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    As Cartasde Soror Mariana:

    O epistolar como discurso da paixo

    Ana Teresa Peixinho FLUC / CEIS20

    Dois poderosos mitos fizeram-nos acreditar que o

    amor podia, devia sublimar-se em criao esttica:

    o mito socrtico (amar serve para criar uma

    multido de belos e magnficos discursos) e o mito

    romntico (produzirei uma obra imortal escrevendo

    a minha paixo).

    Roland Barthes

    1. Uma frmula de sucesso

    O sucesso da obra Lettres Portugaises, que extravasa o mbito meramente

    nacional, prende-se sobretudo, na nossa opinio, com o carter enigmtico e

    com a aura de mistrio que a envolve, decorrentes de motivos diversos, queforam j suficientemente identificados pela crtica. Antes de mais, trata-se de

    um texto annimo, cuja autoria nunca foi verdadeiramente atribuda, pesem

    embora as inmeras investigaes a que deu origem, pelo menos desde o

    sculo XIX. A coberto deste anonimato, muito se tem especulado sobre a

    identidade do autor ou da autora destas cartas: ter sido um homem a escrev-

    las, usando a mscara da personagem Mariana? Ou so elas fruto da escrita de

    uma jovem freira portuguesa, cuja existncia emprica foi atestada por alguns?Este debate arrasta-se desde que um erudito francs oitocentista, Jean-Franois

    Boissonade, identificou Mariana Alcoforado como a suposta autora das cartas

    de amor. Independentemente da resposta que, acreditamos, nunca passar de

    conjetura, esta questo tem fascinado a crtica e um indiscutvel fator de

    seduo.

    Alm deste aspeto, que inclusive ditou inmeras leituras crticas sobre a

    feminilidade da escrita dos textos, h um outro tema que tem atrado alguns

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    investigadores e no menos curiosos: trata-se da integrao das Cartas no

    cnone da Literatura Portuguesa. sabido que a obra foi originalmente

    publicada em lngua francesa e que a primeira traduo para portugus data de

    1819 e foi da responsabilidade de Filinto Elsio1. Tambm sabido que, ao

    longo de mais de sculo e meio de existncia, esta obra ter suscitado uma

    grande curiosidade por parte de crticos e de literatos franceses, por oposio

    ao aparente silenciamento a que foi votada em Portugal. A especialista Anna

    Klobucka adianta, como explicao para esta receo tardia, o ambiente de

    censura inquisitria, sublinhando que a nica referncia s Cartas portuguesas

    anterior ao sculo XIX foi feita pelo estrangeirado Cavaleiro de Oliveira

    (Klobucka, 2006: 13-14). A este respeito, remetemos para a recente obra desta

    estudiosa, em que se aborda o fenmeno Alcoforado como um mito, no sentido

    barthesiano do termo. Um mito que se cria na centria de oitocentos e

    perpetuado por inmeros intelectuais e escritores pelo sculo seguinte, e que

    um produto do revivalismo nacionalista dos sculos XIX e XX (Klobucka,

    2006: 21 e ss.). Como veremos, a questo da pertena desta obra literatura

    nacional no ser um fator que aprofundaremos aqui, nem muito pertinente

    para a nossa abordagem, sendo que em todas as bibliotecas de todo o mundo a

    obra est catalogada como pertencendo literatura portuguesa, conforme

    reconhece Linda Kauffman, crtica americana que perspetiva as Cartasatravs

    de um enfoque feminista (Kauffman, 1986: 92).

    Um terceiro fator que, em nosso entender, ajudou a alimentar a permanncia

    desta obra e a justificar o seu enorme sucesso que se prolonga pelos sculos

    XX e XXI, prende-se precisamente com a sua construo discursiva epistolar.

    E ser precisamente este o ponto de que partiremos nesta abordagem: tentar

    perceber de que forma o modo discursivo epistolar o modo de comunicao

    da paixo por excelncia, por um lado; e, por outro, captar nesta matriz a

    origem de um debate muito sedutor entre fico e realidade, aspeto que

    inclusive entusiasmou muitos alcoforadistas. No esqueamos, no entanto, que

    o xito desta obra muito anterior, remontando ao final do sculo XVII: as

    1Como explica Anna Klobucka, as primeiras tradues das cartas para o seu suposto idioma original

    foram igualmente produzidas por exilados portugueses, respetivamente, em 1819 por Filinto Elsio e em1825 por Jos Maria de Sousa Botelho (Klobucka, 2006: 14). Sobre as tradues desta obra para

    portugus veja-se Paradinha, 2006.

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    Lettres Portugaises tiveram uma ampla aceitao na Europa ocidental2 e

    crire la portugaise tornou-se uma frmula codificada para um certo estilo

    epistolar amoroso, inclusive citada pela grande epistolgrafa contempornea

    Mme. de Svign. A repercusso das Cartas da freira portuguesa deve ser

    perspetivada, em nosso entender, no tanto em funo do anonimato do autor

    ou da ambiguidade da origem, mas sobretudo em funo da sua formulao

    modal e discursiva que no de todo a alheia ao contexto histrico-cultural do

    sculo XVII, como veremos mais adiante.

    2.

    A epistolaridade e o discurso amoroso

    Num ensaio sobre as formas de escrita pessoal A Escrita de Si , MichelFoucault diz, a respeito da carta, o seguinte:

    Escrever , pois, mostrar-se, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto prprio

    junto ao outro. E deve-se entender por tal que a carta simultaneamente um

    olhar que se volve para o destinatrio (por meio da missiva que recebe, ele

    sente-se olhado) e uma maneira de o remetente se oferecer ao seu olhar pelo que

    de si mesmo lhe diz. De certo modo, a carta proporciona um face-a-face

    (Foucault, 1995:151).

    Esta poderia ser uma definio do objeto carta, enquanto forma discursiva que

    possibilita a abertura do sujeito ao olhar e ao julgamento do outro e de si

    mesmo, por um lado, e, por outro, uma forma de escrita em que o tipo de relao

    que se estabelece tem um paralelo no modelo comunicativo da oralidade, no

    discurso vivo in praesentiada situao de troca oral.

    Esta metfora da carta como conversa entre ausentes no recente e remonta a

    uma tradio ciceroniana que previa para a escrita da carta um certo tipo de

    estilo, negligente, informal e natural, cristalizado na frmula latina da

    negligentia epistolarum, tpico que permaneceu durante sculos na teorizao

    da carta como texto simples, informal e similar ao dilogo. A

    conversacionalizao que invade a escrita epistolar foi retomada, como tpico

    incontornvel, pelos manuais epistolares que comearam a ser publicados no

    2Conforme regista Linda Kauffman, antes de 1740, a traduo inglesa das Cartas atingiu as dez edies(Kauffman, 1986: 95).

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    sculo XVI e que perduraram at finais do sculo XIX, sempre com grande

    vitalidade e acompanhando as evolues e as nuancesdas prticas epistolares.

    A coloquialidade da carta uma conversa por escrito vem ao encontro de um

    outro tpico, indiretamente sugerido pelas palavras de Foucault supracitadas,

    que se prende com a espontaneidade inerente ao epistolar. Entende-se, desde

    muito cedo, a escrita da carta como uma escrita ao correr da pena, negligente,

    natural, impulsiva, como se entre a expresso do sujeito e a carta no houvesse

    nenhuma mediao. Postula-se quase o apagamento do discurso, ou, pelo menos,

    a ideia utpica de um discurso totalmente transparente que tivesse a capacidade

    de espelhar a alma do sujeito. A esta luz, percebe-se um pouco melhor a

    perspetiva do mito da feminilidade do epistolar, pressupondo-se que a mulher

    seria um ser mais propenso a produzir discursos ligeiros, delicados e naturais,

    porque detentora de uma instruo menos cuidada e de uma cultura mais frgil;

    como tal, em relao ao homem, a mulher seria estrutural e naturalmente

    vocacionada para o estilo epistolar. No decerto coincidncia que seja uma

    mulher o grande arqutipo literrio do gnero: Mme. de Svign foi eleita, pelos

    epistolgrafos do seu tempo e do sculo seguinte, como o modelo a seguir, por

    tudo o que o seu discurso possua de natural e sincero, de espontneo e sedutor,

    de sensvel e intimista.

    Esta esttica da negligncia fundada no final do sculo XVII, poca em que se

    vai abandonando progressivamente a eloquncia acadmica e o modelo epistolar

    oratrio, para dar lugar a uma escrita mais mundana, tem razes nos postulados

    de Ccero e tambm nos de Erasmo3, referncia incontornvel da renovao

    epistolar empreendida pelo Humanismo. Esta evoluo, operada entre o sculo

    XVI e o sculo XVII, conduziu a uma espcie de humanizao da palavra: a

    escrita da carta passa a exprimir o eu individual e o eu social, refletindodiretamente a alma de quem a enuncia4.

    3No seuLibellus de Conscribendis Epistolis, Erasmo entendeu a dialtica que a forma epistolar envolvia:simultaneamente uma forma literria, com os seus preceitos prprios, e efuso espontnea e natural daintimidade do escritor. Num manual recente sobre tipologia e construo textual, Jos Esteves Rei definea carta nos seguintes termos: uma conversa por escrito, dirigida a uma pessoa ausente assim sedefine tradicionalmente a carta. () a sua actualidade mantm-se tal como as suas caractersticas:economia, personalizao, substituto do dilogo. (Rei, 2000: 158).4 Ressalve-se que, durante o Renascimento e mesmo em pocas mais tardias, a carta foi tambm umgnero cultivado por filsofos, pensadores e homens de letras, como forma de construir raciocnios

    lgicos, encetar debates de ideias e apresentar argumentaes. Trata-se, contudo, de outro tipo deepistolografia: se pensarmos em nomes como os de Voltaire, autor das clebres Lettres Philosophiques,de Diderot que escreveu entre 1749 e 1751 as Lettre sur les aveuglese Lettre sur les sourds et muets, de

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    Uma leitura deLettres Portugaisespermite-nos precisamente constatar algumas

    destas marcas do epistolar. Massaud Moiss, reconhecido estudioso brasileiro,

    refere o seguinte a propsito das cartas da religiosa portuguesa:

    Realmente digno de nota, por sua altitude e invulgaridade, o fato de conterem as

    cartas a sincera, franca e escaldante confisso duma mulher que se desnuda

    interiormente para o amante cnico, ingrato e ausente, com fria de fmea

    abandonada, sem qualquer rebuo ou pudor (Moiss, 2001: 90).

    Sublinhamos a tripla adjetivao sincera, franca e escaldante com que o

    acadmico carateriza o discurso da enunciadora destas cartas, Mariana. Na

    verdade, a carta de abertura, assumida como uma resposta a uma hipotticamissiva enviada pelo amado, surge como um enunciado espontneo e natural,

    atravs do qual a enunciadora acusa o amor ausente (destinatrio epistolar) do

    sofrimento causado pelo abandono. O tom da carta altamente hiperblico,

    egocentrado e passional, como o atestam as tradicionais marcas lingusticas das

    interjeies, das exclamativas, das repeties anafricas e das perguntas

    retricas. A enunciao discursiva, para recorrer tipologia de Benveniste,

    centrada no eue no tu, protagonistas da cena epistolar e da retrica passional.

    Quer isto dizer que, logo na primeira missiva, se instaura um pacto

    comunicacional que possibilita ao leitor aceder a um conjunto de princpios

    importantes para descodificar o sentido da obra: i) trata-se de um conjunto de

    cartas mais vasto, das quais apenas acedemos a estas cinco; ii) trata-se de uma

    escrita ntima em que uma enunciadora feminina sofre os tormentos do fim de

    uma relao; iii) o discurso traz marcas claras de uma escrita espontnea,

    natural, pouco racionalizada, capaz de traduzir as flutuaes emocionais da

    enunciadora; iv) a escrita instaura-se como um meio catrtico pela qual a

    protagonista se tenta reconstruir como sujeito, aps o trauma e a violncia da

    rutura amorosa. Alis, em diversos momentos, a prpria Mariana confessa

    escrever mais para si prpria do que para o seu destinatrio. Este ltimo ponto

    Rousseau, autor daLettre dAlembert sur les spectaclesdatada de 1758, ou de John Locke que publicouem 1689 a Letter on Tolerance, perceberemos que o epistolar o meio ideal para resgatar a agilidade do

    pensamento e do raciocnio sans tomber dans les pesanteurs de la pense. (Diaz, 1998: 33). A este

    respeito veja-se: Peixinho, 2011.

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    parece-nos de grande relevncia para se perceber a importncia do modo

    epistolar na construo do sujeito Mariana e a ele voltaremos mais adiante.

    Na verdade, uma vez que a carta um discurso escrito fundado na ausncia do

    destinatrio, como alis o so todos os discursos escritos, esta relao com o

    modelo oral deve ser matizada e repensada, pois ao contrrio do que sucede na

    interao oral, nesta situao no h copresena, sendo que a figura do

    destinatrio s artificialmente, por meio de uma construo discursiva, consegue

    presentificar-se5. Fundando-se na ausncia6, a carta cria a iluso da presena,

    inventa-se como discurso dialgico com um ser de papel. E esta ausncia

    fundamental para o ato de escrita e para a existncia da prpria carta permite

    ao epistolgrafo criar imagens de si, projetar identidades possveis, conhecer-se

    e dialogar consigo mesmo, embora o seu horizonte primeiro seja a figura do

    destinatrio a quem se dirige. Por isso, Brigitte Diaz, defendendo que a carta

    um discurso que, mais do que estabelecer pontes ou conversas com o outro, se

    fecha sobre si mesmo, da opinio que o discurso epistolar uma atividade de

    resistncia ao outro, em que a emergncia do sujeito que se instaura na

    cenografia epistolar decorre precisamente da ausncia do outro (Diaz, 2002: 59).

    Os aspetos que acabamos de enunciar sobre as cartas de Mariana funcionam, na

    nossa opinio, como operadores do real, insinuando uma factualidade e uma

    espontaneidade mais adequadas a uma correspondncia privada do que de uma

    criao literria, o que no deixa de ser um sintoma claro deste tipo de fico da

    poca. Contudo, sem querermos enveredar pela celeuma da existncia ou no de

    uma Mariana Alcoforado e de um oficial francs, parece-nos que todos estes

    elementos no so nem originais, nem especficos desta obra, devendo ser lidos

    e interpretados luz da esttica Barroca, por um lado, luz da histria de

    geneologia literria, nomeadamente o aparecimento do romance epistolar, por

    5Da que Teresa Almeida diga que se a carta deve ser a reproduo de uma hipottica conversa porhaver, no o sendo na realidade, h que criar um mecanismo ou uma estratgia para que, ao menos,

    parea o que no () Trata-se de imitar uma outra forma de discurso, sabendo-se, partida, que essaimitao impossvel a naturalidade assim mais fabricada do que a prpria artificialidade que pareceser caracterstica de formas mais elaboradas. (Almeida, 1988: 150).

    6 Grce une mtaphore passe dans lusage, elle [la lettre] est le discours des absents. () Elle

    donne aux pistoliers qui sextasient sur les miracles de la poste une ubiquit de papier. Mas cetmerveillement repose au fond sur une plante touffe. Labsence est toujours lorigine dunecorrespondance. (Haroche-Bouzinac, 1995 : 70).

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    outro lado, e, finalmente, luz de uma retrica do amor, bem tradicional na

    lrica portuguesa e na novelstica sentimental.

    Note-se, alis, a propsito do mito do natural epistolar, a existncia de uma

    antinomia, bem patente no interior da prtica epistolar, mediante a qual o natural

    depressa se transforma, sobretudo a partir do sculo XVII, num imperativo

    retrico do gnero. Conforme sublinha Brigitte Diaz, a escrita epistolar impe-se

    simultnea e paradoxalmente como um campo de inveno lingustica, em que o

    sujeito se assume na sua capacidade de individuao, e um campo em que os

    discursos so clonados de lugares comuns, de clichs e de frmulas altamente

    codificadas (Diaz, 2002: 16).

    Deste modo, a escrita da naturalidade depressa adquire uma dimenso

    prescritiva e imposta, a ponto de levar alguns escritores oitocentistas a

    encararem a carta com desconfiana, como um gnero prostitudo a lugares

    comuns. At a escrita modelar de Mme. de Sevign, que tanto agradou aos

    cultores do gnero por tudo o que representava de negligente e natural,

    rapidamente se tornou uma imposio a seguir e a imitar, por todos os que

    quisessem sobressair na arte de bem escrever cartas. A defesa da

    espontaneidade, da naturalidade e da informalidade foram, desde tempos

    ancestrais, traos definidores do estilo epistolar7, o que nos conduz a uma leitura

    da naturalidade epistolar como caraterstica inalienvel da vertente social e

    cultural da carta, bem patente na proliferao dos manuais epistolares ao longo

    dos sculos XVII, XVII e XIX8. A adoo de cdigos de civilidade epistolar e

    de convenes discursivas, prescritas nestes tratados, transforma as relaes

    afetivas de mbito privado em relaes regradas pelo espao pblico.

    A carta , de facto, um objeto social, configurado por um discurso

    circunstanciado, atravs do qual o sujeito enunciador se apresenta mediante umaconstruo discursiva especfica, sobre o plano pessoal e social, ao destinatrio,

    7 Por exemplo, Lpsio, tal como Erasmo, considera o gnero epistolar como um gnero espontneo,descontrado e apto a traduzir as oscilaes do sujeito que escreve. J no sculo XVII, com Voiture, acarta abre-se vida social e mundana e passa a absorver as caractersticas naturais da conversa de salo;no sculo XVIII, com Du Batteux, o gnero visto como um gnero oratrio rebaixado au simpleentretien e, por isso, capaz de ser o espelho dos sentimentos (Almeida, 1988).8Os manuais epistolares comeam a surgir na Europa no sculo XVI, coincidindo com um perodo deaumento da correspondncia familiar no s decorrente de um alargamento das fronteiras e dasdistncias mas tambm da revitalizao que o Humanismo deu a esta prtica e tambm um perodo de

    implantao da literacia. Quer isto dizer que os manuais proliferaram acompanhando o incremento daprtica epistolar, em relao qual se impunham como modelos a imitar, com propsitos marcadamenteformativos e didticos.

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    afirmando um conjunto de valores, crenas e atitudes que geralmente vo ao

    encontro das expectativas do outro.

    Neste sentido, a escrita da carta sempre uma espcie de mise-en-scne a que

    Ccile Dauphin chama de teatralizao da escrita (Dauphin, 1995: 193) que

    segue normas muito concretas, mantendo uma relativa margem de liberdade e de

    imaginao, e que institui atores sociais que se mascaram para se mostrar,

    fingindo construir imagens sinceras de si mesmos, mas que, apesar de tudo, mais

    no so do que reflexos e representaes destinados ao teatro social e mundano.

    Nesta perspetiva, a troca epistolar um intercmbio extremamente ritualizado,

    que envolve um conjunto de regras de apresentao dos sujeitos, orientando o

    tipo de relao social que estabelecem e o grau de intimidade e de proximidade.

    O discurso epistolar , assim, um discurso sempre contextualizado, dirigido e

    com uma importante dimenso social. Muito ligado a este mito da

    espontaneidade epistolar encontra-se tambm o motivo da sua feminilidade, pelo

    qual s a mulher tem a capacidade em exprimir, de forma verdica e natural, a

    sua subjetividade.

    Desde a publicao das cartas da religiosa portuguesa, no fim do sculo XVII,

    que a carta entendida como medium apropriado e adequado expresso

    espontnea da intimidade e da paixo. Contudo, sublinhe-se que, tal como

    sucede com outras criaes literrias da poca, a negligncia e a impulsividade

    das cartas de Mariana so efeitos textuais, mais pensados e refletidos do que

    primeira vista possa parecer. Eles so o resultado de um conjunto de topoi da

    literatura sentimental, provenientes de Ovdio, das suas famosas Heroides, que

    se prolongam na lrica medieval e na novela sentimental quinhentista. Todos os

    autores que se interessam pelo estudo da forma epistolar, sobretudo da sua

    insero na narrativa do romance epistolar, so unnimes em referir esta obra deOvdio como uma referncia incontornvel da pr-histria do gnero. Linda

    Kauffman, na obra Discourses of Desire, em que analisa sete narrativas

    epistolares, desde a Idade Mdia at ao sculo XX, reserva um captulo

    introdutrio s Herides de Ovdio, considerando-as o locus classicus do

    discurso epistolar amoroso. Segundo a autora, Ovdio foi o primeiro a conceber

    as grandes possibilidades da forma epistolar, desenvolvendo um gnero com

    dinmica dialgica e enfatizando o discurso das heronas:

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    Discourses of desire are part of a tradition that is older even than Ovid, yet each

    discourse is just such a sustained critique. The Ovidian rhetorical ideal

    challenges the concepts of unity, fixidity, and consistency; instead, it celebrates

    the fluid, the multiple, the capricious. Rather than seeing illusion as veiling a

    central reality or a fixed truth, Ovid values illusion for its own sake andrecognizes how large a role artifice plays in arousing desire(Kauffman, 1986:

    21).

    3. A gnese do romance epistolar

    Uma abordagem sLettres Portugaisese s suas diferentes formas de integrao

    no campo da Literatura no pode dispensar a questo da absoro da carta porum subgnero narrativo o romance epistolar9 em voga na Europa desde o

    sculo XVII, atingindo um perodo de maturidade e esplendor no decurso da

    centria de setecentos, poca que se revela muito frtil no que epistolaridade

    diz respeito. Grande parte dessa riqueza advm precisamente do enorme sucesso

    que, tanto em Inglaterra, como em Frana, tiveram os romances epistolares,

    intimamente ligados sociabilidade do sculo XVIII. Produto de uma nova

    relao entre pblico e privado, a esfera pblica burguesa, no sentido

    habermasiano do termo, compaginou-se com a transformao do sistema

    literrio, quer em termos de reorganizao do campo institucional da literatura,

    em que surgem novos espaos sociodiscursivos urbanos, como os cafs, os

    teatros e os sales, quer em termos genolgicos, assistindo-se ao aparecimento

    de novos gneros como resposta a novos anseios de um pblico tambm ele

    renovado e diferente.

    Assim, o aparecimento de um novo subgnero literrio como o romanceepistolar, simbolicamente marcado pela publicao de Pamela do ingls

    Richardson, em 1740, bem como a valorizao de gneros como o dirio ou a

    carta, so sintomas de uma profunda alterao dos hbitos de leitura do pblico

    9 Seguimos a definio de romance epistolar proposta por Robert-Adam Day que o entende como

    qualquer narrativa em prosa, longa ou curta, largamente ou integralmente imaginria na qual as cartas,parcial ou inteiramente ficcionais, so utilizadas como veculo de narrao ou ocupam um importantepapel no desenvolvimento da histria (Day apud Versini, 1998: 10).

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    burgus e de uma profcua fuso entre pblico e privado, responsvel, afinal,

    pela construo do espao pblico setecentista10.

    Contudo, algumas dcadas antes do aparecimento de Pamela, publicada em

    1669 em Frana a obra Lettres Portugaises traduites en franois, de autoriadesconhecida mas editadas por Claude Barbin, um clebre impressor parisiense.

    Embora a maioria da crtica no dedique esta perspetiva genolgica s Lettres

    Portugaises, enfatizando outras questes j enunciadas, acreditamos que esta

    obra , de facto, uma obra precursora do subgnero, como iremos demonstrar.

    Desde finais do sculo XVII at ao final do sculo XVIII, o romance epistolar

    constitui um caso espantoso de sucesso, conquistando e fidelizando um pblico

    leitor que ia alimentando a edio de obras do gnero.

    Subgnero paradoxal e multifacetado, resultante de um conjunto muito

    diversificado de tradies que vo desde os manuais epistolares e secretrios,

    que comeam a aparecer no sculo XVI, afirmando-se como cdigos formais e

    prticos de escrita epistolar, at poesia amorosa de influncia petrarquista,

    passando pelas Herides de Ovdio11, pelo romance medieval de Abelardo e

    Helosa, pela novela sentimental espanhola, ou pelas recolhas e compilaes de

    cartas de vocao pedaggica o romance epistolar potencia a ambiguidade e a

    indefinio da forma epistolar que absorve. Assistimos, assim, a uma gnese em

    muitos aspectos paradoxal que alia o lirismo sentimental ao utilitarismo, a

    naturalidade e autenticidade ao formalismo codificado, a fico realidade

    (Versini, 1998: 9).

    Esta gnese paradoxal e a tessitura de textos e de tradies que a conforma no

    so de todo estranhas s contradies da sociedade que conduziu este subgnero

    ao seu apogeu. Como qualquer outro, o subgnero do romance epistolar est

    intimamente ligado s especificidades socioculturais de uma poca. Aparece

    como o reflexo de um perodo em que as duas grandes formas de sociabilidade

    10Para Habermas, las cartas ajenas no solo se prestan y transcribem; muchos intercambios epistolaresestn ya de antemano, como muestran en Alemania los ejemplos de Gellert, Gleim y Goethe, previstos

    para la imprenta. () As se explica a partir de la subjetividad () de los intercambios epistolares y delos diarios ntimos el origen del gnero tpico y de la prpria disposicin literria de ese siglo: la novela

    burguesa, la descripcin psicolgica en forma autobiogrfica. (Habermas, 2002: 86).11

    Todos os autores que se interessam pelo estudo da forma epistolar, sobretudo da sua insero nanarrativa do romance epistolar, so unnimes em referir esta obra de Ovdio como uma refernciaincontornvel da pr-histria do gnero.

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    eram a conversao e a carta, entendida esta como uma conversa por escrito;

    uma sociedade que renega a fico, privilegiando a autenticidade, reforada

    como j se disse pelo romance epistolar, projetando o natural como valor

    esttico mas, simultaneamente, uma sociedade extremamente codificada e

    normativa, sobretudo relativamente s regras de convivncia e mobilidade

    sociais.

    O sucesso deste subgnero ficou a dever-se, sobretudo, a trs caratersticas que o

    absorve da epistolaridade que o estrutura a autenticidade, a feminilidade e a

    privacidade (que gera a enunciao da subjetividade) que o tornam mais vivo e

    factual, construdo imagem da vida real e, por isso, tocando intimamente o

    leitor que, por intermdio das cartas, acedia diretamente interioridade daspersonagens e das heronas, sem a mediao do narrador (Beugnot, 1978: 947).

    A autenticidade, decorrente, em parte, do facto de a carta ficcional assimilar

    algumas caractersticas da carta real12, nomeadamente o recurso linguagem

    corrente e familiar das cartas privadas, era uma caracterstica muito cara ao leitor

    do sculo XVIII, poca que geria mal o inverosmil, a fico e o romanesco

    (Versini, 1998: 50). So diversificadas as estratgias de autentificao e de

    veridico do romance epistolar, entre elas, o recurso a uma esttica do

    pormenor favorecida pela relao que a forma epistolar estabelece com a escrita

    da vida privada, propcia ao relato do quotidiano; a utilizao de discursos

    colonizados por prticas discursivas correntes, sobretudo pelo tom

    conversacional e irrefletido da fala quotidiana; finalmente, a referncia,

    normalmente no espao paratextual do prefcio13, ao autor / compilador / editor

    que, tendo tido acesso s cartas, as organiza e publica, mascarando assim o ato

    de criao literria, necessariamente fingida, das cartas. De facto, o romanceepistolar, ao contrrio de outros subgneros contguos, como o dirio, as

    12Segundo Susan Wright, a fico epistolar do final do sculo XVII e do sculo XVIII, sobretudo a ficoamorosa, tem muitas similitudes com a epistolaridade real: Although aparently perceived as simple

    projection of the real love-letter, the ficcional love-letter is different from the authentic intimate letters() The source of the apparent similarity between real letters and fictional letters seems to be in themarriage of the private language of intimate letters with the linguistic conventions of the day whichgovern prose writing. (Wright, 1989: 556-557).13Janet Altman, referindo-se principal diferena entre as cartas reais e as ficcionais, diz o seguinte : Infictional letters, where there is no historical contexte vcu as in a real correspondence, the illusion that

    something is going on between the letters or preceding the letters must be created without having thecharacters tell each other things they already know; this is usually accomplished by editorial footnotes,() (Altman, 1982: 120).

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    memrias ou as confisses, responde a uma exigncia anti-romanesca,

    esbatendo as fronteiras entre fico e real.

    Deste modo, o romance epistolar assegurava um pacto de leitura diferente do de

    outro tipo de fico: o leitor, mesmo sabendo estar a ler fico, no o sentia

    enquanto tal, projetando o romance para a esfera de um conjunto de gneros

    autnticos. Traando o percurso da leitura nos sculos XVI e XVII, Roger

    Duchne defende que se verifica uma evoluo no tipo de leitor e sobretudo nas

    expectativas de leitura: o leitor doutrinado e conhecedor, capaz de admirar as

    belezas dos grandes mestres, substitudo, gradualmente na viragem da centria

    de quinhentos para a de seiscentos, pelo leitor-consumidor que encara as

    cartas como um prolongamento da vida social e que procura encontrar nelas uma

    mise-en-scne de experincias de vida, um texto autobiogrfico onde o seu

    autor deixa marcas vvidas da sua vida e da sua personalidade. Esta evoluo,

    que fez com que as coletneas de cartas publicadas integrassem e explorassem

    assuntos do foro privado, mostra bem como a sinceridade e a autenticidade

    atingiram o patamar dos valores estticos (Duchne, 1978: 988). Na nossa

    opinio, esta alterao da leitura e a deslocao do ponto de interesse da leitura

    epistolar pode, em parte, explicar o tipo de leitor do romance epistolar

    setecentista: como um voyeur, o leitor absorve a fico, como se de cartas reais

    se tratasse e, atravs delas, acede ao mundo interior, ntimo e privado das

    personagens, aderindo a um jogo perverso entre real e fico.

    O facto de a maioria das personagens principais serem mulheres e tambm

    porque boa parte do seu pblico leitor era feminino, o certo que este subgnero

    est, tal como a escrita epistolar, intimamente ligado ao mito da epistolaridade

    feminina. Laurent Versini atribui esta ligao ao facto de as mulheres serem

    vistas, na sociedade da poca, como seres mais propensos sensibilidade do que reflexo: menos racionais, por natureza e sobretudo pela instruo desleixada,

    as mulheres optam por um estilo espontneo no se deixando influenciar tanto

    pela retrica (Versini, 1998 : 59).

    semelhana do que sucede com a mulher na escrita epistolar, tambm as

    heronas do romance epistolar encaravam a escrita como uma forma de

    afirmao da sua identidade, um modo de acederem a uma tribuna no

    silenciada, de darem voz a sentimentos, pensamentos e emoes. Esta relaoentre gnero e o romance epistolar liga-se tambm autenticidade, naturalidade

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    e negligncia veiculadas pelo subgnero e intimamente ligadas forma epistolar.

    A mulher aparece como o ser capaz de produzir discursos naturais,

    aparentemente desordenados e caticos porque obedecendo lei das paixes e

    do sentimento; a autenticidade da sua escrita, decorrente do menor ndice de

    conhecimento de cdigos, regras e sistemas, imprime ao romance epistolar a

    feio de vida vivida, de vida real que tanto agradava ao leitor do sculo XVIII.

    Esta identificao ficou, em parte, a dever-se ao chamado fenmeno Svign:

    Mme. de Svign foi, de facto, como j explicitmos, a grande responsvel pela

    projeo do epistolar como veculo do sentimento, da naturalidade, da verdade e

    da feminilidade. A carta surge, assim, intimamente ligada a um universo de uma

    feminilidade suprflua, esvaziada de contedo, mas rica nos atributos de

    ligeireza, naturalidade e sentimentalidade, intuio e sinceridade.

    Na verdade, a partir da publicao das cartas desta epistolgrafa, assiste-se a trs

    fenmenos interessantes, no mbito das prticas epistolares: por um lado, a

    escrita de cartas liberalizada, tornando-se acessvel a todos aqueles que

    soubessem escrever, mesmo no pertencendo ao mundo dos literatos ou autores;

    por outro lado, e decorrente deste, a carta comea progressivamente a transpor as

    fronteiras do mundo da literatura, instituindo-se cada vez mais como uma prtica

    eminentemente informativa; finalmente, a ideia de que o epistolar intimista um

    domnio privilegiadamente feminino, reservado s mulheres e facilmente

    moldvel s suas sensibilidade e superficialidade, recolhe tambm muitos

    consensos.

    4.

    As Cartas Portuguesas: escrita epistolar como processo transgressor

    Embora haja uma corrente da crtica que defende a veracidade da histria da

    Soror Mariana, baseada inclusive em pesquisa documental, entendemos relegar

    essa questo para segundo plano, tal como declarmos no incio.

    Independentemente da existncia emprica da figura e da veracidade ou no

    destas cartas, entendemos que, a partir do momento em que elas so coligidas,

    ordenadas e publicadas por um editor, elas adquirem uma dimenso orgnica

    que escapa lgica de julgamento referencial. Segundo Charles Porter, o papel

    de um editor de cartas vai muito mais alm do que a simples recolha,

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    organizao e publicao, pois tais atividades interferem no estatuto literrio dos

    textos14:

    Even if the editors think they are only trying to assure the readers maximal

    comprehension, it is clear that they do more. Since with the editors help weknow at least parts of the future unknown to both the author and the addressee of

    the letters that have come down to us, letters in a series, all the more when they

    involve persons otherwise known, necessarily become parts of what in narrative

    and drama would be called plot (Porter, 1986: 14).

    Quer isto dizer, portanto, que esta obra deve ser lida inevitavelmente enquanto

    tal, isto , como obra literria, com todas as implicaes que esta integrao naesfera do literrio transporta. Por tudo o que j dissemos at este momento,

    parece-nos importante clarificar o modo como entendemos as Lettres

    Portugaises: a tese que aqui defendemos a de que se trata de um romance

    epistolar, deficitrio quanto ao feedback comunicacional, em que um sujeito

    discursivo monta uma fico narrativa renunciando a um elemento primordial da

    narrativa: a trama diegtica. Ou seja, as cinco cartas que compem a obra so

    peas de uma histria cujos eventos foram substitudos por linguagem, por

    palavras e pelos efeitos desse mesmo discurso15. Atravs delas, Mariana, o eu

    epistolar, consegue uma afirmao e uma reconstruo de identidade,

    previamente destruda pelo trauma de uma separao amorosa. O destinatrio

    epistolar apenas um motivo, no assumindo as tradicionais funes de um

    destinatrio na epistolaridade passional. Trata-se de uma narrativa centrada no

    sujeito, um sujeito que experiencia, de forma vvida, as etapas de um processo

    passional.

    14 No mesmo sentido vo as palavras de Janet Altman que entende que o ato de publicao decorrespondncias decisivo na sua institucionalizao como literatura: What I shall be tracing is theway in wich published correspondences, whenever they address their paradoxical function of preservingthe ephemeral, institutionalize themselves as literature or as literary documents and in so doing project orreinforce certain images of the Republic of Letters at given moments in history. (Altman, 1986: 18).

    15 Segundo Jean Rousset esta , na verdade, um topos da narrativa epistolar: Il semble quaveclavnement de la forme pistolaire, le romancier pour la premire fois dans lhistoire du roman, renonceau rcit () Ici, lvnement ce sont les paroles mmes et leffet produire au moyen de ces paroles

    () (Rousset, 1995: 74).

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    Como sublinhmos inicialmente, somos da opinio que grande parte do sucesso

    desta obra passa pelo jogo com a verosimilhana romanesca, propiciado pela

    epistolaridade, em que a fico surge mascarada de realidade. A fronteira entre

    fico e realidade matizada, como, alis, sucedia no subgnero do romance

    epistolar. O primeiro indcio deste facto o prefcio do editor que acompanha a

    primeira edio da obra, pois ele o elemento paratextual fundamental que lana

    os protocolos de leitura do texto: o editor encontra, custa de muito esforo, a

    cpia de cinco cartas portuguesas traduzidas, desconhece a identidade do autor

    epistolar, bem como do destinatrio, mas julga importante traz-las a pblico, a

    fim de as preservar de manipulaes indevidas. Ou seja, este editor assume a

    responsabilidade da publicitao de um conjunto de cartas privadas, mascarando

    o ato de criao ficcional que ter presidido sua construo. A partir daqui,

    estas cartas sero lidas e frudas como peas que ilustram estados de alma,

    sensaes, vivncias e sujeitos empiricamente existentes. Esta verdade relativa

    do romance epistolar afeta-o tanto ao nvel da histria que conta, como ao nvel

    do discurso que veicula. A histria pode ser atingida pela disperso e pela

    desordem, tpicas de uma espontnea compilao de cartas, assim entendidas

    como documentos reais; o discurso das cartas deve ser tendencialmente

    negligente e desconexo, de forma a transmitir a ideia de fluxo verbal que

    acompanha as ondulaes do sentir e o pulsar quotidiano das paixes.

    Trata-se de uma estratgia de veridico16continuada ao longo das cartas: para

    alm dos inmeros referentes a locais e tempos histricos determinados que,

    inclusive, tero propiciado toda uma investigao histrica em torno da

    existncia de uma freira Mariana Alcoforado, as inmeras aluses ao ato de

    escrita e aos intermedirios portadores das missivas contribuem

    indiscutivelmente para essa estratgia de verosimilhana.

    16Utilizamos a expresso veridico no sentido semitico que lhe atribuda por Greimas e Courts,segundo os quais, a transmisso da verdade depende unicamente de estratgias epistmicas utilizadas nacadeia comunicacional, tanto ao nvel da instncia enunciadora como ao nvel da receo: un creerverdad debe instalarse en los dos extremos del canal de la communicacin y a este equilbrio ms omenos estable, a este entendimiento tcito de dos cmplices ms o menos conscientes, lo denominamoscontrato de veridiccin o contrato enunciativo. (Greimas e Courts, 1982: 432-434). E, mais frente,acrescentam: El enunciador ya no es considerado productor de discursos verdaderos, sino de discursosque producen un efecto de sentido de verdad: desde este punto de vista, la produccin de la verdad

    corresponde al ejercicio de un hacer cognoscitivo particular, el hacer parecer verdad, que puede serdenominado, sin ningn matiz peyorativo, hacer persuasivo. (Greimas, 1982: 433).

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    Este aspeto , em nossa opinio, crucial para entendermos a originalidade deste

    romance epistolar, na medida em que se percebe, medida que a relao

    epistolar evolui, a centralidade ocupada pelo ato de escrita do sujeito Mariana. A

    dado momento, na penltima carta, l-se o seguinte:

    Vou recomear, e o oficial partir. Que importa que ele parta? Eu escrevo mais

    para mim do que para ti, e aquilo que procuro consolar-me. Por isso vais-te

    assustar com a extenso da minha carta e nem a chegars a ler (Alcoforado,

    2004: 75).

    Esta questo assume contornos especiais, sendo este um romance epistolar,

    gnero em que o leitor adquire geralmente uma especial acuidade. A

    caraterstica distintiva da carta, enquanto gnero discursivo, precisamente a

    presena do destinatrio: uma carta existe sempre em funo de algum a quem

    dirigida, da que Janet Altman considere a forma epistolar a nica que tem

    aptides para retratar a experincia de leitura. Por isso, a narrativa epistolar

    transforma o ato de leitura num evento diegtico, narrativizando a leitura e

    integrando-a na fico (Altman, 1982). No caso dasLettres Portugaises, o ato

    de produo do discurso o elemento diegtico fundamental, o que secundariza de

    certa forma o destinatrio eleito. Ser atravs do discurso que Mariana enceta

    um processo catrtico de autoanlise, que lhe permitir trilhar um processo de

    racionalizao. Uma leitura comparada das primeira e ltima cartas torna bem

    evidente essa evoluo: se, na primeira carta, as antinomias, as contradies e a

    hiperbolizao da perturbao so marcas evidentes no discurso, na ltima carta,

    h claramente uma exerccio de conteno e de refreamento das paixes, alis,

    enunciado pela prpria Mariana logo na abertura:

    Escrevo-lhe pela ltima vez, e espero fazer-lhe saber, pela diferena dos termos

    e do tom desta carta, que, finalmente, me persuadiu de que j no me amava e

    que, portanto, tambm eu devo deixar de o amar(Alcoforado, 2004: 81).

    A alterao no modo de tratamento do destinatrio da segunda pessoa das

    outras cartas, marca de intimidade, passa a usar a terceira pessoa, marca de

    distanciamento -, a construo de perodos muito mais longos e sintaticamente

    mais complexos e a dimenso argumentativa so marcas discursivas que

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    denunciam o culminar de um processo de consciencializao, de autognose, s

    possvel pela escrita. Lembremos aqui as palavras de Barthes, no seu clebre

    Fragmentos de um discurso amoroso:

    Saber que no se escreve para o outro, saber que isto que vou escrever no me

    far nunca ser amado por quem amo, saber que a escrita nada compensa, nada

    sublima, que est precisamente a onde tu no ests o comeo da escrita

    (Barthes, 2010: 128).

    No entanto, o destinatrio uma pea importante em todo este caminho e

    obliter-lo seria negar a dimenso epistolar desta obra. Ser a relao com esse

    outro ausente, figura epistolar, que permite ao sujeito no s ter vivenciado ascontradies do amor, como tambm super-las, atravs de um processo de

    autoconhecimento. O epistolar promove a ausncia e a distncia, sendo

    precisamente a ausncia do outro a alavanca do gesto epistolar, pois o

    epistolgrafo substitui o destinatrio por uma representao. Nesta tica,

    compreende-se o recurso metfora fnebre17, frequentemente ligada ao gesto

    epistolar: a carta como prova da morte e do desaparecimento do destinatrio,

    substitudo, atravs da escrita por definio e essncia, testamentria por

    imagens e representaes. A carta muito mais um princpio de distanciamento

    do que de aproximao: esta distncia e a solido da escrita epistolar, a sua no-

    destinao, so marcas que fazem do epistolar e do literrio dois tipos de escrita

    convergentes (Kaufmann, 1986 : 391).

    Afinal, a mesma solido presente necessariamente em todo o amor, entendendo-

    se este como um processo de mudana radical, de afirmao do sujeito, de

    reconstruo da identidade e de transgresso. Como Barthes refere, contrariando

    um avisado conselho de Mme de Merteuil, a carta, para o apaixonado, no tem

    qualquer valor ttico: puramente expressiva() (Barthes, 2010: 58).

    Bibliografia:

    17Do aussi la profonde affinit de lpistolaire avec le discours littraire proprement dit, que lon peutdfinir minimalement comme ntant jamais adress un autre en particulier ; comme se produisanttoujours sur fond de disparition ou de destruction de lautre. () Les correspondances prparent au deuil

    de lautre ; cest ce qui leur donne du mme coup, trs souvent, une valeur dinitiation lcritureproprement dite. (Kaufmann, 1990 : 148).

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