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Histria, literatura e resistncia na frica:

As primeiras obras de Pepetela em perspectivaHistory, literature and resistance in Africa:

The first works of Pepetela in perspective Resumo: Com o presente trabalho pretendemos realizar uma discusso terica em torno do conceito de resistncia tal como definido e problematizado pelas tendncias historiogrficas que abordam as aes e iniciativas anticoloniais no continente africano. Para tanto, ser feito uso da literatura enquanto principal fonte para a anlise. Norteando-se pela narrativa ficcional construda em torno dos Movimentos de Libertao Nacional, sobretudo no que concerne ao caso angolano e seu expoente Artur Pestana (Pepetela), buscamos demarcar melhor os contornos tericos do conceito de resistncia.Palavras-chaves: Histria da frica. Resistncia. Literatura Angolana.Abstract: This work aims to make a theoretical discussion about the concept of resistance as defined and questioned by historiographical trends that address the anti-colonial actions and initiatives in Africa. To do so, images will be used as the main source for the analysis. Guided by fictional narrative built around the National Liberation Movements, especially with regard to the Angolan case and its exponent Artur Pestana (Pepetela), seeks to better demarcate the theoretical boundaries of the concept of resistance.Keywords: History of Africa. Resistance. Angolan Literature. IntroduoO tema deste artigo a trajetria da resistncia angolana analisada a partir da literatura tendo-se como marco temporal os anos de conflito pela libertao nacional (1961- 1975). Da vasta bibliografia produzida por escritores angolanos durante estes anos de conflito armado destacamos as trs primeiras obras de Artur Pestana dos Santos, o Pepetela: Muana Pu, Mayombe e As aventuras de Ngunga.

Discutimos a possibilidade de realizar uma anlise da resistncia anticolonial angolana tendo como ponto de partida a literatura deste pas, especialmente a fico escrita durante a guerra pela libertao nacional, tendo como eixo as obras de Pepetela, a Trilogia da Guerra de Libertao. Tal enfoque deve-se ao fato de estas obras terem vindo luz no desenrolar do processo libertador em que o autor participou ativamente, tanto enquanto escritor como no papel de guerrilheiro. A escolha de enfoque acaba recaindo neste autor pela capacidade que sua obra tem de catalisar tendncias seja a nvel esttico ou ideolgico e pela vivncia do romancista na resistncia anticolonial fosse enquanto exilado poltico ou guerrilheiro. Por estes motivos sua produo mostra-se um espao privilegiado para o estudo da trajetria da resistncia em Angola. A guerra de libertao nacional, mesmo tomada sincronicamente, ser inserida na diacronia maior da resistncia africana.

Dessa forma, se Pepetela o autor focado, a resistncia o norte analtico. No realizamos somente um estudo sobre a guerra de libertao ou a produo ficcional de Pepetela escrita nos anos de conflito, ao invs disso intentamos analisar a formao e os aspectos da resistncia anticolonial angolana a partir dos romances escritos por Pepetela durante a guerra de libertao nacional. Isto implica em definir os contornos conceituais da resistncia africana.

1. Discusso ConceitualEm uma vista panormica na bibliografia especializada sobre temas da resistncia africana se faro presentes consideraes consagradas como as de Allen Isaacman que considerava a reteno da produo de algodo pelos camponeses de Moambique como ato de resistncia, ou teses mais recentes como a de Achille Mbembe segundo a qual os sonhos podem constituir resistncia. Outro autor pertinente, Donald Crummey, sugeriu que a resistncia podia ser tambm silenciosa, sendo justamente o sigilo uma de suas principais caractersticas, o que a diferenciaria de outra oposio anticolonial, o protesto: Protest studies, so far as we can distinguish them from resistance studies, imply somewhat different contexts. Protest entails a higher degree of vocalization. By contrast, resistance may appear mute, and stealth may be one of its essential features (CRUMMEY, 1986, p. 10). A tese de Crummey ressoa na teoria dos discursos ocultos de James C. Scott que enfatiza a resistncia cotidiana que transcorria muitas vezes de forma velada e implcita no cotidiano atravs, por exemplo, de msicas e contos populares (SCOTT, 2000).

Estes autores encontram-se na mesma tradio geral de teses sobre a resistncia em que qualquer reao ao colonialismo levada em conta. Seja essa reao direta, como a reteno de algodo analisada por Isaacman, ou indireta, como a teoria dos discursos ocultos de Scott. Tende-se, por vezes a incluir cualquier cosa, desde la disimulacin al bandolerismo social, cualquier actividad que ayudara a frustrar las operaciones del capitalismo (ABBINK, WALRAVEN, 2008, pp. 17, 18). Se a maioria dos trabalhos referentes resistncia africana analisa os primeiros anos da colonizao (entre o final dos anos de 1800 e a primeira metade do sculo XX), no estaria este trabalho cometendo um anacronismo ao propor o uso deste conceito para analisar a fase final do colonialismo portugus em Angola? na resposta a esta pergunta que o debate historiogrfico torna-se mais acirrado, havendo quem argumente que os movimentos de resistncia do incio da colonizao devem ser tratados separadamente s posteriores guerras de independncia, e tambm quem diga ser possvel tratar ambos os momentos como uma sequncia.Exemplos clssicos da primeira argumentao so os trabalhos de Henri Brunschwig e Edward Steinhart. Apesar de diferenas argumentativas e ideolgicas ambos concordam que a resistncia ao colonialismo ocorrida entre os anos de 1800 e incio do sc. XX no deve ser tratada em conjunto com as posteriores guerras de independncia. Afirma Brunschwig:La filiation, que certains historiens etablissent entre la resistance et la liberation nationale n'existe pas 'a notre avis. On observe, au contraire, deux mouvements paralleles lun profondement enracine dans le passe, affaibli mais encore capable de se manifester, lautre issu de la collaboration, jeune, dynamique et ambitieux. (BRUNSCHWIG, 1974, p. 63).Assim, para Brunschwig a resistncia estaria vinculada aos laos tnicos: La resistance, en effet, paralt intimement liee a lethnie. Et cette ethnie, si difficile a definir et si constante, pourrait bien etre specifique de lAfrique noire, de forma que os movimentos independentistas estariam em outro plano organizativo em que as ideologias importes dOccident, et assez souples elles-mmes, assez ambigies pour pouvoir sadapter aux peuples et aux circonstances (BRUNSCHWIG, 1974, pp. 61, 64). Edward Steinhart chegar a uma concluso parecida. Para ele, tratar a resistncia como precursora das guerras de libertao nacional seria dar legitimidade aos numerosos regimes comumente classificados de autoritrios que se instalaram em vrios pases africanos no ps-independncia e consolidar uma espcie de mito nacionalista: Instead of examining anti-colonial resistance, protest and liberation movements through the distorting lens of nationalist mythology, we must create a better myth, one better suited to interpreting the reality of African protest (STEINHART,1993, pp. 362, 363).

Em oposio a essas teses, Allen Isaacman argumenta, partindo do caso moambicano, que as lutas camponesas desse perodo acabaram por ser o germe da contestao que desembocaria na formao da FRELIMO (Frente de Libertao Nacional de Moambique), um moderno movimento nacionalista que encabeou a guerra de libertao:A natureza do apelo, expressa em termos anticoloniais, e o alcance da aliana que este apelo tornou possvel, sugerem que a rebelio de 1917 ocupou uma posio de transio entre as formas primitivas de resistncia africana e as guerras de libertao de meados do sculo XX. A revolta de 1917 constitui a culminao da longa tradio de resistncia zambeziana e simultaneamente se torna precursora da recente luta de libertao (ISAACMAN, 1979, pp. 288, 290) Grifo meu. Isaacman chega concluso de que as resistncias anticoloniais gestadas entre os anos de 1850 e 1921 constituem-se enquanto precursoras da guerra independentista, afastando-se tanto de Brunschwig quanto de Steinhart.

Assim, parece claro que Brunschwig, por exemplo, no leva em conta as variadas e incontveis zonas de interseco entre ambos. Admitir a existncia destes deux mouvements no significa admitir que sejam absolutamente indissociveis e que no possam constituir-se enquanto integrantes de um mesmo fenmeno. Em sntese, ele ignora a contemporaneidade do no contemporneo (KOSELLECK, 2006, p. 317).

Entretanto, continuidade deve ser encarada em perspectiva histrica e no poltico-partidria. Nesse ponto Steinhart aponta um perigo a se ter em conta: o de tratar esses movimentos de resistncia como mitos fundadores de partidos nacionalistas que aps a independncia mostraram prticas autoritrias.

Portanto, o equvoco de ambos no notar o que Jos DAssuno Barros designa como polifonia da realidade:Poderemos desenvolver um novo padro de leitura do devir histrico se considerarmos que a realidade polifnica, isto , que ela no avana em blocos unificados, produzindo rupturas de tipo arqueolgico (em camadas que se sucedem). Ao contrrio, poderamos entender que o devir histrico (ou a sensibilidade humana diante deste devir) apresenta na verdade uma natureza musical, impulsionando-se a partir de melodias que se entrelaam e que se contraponteiam, umas convergindo com outras, em relao de divergncia (BARROS, 2012, p. 123).Brunschwig e Steinhart tentam estabelecer blocos diferentes em uma mesma experincia histrica. Esta experincia no precisa ser sempre uniforme para ser uma s, justamente porque as modificaes conjunturais fazem parte do devir histrico da resistncia.

Em contrapartida, Isaacman estabelece a resistncia como sendo uma longa tradio. A resistncia africana s pode ser compreendida enquanto encarada como sobreposies (e inter-relaes) temporais dentro de uma mesma durao temporal, manifestando-se de formas variadas, tal como propuseram Abbink e Walraven.

As resistncias anticoloniais do sculo XIX e da primeira metade do XX, devem estar inseridas no mesmo processo e na mesma diacronia das lutas de emancipao nacional conduzidas por meios de expresso modernos, pois, - seguindo a argumentao de Koselleck - : apenas por meio da perspectiva diacrnica que se pode avaliar a durao e o impacto de um conceito social ou poltico [como resistncia], assim como das suas respectivas estruturas. Isso no impede que se analise sincronicamente um evento especfico da resistncia angolana, como o nosso caso com a guerra de libertao, mas necessrio integrar esse ponto de vista sincrnico em torno das suas alteraes ao longo do eixo diacrnico desembocando no estudo das estruturas e suas alteraes, como categorizado no mbito da histria social (KOSELLECK, 2006, pp. 105, 114, 115).

Sobre o carter destes trabalhos afirmam Abbink e Walraven em um estudo recente: Un punto fundamental en la crtica a los primeros trabajos sobre el concepto de resistencia es que se centran en las reacciones de los africanos contra el hombre blanco o el colonialismo y no en su verdadero quehacer del desarrollo histrico (ABBINK, WALRAVEN, 2006, p. 16) Assim, estes autores tomam o conceito de resistncia em sentido amplo para falar de,[] intenciones y de acciones por varias razones, siendo las ms comunes la percepcin de acciones entendidas como injustas y los intentos de dominacin ilegtimos o intolerables. Los actos concretos de resistencia no tienen porqu ser actos de violencia fsica, amplindose tambin a otros crculos del comportamiento humano. La resistencia debe definirse no tanto como un conjunto de actos concretos sino por el intento de estos actos, con el objetivo de defender situaciones sociopolticas prexistentes, proteger y relanzar otros ideales de civilizacin o, simplemente, defender estructuras de poder ya existentes, sean o no elitistas (ABBINK, WALRAVEN, 2006, p. 16).Para a compreenso completa desse quehacer del desarrollo histrico da resistncia angolana necessrio ter a literatura inserida no contexto geral de libertao africana, como forma de reao anticolonial. Coisa que a historiografia especializada no tem feito de forma sistemtica e em nmero considervel, mas somente considerando esse legado historiogrfico em que a resistncia aparece no como categoria abstrata ou esttica, mas enquanto realidade verossmil, que esse trabalho pode ganhar consistncia analtica. Por isso, Pepetela aparece aqui no somente para que se aviste por meio de uma representao ficcional as formas como as resistncias se gestavam, mas sim para compreender o surgimento dessas mesmas no devir histrico concreto angolano, o que significa tratar, na trilha de Isaacman, a resistncia como um longo processo, que no s desemboca na luta independentista, mas se faz presente nela.

Tendo isso em vista, a fonte literria ser analisada em uma dupla perspectiva: enquanto universo ficcional em que so apresentadas as resistncias anticoloniais e enquanto ele mesmo como forma de contestao. Sendo a resistncia encarada enquanto fenmeno histrico que catalisa uma srie de acontecimentos aparentemente desconectados ou mesmo antagnicos tanto em se tratando de experincia literria como de conscincia histrica.

Dessa forma, os atos de resistncia localizados em um momento histrico concreto e especfico abarcam uma ampla gama do comportamento humano. Seja pela violncia fsica, seja pela inteno da mesma, ou por outras formas das mais variadas como nos alerta a bibliografia especializada. Estas formas de resistncia sero analisadas, bem como o processo de sua formao partindo das obras selecionadas.

2. Contexto colonial angolanoEm 1961, ano em que tem incio a guerra pela libertao nacional, Angola era uma das provncias ultramarinas portuguesas. Leia-se em provncias um eufemismo jurdico para colnias. O territrio angolano estava inserido no ento chamado Terceiro Imprio Portugus. A configurao ideolgica desse imprio bastante tardia ganhando corpo sistemtico somente no final dos anos de 1920 e incio de 1930 com a chegada de Salazar ao poder.

O regime tinha como brao armado a Polcia Interna e de Defesa do Estado (PIDE/DGS) e como crebro a Igreja Catlica, sendo ela que difundia a ideologia da ordem, do status quo, da noo de dilatao da f e do imprio como fatos coligados indissociveis; e num pas campons quase economicamente estagnado, o salazarismo recorria frequentemente sano religiosa do seu poder. (SECCO, 2004, p. 56).Essa ideologia salazarista conferia as bases para o prprio colonialismo portugus. Como Secco observou, a dilatao da f estava intimamente associada com a expanso do imprio (2004, p. 67). Dessa maneira a chegada de Salazar ao poder marca uma nova fase no colonialismo portugus. Todavia, por trs da dilatao do imprio e da f havia, sem impropriedade ou exagero terminolgico, um ato etnocidrio levado a cabo por uma civilizao da barbrie (ANDRADE apud NOA, 2002, p. 25).

O racismo, eticamente justificado pelo Fardo do Homem Branco e cientificamente comprovado pelo Darwinismo Social, tornava-se socialmente aceito, de maneira que estudar as relaes entre racismo e cultura levantar a questo de uma ao recproca. O racismo era o resultado a nvel concreto da cultura imperial. Para colonizar era preciso coisificar, criar um homem-objecto, sem meios de existir, sem razo de ser destruindo-o no mais profundo da sua existncia (FANON, 2011, pp. 274, 277). Ou seja, o colonizado criao imposta do colonizador, conforme a conhecida tese de Memmi: (...) a existncia do colonizador demanda e impe uma imagem do colonizado (MEMMI, 2007, p.117). Mrio Pinto de Andrade, por sua vez, afirmou que essa criao (sempre mistificada e estereotipada) do homem e da mulher colonizados desembocava no binmio branco/negro e a ao comando/obedincia e, como seu corolrio o paternalismo tutelar (ANDRADE, 1997, p. 26). Enquanto em Portugal passava-se por essa consolidao do salazarismo e radicalizao do argumento colonial, em Angola evidenciava-se a perseguio aos opositores do regime. Durante esse perodo, entre finais dos anos 1920 e incio de 1930, jornais de oposio como O Angolense, A Verdade e O Independente foram fechados e seus apoiadores tratados a ferro e fogo pela administrao colonial. Essa gerao teve durante esses anos a voz calada em uma perseguio to implacvel que seria necessrio esperar uma gerao inteira - at os anos de 1950 - para reaparecerem vozes opositoras organizadas. Segundo Douglas Wheeler: Portugal nesse perodo, instaurado o Estado Novo, comeava a impor uma poltica de unidade sob o pretexto de necessidade patritica, e aqueles que j no aplaudiam foram silenciados. (WHEELER, PLISSIER, 2011, p. 188). Em sntese afirma o historiador estadunidense:A primeira repblica morreu em 1926. A sua extino marcou o fim de uma fase importante da histria de Angola e do nacionalismo angolano. Uma gerao inteira de assimilados moderados foi neutralizada ou purgada no perodo de 1923-30, e o nacionalismo angolano entrou em fase de silncio e inactividade. Seria preciso esperar mais 20 anos para que ressurgisse uma gerao de activistas rebeldes, ao passo que os assimilados, j mais velhos, cujas esperanas tinham sido inflacionadas pela repblica, tentaram salvar o que podiam dos seus empregos e posies. (WHEELER, PLISSIER, 2011, p. 188). Essa primeira experincia de oposio ao regime colonial levada a cabo pelos assimilados pode ser definida como protonacionalista. Nesse contexto juridicamente chamava-se assimilado ao negro ou mestio que obteve a cidadania portuguesa. Por extenso: um evoludo, um no-indgena (PLISSIER, 1997, p. 353). Contudo, a oposio no se dava somente entre os assimilados citadinos. Havia tambm um fenmeno de resistncia camponesa, principalmente ao sul de Angola expressa, sobretudo, pelos Ovambo. De maneira bastante simples esse tipo de resistncia se caracterizava pela ao armada e pela defesa do territrio invadido. Comumente essa defesa se deu no interior de Angola em zonas rurais. Na prtica tentava-se fazer permanecer as estruturas sociais pr-coloniais. A ltima grande expresso desse tipo de resistncia ocorrer em 1941 com a revolta dos Cuvales.

Os protonacionalistas em oposio constituam-se como j dito em um grupo bastante reduzido e especfico de assimilados, mestios ou negros, com acesso redao de jornais. No havia movimentao armada e a concentrao era urbana e no rural. Essa resistncia protonacionalista por no ter necessariamente um carter independentista radical. Sobre isso afirma Mrio de Andrade:Levmos anteriormente enunciado que as elites letradas nas sociedades africanas emergiram entre as camadas sociais privilegiadas, pelo jogo da mobilidade vertical induzida pela necessidade de quadros subalternos para o exerccio da vida administrativa, no mbito do sistema poltico e econmico vigente. Encarados no seu conjunto, trata-se de autodidactas que desempenham o papel de reprodutores de um saber essencialmente humanista. (ANDRADE, 1997, p.39). Ainda segundo Andrade: Naquele devir histrico, competiria aos letrados materializar a capacidade dos filhos da terra ascenderem social e culturalmente e de comparticiparem na direo do poder colonial (ANDRADE, 1997, p. 55). Justamente por possuir essas caractersticas que o protonacionalismo apesar de exercer papel contestatrio no pode ser identificado com a resistncia nacionalista posterior. Nesse primeiro momento as reivindicaes eram, em geral, de comparticipao na administrao colonial, e no de extirpao da mesma. O nacionalismo revolucionrio angolano foi na prtica e na teoria a espcie de sntese acrescida de tons bastante originais dessas duas resistncias anticoloniais to diferentes entre si. Por um lado seus participantes eram provenientes das reas urbanas, tal como os protonacionalistas. Mas, ao contrrio destes, se traziam a insgnia formal de assimilado no buscavam comparticipar na administrao colonial e sua educao europeia no exclua, necessariamente, a herana africana. Tal fato leva alguns autores a design-los como crioulos: O assimilado corresponde, no colonialismo portugus, a um estatuto jurdico com pretenses de legislar sobre fenmenos culturais, o crioulo, conforme o encaramos, um termo que est ligado a uma perspectiva to comente cultural. A crioulidade implica sntese e a assimilao, da forma como era entendida, opo. Evidentemente, o facto de muitos crioulos terem alcanado tal estatuto assimilao no significou a sua submisso cultura portuguesa em detrimento da vertente africana (BITTENCOURT, 1999, p. 95, 96).Por outro lado, apesar de assimilados, estes insurgentes traziam para si as dores das populaes rurais e da resistncia anterior.

Os novos nacionalistas iro se abrigar sob a revista literria Mensagem. Fundada por um grupo de intelectuais angolanos em Luanda em 1948 e tendo na linha de frente Viriato da Cruz essa revista o marco do regresso resistncia por meio da imprensa. Esse momento caracterizou-se pela retomada do interesse pelos costumes, pela histria e cultura tradicionais de Angola. Esse movimento de regresso s fontes foi sintetizado na palavra de ordem Vamos descobrir Angola tambm estabelecida por Cruz. Em sntese Mensagem era dedicada poesia em portugus de cunho no diretamente poltico-partidrio, o que no significa que tenha passado despercebida pelos censores coloniais, pois a poesia apesar de no expressar pontos de vista directamente polticos a tudo atingia atravs da fora potica. Fora esta de carter indirectamente subversivo para o conjunto da ordem estabelecida. (DAVIDSON apud FERREIRA, 1977, p.152).

Nas palavras do prprio Viriato da Cruz:O movimento deveria retomar, mas sobretudo com outros mtodos, o esprito combativo dos escritores africanos dos fins do sculo XIX e dos princpios do actual. Esse movimento combatia o respeito exagerado pelos valores culturais do ocidente (muitos dos quais caducos); incitava os jovens a redescobrir Angola em todos os seus aspectos atravs dum trabalho colectivo e organizado; exortava a produzir-se para o povo; solicitava o estudo das modernas correntes culturais estrangeiras, mas com o fim de repensar e nacionalizar as suas criaes positivas e vlidas; exigia a expresso dos interesses populares e da autntica natureza africana, mas sem que se fizesse nenhuma concesso sede de exotismo colonialista. Tudo deveria basear-se no senso esttico, na inteligncia, na vontade e na razo africanas. (CRUZ apud ANDRADE, 2011, p. 189).

No se tratava, portanto, de repensar um caso particular de determinado grupo tnico, mas sim da nao inteira. De maneira que a forma literria fosse a expresso dos sentimentos do homem angolano, contudo no se restringindo a um crculo de assimilados, mas descendo a rua, identificando-se com os anseios populares (ANDRADE, 2011, p. 193). Assim, o homem-objeto criado pelo colonialismo dava lugar ao colonizado revoltado. O substrato cultural africano at ento negado era retomado e usado como justificativa para a contestao. Figuras como o negro, o africano, o mestio, aparecem na literatura no mais em carter estereotipado e mistificado, mas sim enquanto elementos de ligao fraternal para com a comunidade dos oprimidos, confrontando as dores e as esperanas, (...). (ANDRADE, 2011, p. 193).

Literatura e resistncia se consubstanciam de maneira a uma ser medida exata do desenvolvimento da outra. Quanto mais patente o conflito mais intervencionista a temtica se tornava de maneira quea maturao ideolgica concomitante com a radicalizao das formas de luta, o prprio instrumento lingustico tendendo a uma independncia semntica, e sobretudo o comprometimento do sujeito-poeta nas batalhas populares permitiram lanar as bases da identificao do autor com o seu pblico. (ANDRADE, 2011, p. 192).

Nasce assim a resistncia literria angolana em sua face nacionalista revolucionria. No mais reformista como os protonacionalistas, mas tambm no mais focal como as resistncias camponesas anteriores. A partir do empreendimento literrio retomado com outros mtodos (nas palavras de Cruz) e do retorno tradio tipicamente angolano-africana estabelecia-se um projeto a nvel nacional e revolucionrio. O moderno nacionalismo angolano que tem sua semente em Mensagem a sntese desses dois modelos insurgentes to diferentes entre si. Isso refora nossa argumentao de que tal nacionalismo continuidade das resistncias anticoloniais dos perodos anteriores. Se por um lado estes poetas iro propor a libertao (e construo de fato) da nao por outro iro catalisar os elementos pr-nacionais. Argumentos estes postos prova com o incio da guerra pela libertao nacional em 1961. Muana Pu de Pepetela expressa bem esse dilogo entre por um lado a narrativa da nova nao e do outro os elementos tradicionais herdados do passado pr-colonial bem como a resistncia libertria do perodo.

3. Histria e literatura em Pepetela3.1. Muana PuEscrita no exlio em Argel, Muana Pu protagonizada por dois personagens coletivos, os Morcegos e os Corvos:Deus criara o Mundo, os corvos e os morcegos. Moviam-se em ciclos de vida e de morte. Os morcegos criavam o mel para os corvos e alimentavam-se dos excrementos destes. Os corvos grasnavam, a funo deles era grasnar. Deus criara o Mundo oval, coerente, perfeito. Uma nica lei fizera: ningum deveria subir montanha, mais alta que o cu, onde o Sol era azul e lanava dardos da cor das rosas. Os corvos eram livres naquele mundo oval. Grasnavam se quisessem. De qualquer modo, os morcegos teceriam o mel de que se alimentavam. Esse mel dava-lhes foras para melhor chicotearem os morcegos, exigindo maior rendimento. Deus era justo, grasnavam os corvos. E faziam os morcegos recitar esses preceitos divinos. Religiosamente, os corvos rodavam em crculo, sem ousar subir montanha, e impedindo os morcegos de o fazer. (PEPETELA, 1995, p. 22, 23).

Parece ficar patente mesmo na leitura mais superficial a ligao entre o Deus dos corvos e as justificativas do Estado Novo. Deus remeteria tanto ao crebro do regime, A Igreja Catlica, como s justificativas da colonizao, o Fardo do Homem Branco e o Darwinismo Social. Atravs desse trip a metrpole levaria a civilizao colnia. Contudo, segundo Dalila Cabrita Mateus e lvaro Mateus, afora as justificativas imperiais e do iderio civilizatrio a quase totalidade dos angolanos permaneciam margem da escola. (CABRITA MATEUS, MATEUS, 2011, p. 36). Essa era uma das maneiras de impedir que os morcegos alcanassem a montanha.

Em finais dos anos 1950 somente 8% das crianas em idade escolar frequentavam a escola, isso em se tratando do ensino primrio. Dos poucos que conseguiam chegar ao ensino secundrio era-lhes permitido apenas cursos tcnicos e profissionalizantes, sendo a cor da pele determinante para os estudos. Em Angola em meados de 1948 nos dois liceus existentes, em Luanda e no Lubango, estavam matriculados apenas cinco estudantes negros (CABRITA MATEUS, MATEUS, 2011, p. 37). No era de se estranhar que no incio da guerra de libertao, quando vem luz Muana Pu, os motivos fossem mais raciais do que polticos. Outro elemento importante a metfora do mel. Apesar de fabricado pelos morcegos era consumido pelos corvos e a estes restavam os excrementos. A metfora remete explorao econmica, seja da terra e seus recursos minerais, ou do homem e mulher angolanos e sua fora de trabalho. Em suma os morcegos estavam sujeitos mesma explorao desenfreada a que estavam submetidos os povos coloniais e o carter profundamente parasitrio da colonizao portuguesa (CABRITA MATEUS, MATEUS, 2011, p. 37).

Diante desse estado de coisas no seria improvvel uma revolta dos morcegos:Os morcegos procuravam a luz. E aproximavam-se, vindos dos dois lados da base da montanha. Sem o saberem, ele dum lado, ela do outro, aproximavam-se, no meio das hordas, da base da montanha. Os corvos grasnavam ao sacrilgio. Desciam em voo picado contra eles. O irreparvel ia dar-se. E lutaram. Os corvos bateram em retirada e eles atingiram o alto da montanha. No se tinham enganado. O sonho era verdadeiro. Pela primeira vez, os morcegos viram a luz do Sol. Ao lado, muito longe, as fronteiras de arame farpado que delimitavam o mundo oval (PEPETELA, 1995, p.35-42).A tomada da montanha pelos morcegos pode entrar em consonncia com os eventos do limiar da luta de libertao, no incio dos anos 1960 quando aparecem as primeiras aes armadas depois de um intervalo de vinte anos (desde a revolta dos Cuvales de 1941). Nesse momento aparecem ncleos de resistncia armada bastante significativos em pontos diferentes de Angola.

O primeiro ato de resistncia em grandes propores nesse perodo o episdio ocorrido na regio da Baixa do Cassange. A revolta aconteceu nos meses de janeiro e fevereiro de 1961 e contou com greves de trabalhadores e ataques armados. Na maioria armas brancas (majoritariamente faces) ou mesmo objetos de trabalho. Esse ato de resistncia foi substancialmente espontnea e vinculada insatisfao popular frente s condies de vida que o lugar ofertava.

Outra rebelio a se ter em conta a sublevao ocorrida em fevereiro do mesmo ano em Luanda. O mais significativo desta revolta que colocou efetivamente por terra o argumento colonial da harmonia racial mantida na colnia em especial nas reas urbanas. A partir desses episdios a luta anticolonial continuaria a desenvolver-se, o que corrobora a tese de que a harmonia racial no passava de uma fachada construda pelo colonialismo portugus, j que a frustrao com tal situao ser um dos principais combustveis para a luta (BITTENCOURT, 1999, p. 22).

Ao chegarem montanha, aps expulsarem os corvos, os morcegos compreendem ento que Deus era uma inveno dos corvos, com que tinham desde sempre subjugado, pra terem o mel sem trabalhar. Da em diante o conflito fica mais acirrado e os morcegos desceram das montanhas, agora lcidos, atacando os corvos nas suas guaritas. Combates sangrentos e desiguais. Os morcegos eram numerosos, mas os corvos tinham garras e bicos pontiagudos, mortais. Para ultrapassar as desvantagens os morcegos escondidos, esperavam um corvo solitrio e caam aos bandos sobre ele (PEPETELA, 1995, p. 44, 47, 48). Basicamente tem-se aqui de maneira alegrica tanto os confrontos ps-61 em que a ao comeava a ganhar corpo sistmico, pois os morcegos j estavam lcidos e tentavam desvencilhar-se da alienao imposta pelo colonizador. De morcegos tentavam transformarem-se em homens. Ao final o objetivo alcanado. A representao alegrica e a linguagem extremamente metafrica e simblica deste primeiro romance iro, contudo, dar lugar paulatinamente a tons mais realistas proseados. Tanto o processo de tomada de conscincia como o conflito aparecero nos outros dois romances no mais como universo potico inefvel, mas como realidade pujante. Essa transformao esttica perceptvel, sobretudo se Muana Pu for comparada com a terceira narrativa da Trilogia pepeteliana, As aventuras de Ngunga. A metamorfose narrativa (do potico-metafrico para o proseado-direto) deve-se, sobretudo, diferena de dois momentos. Se em 1969 Pepetela ainda se encontrava exilado em Argel seria compreensvel se sua percepo do conflito fosse, por mais que apoiasse a causa, distante e sua participao indireta. Tambm para o MPLA - Movimento Popular Pela Libertao de Angola, ao qual Pepetela estava vinculado - os anos de 1968-69 so centrais, pois se trata de um perodo de transio em que o MPLA toma realmente um corpo sistmico de guerrilha. J quando vem a lume As aventuras de Ngunga, Pepetela est na frente de combate e sua vivncia da guerrilha no mediada pelo exlio, da resultando seu aspecto mais direto.

3.2. As Aventuras de NgungaDe sua posio de guerrilheiro Pepetela escreve As aventuras de Ngunga (AVN) em formato de folheto em que se conta a formao e a tomada de conscincia da personagem que intitula a obra. As dimenses da obra (59 pginas) e sua estrutura muito simples, podem ser explicadas pela necessidade pragmtica do momento, a mobilizao poltica urgente da massa camponesa analfabeta ou com parco domnio da leitura. Nisso este romance no se afasta dos primeiros poemas da gerao Mensagem. Tanto AVN como seus predecessores (Viriato da Cruz e Agostinho Neto, etc.) buscavam no s resistir pelas letras, mas especialmente mobilizar atravs dela.

Se AVN mostra-se mais direto que Muana Pu isto se deve ao recrudescimento do combate e a necessidade pragmtica, e nisso Angola no foi exceo para com a lei geral da formao da literatura africana de resistncia tal como props Fanon: Parece existir una especie de organizcion interna, una ley de la expresin que quiere que las manifestaciones poticas escaseen a medida que se precisam los objetivos y los mtodos de lucha de liberacin, de forma que AVN seria no s uma literatura de resistncia mas tambm de combate ao contrrio de Muana Pu pois informaria a la conciencia nacional, lhe dando forma y contornos enquanto abriria nuevas perspectivas. Literatura de combate, porque se responsabiliza, porque es voluntad temporalizada (FANON, 2001, p. 219, 220). O tempo mtico de Muana Pu agora plenamente humanizado.

Da tambm que no se estranha que AVN tenha sido publicado logo aps sua escrita. Foi imediatamente policopiado e distribudo nas frentes de batalha. Enquanto MP s conheceu publicao nos anos de 1980. Isso no torna Muana Pu uma narrativa menos insurgente, pois como visto anteriormente, de acordo com Crummey, a resistncia tambm pode ser silenciosa ao contrrio de outras formas de oposio anticolonial como o protesto. Assim, a obra final da trilogia pepeteliana mostra caractersticas que a primeira obra no possua: a necessidade pragmtica de organizao e a mobilizao ideolgica. Da ser ela uma narrativa de resistncia bem como de combate ou de protesto.

A linguagem simples e direta era naquele momento a melhor maneira de se fazer compreender pela populao rural que por vezes desconhecia a lngua portuguesa. Ngunga ele prprio um garoto de 14 anos analfabeto e conhecedor do Kimbundo, mas no do portugus. A libertao sempre associada com a educao e esta por sua ver com a conscientizao poltica, pois com a chegada da escola o povo do qual Ngunga fazia parte comeava a ser livre e, O Movimento, que era de todos, criava a liberdade com armas. A escola era uma grande vitria sobre o colonialismo. O povo devia ajudar o MPLA e o professor em tudo. Assim, o seu trabalho seria til. As crianas deveriam aprender a ler e a escrever e, acima de tudo, a defender a Revoluo. Para bem defender a Revoluo, que era para o bem de todos, tinham de estudar e ser disciplinados. (PEPETELA, 1983, p. 24).

O impacto da filiao libertao-educao-conscientizao em Ngunga perceptvel em sua tomada de conscincia revolucionria, quando preso pela policia poltica salazarista (PIDE/DGS), nesse momento, Pela primeira vez Ngunga deu razo ao professor, que lhe dizia que um homem s pode ser livre se deixar de ser ignorante. (PEPETELA, 1983, p. 37). Deduzimos que esse mesmo impacto experimentado por Ngunga tambm o foi pela massa campesina com acesso aos escritos mobilizadores da poca, fossem poticos e ficcionais ou no. Homens e mulheres iletrados que alfabetizavam-se com o folheto de Ngunga podiam ver nesse texto uma relevncia poltica imediata. Afinal o que poderia ser mais urgente e imediato que a correta distribuio da colheita? Como era o caso do soba (chefe tradicional) Kafuxi que escondia parte da lavra para no dividi-la com os guerrilheiros e com os demais membros da aldeia:Quando chegava um grupo de guerrilheiros ao kimbo, Kafuxi mandava esconder a fuba. Dizia s visitas que no tinha comida nenhuma. Se alguma visita trouxesse tecido, ento propunha a troca. Se a visita no tivesse nada para trocar, ento partia do kimbo com a fome que trouxera. (PEPETELA, 1983, p. 15).

A isso Ngunga se indagava: Todos os adultos eram assim egostas? (...) At um chefe do povo como Kafuxi escolhido pelo Movimento para dirigir o povo. Estava certo? (PEPETELA, 1983, p. 15). Por maior que fosse o carter imediato do texto ele no poupava elementos de autocrtica ao movimento. O texto demonstra que seria infrutfero um retorno tradio de forma acrtica, como seria o caso se Ngunga justificasse a reteno de fuba do Soba usando como argumento a autoridade tradicional deste.

Dessa forma, os elementos da tradio no so mais somente recursos poticos como em Muana Pu, mas so antes formas de criar o novo. Por onde quer que a estria de Ngunga tenha viajado no interior de Angola modificou a paisagem ideolgica dos lugares, pois a chegada de um porta voz do MPLA como este folheto romanceado evidenciava a capacidade do MPLA apontada por Basil Davidson para integrar os camponeses num movimento de resistncia que continuava a ser simultaneamente modernizante e tradicional, mas em que os elementos de modernizao se iriam sobrepor cada vez mais. Claro que Ngunga no convenceu a todos visto que, ainda segundo Davidson os intelectuais e homens da cidade aceitaram a necessidade da resistncia armada sendo, contudo, seguidos pelos camponeses com graus variados de apoio ou de participao. (DAVIDSON, 1977, p. 15, 26).

Na narrativa Ngunga torna-se portador da conscincia revolucionria. Ao fim fecha-se o ciclo de maturao ideolgica da personagem: Um homem tinha nascido dentro do pequeno Ngunga (PEPETELA, 1983, p. 57). S que o final da histria de Ngunga o incio de outra, e nas pginas finais do eplogo o escritor faz s vezes de pedagogo e idelogo se dirigindo diretamente ao leitor:V bem, camarada. No sers, afinal, tu? No ser numa parte desconhecida de ti prprio que se esconde modestamente o pequeno Ngunga? Ou talvez Ngunga tivesse um poder misterioso e esteja agora em todos ns, ns os que recusamos viver no arame farpado, ns os que queremos o mel para todos. Se Ngunga est em ns, que esperamos ento para o fazer crescer? Como as rvores, como o massango e o milho, ele crescer dentro de ns se o regarmos. No com gua do rio, mas com a que Uassamba em sonhos oferecia a Ngunga: a ternura. (PEPETELA, 1983, p. 59).Ngunga pode ser sintetizado na unidade forjada atravs da resistncia. O romance constitui-se dessa forma enquantoun outil efficace pour la transmission tout la fois clandestine et didactique de valeurs idelogiques, particulirement dans un contexte historique marque par la guerre coloniale et la censure. (PEREIRA, 2010, p. 137). Contudo, para se chegar unidade seria necessrio catalisar o coro das vozes guerrilheiras. Todos poderiam ser Ngunga, mas cada um o era a sua maneira. E essa polifonia ideolgica que influenciou as formas de expresso da resistncia nos dada pelo segundo romance da Trilogia, Mayombe. 3.3. MayombeDe acordo com as concluses expostas sobre os dois romances at o momento trabalhados conclumos que no caso angolano a resistncia anticolonial expressava-se tanto atravs da literatura, sendo esta o meio de vincular o passado insurgente (ou em outros casos os vnculos da tradio) com o combate pela libertao nacional, ou mesmo era a prpria literatura forma de mobilizao pragmtica. Do primeiro caso Muana Pu mostra-se como um exemplo, As aventuras de Ngunga por sua vez apresenta-se como a narrativa da interveno em sentido mais direto. Mas entre essas duas narrativas curtas, a primeira datando do incio do conflito e a segunda de seu perodo final h a narrativa de maior flego que exerce o papel de mediadora entre a retrospectiva da tradio e a construo da nova nao e do novo homem. Mayombe escrito em 1972 quando o escritor se encontrava em combate na frente leste.Mayombe um romance de tipo polifnico e dialgico. Com isso afirmamos que a obra se encaixa na conhecida definio de Bakhtin pensada para os romances de Doistoivski. Tal ocorre, pois nesse romance notamos aquela independncia psicolgica e intelectual das personagens de maneira que suas individualidades so destacadas, mas sempre enquanto submersas em um universo social plural o que faz com que tais personagens tornem-se dotados de conscincia e igualmente plurais (BEZERRA, 2011, p. X). Nenhum personagem se aliena perante os outros, isto , em nenhum momento um personagem torna-se objeto da narrativa do outro. As narrativas so plurais, intercaladas umas nas outras. Isso torna o romance dialgico, pois os conflitos de ideias da narrao particular de cada personagem se chocam com a narrativa que vem em seguida explicitando bem o que Bakhtin chamou de multiplicidade de posies ideolgicas equicompetentes desembocando na extrema heterogeneidade da matria (BAKHTIN, 2011, p. 19).

Alm de polifnico e dialgico, Mayombe tambm um pico. No em sentido vulgar de mero conjunto de aventuras, mas sim enquanto remetendo esteticamente ao pico homrico. Tomamos a assertiva de Bernard Knox, para quem geralmente o pico anuncia o ponto da histria em que ela comea e prossegue em ordem cronolgica at o fim (KNOX, 2011, p. 17). exatamente essa a estrutura bsica do romance pepeteliano. No incipit temos: Aos guerrilheiros do Mayombe,/que ousaram desafiar os deuses/ abrindo um caminho na floresta obscura,/Vou contar a histria de Ogun,/o Prometeu africano. E na ltima linha do romance: Tal o destino de Ogun, o Prometeu africano. (PEPETELA, 2009, p. 9, 252). A polifonia dialgica remete ao pano de fundo ideolgico do momento enquanto seu carter pico resguarda a experincia de resistncia tomada em longa tradio.

Do ponto de vista ficcional tal longa tradio faz com que as fronteiras entre o tempo do mito conviva com o tempo dos homens. Se Ogum abre e encerra a narrativa so, porm, os personagens com feies humanas, os guerrilheiros predominantemente, que preenchem o ncleo do romance.

O romance narrado respectivamente por Teoria, Milagre, Mundo Novo, Muatinvua, Andr, Chefe do Depsito, Chefe de Operaes, Lutamos, Comissrio. Cada um expressa uma forma de vivncia da resistncia. Em nossa abordagem identificamos respectivamente a personagens Comissrio, Sem Medo e Muatinvua, como sendo os mais prximos do arqutipo de Ogum. Isto , o guerrilheiro ideal tipo, o homem novo a ser encarnado posteriormente em Ngunga no romance de 1973. como se o autor, tal como afirmou Salinas Portugal, ao contrrio da tendncia dominante nos mtodos de interpretao mtica queira integrar a interpretao scio-idelogica na sua anlise mtica. (PORTUGAL, 2001, p. 71). Mas o mito do qual Salinas Portugal trata aquele da abstrao imaginria desvinculado do contexto histrico, intrinsicamente ligado s anlises do inconsciente coletivo e das relaes do homem com o sagrado na esteira de Jung e Girard. O nosso mito, porm, o histrico.

No estaria Pepetela incorrendo na fundao de um mito nacionalista tendencialmente autoritrio utilizando para isso o capital simblico da tradio africana que remete por sua vez a uma tradio de resistncia localizada em um espao-tempo que foge ao da narrativa? Ou, em outras palavras: ao se valer de figuraes imagticas como Ogum, personagem mtica no angolana - bem como de Muatinvua, lendrio rei africano, para nomear uma de suas personagens - Pepetela no estaria aproximando-se da tradio pan-africanista de unidade intrnseca do continente africano, ao mesmo tempo em que se vale de um passado longnquo localizado j no tempo do mito para legitimar a guerrilha ento corrente, fazendo assim o uso equivocado desse passado para legitimar faces polticas modernas, tal como sugeriu Steinhart?

A resposta a esta pergunta nos leva a considerar que existem duas formas de uso do mito para o fomento da resistncia africana, tal como a prpria anlise de Steinhart deixa entrever. Steinhart alega que os movimentos nacionalistas utilizariam o capital simblico do passado insurgente para criao do mito nacionalista a fim de legitimar prticas por vezes autoritrias por parte destes movimentos.

Esta mitificao da resistncia perceptvel em, por exemplo, Sekou Tour. Este lder poltico da Guin-Conacri dizia-se neto do chefe do antigo Imprio Malinqu Samori Tour em vrios momentos evocou a memria de seu suposto antepassado para legitimar-se no poder (KAK, 1987, pp. 21, 22). Este o uso condenado por Steinhart.

Contudo, afirma Steinhart que se faz necessrio o estabelecimento de outro mito que d conta da realidade concreta do protesto africano. (STEINHART, 1993, p. 363). Essa outra forma de utilizao do mito insurgente se d no mais na pragmtica da poltica partidria, mas sim enquanto aglutinador de anseios e aspiraes coletivas de libertao. este o Ogum de Pepetela: um corte transversal na narrativa ocupada interiormente por uma pluralidade de vozes que mesmo dissonantes entre si atuavam dentro do mesmo ideal revolucionrio, isto , resistente. positivo, pois mesmo que no reclame para si a herana direta, como no caso de Ogum ou Muatinvua figuras que teriam vivido em territrios no angolanos, faz um uso desse mito com vias a libertao presente sem contornos chauvinistas. Prova dessa utilizao positiva e no romantizada do guerrilheiro/Ogum a passagem em que Muatinvua, perdido em campo de batalha, precisa ser resgatado: - Ningum se queria oferecer, porque Muatinvua um destribalizado. Fosse ele quicongo ou quimbundo e logo quatro ou cinco se ofereceriam. Quem foi? Lutamos, que cabinda, e Ekuikui, que umbundo. Uns destribalizados como ele, pois aqui no h outros cabindas ou umbundos. assim que vamos ganhar a guerra? (PEPETELA, 2009, p. 53). A indagao repreensiva parte do comandante Sem Medo. Nela h a problemtica da constituio da nao em Angola, ao que a maioria dos autores chama de busca da angolanidade. Sobre esta procura na constituio nacional, argumenta Benjamin Abdala Jr.:Em suas primeiras produes, embalado por um sonho equivalente ao de caro, Pepepela constri imagens literrias, que podem ser situadas como materializao de um sonho prospectivo, certamente latente na prpria realidade. Como imagem dessa realidade humana em forma de amanh. Estava latente nessa imagem a ideia de um Estado-nao que contemplasse dialogicamente a diversidade dos povos angolanos e tambm a ideia de que o prprio processo de luta pela independncia pudesse aplainar as diferenas entre eles, menos atravs do perverso deslocamento das populaes acarretado pela guerra e mais pelo desenvolvimento de uma prxis entre os revolucionrios que relevasse a humanidade latente nos indivduos (ABDALA JR, 2003, p. 242). tese de Abdala coloca-se em consonncia todo o restante dos crticos que se debruaram sobre a obra pepeteliana. Basicamente o argumento da crtica coloca como ponto comum que o autor angolano narra a nao como utopia (VENNCIO, 1992, p. 36). A utopia e a angolanidade, entretanto, remetem resistncia.

Chegamos a esta concluso, pois Mayombe possui uma estrutura narrativa temporal de pico de formao. Se por um lado aparece o guerrilheiro formado, personificado no Comandante Sem Medo que ordena o resgate de Muatinvua, por outro lado temos os vrios guerrilheiros em maturao, em vias de tornarem-se os homens novos. Dentre estes destaca-se na narrativa o Comissrio. Mas todos os demais personagens expressam, se no para os fins da crtica, mas para fins histricos, a formao plural da guerrilha, sua maturao e variao interna. Se ningum foi buscar Muatinvua, isso transfere-nos para a pluralidade de posies internas do MPLA. Por outro lado ao fim do romance: Lutamos que era cabinda, morreu para salvar um quimbundo. Sem medo, que era kicongo, morreu para salvar um quimbundo. uma grande lio para ns, camaradas. Disse o Chefe de Operaes, ao que foi respondido por Milagre: Foi um grande comandante! E Lutamos um bom combatente! (PEPETELA, 2009, p. 247).

S que este mesmo Milagre o que se recusa de incio a resgatar Muatinvua por conta de sua origem tnica e que ao longo de todo romance olha com desconfiana Lutamos por este ser cabinda. Ao fim, porm, ele forma-se homem novo integrado definitivamente na ideologia nacionalista revolucionria do movimento. Mas diz Milagre antes de formar-se e de assumir a competncia de Lutamos: Eu, o narrador, sou Milagre, o homem da bakuza. Viram como o Comandante [Sem Medo] se preocupou tanto com os cem escudos desse traidor Cabinda [Lutamos]? No perguntaram porqu, no se admiram? Pois eu vou explicar-vos (PEPETELA, 2009, p. 47). E em sua explicao Milagre tece as argumentaes mais preconceituosas possveis a respeito dos cabindas e dos kicongos.

A isto Pepetela faz ecoar de forma ficcional aquela que foi uma das grandes preocupaes dos tericos da libertao africana. Talvez o melhor exemplo disso sejam as consideraes de Amlcar Cabral sobre as formas e mtodos da resistncia: A nossa resistncia desenvolve-se sob vrias formas, camaradas. Primeiro de tudo e no fim de tudo: Resistncia Poltica. Por isso ns comeamos por criar o nosso partido, um instrumento poltico. Segundo Cabral, uma das condies sem as quais a resistncia no pode acontecer , a unidade nacional (CABRAL, 1975, pp. 15, 17). O processo de formao dos guerrilheiros de Mayombe remete para esta unidade poltica essencial e necessria para a consolidao da resistncia nacionalista. As pessoas em que a conscincia nacional j havia sido assimilada, esse certo nmero da nossa gente que fala Cabral. O grande problema que essa formao no abarcava o grosso da guerrilha. Consolidava-se em plena guerrilha, portanto, a diferena colonial entre assimilados ou crioulos por um lado e indgenas, ou os do mato por outro. Por mais que essa diferena aparecesse agora, de acordo com as diretrizes do MPLA, como sendo entre os com slida formao poltica e entre os que no a tem: No por fraqueza, acredita. diz Sem Medo ao condenar o fuzilamento da personagem Ingratido do Tuga, pelo furto de uma pequena quantia de dinheiro: Mas a indisciplina que reina l fora leva indisciplina aqui. Os exemplos de fora, do exterior, dos refugiados fardados de militantes, vm influenciar os combatentes, enfraquecer-lhes o moral. Isto no sucederia se a Regio funcionasse bem. V o Ingratido! Combatente no Norte de 61 at 65. Combatente em Cabinda desde essa data. H dez anos que combate o inimigo. Tem pouca formao poltica? Certamente. Mas a culpa no dele. Quem a tem? Ele v os exemplos que vm de cima. A culpa tambm no tua. Tu tomas este facto como uma ofensa pessoal, porque s o Comissrio, o responsvel pela formao poltica. No podes fazer mais do que fazes para convencer o Ingratido que o povo de Cabinda como o de resto de Angola. Ingratido tambm no pode ser convencido s por suas palavras. S a prtica o levar a essa constatao. No justo fuzilar um combatente com dez anos de luta, quando outros criminosos ficam indemnes, embora o seu crime teoricamente merea castigo. No, no se pode. Noutras circunstncias, Ingratido no teria feito o que fez e seria permevel formao que lhe tentmos dar. Mas nesse contexto impossvel. (PEPETELA, 2009, p. 62). A tentativa de criar a partir de uma resistncia ancorada em teorizaes modernas um contexto ps-colonial esbarra por sua vez com as cicatrizes do colonial. O que o prprio Cabral considerou como sendo as divises internas. Isso nos remete a prpria formao do MPLA. Para Marcelo Bittencourt o MPLA seria formado, a partir de duas frentes de luta: luandense e outra no exlio esta ltima, numa etapa posterior, concentrar-se-ia fora do territrio portugus -, ambas clandestinas. No caso da vertente externa contaria com o apoio da esquerda portuguesa e europeia (BITTENCOURT, 1999, p. 20). Essas camadas urbanas influenciadas pelas esquerdas europeias formaro o grupo de personagens encabeado pelo Comissrio, Sem Medo e Mundo Novo. Todavia, a semelhana de origem no queria dizer consonncia quanto ao mtodo de resistncia, o que fica patente na chacota de Sem Medo para com Mundo Novo para quem este devia sempre estar a pensar na Europa e nos seus marxistas-leninistas (PEPETELA, 2009, p. 25).

Mundo Novo serve como ponto de tenso em que a tradio colocada para segundo plano, estando sempre em prioridade a organizao poltica moderna de esquerda, fazendo ao fim das contas uma caricatura das ideologias leninistas. Para este grupo de combatentes (e somente para estes, insistimos), a crtica de Brunschiwig se faz acertada quando fala das ideologias importadas do ocidente usadas de maneira anacrnica. Seu equvoco tomar este argumento como generalizao. Os tericos da libertao citados por ns at o momento, Fanon e Cabral, estavam longe de serem somente meros importadores.

Se os Mundo Novos buscavam se valer dos dogmas revolucionrios ocidentais os Sem Medo criticaram este aspecto religioso da resistncia revolucionria: um aspecto religioso dir a personagem uma concepo religiosa da poltica. Infelizmente, a maneira de pensar de muitos revolucionrios. (PEPETELA, 2009, p. 77). Apesar das diferenas de mtodo, Mundos Novos e Sem Medos teriam em comum a origem a urbanidade e a influncia do pensamento de esquerda que levou a facilitar a agregao de mestios e brancos dentro do MPLA visto que, esses grupos se concentravam, na sua maioria, nas cidades, principalmente em Luanda, alm de constiturem boa parte dos estudantes que foram frequentar o ensino universitrio em Portugal, some-se a isso o facto de o iderio de esquerda criar obstculos s restries de cunho racial (BITTENCOURT, 1999, p. 20, 21). Em contraposio a estas personagens tem-se o grupo formado especialmente por Milagre e Muatinvua. Ambos fazem parte de uma faco que, na falta de melhor expresso, chamamos de no-assimilada. Diz, por exemplo, Milagre: So os que esto mais avanados que devem governar os outros, so eles que sabem. como as tribos: as mais avanadas devem dirigir as outras e fazer com que estas avancem, at se poderem governar (PEPETELA, 2009, p.48). Estranhamente so palavras de um guerrilheiro e no de um apoiador do regime colonialista. Milagre , antes de tudo, o no-assimilado que insurge-se, mas repete pelo sinal oposto o mesmo discurso colonialista.

A longa tradio da resistncia aparece aqui no como capital simblico ou terico, disposto a criar o homem novo. Encontra-se mais prxima do que propuseram Abbink e Walraven quando afirmaram que se deve considerar como resistncia tanto aqueles atos que buscam defender situaes sociopolticas pr-coloniais, nesse caso as oposies entre vrios povos reforada pela ao colonialista, como tambm deve ser levado em conta os intentos de lanar novos ideais de civilizao, como o exemplo do grupo de Sem Medo, Mundo Novo e Comissrio (ABBINK, WALRAVEN, 2008, p. 22). Milagre encarna no fim das contas os argumentos da UPA (Unio das Populaes de Angola). Organizao que apesar do nome,acabou por se apresentar como um movimento tribal e pouco credvel, dadas as contradies entre o que dizia e o que, depois, apareceram a fazer os africanos que mobilizara. Era, afinal, uma organizao dirigida e integrada por bacongos, sendo sobre eles que exercia influncia significativa (CABRITA MATEUS, MATEUS, 2011, p. 145). Segundo Ren Plissier o abismo existente entre assimilados e indgenas no assimilados introduziu um novo fator divisrio, pois seus objetivos nem sempre eram os mesmos (WHEELER, PLISSIER, 2011, p. 234). Dessa maneira, Milagre identifica no s a contradio pessoal de um tribalista em um movimento chefiado por intelectuais cosmopolitas, mas sim a contradio do prprio MPLA. Indagado sobre isso Pepetela afirma: De facto houve choques. Mesmo no aspecto rcico, pois os puramente nacionalistas viam com alguma dificuldade gente no negra como participante no Movimento de Libertao (mesmo no prprio MPLA, muito mais avanado nesse aspecto). Pouco a pouco, certas barreiras foram sendo ultrapassadas. Mas os ditos socialistas consideravam os meramente nacionalistas como camponeses atrasados, e estes consideravam aqueles como elitistas citadinos. (PEPETELA, 2011). Alm disso, a percepo de Milagre decorrncia do estigma da violncia fanoniano: La tensin muscular del colonizado causada pelo colonialismo - se libera peridicamente en explosiones sanguinarias: luchas tribales, luchas de ofs, luchas entre individuos. Porque el ltimo recurso del colonizado es defender su personalidad frente a su igual. Las luchas tribales no hacen sino perpetuar los viejos rancores arraigados en la memoria (FANON, 2001, p. 47). Dessa maneira, a resistncia milagrista seria uma das respostas possveis ao colonialismo. Por outro lado ainda no grupo dos no-assimilados, existe Muatinvua:

Querem hoje que eu seja tribalista! De que tribo?, pergunto eu. De que tribo, se eu sou de todas as tribos, no s em Angola, como de frica? no falo eu o swahili, no aprendi eu o haussa com um nigeriano? Qual a minha lngua, eu, que no dizia uma frase sem empregar palavras de lnguas diferentes? E agora, que utilizo para falar com os camaradas, para deles ser compreendido? O portugus. A que tribo angolana pertence a lngua portuguesa? Eu, Muatinvua, de nome de rei, eu que escolhi a minha rota no meio dos caminhos do Mundo, eu, ladro, marinheiro, contrabandista, guerrilheiro, sempre margem de tudo (mas no a praia uma margem?), eu no preciso de me apoiar numa tribo para sentir a minha fora. A minha fora vem da terra que chupou a fora de outros homens, a minha fora vem do esforo de puxar cabos e dar manivela e dar murros na mesa duma taberna situada algures no Mundo, margem da rota dos grandes transatlnticos que passam, indiferentes, sem nada compreenderem do que o brilho-diamante da areia duma praia (PEPETELA, 2009, p. 123, 124).Muatinvua a personificao do cosmopolitismo. A personagem remete de certa forma ao pan-africanismo e, sendo Pepetela militante poltico angolano nos anos de 1960-70 seria extremamente estranho se ficasse alheio a essa ideologia.

Dessa forma, o ncleo local presente nos Milagres cedia lugar a uma identidade substancialmente diasprica e no dogmtico-partidria como o caso de Muatinvua e Sem Medo trata-se, por esta perspectiva pan-africana de uma afiliao com a frica menos como regresso s origens do que como identificao diasprica, assim criando uma ligao mais a um lugar imaginado, com a consequente desterritorializao, do que a um territrio real, contudo, essas caractersticas transcontinentais e transnacionais no podem ser, contudo, dissociados de uma forte componente nacionalista que tambm as caracterizar. (SANCHES, 2011, p. 17, 28). Essa abordagem ao mesmo nacionalista e cosmopolita da procura de um lugar imaginado remete prpria formao do nacionalismo como proposto por Benedict Anderson para quem uma nao uma comunidade poltica imaginada - e imaginada como sendo intrinsecamente limitada, e ao mesmo tempo soberana. (ANDERSON, 2008, p. 32). Concluso

Portanto conclumos que se o fato de Pepetela imaginar a nao em seus romances j se tornou ponto comum na crtica, preciso assomar-se a isso que ao imaginar por meio de uma manifestao cultural (a literatura) essa comunidade poltica a nao -, ele forja uma contra-narrativa narrativa imperial comumente estabelecida pautada no racismo. Esta contra-narrativa buscava restituir o passado espoliado pelo colonizador ao presente em libertao, ao mesmo tempo em que tentava estabelecer perspectivas prticas para o futuro. Isso faz com que seja possvel definir esta narrativa como sendo um ato de resistncia, enquanto mostra a dinmica interna do prprio processo insurreto angolano.

Tal processo s pode ser entendido como sendo uma longa tradio de resistncia ao colonialismo. Nessa longa tradio a literatura mostra-se como ferramenta de anlise indispensvel para compreenso da fase nacionalista e revolucionria da resistncia africana. A vantagem da literatura que ela deixa transparecer todos os meios possveis de resistncia, seja a calada a armada, seja a tnica ou a mais cosmopolita, aquela encabeada pelos letrados ou pelos no-letrados.

Neste sentido, Muana Pu, As aventuras de Ngunga e Mayombe so fontes indispensveis para o correto entendimento do processo de libertao angolano. A primeira obra por mostrar em metforas a explorao colonial, a segunda por estabelecer o projeto do nascimento do homem novo forjado na resistncia, e por ser usado o prprio romance como meio de transgredir a ordem colonial, e a terceira por evidenciar as oposies entre os diferentes projetos de resistncia.Referncias BibliogrficasABBINK, Jon; WALRAVEN, Klass van; BRUJIN, Mirjam de. (Edit.). A proposito de resistir. Repensar la insurgencia en Africa. Barcelona: Oozebap, 2008.ABDALA JR, Benjamin. De vos e ilhas. Literatura e comunitarismos. So Paulo: Ateli Editorial, 2003.

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Especialmente em seu trabalho mais completo: ISAACMAN, Allen. Tradio de Resistncia em Moambique. Porto: Afrontamento, 1979. Voltaremos argumentao de Isaacman mais adiante

Ver MBEMBE, Achille. Domaines de la Nuit et Autorit Onirique dans ls Maquis Du Sud-Cameron (1955-1958). The Journal of African History, n 31. London: Cambridge University Press, 1991.

A importncia do imperialismo econmico tanta que para alguns autores, como o caso de Jos Capela, durante a ltima fase do colonialismo portugus em frica o que esteve de facto, em causa, foram as tentativas directas ou indirectas de implantao do modo de produo tipicamente capitalista. E as disparidades com que depararam em frica, socorrendo-se de relaes de produo peculiares. Peculiares quando referidas s que, ento, j se processavam nas sociedades desenvolvidas da Europa. De qualquer maneira, lanando na direo africana as infraestruturas viabilizadoras do imperialismo econmico. (CAPELA, 1977, p. 5). As formas peculiares de produo referem-se ao uso do trabalho forado ou compelido, que na prtica era uma forma de explorao de mo de obra semelhante escravido.

O responsvel por desmantelar a revolta, major Rebocho Vaz, solicitou que se fizesse um inqurito para apurar o ocorrido. No relatrio final do inqurito afirmava-se, dentre outras coisas que o indgena na Baixa de Cassange vive em condies de absoluta misria moral e material e que s aprende a no ser roubado ou espancado. So os povos mais enfezados de Angola e, por vezes, o aspecto fsico nem d para reconhecer se homem ou mulher, novo ou velho. (CABRITA MATEUS, 2011, p.53).

Logo no prefcio Salinas afirma que seu mtodo de anlise para Mayombe pressupe uma unidade essencial entre todos os mitos de qualquer latitude e em qualquer contexto temporal, uma acronia que situa o mito fora do que contexto histrico. Grifos meus. Contudo, Portugal tem o grande mrito de mesmo no focalizando a histria no lhe retirar importncia. (PORTUGAL, 2001, p. 21, 25)

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