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Introdução à Antropologia

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  • Autorizao concedida ao Repositrio Institucional da Universidade de Braslia (RIUnB) pelo editor, em 18 de dezembro de 2014, com as seguintes condies: disponvel sob Licena Creative Commons 3.0, que permite copiar, distribuir e transmitir o trabalho, desde que seja citado o autor e licenciante. No permite o uso para fins comerciais nem a adaptao desta. Authorization granted to the Institucional Repository of the University of Braslia (RIUnB) by editor, at December, 18, 2014, with the following conditions: available under Creative Commons License 3.0, that allows you to copy, distribute and transmit the work, provided the author and the licensor is cited. Does not allow the use for commercial purposes nor adaptation. REFERNCIA RAMOS, Alcida Rita. Da etnografia ao indigenismo: uma trajetria antropolgica. Anurio Antropolgico, Braslia, v. 2009, n. 1, p. 43-56, jun. 2010. Disponvel em: < http://www.dan.unb.br/images/pdf/anuario_antropologico/Separatas%202009_I%20Jun%202010/Da%20etnografia%20ao%20indigenismo.pdf>. Acesso em: 12 jan. 2015.

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    Por que algum escolhe ser antroplogo? J me fiz esta pergunta muitas vezes e a fao periodicamente aos estudantes de ps-graduao. Ser uma atrao fatal que a disciplina exerce sobre um certo tipo de pessoas, ser uma inapetncia por outras profisses, ou uma combinao das duas coisas? Invariavelmente, as respostas que tenho obtido tm sempre um denominador comum: alguma coisa na histria de vida das pessoas empurra-as para o que inusitado, surpreendente. Tenho chamado essa coisa de descompasso, uma sensao quase sempre difusa de que eu e o meu meio social no estamos exatamente em harmonia, seja por efeito de uma migrao, de uma experincia familiar dolorosa ou mal resolvida, ou da exposio a situa-es incmodas e at contraditrias. Em outras palavras, uma insatisfao quase subliminar, subjacente vida que vivemos de maneira aparentemente normal. interessante notar que a prpria sociedade que gera esse mal-estar tambm for-nece sadas umas mais honrosas que outras com alternativas de acomodao aos portadores desses descompassos. Vem-me lembrana a instituio indgena da berdache, pela qual os homens das sociedades guerreiras das plancies norte-ameri-canas, sem vocao para a guerra, podiam legitimamente optar por assumir papis femininos. Vestiam-se como mulheres, desempenhavam tarefas de mulheres e essa opo era plenamente respeitada e acatada por seus pares.

    A exemplo desses ndios, podemos dizer que, tambm entre ns, as pessoas que fogem aos cnones profissionais de uma sociedade industrial inclinada produtivi-dade econmica dispem de alguns canais legtimos de expresso, como os vrios caminhos abertos para as artes. Quero crer que a antropologia entra nesse nicho. Por alguma razo que no difcil vislumbrar, o fazer antropolgico combina com quem procura satisfao existencial fora das expectativas consagradas pelo mundo ocidental. Parafraseando Michel-Rolph Trouillot (1991) quando afirma que a an-tropologia ocupou o savage slot (nicho selvagem) no escaninho das cincias huma-nas h dois ou trs sculos atrs, vale a pena aventar a ideia de que a antropologia preenche para muitos de ns o existential slot no escaninho das possibilidades que a sociedade nos d para que o nosso Bildung1 seja construdo.

    Levanto tudo isto para comear a discorrer sobre a minha escolha pela etnologia

    Alcida Rita Ramos

    Da etnografia ao indigenismo:uma trajetria antropolgica*

    Departamento de Antropologia / UnB

    Anurio Antropolgico/2009 - 1, 2010: 43-56

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    indgena. Foi uma deciso instantnea, um caso de amor primeira vista. Cursava eu geografia no que hoje a Universidade Federal Fluminense e fazia uma disci-plina de etnologia com o saudoso Professor Luis de Castro Faria. Encantava-me ou-vir palavras de um vocabulrio novo e deslumbrante: relativismo cultural, empatia, rapport... Fascinava-me ler sobre as experincias dos etngrafos, por exemplo, a de Herbert Baldus sendo apalpado pelos ndios Tapirap que testavam a sua condio de ser humano. Aquele estranhamento amistoso de parte a parte os ndios as-soando o nariz na camisa do etngrafo... parecia-me a quintessncia da plenitude sensorial. De maneira mais subliminar do que consciente, percebi que vivncias como aquelas, orientadas por uma boa dose de teoria e reflexo fenomenolgica, poderiam produzir um novo compasso em minha vida. Eu queria entender melhor o meu mundo e encontrei na alegoria do antpoda de casa o caminho mais curto para chegar l. Foi assim que a profisso de antroploga aderiu minha existncia e passou a ser o meu horizonte de vida.

    Mas todo esse fascnio precisava ser domesticado, disciplinado pelo estudo pro-fundo e longo da antropologia. Meu treinamento, que obviamente continua at hoje, comeou com um curso de especializao e, para o meu prprio espanto, j que no estava nos meus planos originais, acabou num diploma de doutorado nos Estados Unidos mais de dez anos depois. Fui primeiro aprender a ser uma scholar com o tambm saudoso Roberto Cardoso de Oliveira, que acabara de se transferir do Museu do ndio para o Museu Nacional no Rio de Janeiro. Cursando geografia na proto-UFF, eu partilhava as aulas de Castro Faria com Roberto DaMatta e sua futura mulher, Celeste, ambos alunos de histria. Foi o extrovertido Matta que, talvez sem o saber, me incitou a estagiar no Museu Nacional, onde ele j estava h meses sendo treinado por RCO, como Cardoso de Oliveira passou a ser chamado por seus pupilos. Matta vinha para as aulas na UFF enchendo a boca com nomes pomposos e carregados de mistrio tentador, como Radcliffe-Brown, Evans-Prit-chard, Meyer Fortes, e sempre me deixava com a sensao de estar perdendo al-guma coisa muito importante. Procurei RCO e me juntei ao Matta no estgio do Museu. Castro Faria, Matta e eu morvamos em Niteri, o que fazia das lentas travessias de barca, no ritmo Mississipi, um prolongamento nem sempre relaxado, mas, em retrospecto, muito divertido, daquelas longas horas de leitura e oralidade antropolgicas que nos consumiam a semana inteira na Quinta da Boa Vista. Essas viagens rotineiras pela baa de Guanabara acabaram por gerar um saboroso folclore que agora pertence ao arquivo de memrias da nossa juventude.

    Pouco depois, no incio de 1960, RCO organizou seu primeiro curso de an-tropologia social no Museu, que incluiu uma viagem a campo entre os ndios Terena urbanizados no Mato Grosso do Sul. ramos seis alunos includos a Roberto

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    DaMatta, Roque Laraia e eu concentradssimos em volta de uma longa mesa, separados do mestre por um fino tapume que no isolava as nossas conversas a meia-voz: ns estudvamos de c, RCO lia e ouvia de l, e no passava um dia sem que ele interrompesse sua leitura para vir nos corrigir alguma bobagem de nefitos. Um dia por semana ele dava uma aula expositiva. O resto da semana era leitura, leitura, leitura; troca de ideias, seminrios, e mais leitura. Posso dizer que a minha formao antropolgica foi feita ali, naquele recinto vetusto em meio aos aventais brancos da Cincia, cercado de crnios em estantes de vidro e o eterno cheiro de formol. Foi um ano de aprendizado rduo, intenso e sumamente gratifi-cante, partilhado com colegas inesquecveis e supervisionado de perto por um an-troplogo jovem e ambicioso que, visto do aqui e agora, parecia plenamente seguro do papel central que viria a ter na histria da antropologia brasileira. Tudo que me veio depois com o mestrado, o doutorado e a docncia, como camadas geolgicas, vieram assentar-se com naturalidade sobre o substrato slido que adquiri no Museu Nacional do incio dos anos 60.

    L aprendi tambm a levar em considerao o aspecto poltico do fazer an-tropolgico. Era a fase de construo do modelo da frico intertnica e todos os meus colegas engajaram-se em pesquisas de relaes intertnicas orientadas por um forte componente poltico. Coube-me, a contragosto, fazer meu trabalho de campo com um grupo urbano de pescadores portugueses no Rio de Janeiro, e minha ex-perincia etnogrfica com ndios teve que esperar at o final da dcada de 60.

    Quando fui para a Universidade de Wisconsin em 1962, estava imbuda do es-prito crtico que reinava no Museu Nacional. Minha expectativa era trabalhar com algum povo sofrido pelas agruras do contato perverso com a sociedade dominante. Mas o terreno estadunidense no era frtil para coisas polticas. No era sequer correto se falar de classes sociais, de modo que foi preciso temperar meu lxico na tese de mestrado sobre os pescadores portugueses com termos que no exigissem uma longa discusso conceitual capaz de convencer meus examinadores da utili-dade de noes para eles altamente suspeitas.

    Por razes mais pessoais do que profissionais, acabei por eleger para minha pesquisa de doutorado um povo indgena isolado (ainda se usavam termos como este na antropologia) como objeto (outro termo da fase ingnua pr-ps-moderna). Cheguei a me sentir um tanto culpada de vir ao Brasil fazer trabalho de campo apoltico, com temas da antropologia anglo-sax clssica, sem nenhum vis aparente de conscincia crtica, como qualquer aluno gringo em busca do nativo antes de ser perdido. Naquela poca, os Yanomami nem eram conhecidos como Yanomami. Darcy Ribeiro referira-se vagamente a eles como waics, outros os chamavam de guaharibo, outros de surara-pakidai, e ningum sabia os limites territoriais, muito

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    menos os lingusticos e culturais, daquela gente. Mas nem por isso eram considera-dos dignos de investimento etnogrfico: eram isolados demais e tudo indicava que no sofriam de frico intertnica.

    Apesar das interrogaes que me fizeram aqui no Brasil sobre aquela minha opo de pesquisa, desapareci por uns dois anos entre os Sanum do rio Auaris disposta a pesquisar um assunto j tido como um tanto anacrnico: organizao social. Ca no savage slot fora do tempo e do lugar certos. Mal sabamos ns todos o que estava por vir vinte anos depois: o desatino da corrida do ouro em Roraima, o morticnio em massa de ndios yanomami sob o efeito de repetidas pandemias de malria, a publicidade mundial sobre o escndalo de seu genocdio, a mobiliza-o poltica a seu favor e o papel fundamental da pesquisa etnogrfica clssica na defesa de seus direitos. Ao fim e ao cabo, no foi preciso inventar uma frico in-tertnica para legitimar a minha escolha de campo etnogrfico. Para consternao geral, o contato intertnico abateu-se sobre os Yanomami como uma onda gigante e mortfera. Se isso serve de consolo, ainda bem que houve tempo de elaborar um quadro etnogrfico dos Yanomami antes da tragdia do garimpo, pois esse conheci-mento foi instrumental para assegurar-lhes ao menos os seus direitos territoriais com a demarcao da Terra Indgena Yanomami (TIY) em 1991.

    Os textos que Bruce Albert e eu elaboramos ao longo de mais de vinte anos de reivindicaes por essa demarcao foram fundamentais para substanciar os argu-mentos em prol de uma rea de tamanho tal que poupe aos Yanomami no futuro o destino de tantos outros povos indgenas que se veem s voltas com uma populao crescente espremida em retalhos de terra indignos da condio humana, como o caso, por exemplo, dos Guarani de Dourados.

    Se a etnografia tradicional to grata e potencialmente til, por que mudar de assunto? Por que troquei o campo indgena pela arena do indigenismo? Existem vrios motivos para isso e talvez eu no tenha suficiente habilidade de autoanlise para mapear todos eles. No momento consigo identificar trs desses motivos: um de ordem, digamos, existencial, outro de ordem propriamente acadmica e o ter-ceiro de ordem, por assim dizer, processual. Vou explicitar cada um deles, mas com a ressalva de que apenas uma primeira tentativa de autocompreenso do meu lugar no mundo antropolgico.

    O fator da ordem que chamo existencial traz de volta a discusso da pesquisa politicamente relevante. Apesar de reconhecer que o meu trabalho de campo com os Sanum nos moldes clssicos, ainda que de forma imprevista, veio a contribuir e muito para a argumentao em favor da demarcao da TIY, ficou-me a sensao de incompletude por no ter desenvolvido uma pesquisa inquestionavel-mente de cunho poltico no campo das relaes intertnicas. Naquele contexto de

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    calmaria intertnica no noroeste de Roraima (1968-70), no havia porque embar-car numa pesquisa sobre relaes de contato dos Sanum com o mundo exterior, pois no havia muito que dizer alm de constatar as repercusses dos missionrios protestantes, assim mesmo de impacto limitado. Minha tentativa mais prxima disto foi a pesquisa de 1974 sobre relaes intertribais, que resultou na coletnea Hierarquia e Simbiose (Ramos, 1980). Era uma poca de grande tranquilidade para os Sanum, tranquilidade esta que s pude aquilatar plenamente quase duas dcadas depois, quando partilhei de sua aflio ante a catstrofe das invases garimpeiras e as consequentes ondas interminveis de malria.

    No entanto, sempre senti que eu devia a mim mesma a experincia de exercer minha conscincia crtica no campo da pesquisa antropolgica. Aos poucos, quase sem sentir, fui me envolvendo com as vicissitudes de outros ndios. Era a dcada de 80, o Brasil estava para sair da ditadura militar e o movimento indgena estava na sua fase herica, em que brotavam lderes de grupos com longas e dramticas experincias de contato intertnico desastroso e mal resolvido. Depois de um ex-lio voluntrio de quase trs anos na andina Esccia, eu clamava por ao e at agitao. Fui anfitri em Braslia de personagens marcantes, como o j falecido Pau-linho Bororo, o ousado lvaro Tukano, o empolgante Ailton Krenak, o diplomtico Marcos Terena e o aparentemente franzino e plcido Tikuna, Pedro Incio. Cada um a seu modo, todos transmitiam a angstia e o desespero de serem membros de minoria indgena num pas que se fazia de surdo s injustias tnicas e sociais. Desenvolvi fortes sentimentos de empatia por aqueles ndios esticos e arrojados, e de ira contida contra um passado e um presente implacavelmente cruis.

    Numa determinada ocasio especialmente dramtica (a tentativa de suicdio de um desses heris sem louros), naqueles meses que antecederam Nova Repblica de 1985, fiquei como que paralisada, sem conseguir refletir produtivamente sobre o que se passava ao meu redor. Depois dessa momentnea paralisia intelectual, comecei a aprender a transformar esses sentimentos em anlises antropolgicas, nas quais no faltava uma boa dose de impotncia cvica. Foi uma paralisia produ-tiva. Escrevi o artigo Categorias tnicas do pensamento Sanum: contrastes intra e intertnicos (Ramos, 1990, captulo 10) logo depois de um momento de aguda tomada de conscincia (talvez semelhante ao que Virginia Woolf chamou de moments of being) do que deve ser sentir-se ndio num meio hostil. Apesar do ttulo to morno, este trabalho fruto de um mergulho quase metafsico no sofrimento daqueles ndios: um, embriagado, resgatado da sarjeta depois de uma briga de bar no fim de um dia perdido nas entranhas do poder em Braslia; outro, imobilizado fora para evitar que se matasse para no levar para casa mais um fracasso poltico; ainda outro, emocional-mente confuso, temendo pela prpria vida se voltasse sua terra depois de denunciar

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    no exterior os poderes locais. Foi ento que me dei conta da situao privilegiada dos Sanum que, naquela poca, nem sequer conheciam a palavra ndio e menos ainda o conceito de discriminao. Sua inocncia intertnica era ento quase total.

    Da em diante, acompanhei de perto os desdobramentos do movimento ind-gena no Brasil e em outros pases, dediquei-me a escrever sobre suas vrias facetas, o que resultou na publicao de Indigenism (Ramos, 1998) e em vrios artigos que aguardam maior ateno editorial. Em suma, o campo do Indigenismo ajudou a aplacar o meu desconforto inicial de ter dedicado meu primeiro grande esforo etnogrfico ao que arrisco chamar de amenidades acadmicas, ou seja, pesquisar e escrever sobre temas antropolgicos na tranquilidade e no conforto de uma situa-o de campo livre dos sobressaltos e da virulncia do contato intertnico descon-trolado. Hoje reconheo que aqueles meus melindres eram, na verdade, fruto de um lamentvel equvoco que, felizmente, no teve maiores consequncias. No fim das contas, at me felicito por ter feito o que fiz. Afinal, sem o mergulho profundo na vida ntima de um povo, o estudo do indigenismo no teria a densidade que s se adquire com a experincia vivida.

    A razo de ordem acadmica que me fez abraar o indigenismo tem a ver com o desconforto que sempre senti no campo dos estudos etnogrficos com seus debates midos e, quase sempre, distantes da minha experincia vivida. Ficava perplexa (j no fico mais) com questionamentos do tipo: Ser que o que os Sanum tm so mesmo linhagens? Se ningum as viu antes por ali porque no existem, e Al-cida que est errada. Descendncia estava out, corpo estava in, de modo que minha anlise fora de moda no convenceu ningum. Aos poucos fui perdendo o interesse pelos floreados acadmicos feitos de fiapos de compreenso de algum mundo in-dgena e fui dando cada vez mais valor ao processo de ouvir os prprios ndios e fazer deles os solistas e no simplesmente o coro, muitas vezes escondido nos bastidores dos espetculos etnogrficos, quando no passam de meros pretextos para o etngrafo exibir o seu virtuosismo analtico. Perdi a pacincia com debates estreis sobre detalhes microscpicos de algum sistema de parentesco que, no poucas vezes, mais o resultado de preocupaes tericas do momento do que da experincia social e do interesse real de algum de carne e osso.

    Alm disso, comecei a perceber que estudar povos indgenas no , afinal, to diferente do que vemos os brasilianistas fazerem conosco: pode at ser que no es-tejam errados, mas... estaro certos? Quantas camadas ocultas de significado ficam ao largo da nossa compreenso devido, por exemplo, a limitaes lingusticas? Quantas nuances dessas que fazem um povo ser ele mesmo e no outro deixamos de captar porque, afinal, somos apenas transeuntes passageiros por aquele mundo? E, o que pior, a exemplo dos tais brasilianistas, desenvolvemos o mau hbito

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    de pontificar sobre eles: Os Sanum so ou pensam assim, os Bongo-bongo so ou pensam assado, sem a humildade de dizer Eu creio que seja assim, segundo minha percepo, parece ser assim. Cada vez mais consciente das nossas mseras debilidades e convencida de que preciso mudar esse status quo, venho propondo que, afinal, a etnografia coisa muito sria para ficar s nas mos dos etngrafos acadmicos (Ramos, 2008).

    Proponho, enfim, que deixemos de monopolizar o espao etnolgico e encora-jemos os indgenas como os prprios brasileiros, objeto de estudo dos brasiliani-stas a se lanarem na produo de autoetnografias, agora que a educao superior indgena, mesmo ainda precria, est aqui para ficar. Essa educao, que demorou tanto a lhes chegar, muito contribuindo para mant-los ainda mais aprisionados numa situao de assimetria degradante vis--vis sociedade nacional, condio sine qua non para que essas autoetnografias se materializem e tomem o carter de instrumentos polticos na luta intertnica, indo alm dos recursos discursivos para seu prprio uso interno, como vemos explicitados na coletnea Pacificando o Branco (Albert & Ramos, 2000). Neste sentido, no h por que esperar que tais autoet-nografias sigam o cnone acadmico. Com a combinao de educao de qualidade e experincias tnicas diversas, abre-se uma vasta gama de possibilidades.

    Vou agora tentar desfiar a terceira razo do que chamo de ordem processual. Assim como Bruno Latour (1994) prope a aplicao dos conhecimentos etnogr-ficos adquiridos em escala micro a fenmenos de grandeza macro, mas no de maneira literal, que acaba caindo em banalidades, eu tambm me convenci de que o saber antropolgico tem a obrigao de se fazer sentir fora do seu nascedouro. Da aldeia nao, esse saber percorre um caminho que s vezes se cruza com os de outras disciplinas, mas se ele realmente antropolgico, deve permanecer fiel sua identidade. Trata-se de um processo de ampliao de escala, o que requer adapta-es de mtodo, abordagem terica, forma de expresso escrita e at de vocabu-lrio. A matria-prima dos dados pode vir de fontes diversas, como a literatura, a histria, a poltica, mas a abordagem continua sendo informada pela perspectiva antropolgica.

    No meu caso especfico, tomei conscincia de tudo isso j depois de ter in-cursionado por esse macro que a nao brasileira. O fio condutor evidente que me levou ao interesse pela construo da nao foi o campo das relaes intert-nicas, especificamente, entre ndios e brancos. Da me veio conscincia algo que to claro quanto relegado: todas as naes das Amricas se construram sobre os escombros indgenas e, portanto, devem ter sempre um componente ideolgico sobre os ndios. Em outras palavras, afirmando ou negando o papel dos indgenas na sua formao, todas essas naes expem as suas foras e fraquezas ao serem

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    vistas pelo prisma do indigenismo. como se os ndios ocupassem o inconsciente nacional, algo que as naes se esforam por esconder, mas que volta e meia vem tona. Ento entendi o bvio: por que razo o momento fundamental ou o evento fundador (Paul Ricoeur, 1978) para flagrarmos o nascimento de uma nao ameri-cana, aquele ponto estratgico em que sua identidade comeou a ser efetivamente montada, o processo de independncia do sculo XIX pelo qual passaram todas as colnias da Amrica Latina. Nesta perspectiva, o principal foco de interesse no so mais os ndios em si, mas naquilo em que eles foram transformados pelas na-es que se criaram s suas custas, ou seja, o retrato a perseguir no o do indgena etnogrfico, mas o da nova nao americana.

    E foi assim que desemboquei no projeto atual de um estudo comparado de construo da nao atravs do indigenismo, tomando o Brasil e a Argentina como primeiro passo (Ramos, 2009) que deve, mais tarde, abarcar a Colmbia, a Venezuela e talvez outros vizinhos, se houver tempo e interesse. Devo reafirmar que nada disto poderia ser feito se eu no tivesse me equipado com uma bagagem etnogrfica como a que adquiri na minha pesquisa com os Sanum. Mas devo confessar tambm que as minhas incurses pela militncia indigenista deslocaram o meu momento etnogr-fico para uma posio coadjuvante nos meus projetos profissionais. Convenci-me de que h mais entre o cu e a terra do que perdo pela irreverncia a v etnogra-fia, o gosto por cultivar filigranas analticas no aconchego da academia.

    Minha passagem da etnografia indgena para o indigenismo tem se dado de maneira muito gradual e, a rigor, ainda no terminou. Apesar de tudo, continuo interessada em voltar a temas etnogrficos, mas j no contexto das relaes dos Sanum com o mundo abrangente. Por exemplo, seu interesse material e intelec-tual pelo ouro, deflagrado pela invaso garimpeira dos anos 80 e 90, esse ouro que lhes causou tantos transtornos, mas que lhes deu muito que pensar (Ramos, 1996). Afinal, uma vez etngrafa, sempre etngrafa, mesmo que o campo de viso tenha se dilatado desmesuradamente. Como num tear, o movimento de ida e volta entre o micro e o macro tem a vantagem de abrir ou fechar a lente antropolgica de modo a enfatizar ora a figura, ora o fundo na busca pela compreenso tanto do detalhe quanto da Gestalt do social. para alcanar esta compreenso que me servem as teorias antropolgicas, e no para transformar a riqueza etnogrfica em mera matria-prima que alimenta a mquina de fazer jogos tericos muitas vezes mirabolantes ou simplificados receiturios que resultam numa uniformizao de anlises que no condiz com a diversidade cultural vigente. Acessemos as teorias, mas deixemos que elas cumpram o seu papel de guias produtivos a servio de uma antropologia esclarecida.

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    O grupo de pesquisa que coordeno para o CNPq tem o espaoso ttulo de Etnologia Indgena e Indigenismo e congrega colegas e estudantes cujas pesqui-sas parecem falar-se umas s outras, precisamente porque partilham idiomas an-tropolgicos mutuamente inteligveis. moda de uma lngua franca que nos salva de nos perdermos pelos labirintos da diversidade cultural, as teorias antropolgi-cas tm um papel muito mais nobre do que em geral lhes atribudo. Sem nunca substiturem a experincia vivida, elas tm a capacidade de nos abrir os sentidos para o inesperado e at o inimaginvel. Bem utilizadas, elas podem nos ajudar a transformar perplexidade ou desateno em estado de alerta para realmente com-preendermos a profundidade de afirmaes que tantas vezes ouvimos, mas no introjetamos, perdendo a oportunidade de levar ao p da letra o que os indgenas nos dizem, embora sem grande esperana de serem devidamente entendidos.

    Quando os ndios nos dizem que os avs lhes ensinaram a observar a maneira apropriada de viver, eles se referem a algo que percebemos vaga e abstratamente como tradio, mas que deve ter uma fora descomunal, porque s assim se en-tende a resilincia2 com que fazem frente s vicissitudes que os assolam h mais de cinco sculos. A fora da tradio transmitida pelos antigos representa uma ver-dadeira cidadela que s ser expugnvel com a morte fsica dos descendentes. At onde vai a nossa real compreenso desse portento cultural? Quem de ns j levou s ltimas consequncias as implicaes disso que nos dito com tanta frequncia? Vejamos o que nos diz Lorenzo Muelas, o sbio da etnia guambiano na Colmbia que j foi parlamentar constituinte, senador da repblica e continua sendo o diri-gente maior da sua regio:

    Mas nunca devemos perder de vista que essas leis no so as nossas leis, que as nor-mas s quais nos devemos aferrar com todas as nossas foras so as ditadas por nosso Direito Maior, por essas leis originrias, ancestrais, to antigas como a criao do mundo, emanadas de nossos deuses, desenvolvidas por nossos antepassados que as passaram a ns para orientar a vida e o desenvolvimento harmnico com a Me Terra dos nossos povos h milhares de anos antes da chegada das gentes europeias a nossos territrios (Muelas, 2007).

    Como etngrafos, somos perfeitamente capazes ou deveramos ser de identificar, mapear e at explicar em que consiste esse Direito Maior. No entanto, o que vejo como uma imensa lacuna em nossas anlises talvez uma incontornvel limitao para alcanar as camadas mais recnditas de outros mundos semnticos, como Levy-Bruhl ousou sugerir chegar a entender a fundo como e quanto aquilo que Muelas designa como Direito responsvel pela resilincia dos n-

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    dios, sua capacidade ferrenha de voltar a viver depois de sofrerem tantos golpes da dominao, sobrevivendo a tudo e a todos. Que os indgenas tenham chegado ao sculo XXI na qualidade de indgenas e que atribuem isto fora de sua cultura no novidade para ns. Mas fica ainda um resduo ou talvez a parte principal por ser entendido, algo que no sei explicar e sinto quase como uma intuio. Como afirma Niezen, os antroplogos, por mais sinceros, capazes ou persistentes que sejam nunca so capazes de perscrutar as profundezas de um sistema conceitual alheio (2003:106). Essa recndita intimidade cultural, talvez o elemento-chave que distingue um povo de todos os outros, parece ser vedada a quem no lhe pertence.

    De que feita essa convico inabalvel que continua animando e dando sentido s suas lutas tnicas? Que fora extraordinria essa que capaz de sustentar a firme certeza que tm os povos indgenas de seu prprio valor, resistindo a sculos de presses em contrrio, mesmo quando suas convices, estremecidas, se re-traam temporariamente? O que h nesse aparato conceitual, rotulado por Muelas como Direito Maior, que lhes d a garantia do viver correto, por mais que ten-ham sido bombardeados pelas renitentes imposies ocidentais? Entrar no mago de questes como estas pr diante da antropologia o desafio de enveredar por caminhos pouco iluminados pelo facho de luz das suas teorias correntes. tambm, como adianta Stuart Kirsch (2006), uma possibilidade de trazer tona, de tornar visveis, como quem revela uma fotografia, as teorias indgenas como legtimas epistemologias par a par com seus congneres acadmicos. No submergi-las sob a onda das nossas ideias recebidas, por mais cientficas que nos paream, por mais poderosa que seja a ltima moda, a maneira mais segura de evitar a armadilha da sobreteorizao que acaba por reduzi-las a meros (pre)textos. Reconhecer que as teorias nativas podem nos levar mais longe e mais fundo do que as nossas rumo compreenso de determinado mundo indgena um exerccio tanto de sabedoria antropolgica quanto de humildade cientfica, sem a qual a almejada superao de nossas limitaes de conhecimento fica seriamente comprometida. Quero crer que s poderemos chegar possibilidade de um dilogo franco e produtivo com os sujeitos das nossas etnografias, e assim elevar o patamar da intercomunicabilidade, quando aprendermos a no reduzir suas teorias s nossas, mas tomar ambas como vozes com iguais decibis que se falam mutuamente.

    Sonhar pode ser o primeiro passo para consumar.

  • 53Alcida Rita Ramos

    Notas

    *. Esta uma verso ampliada do texto apresentado na seo Conversa com o Autor, 26 Reunio da ABA, Porto Seguro, 03 de junho de 2008. Agradeo a Myriam Jimeno e a Wilson Trajano Filho por seus comentrios e crticas.

    1. Bildung, conceito do humanismo alemo que se refere formao de uma pessoa, com nfase na sua formao profissional (Gadamer, 1975:10-19).

    2. Resilincia, conceito original da fsica, refere-se capacidade de um corpo que sofre golpe ou tenso de recuperar seu estado normal quando for suspenso o estado de risco.

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    Referncias bibliogrficas

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    _________. 2009. O indigenismo na montagem da nao: Contrastes e convergncias entre Brasil e Argentina. Anurio Antropolgico/2007 (no prelo).

  • 55Alcida Rita Ramos

    RICOEUR, Paul. 1978. O conflito das interpretaes. Rio de Janeiro: Imago.

    TROUILLOT, Michel-Rolph. 1991. Anthropology and the savage slot: The poetics and politics of otherness. In: Richard G. Fox (org.). Recapturing anthropology: Working in the present. Santa F, Novo Mxico: School of American Research Press. pp. 17-44.

  • 56 Da etnografia ao indigenismo

    Abstract:

    Alcida Rita Ramos describes her professional trajectory from her first steps as an anthropology student of Professor Roberto Cardoso de Oliveira at the National Museum in Rio de Janeiro through her graduate studies at the University of Wisconsin, Madison, up until her retirement at the University of Braslia. She emphasizes her research work among the Sanum, a Yanomami subgroup in north Brazil and, more recently, on comparative indigenism in Latin American.

    Key words:

    Biography, Alcida Rita Ramos, ethnography, indigenism.

    Resumo:

    Relato da trajetria profissional de Alcida Rita Ramos desde suas primeiras incurses na antropologia como aluna do Professor Roberto Cardoso de Oliveira no Museu Nacional, passando pela ps-graduao na Universidade de Wisconsin, Madison, at a sua aposentadoria na Universidade de Braslia, com nfase nas pesquisas entre os Sanum, subgrupo Yanomami e, poste-riormente, no indigenismo comparado na Amrica Latina.

    Palavras-chave:

    Biografia, Alcida Rita Ramos, etnografia, indigenismo.