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[Oracula, S„o Bernardo do Campo, 3.5, 2007] ISSN 1807-8222 HIST”RIA DA LEITURA E HIST”RIA DA RECEP«√O DA BÕBLIA Antonio Paulo Benatte Resumo O artigo discorre sobre a import‚ncia da histÛria da leitura para a histÛria da recepÁ„o da BÌblia e destaca as afinidades e semelhanÁas entre os dois projetos historiogr·ficos. Palavras-chave: Historiografia, histÛria da leitura, histÛria da recepÁ„o da BÌblia. Abstract The article describes the importance of the history of reading to the history of reception of the Bible and it highlights the likeness and similarities between the two historiographic projects. Keywords: Historiography, history of reading, history of reception of the Bible. A historiografia religiosa contempor‚nea integra em seu question·rio interrogaÁıes vindas da geografia, da sociologia, da ciÍncia polÌtica, da antropologia, da economia, enfim, das ciÍncias sociais como um todo. Na medida em que incorporar efetivamente ó como vem acontecendo nos ˙ltimos anos ó os aportes da teoria liter·ria, da ling¸Ìstica, da histÛria da leitura, da histÛria da literatura e da teoria da recepÁ„o, seu campo de estudos tende a expandir-se e tornar-se ainda mais complexo. Doutor em HistÛria pela Universidade de Estadual de Campinas (Unicamp). Integrante do Grupo Oracula de Pesquisas em ApocalÌptica Judaica e Crist„. EndereÁo eletrÙnico: [email protected] .

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[Oracula, S„o Bernardo do Campo, 3.5, 2007]

ISSN 1807-8222

HIST”RIA DA LEITURA E HIST”RIA DA RECEP«√O DA BÕBLIA

Antonio Paulo Benatte

Resumo

O artigo discorre sobre a import‚ncia da histÛria da leitura para a histÛria da recepÁ„o da BÌblia e

destaca as afinidades e semelhanÁas entre os dois projetos historiogr·ficos.

Palavras-chave: Historiografia, histÛria da leitura, histÛria da recepÁ„o da BÌblia.

Abstract

The article describes the importance of the history of reading to the history of reception of the

Bible and it highlights the likeness and similarities between the two historiographic projects.

Keywords: Historiography, history of reading, history of reception of the Bible.

A historiografia religiosa contempor‚nea integra em seu question·rio interrogaÁıes vindas da

geografia, da sociologia, da ciÍncia polÌtica, da antropologia, da economia, enfim, das ciÍncias

sociais como um todo. Na medida em que incorporar efetivamente ó como vem acontecendo

nos ˙ltimos anos ó os aportes da teoria liter·ria, da ling¸Ìstica, da histÛria da leitura, da histÛria

da literatura e da teoria da recepÁ„o, seu campo de estudos tende a expandir-se e tornar-se ainda

mais complexo.

Doutor em HistÛria pela Universidade de Estadual de Campinas (Unicamp). Integrante do Grupo Oracula de Pesquisas em ApocalÌptica Judaica e Crist„. EndereÁo eletrÙnico: [email protected].

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Uma alianÁa particularmente produtiva pode ser construÌda entre a histÛria da leitura e a histÛria

da recepÁ„o da BÌblia. Os crÌticos liter·rios e os historiadores da leitura tÍm insistido ìem que o

significado de um livro n„o est· determinado em suas p·ginas; È construÌdo por seus leitoresî.1

Essa afirmaÁ„o de Robert Darnton faz eco ao postulado de Judith Kovacs e Christopher

Rowland de que ìo que os leitores pensam ser o significado da BÌblia È t„o importante, È t„o

interessante quanto o seu significado originalî.2 A recepÁ„o, È claro, n„o pressupıe

necessariamente a leitura ó pensemos, por exemplo, nas geraÁıes e geraÁıes de crist„os

analfabetos do primeiro sÈculo aos dias de hoje ó; mas a leitura, quando ocorre, È um fator

determinante da recepÁ„o e mesmo os analfabetos, n„o raro, ouviram a leitura coletiva em voz

alta ou a citaÁ„o habitual dos textos sagrados disseminados pela cultura oral.

O que faz da BÌblia um livro contempor‚neo de todas as Èpocas n„o È apenas a beleza de sua

poesia, a sabedoria de seus pensamentos, a riqueza de seus mitos ou de sua metafÌsica, nem o

valor instrutivo de suas narrativas ou o mistÈrio singularmente novo e antigo de seu estilo

lÌmpido; o que faz dela um livro sempre contempor‚neo È, sem d˙vida, a possibilidade

praticamente infinita de sua atualizaÁ„o. O processo de atualizaÁ„o opera essencialmente por

analogia: a multid„o dos pecados de Israel È, de certa forma, a multid„o de nossos prÛprios

pecados; o mal que grassa nas sociedades dos primeiros crist„os assemelha-se em muito ‡s

estruturas malignas de nossas sociedades contempor‚neas; a promessa profÈtica de redenÁ„o fala

ainda aos coraÁıes porque o mundo continua, essencialmente, um mundo sem coraÁ„o.

De um ponto de vista laico, os livros da BÌblia poderiam ser considerados cl·ssicos. ìCl·ssicoî,

na definiÁ„o de Jorge Luis Borges, ìÈ aquele livro que uma naÁ„o ou um grupo de naÁıes ou o

longo tempo decidiram ler como se em suas p·ginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como

o cosmo e capaz de interpretaÁıes sem termoî.3 Ainda segundo o escritor argentino, ìcl·ssico

n„o È um livro [...] que possui necessariamente tais ou quais mÈritos; È um livro que as geraÁıes

dos homens, urgidos por razıes diversas, lÍem com prÈvio fervor e com uma misteriosa

1 DARNTON, R. HistÛria da leitura. In: BURKE, P. (org.). A escrita da histÛria: novas perspectivas. S„o Paulo: Ed. UNESP, 1992, p. 226. 2 Apud MILTON, A. L. HistÛria da recepÁ„o da BÌblia: novos enfoques na pesquisa brit‚nica. In: Oracula: Revista EletrÙnica do Grupo Oracula de Pesquisas em ApocalÌptica Judaica e Crista 1.2, 2005 (www.oracula.com.br), p. 86. 3 BORGES, J. L. Sobre os cl·ssicos. In: Nova antologia pessoal. Trad. Rolando Roque da Silva. 2 ed. S„o Paulo: Difel, 1986, p. 205.

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lealdadeî.4 Precisamente, a BÌblia È um desses livros, o principal da civilizaÁ„o do ocidente e,

enquanto tal, tem permitido historicamente uma sÈrie ilimitada de interpretaÁıes.

Para a teoria liter·ria, a BÌblia È o arquÈtipo do texto canÙnico, tal como o define Frank

Kermode. CanÙnicos s„o ìaqueles textos que tÍm gradualmente se revelado multidimensionais e

omnisignificantesî; textos ìque produziram uma plenitude de significados e interpretaÁıes,

sendo que somente uma pequena porcentagem deles se faz presente numa ˙nica leituraî.5 Como

resume David Harlan,

Textos canÙnicos tÍm ìqualidades n„o detect·veis exceto num momento apropriado no futuroî. Eles geram novos modos de ver coisas velhas, e novas coisas que nunca vimos antes. N„o importa o qu„o sub-repticiamente ou o qu„o radicalmente mudemos nossa abordagem em relaÁ„o a eles, eles sempre responder„o com algo novo; n„o importa quantas vezes nÛs os reinterpretamos, eles sempre tem algo iluminador a dizer-nos. Sua prÛpria indeterminaÁ„o demonstra que eles jamais podem ser exauridos. 6

A histÛria da recepÁ„o, sob pena de ficar sem objeto, n„o pode despir o texto de seus

significados acumulados ao longo do tempo, posto que È precisamente a historicizaÁ„o desse

ac˙mulo de significaÁıes que constitui o seu principal objetivo. … necess·rio considerar, numa

perspectiva bastante prÛxima da hermenÍutica gadameriana, que o texto cresceu e foi

transmitido historicamente. Compreender um texto È compreender sua histÛria efetiva,

individualizando as camadas de interpretaÁ„o que lhe foram superpostas durante o espaÁo de

tempo entre sua produÁ„o e suas sucessivas recepÁıes. Segundo Gadamer, ìo texto n„o pode

nunca ser separado das interpretaÁıes atravÈs das quais ele chegou a nÛs, interpretaÁıes que

agora ëconstituem a realidade histÛrica de seu seríî.7 Em suma, o ser do texto È insepar·vel de seu

devir.

Guardadas todas as diferenÁas entre a hermenÍutica e o pÛs-estruturalismo, essa È tambÈm um

pouco a perspectiva de Michel Foucault. Para Foucault, uma forma especÌfica do texto ó o livro

4 Idem, p. 206. 5 Citado por HARLAN, D. A histÛria intelectual e o retorno da literatura. In: RAGO, M. e GIMENES, R. (orgs.). Narrar o passado, repensar a histÛria. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2000, p. 43. 6 Idem. 7 Ibidem, p. 27.

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ó, uma vez posta em circulaÁ„o, È enredada numa rede complexa e historicamente mutante de

discursos que produzem e reproduzem seus duplos, suas repetiÁıes, seus coment·rios, todo um

ìformigamentoî discursivo sem o qual o texto n„o chegaria atÈ nÛs, e que È insepar·vel dele:

Um livro È produzido, evento min˙sculo, pequeno objeto manej·vel. A partir daÌ, È aprisionado num jogo contÌnuo de repetiÁıes; seus duplos, a sua volta e bem longe dele, formigam; cada leitura atribui-lhe, por um momento, um corpo impalp·vel e ˙nico; fragmentos de si prÛprio circulam como sendo sua totalidade, passando por contÍ-lo quase todo e nos quais acontece-lhe, finalmente, encontrar abrigo; os coment·rios desdobram-no, outros discursos no qual enfim ele mesmo deve aparecer, confessar o que se recusou a dizer, libertar-se daquilo que, ruidosamente, fingia ser. A reediÁ„o numa outra Època, num outro lugar, ainda È um desses duplos: nem um completo engodo, nem uma completa identidade consigo mesmo.8

A partir das posiÁıes de Gadamer e de Foucault, poder-se-ia dizer que È no processo de sua

transmiss„o cultural que um texto ou um livro adquire sua identidade e sua diferenÁa em relaÁ„o

a si mesmo. PretendÍ-lo de outro modo seria transformar o texto num objeto a-histÛrico, natural

e transparente. Os livros, como os homens, n„o permanecem os mesmos: eles mudam com as

diferentes perspectivas histÛricas ñ a leitura dos textos tem, ela prÛpria, uma historicidade, a

historicidade da recepÁ„o. O que Borges diz do indivÌduo leitor poder-se-ia aplicar ‡ histÛria da

leitura: as geraÁıes simplesmente n„o lÍem com os mesmo olhos.9 Mas compreender e explicar esse

ìsimplesmenteî torna-se uma tarefa muito complexa. … o que tentam a histÛria da leitura e a

histÛria da recepÁ„o. Para ambos os projetos historiogr·ficos, a histÛria de um texto È a histÛria

de seus significados, ou melhor, dos sentidos que lhe foram historicamente atribuÌdos: os

sentidos n„o s„o inerentes ao texto no modo de sua produÁ„o, de sua escritura, mas

contingentes conforme os modos de sua recepÁ„o, de suas leituras.

Em sentido lato, a histÛria da recepÁ„o pode ser definida como a histÛria das apropriaÁıes e das

interpretaÁıes sucessivas de um patrimÙnio cultural qualquer legado pela tradiÁ„o num curso de

longa ou muito longa duraÁ„o. Em sentido estrito, a originalidade, singularidade e especificidade

das recepÁıes dos textos bÌblicos ó recepÁıes consideradas isoladamente ou em sÈrie ó

8 FOUCAULT, M. HistÛria da loucura na idade cl·ssica. S„o Paulo: Perspectiva, 1978, p. VII. 9 Apud CHARTIER, R. Cultura escrita, literatura e histÛria. Trad. Ernani Rosa. Porto Alegre: ARTMED, 2001, p. XI.

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constituem o objeto da histÛria da recepÁ„o da BÌblia. O campo È muito mais amplo do que

pode parecer ‡ primeira vista. Como conseq¸Íncia dos impactos do pÛs-modernismo na

historiografia, na teologia e nos estudos bÌblicos em geral, a histÛria da recepÁ„o da BÌblia, como

sintetiza L. Alexander Milton,

toma em conta n„o sÛ as interpretaÁıes de teÛlogos, mas tambÈm abrange o tratamento de textos e de temas bÌblicos na literatura, na m˙sica, na poesia, nas artes pl·sticas e em filmes. [...] A histÛria da recepÁ„o È uma disciplina inclusiva e n„o quer excluir nenhum meio como possibilidade de interpretaÁ„o bÌblica. Isso quer dizer que a teologia popular [...] pode ter o mesmo peso que a teologia de Agostinho ou de Lutero. A histÛria da recepÁ„o trata da entrada de idÈias teolÛgicas na cultura geral [...] para mostrar que a BÌblia, como portadora de cultura, tem efeitos mais abrangentes do que a prÛpria teologia admite. Por isso, essa disciplina tem como designaÁ„o alternativa ìhistÛria dos efeitosî.10

No campo mais vasto dos estudos bÌblicos, a histÛria da recepÁ„o, reitera Milton, È uma

ìdisciplina inclusiva que concede relev‚ncia tanto ‡ leitura e interpretaÁ„o tradicionais [eruditas]

quanto ‡ recepÁ„o popular dos textos bÌblicosî11; e isso È importante para ser destacado, pois

aproxima ainda mais a histÛria da recepÁ„o da BÌblia da histÛria da leitura, preocupada tambÈm

em historicizar a cultura da leitura tÌpica das camadas populares, o que Darnton chama os

h·bitos de leitura das pessoas comuns. A recepÁ„o, assim, est· indissoluvelmente ligada ‡s

pr·ticas histÛricas de leitura e interpretaÁ„o, independentemente dos grupos sociais ou nÌveis de

cultura em que elas ocorram. Tudo depende do problema que o pesquisador se coloca.

O objeto da histÛria da recepÁ„o da BÌblia È, portanto, bastante amplo e complexo: as diversas

maneiras de apropriaÁ„o, interpretaÁ„o e uso dos textos canÙnicos em diferentes sociedades, em

diferentes tempos e espaÁos. O seu principal problema metodolÛgico, como ainda aponta

Milton, È o risco de que o estudo ìseja simplesmente uma lista de interpretaÁıes, sem revelar

nenhum princÌpio organizadorî.12 Mostra-se que em tal Època e lugar lia-se e interpretava-se

assim; em outra Època e lugar lia-se e interpretava-se assado, mas sem nunca individualizar

estruturas de recepÁ„o e muito menos explicar a causalidade, o porquÍ da passagem de uma

estrutura ‡ outra, ou seja, a din‚mica das interpretaÁıes. Mas esse perigo, diga-se de passagem, 10 MILTON, p. 86. 11 Idem, p. 84. 12 Idem, p. 87.

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n„o È exclusivo da histÛria da recepÁ„o: ele È inerente a toda historiografia que n„o parta de uma

problem·tica claramente definida e ìcientificamente orientadaî, como nos ensinou Lucien

Febvre13. O problema como primado lÛgico da construÁ„o historiogr·fica È t„o importante neste

quanto em outros campos de pesquisa.

Os mÈtodos e os conceitos empregados na histÛria da recepÁ„o tÍm, pois, muitos pontos em

comum com as abordagens socioculturais ou contextualistas no ‚mbito da histÛria da leitura.

Em ambos os campos, atenta-se para o contexto sociocultural de recepÁ„o dos textos e, a partir

da reapropriaÁ„o de seus conte˙dos, para o processo de produÁ„o e distribuiÁ„o de imagens (os

imagin·rios ativados no processo de representaÁ„o da realidade). Entre o produtor e o receptor

dos textos, coloca-se uma multiplicidade de mediaÁıes sintetizadas num conceito que justamente

n„o prima pela clareza: o conceito de cultura. Situando os textos e as leituras no conjunto de

discursos que uma sociedade produz e recebe, a percepÁ„o da historicidade da recepÁ„o exige

que compreendamos as mudanÁas da cultura escrita e da leitura no tempo sinuoso,

ziguezagueante e descontÌnuo da longa duraÁ„o.

As sucessivas recepÁıes n„o se d„o in abstracto por consciÍncias desencarnadas; elas s„o operadas

por sujeitos concretos em contextos histÛricos concretos. Contra todos os sofismas pÛs-

modernos, devastadores nesse campo como em muitos outros, È necess·rio recuperar a plena

validade das abordagens contextualistas tanto na esfera da produÁ„o como da circulaÁ„o e

recepÁ„o dos textos. Mas como reconstituir, na pr·tica da pesquisa, o contexto da recepÁ„o? A

idÈia de que tudo È relevante para a an·lise contextual dos receptores È uma idÈia verdadeira, mas

impratic·vel. Ela implica, no limite, considerar todas as pressıes sociais, polÌticas e econÙmicas

que ajudaram a moldar o processo de transmiss„o cultural e, por conseguinte, a prÛpria recepÁ„o

do c‚none. Como ironiza Harlan, a an·lise contextual pode incluir toda a civilizaÁ„o ocidental,

ou mais.14 Mas a histÛria da recepÁ„o, como a histÛria da leitura, n„o cede a esses paroxismos

ensandecidos da vontade de saber: ela È prudentemente empÌrica, pacientemente documental,

delimitando com cuidado seus objetos a partir da definiÁ„o de problemas especÌficos. Uma das

saÌdas, ou um dos comeÁos, È precisamente reconstituir, quando possÌvel, os habitus de leitura de 13 Sobre o ideal cientÌfico de histÛria-problema, cf. os textos cl·ssicos de Febvre reunidos em Combates pela HistÛria. Lisboa: Editorial PresenÁa, 1985, especialmente a conferÍncia ìViver a histÛriaî. 14 Cf. HARLAN, p. 38.

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um dado indivÌduo ou grupo de uma dada sociedade num determinado momento histÛrico.

Nessa empiria reside outra dificuldade: as fontes. Como reconstituir o contexto da recepÁ„o de

um texto? Como em todos os outros campos historiogr·ficos, recorrendo a outros textos, na

express„o mais ampla possÌvel do termo: texto como toda e qualquer fonte capaz de fornecer

unidades mÌnimas de informaÁ„o (ou ìdadosî) sobre as pr·ticas de leitura de indivÌduos e

sociedades do passado, em suma, documentos histÛricos de toda ordem.

A BÌblia, como sugerimos, È uma obra aberta com significados extremamente inst·veis; ela n„o

tem um sentido fixo e determin·vel, o que engendra leituras m˙ltiplas produtoras de sentidos

divergentes e sempre repletos de contradiÁıes. Os litÌgios de interpretaÁıes freq¸entemente

surgem numa mesma comunidade de sentido e se desenvolvem atÈ um limite: a prÛpria ruptura

da comunidade interpretativa. O conflito de interpretaÁıes em torno do real significado da BÌblia

È latente e por vezes manifesto nos diversos meios religiosos que lhe s„o tribut·rios, o que

constitui um rico e vasto material para a investigaÁ„o histÛrica.

Comentando o estudo de Kovacs e Rowland sobre a recepÁ„o do Apocalipse de Jo„o de Patmos

na histÛria da civilizaÁ„o ocidental, Milton escreve que:

A maior parte das interpretaÁıes do Apocalipse reconhece uma ligaÁ„o entre o passado, o presente e o futuro, como È tÌpico de qualquer literatura escatolÛgica. A leitura ëdecodingí vÍ os acontecimentos descritos como prediÁıes de eventos particulares da histÛria, enquanto a leitura ëactualizingí admite um valor simbÛlico aos acontecimentos ó podem ser vistos como princÌpios que agem no mundo, mas sem lhes dar um car·ter absoluto. Mesmo reconhecendo que as leituras do Apocalipse n„o se reduzem a categorias f·ceis, Kovacs e Rowland propıem essas duas tendÍncias como ˙teis para a compreens„o das diversas leituras do livro que descrevem.15

Os autores tentaram, em outras palavras, apreender padrıes de leitura numa perspectiva de

muito longa duraÁ„o. A nosso ver, essas tendÍncias (como outros padrıes de recepÁ„o de outros

textos bÌblicos) devem ser tomadas como conceitos tÌpico-ideais, e n„o como conceitos tÌpico-

empÌricos. Elas se colocam no plano da teoria, e n„o no plano da realidade: alÈm de n„o

esgotarem as formas de leitura possÌveis dos textos apocalÌpticos, na verdade nunca 15 MILTON, p. 86.

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encontraremos um indivÌduo ou uma comunidade de leitores que realizem uma ou outra dessas

tendÍncias interpretativas de uma forma ìpuraî. O contr·rio parece ser mais plausÌvel: podemos

encontrar conflitos e tensıes entre formas padronizadas de interpretaÁ„o num mesmo grupo de

leitores e, inclusive, num mesmo indivÌduo, posto que o indivÌduo, ao contr·rio do que afirma a

ontologia liberal, È dividual em si mesmo.

A pesquisa em histÛria da recepÁ„o bÌblica pode valer-se, com proveito, das abordagens

desenvolvidas pela histÛria da leitura. A leitura tem uma histÛria, quer dizer, ela ìassumiu muitas

formas diferentes entre diferentes grupos sociais em diferentes Èpocasî.16 Essa È uma premissa

b·sica para uma histÛria da recepÁ„o n„o apenas da BÌblia como dos grandes textos em geral.

Em suma, h· que se considerar os textos bÌblicos inseridos na construÁ„o conflitante de sentido

numa sociedade; quer dizer, tom·-los n„o como objetos est·veis cuja interpretaÁ„o est· fixada,

mas como objetos de apropriaÁıes plurais e diversas17, em meio a um processo cuja produÁ„o de

significado È sempre indeterminado, embora se parta sempre de significantes determinados. Isso

ajuda a explicar as sucessivas metamorfoses dos textos bÌblicos, ou melhor, dos significados que

historicamente lhe foram atribuÌdos. Como diz Darnton, a leitura n„o foi sempre e em toda

parte a mesma pr·tica com os mesmos significados culturais: ìPodemos pensar nela como um

processo direto de se extrair informaÁ„o de uma p·gina; mas se a consider·ssemos um pouco

mais, concordarÌamos que a informaÁ„o deve ser esquadrinhada, retirada e interpretada. Os

esquemas interpretativos pertencem a configuraÁıes culturais, que tÍm variado enormemente

atravÈs dos temposî.18 A histÛria da leitura, em suma, visa a compreender o processo pelo qual

os textos escritos fazem sentido para aqueles que deles se apropriam ou os recebem nas mais

diversas e variadas circunst‚ncias.19

Para a histÛria da leitura, o ato de ler È simultaneamente uma tÈcnica, uma forma de gestualidade

e uma pr·tica social. Importa, sobretudo, reter a noÁ„o de leitura como um conjunto de pr·ticas

socioculturais codificadas ligadas ‡s lutas polÌticas da histÛria. Afinal,

16 DARNTON, p. 212. 17 Cf. CHARTIER, Cultura escrita..., p. 175. 18 DARNTON, p. 233. 19 CHARTIER, R. O mundo como representaÁ„o. In: ¿ beira da falÈsia: a histÛria entre certezas e inquietudes. Trad. PatrÌcia Ramos. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2002, p. 69.

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Sabe-se que a leitura ó o saber ler ó foi, durante milÍnios, um operador brutal de discriminaÁ„o social. A escrita-leitura (visto que uma n„o existe sem a outra) esteve desde o inÌcio ligada (com os escribas reais) ‡s esferas do poder e da religi„o. Como padr„o do tempo, da comunicaÁ„o, da memÛria, do segredo, sÛ podia ser um instrumento privilegiado do poder [...]. … por isso que a ìalfabetizaÁ„oî (ou difus„o da escrita-leitura como tÈcnica) sempre esteve ligada ‡s lutas polÌticas e sociais da histÛria.20

H· que se problematizar, pois, os poderes relacionados ‡s pr·ticas de leitura. Talvez nenhum

outro livro, em toda a histÛria humana, tenha sido objeto de tanto controle sobre a interpretaÁ„o

do que a BÌblia. A BÌblia È um conjunto de livros sabidamente perigoso: sua riqueza polissÍmica

pode gerar tanto leituras conservadoras e reacion·rias quanto reformistas e revolucion·rias da

ordem social. A ìcorretaî interpretaÁ„o bÌblica, nesse sentido, sempre foi objeto de disputa

polÌtica. O exemplo de Lutero È muito interessante. Resume Roger Chartier:

Ele publica traduÁıes em alem„o da BÌblia que, ao se difundir, permitem interpretaÁıes diversas, o que proporciona as raÌzes de movimentos como a Guerra dos Camponeses. … a raz„o pela qual Lutero, quase na metade da dÈcada de 1520, realiza um movimento retrÛgrado ó publicando os catecismos. Estudos recentes mostraram que no luteranismo a BÌblia n„o era o livro de cada um: era o livro do pastor, o livro dos candidatos a preceptores eclesi·sticos, ou o livro da parÛquia ou do templo. O fundamental È a mediaÁ„o do catecismo entre o texto sagrado e a interpretaÁ„o dos fiÈis; e observa-se, talvez de maneira paradoxal, que no sÈculo XVI e ao longo do XVII, atÈ a segunda reforma da dÈcada de 1680, h· mais proximidade entre o catolicismo e o luteranismo que entre o luteranismo e as outras formas da Reforma (calvinismo, puritanismo, pietismo), que consideram a BÌblia como o livro fundamental da leitura coletiva, familiar e pessoal.21

Neste sentido, e para continuar no exemplo da primeira Reforma Protestante, o estudo

detalhado e documentado das pr·ticas de leitura entre os v·rios e diferentes grupos reformados È

fundamental para o estudo da recepÁ„o dos textos bÌblicos por esses mesmos grupos: na teologia

como na pr·xis polÌtica, a leitura dos camponeses revolucion·rios liderados por Thomas

M¸ntzer È simultaneamente semelhante e muito diferente da leitura de um Lutero ou de um

20 BARTHES, R. & MAURI»S, P. Leitura. In: ROMANO, R. (dir.). EnciclopÈdia Einaudi. Vol. 11. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, p. 185. 21 CHARTIER, Cultura escrita..., pp. 22-23

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Melanchton. AtÈ o sÈculo XVI, como se sabe, a BÌblia n„o È uma leitura popular por dois

motivos: est· escrita em latim e sua circulaÁ„o manuscrita È bastante restrita. A sua transmiss„o

social e cultural, sobretudo entre os extratos populares, opera-se atravÈs da cultura oral. Assim,

como escrever uma histÛria da recepÁ„o da BÌblia antes de Gutenberg sem pesquisar os espaÁos

de circulaÁ„o manuscrita dos textos e sem compreender a cultura da oralidade nas pr·ticas de

leitura? Para outras Èpocas, os problemas s„o similares. Como abordar a recepÁ„o da BÌblia na

idade moderna sem o impacto da cultura impressa depois de meados do sÈculo XV? Ou a

formaÁ„o da opini„o p˙blica a partir do sÈculo XVIII? Ou o desenvolvimento da imprensa

escrita e das mÌdias na modernidade dos sÈculos XIX e XX?

Portanto, a histÛria da leitura coloca problemas bastante concretos para a histÛria da recepÁ„o

dos textos bÌblicos. A materialidade do texto, por exemplo, È muito importante, pois o texto n„o

existe em si mesmo, abstrato e pairando sobre as mentes; como diz Chartier, ìdeve-se lembrar

que n„o h· texto fora do suporte que o d· a ler (ou a ouvir) e que n„o h· compreens„o de um

escrito, seja qual for, que n„o dependa das formas nas quais ele chega ao seu leitorî.22

A histÛria da recepÁ„o, de matriz brit‚nica e desenvolvida no Centro para o Estudo da HistÛria

da RecepÁ„o da BÌblia da Universidade de Oxford, tem muitos pontos em comum com a

abordagem francesa da histÛria da apropriaÁ„o, vertente associada principalmente a Chartier e

aos historiadores que gravitam em dos Annales. A contribuiÁ„o da estÈtica da recepÁ„o,

desenvolvida desde os anos 1970 pelo crÌtico liter·rio alem„o Hans-Robert Jauss, È reconhecida

como importante por pesquisadores de ambos os campos. A estÈtica da recepÁ„o, renovadora

dos estudos em teoria liter·ria e histÛria da literatura, tem como principal objetivo a

historicizaÁ„o da experiÍncia de leitura de obras liter·rias. N„o admira, portanto, que seja uma

matriz inspiradora comum a ambos os projetos historiogr·ficos.

Chartier considera a noÁ„o de apropriaÁ„o central para a histÛria cultural de modo geral, e para a

histÛria da leitura em particular. O conceito de apropriaÁ„o, com efeito, enfatiza a ìpluralidade

dos empregos e das compreensıes e a liberdade criadoraî, mesmo que seja regrada, dos agentes

22 CHARTIER, O mundo como representaÁ„o, p. 71.

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histÛricos.23 A acentuaÁ„o das capacidades inventivas dos receptores È comum, pois, tanto ‡s

abordagens da histÛria da leitura quanto aos enfoques da histÛria da recepÁ„o. A recepÁ„o nunca

È uma atividade passiva, È sempre um ato criador, uma poiesis. Em ambos os campos de pesquisa,

o consumo cultural de um texto È analisado como um novo momento da produÁ„o. Todavia, a

liberdade na apropriaÁ„o tem um limite, pois um texto n„o permite que se diga qualquer coisa

dele: a noÁ„o de dist‚ncia criadora pressupıe, portanto, uma relaÁ„o dialÛgica entre leitor e

texto. Essa dialogia tende a assumir formas padronizadas conforme os leitores compartilhem os

mesmos cÛdigos culturais, formando assim comunidades de interpretaÁ„o. PorÈm, essa partilha

comum de cÛdigos n„o determina uma recepÁ„o homogÍnea e monolÌtica, que simplesmente

parece n„o existir. A diferenÁa de leitura e o conflito de interpretaÁıes s„o primeiros em relaÁ„o

‡ semelhanÁa e ao consenso; consenso constituÌdo sempre por negociaÁıes prenhes de relaÁıes

de poder.

A singularidade da leitura religiosa È estabelecida na separaÁ„o entre o sagrado e o profano, ou

entre as dimensıes sagradas e profanas da experiÍncia, que tambÈm variam historicamente e de

cultura para cultura. As relaÁıes entre as sociedades e seus sistemas religiosos È um problema

sempre presente para a nova histÛria religiosa. A histÛria da leitura e a histÛria da recepÁ„o da

BÌblia n„o s„o alheias a esse paradigma, mesmo quando enfocam um leitor/receptor individual.

Por fim, as lÛgicas e din‚micas da recepÁ„o tendem a formar tradiÁıes histÛricas particulares,

apreensÌveis e compreensÌveis enquanto singularidades no tempo e no espaÁo. A quest„o seminal

da histÛria da leitura ó ìo que e como liam tais pessoas em tal Època?î24 ó pode, assim,

contribuir para a elaboraÁ„o dos mÈtodos e a ampliaÁ„o do question·rio prÛprio da histÛria da

recepÁ„o da BÌblia.

23 Idem, p. 67. 24 Cf. CARDOSO Jr., HÈlio Rebello. ìHistÛria da leituraî e ampliaÁ„o do question·rio historiogr·fico: consideraÁıes acerca do eclipse da materialidade do livro. In: Tramas de Clio: convivÍncia entre filosofia e histÛria. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2001, passim.

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Oracula 3.5, 2007.

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