigo Sobre Os Povos Indígenas e o Imaginário Nacional
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POVOS INDÍGENAS E O IMAGINÁRIO NACIONAL
Denize de Souza Carneiro1 Virgínia do Nascimento Peixoto2
Introdução
Pretende-se com este artigo, apresentar um panorama sobre a construção do
imaginário nacional acerca dos povos indígenas no Brasil. O objetivo não é “contar ”
uma história do Brasil, mas pontuar aspectos que nos permitam entender a presença do
indígena na historiografia do Brasil e os fatores que levaram à formação dos
preconceitos e estereótipos sobre o indígena brasileiro.
Desde a chegada dos europeus até os dias de hoje, a relação com os indígenassempre foi repleta de conflitos e de negação desses. Além das imensas perdas causadas
pelos interesses políticos e econômicos dos colonizadores, os indígenas ainda sofrem
devido aos conceitos negativos e estereótipos construídos e difundidos por narrativas e
imagens produzidas pelos viajantes europeus, assim como por outras, aqui produzidas
em decorrência dessas, não apenas sobre indígenas, mas também sobre os colonos.
Esses estereótipos se estabeleceram no tempo do Brasil colônia, propagaram-se
durante todo o processo de constituição do que se denominou de “Estado-Nação brasileiro” e perduram até hoje em nosso imaginário, determinando as representações
que construímos sobre nós mesmos, a nossa história e, principalmente, sobre grupos
minoritários como os indígenas.
Segundo Pesavento (2003), entende-se por imaginário um sistema de ideias e
imagens de representação coletiva que os homens, em todas as épocas, construíram para
si, dando sentido ao mundo. Já o conceito de representação, envolve processo de
percepção, identificação, reconhecimento, classificação, legitimação e exclusão, e
implica em exposição e ocultamento de algo. É um conceito ambíguo, porque a
representação não é uma cópia do real, mas uma construção feita a partir dele:
as representações construídas sobre o mundo não só se colocam no lugardeste mundo, como fazem com que os homens percebam a realidade e
pautem a sua existência. São matrizes geradoras de condutas e práticassociais, dotadas de força integradora e coesiva, bem como explicativa do real.
1Mestre em Linguística. Professora da Universidade Federal do Triângulo Mineiro/UFTM;
[email protected] Mestre em Linguística pela Universidade Federal de Uberlândia. Professora da Secretaria Municipal deEducação de Manaus; [email protected].
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Indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das representações queconstroem sobre a realidade. (Pesavento, 2003, pág.39).
Conforme a autora, as representações também são portadoras do simbólico, pois
dizem mais do que o que mostram e enunciam e carregam sentidos ocultos que vão
sendo construídos social e historicamente, internalizam-se no inconsciente coletivo,
apresentando-se como natural e, portanto, sem necessidade de reflexão. A força das
representações reside no seu valor de verdade e na sua capacidade de mobilização, de
produzir conhecimento e legitimidade social (idem).
É, então, a partir do olhar do outro, isto de olhares diversos que, aos poucos,
foram “se revelando aspectos do Brasil e também delineando as condições de nós nos
vermos pelos olhos dos viajantes” (Belluzzo, 1996).
Para Oliveira (2009), na história de interpretação do Brasil, existe um“esquecimento” em relação ao índio, produzido pelas narrativas oficiais, o qual, “longe
de ser um ato único de materialidade, é algo cujos efeitos se encontram dispersos numa
multiplicidade de narrativas, lendas e imagens”:
Seu modo de existência é totalmente distinto daquele das memórias públicasoficiais. Ao contrário, dos lugares de memória, não possuemmonumentabilidade, não celebram, não operam com superlativos, masdiminuem, apequenam os fatos e personagens envolvidos. Tampouco ostornam sagrados, mas se apresentam mais frequentemente como lúdicos,
curiosos, espontâneos. (Oliveira, 2009, p.231.).
Segundo o autor, o lugar reservado ao índio nesses relatos: “são sempre
simplificadores, atribuindo-lhe a condição de „resíduos‟ que estão em vias de
desaparecimento”, fazendo-se necessário, portanto, um esforço de crítica a esquemas
analíticos e narrativos produzidos para compreender a presença do indígena no Brasil
atual, com o fim de superar uma história construída com base em categorias coloniais e
imagens reificadas que não servem mais, nem para a pesquisa científica, pois não
contribuem para o protagonismo indígena, nem para o estabelecimento de melhores políticas públicas (idem).
Um Brasil pensado por outros: A literatura dos viajantes
As primeiras imagens das terras brasileiras foram construídas não apenas pela
observação direta que o explorador europeu fez da paisagem local e que chegaram até
nós via registros cartográficos, cálculos, cartas náuticas e roteiros que elaboraram para a
conquista, a definição de domínios e limites do novo mundo pelos viajantes que aquiaportaram.
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Essas primeiras imagens nasceram, também, a partir de símbolos, mitos, contos
maravilhosos e fábulas que permeavam o imaginário desses viajantes. Com a
“descoberta” do novo mundo várias expedições foram realizadas para o Brasil, por
cientistas, artistas, aventureiros, comerciantes e diplomatas que vinham atraídos pelas
possibilidades de um novo país e, ao longo de suas viagens fizeram anotações.
O pesquisador Jean Marcel Carvalho França3, em uma entrevista cedida para o
sítio “História Viva” conta como os estrangeiros que andaram pelo Brasil, dos séculos
XVI ao XIX, fizeram relatos do descobrimento até a era de Darwin. Além de estudos
sobre a natureza, os viajantes estudavam a sociedade local, o fato de a população ser
mestiça, seu cotidiano e a escravidão. Muitos desses relatos se mostravam
preconceituosos e não escondiam o desprezo pelo povo miscigenado. Esse universo de
referências sedimentou tanto a imagem do Brasil no exterior como a auto-imagem dos
brasileiros: o estereótipo da natureza extrema – diabólica ou paradisíaca – e da gente
“estranha” que habitava os trópicos.
uma parcela muitíssimo expressiva do que os europeus pensaram eescreveram sobre o além-mar – sobre a América, mas também sobre a África,a Índia, a China, o Japão, as terras do Pacífico Sul, a Austrália etc. – duranteos quatro séculos que se seguiram à viagem de Colombo se baseou em relatosde viagem, em testemunhos de aventureiros e exploradores que, muitas vezesà custa da própria vida, viram com os próprios olhos – ou disseram que viram
– aquelas terras que tanto atiçavam a imaginação dos seus contemporâneos.(França, 2014).
Nos três primeiros séculos de existência do Brasil, muito poucas foram as
informações sobre o país produzidas por colonos e, posteriormente, pelos brasileiros a
circular pelo mundo. Foi a imagem negativa do Brasil e dos brasileiros, como descrito
por exploradores dos séculos XVI e XVII ou por naturalistas e cientistas dos séculos
seguintes, que foi divulgada e ainda povoa o repertório intelectual do Velho e, também,
do Novo Mundo. Muitos dos estrangeiros que, contemporaneamente, desembarcam nos
portos e aeroportos nacionais trazem consigo algumas dessas imagens, imagens de um
país rico e exuberante, mas habitado por uma gente pouco elogiável do ponto de vista
moral. E, essa dualidade: país rico e exuberante/habitantes deteriorados moralmente
teve um papel extremamente importante no pensamento da elite política e intelectual
brasileira do século XIX, na elaboração de um projeto de nação para o Brasil. Elite que,
3 O pesquisador e escritor Jean Marcel C. França, professor da Universidade Estadual Paulista Júlio deMesquita Filho (Unesp), foi o organizador da série de revistas “O olhar dos viajantes” , da Duetto
Editorial: http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/-viajantes_viam_um_brasil_degenerado-.html.
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segundo França, será responsável por lançar as bases daquilo que passou a se intitular
cultura brasileira, (idem).
Os relatos em relação ao Brasil variaram muito pouco até 1808, quando D. João
VI abriu os portos da colônia às ditas “nações amigas”. Já os relatos posteriores a esse
acontecimento são mais detalhados e mais extensos que os anteriores, pois derivam da
experiência de viagem de indivíduos que permaneceram meses, anos, por vezes décadas
no Brasil. Pode-se dizer que, a essa altura, os visitantes europeus promoveram um
verdadeiro redescobrimento do Brasil (idem).
O grupo de viajantes, nesse “redescobrimento”, apresenta uma composição
muitíssimo variada: há capitães de navio, sábios, naturalistas, marinheiros,
comerciantes, aventureiros, prisioneiros, religiosos, em suma, um sem-número de tipos,
provenientes dos mais distintos países da Europa e, a partir do século XIX, do mundo.
Desse variado grupo, os que mais influência tiveram na construção da imagem do país
no mundo foram aqueles, cujos livros, por razões as mais variadas, circularam mais
intensamente pelas mãos do público europeu, livros como os escritos por Américo
Vespúcio, Jean de Léry, Hans Staden, William Dampier, James Cook, Arthur Phillip,
John Mawe, Richard Burton, Charles Darwin e outros.
A iconografia dos viajantes
É no início do século XVI que começam a circular as primeiras imagens sobre a
América, por meio das gravuras constantes nas cartas de Américo Vespucci, difundidas
em forma de folhetim, em várias edições e em diferentes cidades europeias. A imagem
do índio é representada ora como um modelo de fé cristã, ora como demônio.
A primeira representação gráfica de indígenas em Portugal ocorreu na „epifania‟
do altar-mor da catedral de Viseu, segundo Oliveira (2009).
A pintura “Adoração dos magos”4
, abaixo, apresenta a figura indígena, comcocar e flecha tupinambá, vestido conforme as convenções da pintura quinhentista e o
decoro religioso.
Para Belluzzo (1996), a alteração da iconografia religiosa portuguesa comporta
várias hipóteses interpretativas, especialmente com referência à composição do grupo
de figuras.
4
A pintura “Adoração dos magos”, óleo sobre madeira, atribuída a Vasco Fernandes, localiza -se noMuseu Grão Vasco em Portugal; Disponível em: http://pt.slideshare.net/jorgediapositivos/gro-vasco.
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Na “Adoração dos magos” (ao lado), o índio encarna
um rei mago que vem de longe como emissário,
representante dos povos de além-mar, para presentear e
adorar o filho de Deus, trazendo seu testemunho de fé na
verdade cristã.
Para Belluzzo, a introdução do índio americano na
narrativa religiosa e a construção do seu retrato em
consonância com convenções da arte sacra por meio do
processo figurativo, expressam contradição:
Os sinais da religião mostram o elo que congrega o habitante das terrasdistantes nos valores da cultura europeia. Se o recurso utilizado parecia aos
portugueses procedimento dignificante, era a mais completa negação dacultura indígena, prenúncio do domínio pela catequese dos selvagens e de suaintrodução em valores do cristianismo. (BELLUZZO, 1996).
Já na pintura “O inferno” 5, a seguir, temos uma imagem medieval do inferno
que descreve os suplícios eternos em relação com os pecados capitais. Nela, as
representações não são mais simpáticas ao indígena, pois o índio é representado como
uma figura demoníaca, ocupando o trono do inferno.
A mescla do demônio com o índio – ambas figuras de medo – sugere que otemor do desconhecido também se misturou com a condenação dos costumesindígenas, de acordo com as pregações dos missionários portugueses. Aoapresentar o demônio com atributos do indígena americano, a pintura
provoca uma inversão de sentido, pela qual o índio passa a ter os atributos dodemônio. (BELLUZZO, 1996).
5 “O inferno”: óleo sobre madeira, de autor ignorado, provavelmente da primeira metade do século XVI;disponível m em: http://www.museudearteantiga.pt/colecoes/pintura-portuguesa/o-inferno.
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Por isso, diferentemente das primeiras imagens que inserem o indígena no
mundo do branco, representando-o como “o bom selvagem”6, na representação de “O
Inferno” ele é o próprio diabo.
Esse conceito de “bom selvagem” foi utilizado pelos europeus para designar os
indígenas na crença de que estavam diante de povos de bondades ingênuas, pessoas em
estado natural, selvagens. À medida que a colonização se intensificava, esse conceito se
difundia.
As narrativas sobre os índios e o Brasil
Não são propriamente personagens históricos, não passam de testemunhasmudas e desconexas, como a própria natureza que ali circunda osnavegadores. (Oliveira, 2009).
De acordo com Oliveira, a narrativa habitual sobre a história do Brasil é
apresentada sob duas opções estilísticas vinculadas ao paradigma evolucionista. Ora
como algo acidental e fortuito, criando expectativas muito equivocadas sobre a relação
deste Brasil “descoberto” e o relacionamento dos europeus com as populações
autóctones, ou como fatalidade, uma expansão do mundo europeu no continente
americano. Sendo que, em ambas, há anulação dos agentes históricos, pois é contada do
ponto de vista do europeu.Tudo concorre para criar a certeza sobre a condição efêmera daqueleencontro e a pequena importância dos indígenas na conformação do mundocolonial que irá se instaurar na chamada América Portuguesa. (Oliveira,2009, p.12).
Nessas narrativas os indígenas são apresentados como anteriores ao Brasil e,
tudo que se refere a eles, deveria ser dito antes da colonização, pois em breve seriam
dizimados diante da superioridade tecnológica militar dos colonos, das violências e
epidemias.
Outro aspecto que Oliveira (2009) questiona são os termos “descoberta” e
“invasão”. O primeiro é considerado inaplicável, e a sua substituição por eufemismos
como „encontro de culturas‟ ou „encontro de civilizações‟, em nada anulam o discurso
colonial. Quanto ao termo “invasão”, trata-se de um antidiscurso, o qual, “sem críticas
6A teoria do “bom selvagem" surge em 1755 com a obra do iluminista J. J. Rosseau: Discurso sobre a
origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens . Segundo Rosseau, o homem, por natureza,nasce bom e livre, mas a maldade da sociedade tirana permite relações de servidão e escravidão,
privilegiando as elites dominantes em detrimento dos mais fracos, sendo a responsável pela desigualdadeentre os homens.
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profundas das certezas e atitudes naturalizadas na narrativa convencional”, também
seria inócuo.
Apesar desse “esquecimento” nas narrativas oficiais, conforme Oliveira, o
reconhecimento quanto à importância do protagonismo indígena pode ser atestado,
segundo Oliveira: o príncipe holandês Maurício de Nassau, cerca de um século após os
portugueses aportarem no Brasil, esteve uma temporada em Pernambuco. Após esse
período enviou uma carta à Companhia das Índias Ocidentais, apresentando uma
avaliação sobre o futuro da colônia: “O destino da colônia dependerá fundamentalmente
„das relações que os administradores viessem a estabelecer com os nativos”.
Tal avaliação não decorria da imaginação de um navegante quinhentista aoencontrar uma terra longínqua povoada por criaturas nunca vistas pelos
europeus, mas sim do administrador da maior área de plantation escravista daAmérica, principal fornecedora do açúcar ao mercado europeu, cujas riquezase potencialidades eram objeto de planos e disputas pelas metrópolescoloniais. (Oliveira, 2009).
Outra fonte desse reconhecimento são os minuciosos documentos cartográficos,
referentes à primeira metade do século XVII, elaborados pelos portugueses, os quais
demonstram que seu controle se restringia à faixa litorânea.
No século XIX, precisamente no segundo Império, a elite política e intelectual
da época lançou as bases do que seria chamado de cultura brasileira, após debates sobremigração e o fim da escravatura negra. Elabora-se, então, o projeto de nação para o
Brasil, mas nele, nenhuma função foi dada aos indígenas a não ser a de „símbolo da
terra‟ (idem). Um índio idealizado, exaltado como herói, bravo e forte dos romances O
Guarani (1857) e Iracema (1865), entre outros. No entanto essa narrativa localiza o
índio num momento anterior ao da chegada dos portugueses no Brasil, pois, conforme
Oliveira (2014, p. 38), nos fatos contemporâneos ao „achamento‟ do Brasil e nas sete
décadas que o antecederam, as relações estabelecidas com os indígenas foram essenciais
para caracterizar os modelos de colonização adotados.
De acordo com Oliveira (2010), a América Portuguesa foi constituída por duas
colônias distintas:
a do Brasil cuja sede permaneceu em Salvador (BA) por mais de doisséculos, abrangendo da capitania de São Vicente (São Paulo) ao Ceará,incorporando o litoral, a mata atlântica e se desdobrando nos sertões do rioSão Francisco; e a do Maranhão e Grão-Pará, cuja sede foi a cidade deBelém, próxima a embocadura do rio Amazonas, tendo como hinterland todaa região configurada pelo enorme vale deste rio e de seus numerososafluentes. (Oliveira, 2010).
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Foram duas colônias e dois modelos de colonização, com estratégias bastante
diferentes para a incorporação dos indígenas e a utilização de recursos naturais. Esses
dois processos resultaram em diferentes modos de organização social e modalidades de
auto-representação também diferentes (idem).
Durante toda primeira metade do século XVI a costa do Brasil foi disputada por
portugueses e franceses, embora esse território pertencesse a Portugal, nos termos do
tratado de Tordesilhas, e a presença portuguesa fosse maior nessa região.
O século XVI é tomado por Oliveira, não como uma unidade, mas como um
„período de experimentações e mudanças‟, cuja compreensão se assenta em três
contextos, pensados segundo as suas especificidades, as quais o autor denomina de
„situações históricas‟, ou seja, configurações sociais distintas e logicamente separadas.
São três as situações históricas, correspondendo a cada uma delas um regime específico
que orienta ações, narrativas e conhecimentos no sentido de mobilidade de construção
da colônia.
A primeira situação histórica é denominada de „regime de feitorias‟. Nela, a
produção do pau brasil é a principal economia, baseada no escambo, e a relação entre
colonizadores e colonizados é bi-partida: os portugueses, seus inimigos franceses, os
indígenas aliados dos portugueses, e os indígenas aliados dos franceses. Há ainda a
figura do intermediário, os „lançados‟ (degredados, desertores e náufragos) do lado dos
portugueses e os „truchements‟ do lado francês. Esses intermediários aprendiam a língua
e os costumes indígenas, atuavam como tradutores, contraiam matrimônio com as
mulheres indígenas, herdando redes de relações políticas e cerimoniais que lhes
permitiam atuar como agenciadores de pau brasil.
Nesse contexto, o registro das narrativas e representações sobre os indígenas do
Brasil são simpáticas e respeitosas. O primeiro registro é a carta de Pero Vaz de
Caminha ao rei D. Manuel, retratando os habitantes da terra:
boas feições, robustos, limpos e bem cuidados, gente inocente e confiante quelogo entabulou relações de colaboração e de troca com os portugueses. Oescrivão não os associa aos „infiéis‟ (mouros) nem aos judeus, (circuncisados,isto é, fanados), mas à inocência de Adão no paraíso e observa que, uma vezque houvesse uma melhor compreensão, logo seriam cristãos. (Castro, Silvio(org, 1985 apud Oliveira, 2014).
Na segunda situação, denominada por “guerra da conquista”, os atores sociais
são os mesmos, mas as relações mudam, considerando que Portugal não está mais
interessado em parcerias, mas em impor seu controle administrativo ao espaço
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geográfico e fundar uma colônia portuguesa na América Meridional. Isso implica em ter
controle do território e povoá-lo. Necessário se faz, então, dominar os índios e expulsar
os franceses.
A atividade econômica passa a ser o estabelecimento de lavouras de cana e
engenhos em terras doadas aos colonos (sesmarias) por El Rey ou por seu representante,
o governador. Nesse contexto, a mão-de-obra indígena será indispensável para a
manutenção da infraestrutura colonial. Nessa situação, os intermediários não são mais
os „lançados‟, mas os missionários, quem têm a tarefa de impor os valores e as
instituições portuguesas.
Conforme Oliveira (2014), os relatos dos missionários constituíram-se em
importantes fontes etnográficas sobre as populações autóctones, algumas desaparecidas
há séculos. Mas a perspectiva desses relatos era a da catequese, que via no indígena um
ser ainda bruto e imperfeito, e a necessidade de convertê-lo se constituiu em razão para
defender a sua liberdade, mas também para legitimar ações bélicas contra ele.
A terceira situação é a que Oliveira denomina “plantation escravista” do final do
século XVI, voltada para a exportação do açúcar e baseada na mão-de-obra africana,
que será preponderante por dois séculos. Nesse período, com a demanda de
trabalhadores para os engenhos, o contingente de índios forros, sediados nas aldeias do
litoral, decresce bastante.
Mas apesar da redução populacional por que passaram os indígenas da faixa
atlântica, eles não foram extintos ao longo do século XVI, como supõem expectativas e
preconceitos ainda vigentes. Esse pesquisador informa que pesquisas realizadas por
antropólogos na última década identificaram a presença de mais de três dezenas de
coletividades que se auto-identificam como indígenas nos sertões e na faixa atlântica do
nordeste (idem).
Quanto à Região Amazônica, para analisar as representações sobre os indígenasdessa Região no período colonial, Oliveira (2010) utiliza a noção de fronteira7,
procurando romper com a descrição histórica generalizante e apontar “a diversidade de
temporalidades, narrativas e regimes que singularizam a trajetória histórica dos índios
dessa Região”.
7 A teoria de fronteira, conforme Oliveira (2010) é um instrumento analítico, inspirado em formulações pioneiras de Roberto Cardoso de Oliveira e de Otávio Velho. As noções como a de „situação histórica‟ e
de „regime tutelar‟, decorrentes de seu trabalho etnográfico com o povo indígena Ticuna (Oliveira 1988),na tentativa de explicitar um instrumento analítico que interconectasse de maneira orgânica a observaçãoetnográfica com um quadro histórico preciso.
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As representações sobre os indígenas amazônicos nascem dentro de um contexto
colonial diferente, impostas pelas características particulares da Região Amazônica, que
impuseram aos colonizadores portugueses estratégias diferentes para a ocupação da
região. Na Amazônia, o índio era “o ouro vermelho”, aquele que detinha o
conhecimento sobre a floresta, seus perigos e suas riquezas e o único que poderia
garantir a sobrevivência do explorador.
Na segunda metade do século XIX, a expansão colonial se intensifica, colocando
os exploradores europeus em contato direto com as populações autóctones, não apenas
no Brasil, mas em várias partes do mundo (África, Índia, Oceania, a parte oeste dos
Estados Unidos, Chile e Argentina).
Resguardadas as especificidades da colonização em cada lugar, os exploradores
europeus traziam em seu imaginário a ideia de que estavam diante da última fronteira a
ser conquistada, de uma terra virgem, sem dono e pronta para ser explorada e
empossada, sem reconhecer o direito das populações autóctones aos territórios por elas
antes ocupados (Oliveira, 2010).
Portanto, as imagens que serão produzidas na Amazônia, sobre o índio e a
história dessa Região são representações, construídas por outros, com base em
pressupostos que muitas vezes desconhecemos:
Tais imagens, apesar de estarem dentro de nós e as sentirmos comofamiliares, não foram de modo algum por nós produzidas. São rigorosamenteexteriores e arbitrárias, convenções cujos pressupostos frequentementedesconhecemos. Depositadas em nossa mente, resultam do entrechoque deconcepções engendradas por gerações passadas, formuladas em lugares
próximos ou distantes de nós. Mas são elas que dirigem nossas perguntas eações, e muitas vezes governam nossa expectativa e emoções. (Oliveira,2010).
São imagens estereotipadas e ideias preconcebidas que foram moldadas, não
com a chegada dos europeus na América (1492), nem no Brasil (1500), mas sim noséculo XIX8, a partir de representações artísticas e científicas.
A Amazônia é o mundo das águas e das florestas, em que funciona como umsistema integrado e harmonioso, imperando de forma quase absoluta. Éaquele lugar privilegiado do planeta onde se realizaria a mais perfeitaexpressão do primado da natureza sobre o homem, uma espécie de paraíso
perdido que nos reporta ao cenário de uma terra antes do aparecimento dohomem. Em suma, o império da natureza e o acanhamento da civilização, o
planeta das águas e o deserto da história. (Oliveira, 2010).
8 Como mencionado no tópico “As narrativas em relação entre os índios e o Brasil” deste artigo.
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A ocupação da Amazônia só começou efetivamente em 1616, quando os
portugueses fundaram uma fortaleza no lugar onde seria a cidade de Belém, no Pará.
Essa ocupação, conforme Santos (2002), teve caráter militar e geopolítico, pois, desde
1596, os ingleses e holandeses iniciaram a montagem de feitorias e fortins no delta
amazônico para explorar economicamente a região. A principal atividade econômica era
a extrativista florestal em busca das chamadas „drogas do sertão‟. A mão-de-obra era
abundante, mas, apesar da desigualdade tecnológica em relação aos portugueses, os
índios resistiram e enfrentaram e, conforme Santos (2002), nos limites de suas
possibilidades, foram duros e terríveis:
Fizeram guerras por ocasião dos primeiros contatos, rebelaram-se nosaldeamentos, praticaram a fuga dos núcleos coloniais, desertaram dos
serviços reais, massacraram quando puderam os seus inimigos brancos, efizeram acordos de paz quando lhes eram convenientes.
Quanto aos missionários, esses só se preocupavam em fazer do índio um cristão,
descendo-os para os centros de catequese e „civilização‟. Conforme Engrácia de
Oliveira (1983), foi nos centros de civilização que os indígenas perderam suas formas
próprias de pensar, sentir e agir diante da imposição dos missionários. Foi a partir
desses centros que surgiram muitas vilas e cidades da Amazônia (idem).
O Estado-Nação brasileiro e o índio
A noção de Estado9, enquanto organização política, remonta à Antiguidade
Clássica. Atualmente é entendido como a unidade administrativa de um território, que
se constitui pelo conjunto de suas instituições públicas, como governo, escolas e
exército, dentre outras. Já o conceito de Nação se reporta ao conjunto da sociedade,
unido por compartilhar identidade de origem, os mesmos costumes, língua e cultura. Ou
seja, enquanto um estado é uma entidade política e geopolítica, uma nação é umaunidade étnica e cultural.
A junção desses dois conceitos implica em uma situação na qual os dois são
coincidentes, afirmando-se o Estado-nação por meio de uma ideologia, uma estrutura
jurídica, a capacidade de impor uma soberania sobre um povo, num determinado
território com fronteiras, com uma moeda própria e forças armadas próprias também.
9 Os conceitos de Estado, nação e estado nação foram pesquisados na página Infopédia [em linha] dePorto: Porto Editora, 2003-2014.
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Em sendo assim, ao se afirmar, formalmente, ser o Brasil um Estado-Nação, essa
afirmação não representa um apagamento das nações de indígenas que ainda existem, e
que, tradicionalmente, pertencem ou “pertenciam” a um território determinado , no qual
viviam muito antes da chegada do colonizador?
Afinal, de acordo com dados do recenseamento demográfico do IBGE/2010, a
população indígena no Brasil totaliza 896,9 mil pessoas, representantes de 305 etnias,
falantes de 27410 línguas. Toda essa população, na sua diversidade, ainda existe. E
mesmo os povos que já perderam a sua língua e/ou seus territórios reivindicam seu
reconhecimento como indígenas. São grupos que, embora minoritários, buscam sua
identidade de origem, seus territórios, a revitalização de suas línguas e o que for
possível para não perder o que ainda resta de seus costumes e tradições.
Então, qual é o lugar do indígena no Brasil de hoje? Uma vez que, desde meados
do século XIX, quando surgiu, o projeto de um Estado-Nação para o Brasil, com o
intuito de promover o império do Brasil, não lhe foi reservado um lugar, ou melhor,
reservou-se um lugar menor, um índio simbólico, romanceado e “adaptado ao serviço
do projeto do colonizador”. O índio do chamado “Movimento indianista” (Freitas,
2014).
Esse índio, apropriado por esse romantismo e difundido nas páginas dos
folhetins, está muito distante do índio real que continuava a sofrer com o avanço dos
exploradores.
Com a independência de Portugal e a necessidade de um discurso constitutivo
que legitimasse a nova nação, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB)
promoveu um concurso de redação sobre “como escrever a História do Brasil”. Esse
concurso foi vencido pelo naturalista alemão Karl Friedrich Phillip Von Martius, o qual
propôs, em sua dissertação, uma didática apresentação do Brasil em três raças:
São porém esses elementos de natureza muito diversa, tendo a formação dohomem convergido de um modo particular três raças, a saber: a de cor decobre, a americana, a branca ou caucasiana, e enfim a preta ou etiópica. Doencontro, da mescla das reações mútuas e mudanças dessas três raças,formou-se a atual população, cuja história por isso mesmo tem um cunho
particular. (Martius, 1982: 87 apud Freitas 2014, p.3).
Percebe-se, assim, que o projeto conservador de exclusão do indígena
permanece, pois, a visão de Martius em relação ao indígena era decadente: Os índios
10 Essa informação não se coaduna com os dados de pesquisadores de línguas indígenas, os quais estimamexistir, no Brasil, cerca de 180 línguas indígenas ainda faladas.
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eram „ruinas de povos‟, uma raça em estado de decadência e que, para tratar sobre eles e
sua história deveria ser feito um estudo dos „aborígenes‟. Os indígenas eram descritos
por aquele naturalista como „indolentes‟, „canibais‟, „carentes de patriotismo e de
valores humanitários de coletividade‟. Freitas afirma que Martius “seguramente é a
fonte onde se inspirou Varnhagen” em sua defesa da proposta de delimitação sobre a
sua História Geral do Brasil.
Contudo, apesar do „esquecimento‟ do indígena na historiografia, houve, no
século XIX, tentativas de busca de conhecimento sobre eles. O grande impulso foi dado
pelos viajantes que excursionaram pelo território do Brasil, contribuindo com seus
relatos para o estudo e a compreensão dos povos indígenas, além de estudos quanto ao
espaço geográfico, flora e fauna do país (Freitas, 2014).
O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB, fundado na época da
monarquia, publicou em 1839 o primeiro volume de sua revista que trazia no texto de
apresentação uma alegoria indígena:
Qual robusta indígena das florestas brasileiras, se apresentava garrida e bemdisposta para a rude missão de trabalhar pelo engrandecimento de sua tribo(RIHGB, 1939 I:177 apud Freitas, 2014, p.2).
Entretanto, para Freitas, a principal contribuição desse Instituto para o
conhecimento dos indígenas brasileiros foi, sobretudo, a publicação de textos, ensaios,coletâneas de palavras indígenas e extratos de mitologias.
Merece destaque a importante participação de Capistrano de Abreu, funcionário
da Biblioteca Nacional do Rio de janeiro, professor de História e membro do IHGB,
uma exceção em relação ao discurso convencional quanto aos índios. Crítico,
Capristano percebeu o preconceito contra os índios e se colocou contra em seus
trabalhos etnográficos. Sua ação historiográfica se dá no período de transição política da
monarquia até a instalação da República do Brasil, tendo publicado, nesse período,
artigos e livros sobre grupos indígenas, suas línguas e costumes.
De Capistrano, vale destacar o trabalho pioneiro realizado com pesquisascom informantes indígenas. Nessa área, suas principais contribuições sãoestudos das línguas dos índios Kaximawá, o Rã-txa- hu-rú-ku-i (“falar degente verdadeira, de gente fina”, na tradução do autor) publicado em 1910(Capistrano de Abreu, 1914). Outra obra sobre os Bacairi do Xingu foi
publicada na época, em revistas e teve recente impressão em Ensaios eEstudos patrocinados pelo Ministério da Educação (Capistrano de Abreu,1976. Pode-se dizer, no entanto, que o exemplo deste historiador não foiseguido pelas próximas gerações que se lhe sucederam. (Freitas, 20014, p.5).
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Já no período da instauração e solidificação da República, destaca-se a proposta
“extremamente inovadora” elaborada por membros da Igreja do Apostolado Positivista
do Brasil em relação aos índios. Inspirados nas ideias de Augusto Comte, eles
defendiam a criação de dois Estados Confederados para o país, sendo que um deles seria
denominado de “Estados Americanos Brasileiros”. Os defensores dessa proposta
provocaram “debates que ganharam a via pública, pelos jornais e pela edição de uma
série de pequenos livretos onde divulgavam suas posições.” (Freitas, 2014).
Esse Apostolado Positivista defendia a causa indígena porque, segundo a
filosofia positivista, os índios viviam na etapa “fetichista” (uma das fases da evolução
da humanidade), segundo a qual, os indígenas estariam numa espécie de “primeira
infância” e precisavam de “proteção fraternal” até que atingissem um estado “positivo”,
o definitivo para a humanidade, considerado científico e atual (idem).
No século XX, a temática indígena ainda não alcança seu devido valor, com
exceção de alguns trabalhos, merecendo destaque as publicações de Sergio Buarque de
Holanda, em que a temática indígena é recorrente: “Raízes do Brasil” (1978) que
valoriza a participação dos indígenas na formação do homem brasileiro, denominado
„homem cordial‟; „Visão do paraíso‟ (1985) e a obra inacabada „O extremo Oeste‟
(1959) (idem).
Na década de 40 foram produzidos trabalhos como o de Alexander Marchant,
um dos pioneiros nos trabalhos chamados „brasilianistas‟, isto é, obras de intelectuais
estrangeiros dedicados ao estudo de aspectos da história e da cultura brasileira. Nesses
trabalhos, “a temática indígena é um caminho para a compreensão e a interpretação de
certos momentos”. Da mesma forma, a tese de David Hall Stauffer “The Origin and
Establishiment of Brazil‟s Indian Service (1889)”, apresentada na Universidade do
Téxas, “é uma testemunha de pesquisa na qual se aprofunda a temática da História sobre
as relações com as populações indígenas, nesse caso, das origens da política indigenista brasileira do século XX.”
A temática indígena só começou a ganhar seu lugar a partir do momento em que
os historiadores passaram a descrever a história do país a partir de uma visão
antropológica, levando em consideração os aspectos sociais, culturais e geográficos dos
povos aqui existentes. Ou seja, “quando o olhar do historiador se adequa a uma
perspectiva ampla de questões, e mediante o predomínio da chamada história cultural, a
temática indígena parece ter sido despertada.” (Freitas, 2014). É quando surgem,
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embora ainda de forma tímida, obras e algumas teses e dissertações acadêmicas sobre o
indígena.
Afinal, quem é o índio?
O conceito de índio foi dado pelos europeus aos habitantes das Américas por
acharem que tinha aportado nas índias. Mesmo após terem compreendido que se tratava
de outro continente, continuaram a chamá-los assim, indistintamente, em total
desconsideração à diversidade de povos, línguas, costumes, tradições e o espaço físico
que ocupavam. Ou seja, para os colonizadores “civilizados”, o que os distinguia era tão
somente o fato de não serem europeus (Melatti, 1994).
Entretanto, depois de 500 anos, já não é tão simples definir quem é o índio no
Brasil, considerando a grande população mestiça que se formou pelo cruzamento entre
brancos, índios e negros, além de outros povos que vieram para o país. Além disso,
muitos povos indígenas incorporaram às suas vidas elementos dos civilizados, tais como
ferramentas, instrumentos agrícolas, vestuário, crenças cristãs etc. (idem).
Diante dessa dificuldade, Melatti aponta vários critérios propostos na tentativa
de “definir os índios com certa precisão” e, assim, poder distingui-los das demais
populações que habitam a América. São eles: o racial, o legal, o cultural, o de
desenvolvimento econômico e o de auto-identificação étnica11. Dentre esses, o
considerado mais satisfatório é o de auto-identificação étnica, segundo o qual,
o que decide se um determinado grupo de indivíduos é indígena ou não, sejaqual for a sua composição racial, estejam em que estado estiverem suastradições pré-colombianas, é o fato de eles próprios se considerarem índiosou não e de serem considerados índios ou não pela população que os cerca.(Melatti, 1994, p.25-26).
É com base nesse critério que a população indígena do Brasil é calculada. No
entanto, até 1991 não se tinha uma ideia exata da população indígena do Brasil fora daÁrea Indígena, pois o censo demográfico do IBGE não incluía a “categoria indígena” na
classificação de cor ou raça. Com a inclusão dos indígenas no recenseamento, percebeu-
se um grande crescimento de sua população. No período de 1991 a 2000, esse
crescimento foi bastante expressivo, passou de 294.131 para 734.131 pessoas,
equivalentes a 10,8% de crescimento anual (IBGE, 2005).
11 Para maiores informações quantos aos critérios para definição do indígena, vide Melatti (1994, p. 20-26)
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Esse crescimento ocorreu não apenas por nascimentos, mas também por auto-
reconhecimento étnico, resultado da luta dos povos indígenas pelo direito de viverem
segundo sua cultura e pela recuperação de suas terras. Crescimento que veio
desmitificar a ideia de que, em poucos anos, os índios do Brasil deixariam de existir.
Essa ideia produzida desde a chegada do explorador europeu e reproduzida ao
longo da história do Brasil teve seu auge na ditadura militar. Os governos desse período
estabeleceram um plano de ocupação da Região Amazônica, com o intuito de “integrá-
la ao resto do país” e garantir a “segurança nacional” ocupando as fronteiras do país.
Esse plano foi concretizado por várias ações, entre as quais a abertura de estradas,
construção de hidrelétricas e concessão de incentivos aos que quisessem explorar a
Região, muitas vezes, removendo os índios de suas terras e transferindo-os para outras
áreas.
O resultado das ações do governo foi desastroso para os povos indígenas. O
interesse nas riquezas existentes em suas terras provocou um processo de ocupação
desordenada e predatória em suas terras, levando doenças e destruição a muitos povos,
num claro processo de negação de seus direitos territoriais, demarcando terras diminutas
e permitindo-se a exploração das áreas ocupadas. As ações promovidas, na verdade,
tinham por fim, “a integração do índio à sociedade nacional”, ou seja, o
desaparecimento da diversidade cultural pela destruição da cultura das etnias ainda
existentes.
Como resultado de muita mobilização de diversos setores da sociedade civil e
dos próprios indígenas, durante a Assembleia Constituinte, a Constituição de 1988
tornou-se um marco para a conquista dos direitos indígenas em relação à propriedade
das terras por eles ocupadas e também para o fortalecimento do movimento indígena no
Brasil. A partir de então, cabe à União a legislação sobre questões que envolvam as
populações indígenas, as relações das comunidades indígenas com suas terras e a preservação de suas línguas, usos, costumes e tradições.
No entanto, a mídia em geral nos mostra, diariamente, os conflitos causados
pelos interesses econômicos que se colocam contra os direitos dos índios sobre suas
terras, questionando sua identidade, acirrando e aumentando os efeitos das
representações negativas em relação a eles. Além disso, há a pressão constante de
grupos organizados sobre os políticos e os poderes públicos, na tentativa de derrubar
esses direitos, sob a justificativa de que emperram o desenvolvimento do país.
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Por tudo isso, o lugar do índio no Brasil ainda não está bem definido. Ele ainda é
visto como uma figura exótica e ainda há quem se ofenda ao ser chamado de índio. Um
estigma deixado pelo processo de colonização no Brasil, causado pelos preconceitos,
imagens estereotipadas e ideias preconcebidas que foram moldadas ao longo da nossa
história e que ainda estão muito presentes nos dias de hoje.
Segundo Freire (2000), a tentativa de compreender as sociedades indígenas não
se limita apenas a procurar conhecer “o outro”, “o diferente”, mas implica conduzir as
indagações e reflexões sobre a própria sociedade em que vivemos. Nesse sentido, ele
apresenta cinco ideias que considera equivocadas sobre os índios que ainda permeiam o
imaginário nacional e que precisam ser discutidas para que possamos entender o Brasil.
Diríamos, ainda, mais que entender o Brasil, reconhecer o valor dos povos
indígenas para a nossa história e assim, quem sabe, mudar a nossa postura e dar a eles o
seu devido lugar.
O primeiro equívoco apontado por Freire é a ideia de “índio genérico”, isto é,
referir-se aos índios e tratá-los como se fossem todos iguais, ignorando a grande
diversidade de povos, culturas e línguas. “Cada povo tem sua língua, sua religião, sua
arte, sua ciência, sua dinâmica histórica própria, que são diferentes de um povo para
outro”.
na Amazônia brasileira, em 1500, eram faladas mais de 700 línguas diferentes. No território que é hoje o Brasil, eram faladas mais de 1.300 línguas. (CestmirLoukotka (1968) apud Bessa Freire, 2000).
A segunda ideia equivocada é considerar as culturas indígenas como “atrasadas”
e primitivas. Os povos indígenas produziram saberes, ciências, arte refinada, literatura,
poesia, música, religião.
O terceiro equívoco é a ideia de “culturas congeladas”, que se refere à imagem
que temos do indígena para que ele possa ser considerado indígena, isto é, como foram
encontrados quando os exploradores aqui chegaram: “nu ou de tanga, no meio da
floresta, de arco e flecha, tal como foi descrito por Pero Vaz de Caminha”. Como essa
imagem foi congelada, qualquer mudança causa estranhamento: “vem logo a reação:
“Ah! Não é mais índio”.
Segundo Freire, não concedemos às culturas indígenas aquilo que queremos para
a nossa: “o direito de entrar em contato com outras culturas e de, como consequência
desse contato, mudar ”. Essa mudança é resultado do que se denomina interculturalidade,
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ou seja, da relação e da troca que se dá entre culturas. Segundo o autor, historicamente,
essa relação não tem sido simétrica, na Amazônia, no resto do Brasil e da América.
Mas, como as demais culturas, as culturas indígenas também mudam e isso não é ruim,
desde que seja o resultado de escolha e não de imposição.
O quarto equívoco “consiste em achar que os índios fazem parte apenas do
passado do Brasil”. O professor Freire exemplifica citando um depoimento do indígena
Jorge Terena, quanto às graves consequências de o colonialismo ter taxado as culturas
indígenas de primitivas, considerando-as como obstáculo à modernidade e ao progresso:
(Eles) veem a tradição viva como primitiva, porque não segue o paradigmaocidental. Assim, os costumes e as tradições, mesmo sendo adequados para asobrevivência, deixam de ser considerados como estratégia de futuro, porquesão ou estão no passado. Tudo aquilo que não é do âmbito do Ocidente é
considerado do passado, desenvolvendo uma noção equivocada em relação aos povos tradicionais, sobre o seu espaço na história. (Jorge Terena, 1997 apud Bessa Freire, 2002).
Freire ressalta o fato da atualidade das culturas indígenas, tanto que seus direitos
foram reconhecidos pela Constituição brasileira de 1988, graças às organizações dos
índios, a um trabalho importante do CIMI, ao apoio dos aliados dos índios –
antropólogos, historiadores, professores - que conseguiram impor o reconhecimento por
parte do estado brasileiro da existência hoje dos índios e desses dois pontos básicos: que
os índios são diferentes; e que não se trata de tolerar essa diferença; mas de estimulá-la.
Conforme o autor, essa diferença, considerada no passado como atentatória à
segurança nacional, hoje está sendo percebida como um elemento altamente
enriquecedor da cultura brasileira: “Para o Brasil, para o futuro de nossos filhos e netos,
é importante que essas culturas continuem existindo. Elas representam a riqueza da
diversidade cultural de nosso país”.
O quinto e último equívoco: “o brasileiro não é índio”, segundo Bessa Freire,
“não é uma questão genética, é uma questão cultural, histórica”. Com ele, Freire quer
chamar atenção para o fato de que, mesmo que não sejamos descendentes (direto) dos
indígenas, não podemos negar a sua contribuição para o que somos, enquanto
brasileiros.
Conforme Freire (2000), o povo brasileiro foi formado nos últimos cinco séculos
com a contribuição, entre outras, de três grandes matrizes: as europeias (portugueses,
espanhóis, italianos, alemães, poloneses etc.), as africanas (sudaneses, yorubás, nagôs,
gegês, ewes, haussá, bantos e tantos outros) e as matrizes indígenas (povos de variadas
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famílias linguísticas como o tupi, o karib, o aruak, o jê, o tukano e muitos outros). Ou
seja, a nossa identidade, o nosso modo de ser tem a contribuição de todas elas.
No entanto, a tendência do brasileiro, hoje, é identificar-se apenas com a
vencedora matriz europeia – ignorando ou até sentindo vergonha das culturas africanas
e indígenas. Mas, o que motiva nossos risos, nossos medos, nossas opções culinárias e
outros critérios de seleção é resultado dessas três matrizes. Eliminar qualquer uma delas
“é reduzir e empobrecer o Brasil, porque você acaba apresentando aquilo que é apenas
uma parte, como se fosse o todo”. (Freire, 2000).
Podemos dizer que essa tendência está marcada pelo discurso colonial que ainda
domina o Brasil mesmo depois de 500 anos, mas que precisa ser discutido porque o
índio não foi „eliminado‟ nem „assimilado‟. Suas culturas modificaram-se como a nossa.
Entretanto, mais de 220 povos resistem, em organizações sócio-políticas próprias e
falando suas línguas. “o índio permanece vivo dentro de cada um de nós, mesmo que a
gente não saiba disso.” (idem).
Referências bibliográficas
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Sugestão de Leitura e vídeo
Povos Indígenas e a Lei dos “Brancos”: o direito à diferença Índios do Brasil. Brasília/MEC, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização eDiversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.
Trata-se de um livro da Coleção Educação para todos e integra a série Vias dos
Saberes n.3; Projeto Trilhas de conhecimentos: o Ensino Superior de Indígenas
no Brasil .
“O Olhar dos Viajantes”
França, Jean Marcel Carvalho (org.). Duetto Editorial.
Trata-se de uma série que reuniu 20 dos melhores estudiosos dos estrangeiros quevisitaram, fizeram relatos e produziram obras de arte sobre o Brasil desde odescobrimento.
Povos Indígenas e a Lei dos “Brancos”: o direito à diferença Araújo, Ana Valéria et alii.
Coleção Educação para Todos. Série Via dos Saberes Vol 3. Índios do Brasil.Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada,Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.
“Amazônia”: modificações sociais e culturais decorrentes do processo de ocupação
humana (séc. XVII ao XX)Oliveira, Adélia Engrácia de. Museu Emilio Goeldi, Série Antropologia, v. 4, n. 1, p.65-115, 1988.
Artigo que apresenta do ponto de vista histórico, uma revisão com enfoque nastransformações culturais e sociais que vêm ocorrendo na Amazônia desde o séc.XVII.
Documentários da TV SenadoTrata-se de uma série de 4 episódios, que retoma a questão da identidade nacionala partir de relatos feitos por estrangeiros, do descobrimento até as grandesexpedições científicas do século XIX. Essa série mostra a influência que os relatos
dos viajantes tiveram na construção da imagem do Brasil perante o mundo e entreos próprios brasileiros; publicado em 13 de maio de 2014.