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Matter Fictions é uma exposição que nos interessa. (...) porque insiste na função crítica da arte e porque a pensa à luz das condições atuais do capitalismo global (...) Tal como a arte, que desconhece uma iden- tidade fixa, estável e regulada, veja-se como o objeto artístico se situa num exercício de permanente reconfiguração e alargamen- to plástico sob o qual se geram cruzamen- tos de diferentes ordens estética, material e discursiva; também o capital se move hoje num campo expandido e desterritorializa- -do, adquirindo aí uma identidade igual- mente múltipla e em contínua redefinição. O capital é, assim podemos entender nas pa- lavras de Gilles Deleuze em entrevista com Félix Guattari, “uma formidável máquina de- sejante. Os fluxos de moeda, de meios de produção, de mão de obra, de novos merca- dos, tudo isto é desejo que corre” 1 . Que cor- re para além da sua moldura clássica, i.e, a fábrica, e para além da mulher/homem. Ele acontece num espaço pluridimensional, na empresa, no próprio corpo, na imagina- ção, a 6 mil metros abaixo do nível das águas marítimas, a dormir, no tubo de ensaio, no museu, no ecrã do telemóvel, em camadas geológicas altamente profundas, enquanto que o seu relógio há muito que ultrapassou as jornadas laborais das 12 horas diárias. Desde que entrou na designada fase tardia após a Segunda Guerra Mundial, acompa- nhando os desenvolvimentos recentes das sociedades globalizadas e digitais, que o As contra-matérias de Matter Fictions. Matter Fictions – Museu Coleção Berardo SOFIA NUNES capital não tardou em encontrar novas e re- novadas ferramentas de atuação que vieram complexificar o seu aparelho, potenciando o seu poder. Às grandes máquinas de produ- ção industrial, junta-se agora uma panóplia de outros dispositivos tecnológicos de ponta que permitem ao capital crescer a um ritmo de 24/24 horas com velocidades simultâneas e autoalimentar-se das espécies mais varia- das de matéria: humanas, não humanas, cul- turais ou naturais, físicas ou virtuais, vivas ou inertes, muitas delas nunca antes alcan- çadas pelo seu poder. Ele não se fixa num só referente, circula da semente para a água, da água para o petróleo, do petróleo para o genoma, do genoma para a linguagem, da linguagem para o corpo num processo des- lizante ao qual nada parece escapar ou ficar indiferente. Mesmo a arte, para citarmos no- vamente Deleuze, “deixou o seu espaço fe- chado para entrar nos circuitos abertos da banca” 2 , recorrendo a modelos de produção assentes na apropriação agregativa de in- formação, objetos e elementos recolhidos de campos muito díspares e praticamente dissociados das convenções ligadas à sua própria história. Como Hal Foster sintetiza numa resposta a um inquérito sobre a con- dição do contemporâneo nas artes visuais, interrogando-se sobre as suas similitudes RE • VIS • TA arte / reflexão / crítica 11. 2016 – n.º2

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Matter Fictions é uma exposição que nos interessa. (...)porque insiste na função crítica da arte e porque a pensa à luz das condições atuais do capitalismo global (...)

Tal como a arte, que desconhece uma iden-tidade fixa, estável e regulada, veja -se como o objeto artístico se situa num exercício de permanente reconfiguração e alargamen-to plástico sob o qual se geram cruzamen-tos de diferentes ordens estética, material e discursiva; também o capital se move hoje num campo expandido e desterritorializa--do, adquirindo aí uma identidade igual-mente múltipla e em contínua redefinição. O capital é, assim podemos entender nas pa-lavras de Gilles Deleuze em entrevista com Félix Guattari, “uma formidável máquina de-sejante. Os fluxos de moeda, de meios de produção, de mão de obra, de novos merca-dos, tudo isto é desejo que corre” 1. Que cor-re para além da sua moldura clássica, i.e, a fábrica, e para além da mulher/homem. Ele acontece num espaço pluridimensional, na empresa, no próprio corpo, na imagina-ção, a 6 mil metros abaixo do nível das águas marítimas, a dormir, no tubo de ensaio, no museu, no ecrã do telemóvel, em camadas geológicas altamente profundas, enquanto que o seu relógio há muito que ultrapassou as jornadas laborais das 12 horas diárias. Desde que entrou na designada fase tardia após a Segunda Guerra Mundial, acompa-nhando os desenvolvimentos recentes das sociedades globalizadas e digitais, que o

As contra -matérias de Matter Fictions.Matter Fictions – Museu Coleção BerardoSOFIA NUNES

capital não tardou em encontrar novas e re-novadas ferramentas de atuação que vieram complexificar o seu aparelho, potenciando o seu poder. Às grandes máquinas de produ-ção industrial, junta -se agora uma panóplia de outros dispositivos tecnológicos de ponta que permitem ao capital crescer a um ritmo de 24/24 horas com velocidades simultâneas e autoalimentar -se das espécies mais varia-das de matéria: humanas, não humanas, cul-turais ou naturais, físicas ou virtuais, vivas ou inertes, muitas delas nunca antes alcan-çadas pelo seu poder. Ele não se fixa num só referente, circula da semente para a água, da água para o petróleo, do petróleo para o genoma, do genoma para a linguagem, da linguagem para o corpo num processo des-lizante ao qual nada parece escapar ou ficar indiferente. Mesmo a arte, para citarmos no-vamente Deleuze, “deixou o seu espaço fe-chado para entrar nos circuitos abertos da banca” 2, recorrendo a modelos de produção assentes na apropriação agregativa de in-formação, objetos e elementos recolhidos de campos muito díspares e praticamente dissociados das convenções ligadas à sua própria história. Como Hal Foster sintetiza numa resposta a um inquérito sobre a con-dição do contemporâneo nas artes visuais, interrogando -se sobre as suas similitudes

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com o regime económico neoliberal, “o que é novo é que, na sua heterogeneidade, muita da prática atual parece flutuar sem determi-nação histórica, definição conceptual e juí-zo crítico” 3.

É sob esta condição da livre circulação, comum aos vetores dominantes da arte con-temporânea e à lógica atual do capital, que a exposição coletiva Matter Fictions, comis-sariada por Margarida Mendes para o Museu Coleção Berardo, se desenvolve. Não no sen-tido de apresentar a analogia que dali decor-re como uma correspondência direta entre os domínios do artístico e do económico/fi-nanceiro, donde ambos pudessem sair equi-parados, mas para a problematizar antago-nicamente. A dialética que a exposição assim assume e que traspassa individualmente cada obra de arte está felizmente longe de um esquema primário, dogmático e ilustra-tivo, como de resto sucede com tantas cura-dorias e trabalhos artísticos que querendo incidir sobre o potencial emancipatório da arte recorrem a uma tematização simplifi-cada de assuntos políticos, escapando -lhes precisamente qualquer crítica. Já Theodor Adorno afirmava: “são socialmente mudos os produtos [artísticos] que realizam a sua norma restituindo tal qual o elemento social a que se reportam” 4.

Desde modo, podemos antes dizer que esta dialética participa da ordem do poéti-co. De um poético híbrido, ora mais concre-to ora mais difuso, ora mais agregativo, ora mais delimitado, que utiliza as propriedades físicas, históricas ou fictícias das diferentes matérias de que é feito ou convoca para in-terpelar a sucessiva transformação das ma-térias disponíveis na terra em meras merca-dorias. Mas que contra -matérias são estas e que articulação a exposição lhes dá?

Matter Fictions reúne um total de vinte e seis obras/instalações concebidas por quin-ze artistas e cinco coletivos – Europa do Sul (Portugal), Europa Central e do Norte (Reino Unido, Irlanda, Finlândia, Suécia) e Ásia (China, Japão e Coreia do Sul) – que emergi-ram nos anos 1960, nos anos 1990 e no curso das duas primeiras décadas de 2000. Na sua maioria são trabalhos históricos, mais re-centes ou executados para a exposição. São predominantemente escultóricos, objetuais, ideográficos e convivem de forma pontu-al com trabalhos realizados noutros media, como o desenho ou a pintura. Embora mui-to díspares, revelam uma especial atenção ao som e à palavra, escrita e/ou dita, e par - tilham um entendimento experimentalista do médium artístico particularmente sensí-vel à sua materialidade, mesmo quando esta resulta da combinação de materiais hete-rogéneos ou de elementos imateriais, como códigos ou algoritmos digitais.

Juntos narram, nos termos da curadora, “uma história parcial da nossa relação com a matéria” 5 que se desdobra em quatro sa-las e se inicia com um conjunto de desenhos de Ana Hatherly, parte realizados no início dos anos 1970. Escritos, torrente de letras, palavras indisciplinadas, de traço solto, in-finito, desaprendido que nos fitam o olhar na sua incomunicabilidade, todavia, falan-te. Falam -nos de mapas não cartografados, de caminhos em erupção que desenham e enunciam serras, vulcões, planaltos para aí se desdizerem. Que assaltam a memória, traindo -a enquanto a fabricam através de uma escrita dinâmica, cuja prática já nada diz respeito à finalidade instruída pela sin-taxe convencional que a petrifica, retirando--lhe vida. Tal parece ser o caso da escultu-ra de Joana Escoval, Then as now, it speaks,

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2016, que logo ali ao lado se insinua. Aqui não é a folha branca que lhe serve de super-fície para ficcionar um alfabeto, mas antes o chão do museu. Sob um fundo de mármore cinza mesclado, pequenos segmentos tubu-lares em cobre e ouro dão lugar a uma pos-sível escrita semi -abstrata, semi -orgânica e extremamente frágil que frustra a rápida apreensão, enquanto se nega a ela própria como sistema fechado. Se estes trabalhos procuram sobretudo devolver uma resistên-cia semântica à linguagem, os vídeo -poemas de E. M. de Melo e Castro, realizados en-tre 1985 e 1989, e a vídeo -instalação Hydra Decapita, 2010 dos Otolith Group (Anjalika Sagar e Kodwo Eshun) que os acompanham permitem à curadora aprofundar na primei-ra sala as implicações políticas da desloca-ção do signo linguístico. Em Objetotem, por exemplo, Melo e Castro recorre à compu-tação e ao vídeo para engendrar um poema áudio -visual em movimento constituído por três palavras coloridas – objeto, totem e ato – que são combinadas entre si de forma ale-atória e pronunciadas com um ritmo tribal. Destes procedimentos, resulta uma anima-ção cromática, sonora e semântica na qual a própria noção de “objeto” artístico se debate entre dois sentidos que se mordem mutua-mente e o situam ora do lado do totem/objeto cristalizado e fetichista, ora do lado do ato/do objeto agente de produção. Já a projeção vídeo dos Otolith Group remete o problema da objetificação para o campo das relações sociais e do capitalismo financeiro, media-do também pela ação poética das palavras e de uma segunda matéria, neste caso, a água. A paisagem marítima que abre o vídeo é o lugar de uma memória histórica narra-da por uma voz feminina maquinal: em 1781 um capitão britânico afoga um batalhão de

escravos africanos no Atlântico e em tribu-nal ganha uma indeminização pela perda do navio que os transportava, sem ser julgado pelo crime humanitário cometido. Do facto nada se vê, embora retorne como reescri-ta ficcionada. A câmara larga o pôr do sol que ilumina o mar por detrás de um roche-do, mergulha nas águas negras oceânicas e devolve -nos uma monocromia, donde emer-gem pequenos reflexos de luz que admitem a forma de caracteres numéricos, cifras, ao mesmo tempo que a narradora lhes vai so-brepondo histórias sobre vidas subaquáti-cas que resistiram àquela tragédia.

Se a água se torna aqui vetor de vida e de novos modelos de subjetividade, também as matérias que caracterizam as peças da se-gunda sala parecem produzir corpos outros, cuja singularidade decorre de processos de transformação permanente e câmbios de or-dem natural e tecnológica. São disso exem-plo os trabalhos de Nina Canell, Jenna Sutela ou André Sousa. Em Perpetuum Mobile (25 kg), 2009 -2016, Canell coloca uma bacia com água ao lado de um saco de cimento e junta um sistema de vibração sónica que faz agitar o líquido, provocando uma névoa fantasmáti-ca de humidade que vai solidificando lenta-mente o material de construção adjacente. Por sua vez, a instalação de Jenna Sutela, Instruments of mind -matter, 2015, enceta outro tipo de ação que tem por agente prin-cipal a qualidade informe e encriptada dos vários elementos que a compõem. Dois tron-cos de madeira com pés metálicos servem de base de apoio a dois anéis transparen-tes de aparência gelatinosa que transmitem uma fala estranha e quase desrealizada para combater um vírus linguístico. Enquanto este corpo híbrido se tenta desembaraçar de uma ameaça linguística; os Pirilampos do

1. Ursula Biemann, Deep Weather, 2013. Video still. © Ursula Biemann e Museu Berardo.03/09 /

Já Theodor Adorno afirmava: "são socialmente mudos os produtos [artísticos] que realizam a sua norma restituindo tal qual o elemento social a que se reportam”.

vídeo de André Sousa, de 2013, projetados no corredor da sala, são perseguidos pelo olhar tecnológico da câmara que os tenta capturar durante o crepúsculo, numa zona florestada próxima de uma autoestrada. Os pontos de luz cintilante produzidos pe-los insetos “suburbanos” acabam no entan-to por neutralizar a captura, de tal modo que o movimento da própria câmara adquire uma corporalidade próxima à do animal, vislum-brando apenas intermitências fugazes.

Se até este momento a exposição segue um sentido mais abstratizante que a leva a perscrutar alteridades à ordem ideológica da reificação da linguagem e dos corpos; já a terceira e quarta sala conferem -lhe, se qui-sermos, um contraponto. Nelas agrupam--se trabalhos tendencialmente figurativos, de raiz documental ou pop, que especulam

sobre o “uso predatório e extractivista da matéria” 6 e as suas dramáticas consequên-cias. Curioso será também notar que estes dois eixos, importantes vetores de tensão curatorial, encontram no percurso da ex-posição pontos de ancoragem específicos vindos do universo literário e do ativismo político. Por um lado, “Cyberpositive” um ro-mance cyberpunk de 1995 assinado pelos Orphan Drift (Suzanne Karakashian, Ranu Mukherjee, Maggie Roberts e Erle Stenberg), cuja escrita oscila entre o registo alfabéti-co/legível e o informático/codificado, que a curadora disponibiliza para leitura na se-gunda sala. Por outro, “Water Filter”, 2015 de Listen to the City (Eunseon Park, Ahju Kwon, Junho Kim e Hanseul Wang), uma es-cultura em bambu exposta na última sala que simboliza, em jeito de homenagem, as

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contribuições angariadas para a luta deste coletivo contra a construção das barragens dos Quatro Grandes Rios na Coreia do Sul que tem causado uma crise ambiental sem precedentes na região.

Ora o registo mais especulativo da ex-posição tem precisamente início com o tra-balho de Diogo Evangelista que se desta-ca na terceira sala e com o vídeo do projeto Inhabitants (Mariana Silva e Pedro Neves Marques), apenas disponível na internet 7, mas cuja ficha técnica se encontra afixada na entrada da sala seguinte. Ambos datam de 2016 e reconstroem ficionalmente reali-dades concretas para nos posicionar perante a fase mais microscópica e expansiva do ca-pital, radicalizando -a. 84%, de Evangelista, consiste numa vídeo -instalação de gran-des dimensões e conjetura uma narrativa visual fragmentada que regista uma equipa de cientistas a fabricar em laboratório uma nova espécie de peixes geneticamente mo-dificados ao som de bisturis e de ondas su-baquáticas. De cor fluorescente, os peixes nadam num tanque e deixam um rasto lumi-noso, quase mágico que antecipa o destino da espécie como valor -de -troca no mercado de cura de doenças. Não será por acaso que a narrativa fecha com um longo fade in aver-melhado donde se desvela uma ambulância a passar na rua registada através da vidreira molhada de um carro. Mining for Ringwoodite também segue uma linguagem documen-tal, porém de explanação científica. Note -se como a sequência das imagens alusivas ao mineral que dá nome à peça, composto por partículas de água no interior, se aparenta a uma apresentação powerpoint, donde o con-teúdo das legendas é animado por uma so-noplastia muitíssimo curiosa que combina o som de asteroides, cristais e de gotas de

água a cair no interior de uma caverna. Num momento em que a escassez de água é já uma realidade, o projeto Inhabitants enqua-dra a raridade dessa substância numa nova economia capitalista hipotética, lançan-do um sorriso sarcástico, mas não menos perturbador, sobre a regeneração infinita do capital.

Problema que não é certamente alheio às obras mais interessantes da última sala, nomeadamente a instalação vídeo BBR1 (no. 1 of blossom bud restrainer), 2015, de Liu Chuang, exposta no chão, e a projeção ví-deo de parede de Ursula Biemann, intitulada Deep Weather, 2013. Enquanto o primeiro se serve de um humor pop para criar uma histó-ria sobre os efeitos tóxicos de um novo pro-duto para o tratamento hormonal de choupos que acaba por gerar um excesso de poliniza-ção não controlável, Biemann articula numa só narrativa duas calamidades que, embo-ra separadas no tempo e no espaço, afetam de forma desregulada o natural e o humano. Os primeiros planos do vídeo registam em vista aérea um complexo industrial de ex-tração de petróleo a altas profundidades lo-calizado no areal betuminoso de Athabasca e seguem o rasto de uma substância azul - -esverdeada que se estende à paisagem na-tural adjacente, envenenando o ecossistema local. O ponto de vista das segundas ima-gens é o de uma pequena embarcação seme-lhante às restantes que preenchem o ecrã e que conduzem a população de Bangladesh até uma construção de aterros de lama edifi-cada por si para se auto -proteger da invasão das águas gerada pelo processo constan-te de degelo junto aos Himalaias. Enquanto isso, um longo segredo sussurrado no femini-no interseta os diferentes acontecimentos e guia -nos até ao desespero infinito e ameaça

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de morte iminente que assolam as duas ge-ografias, como que espelhos negativos dos “mapas” de Hatherly.

Matter Fictions é uma exposição que nos interessa. Interessa -nos porque insiste na função crítica da arte e porque a pensa à luz das condições atuais do capitalismo glo-bal com a particularidade de reunir nomes de gerações e sensibilidades distintas, al-guns deles pouco ou nada conhecidos entre nós, expondo pela primeira vez em Portugal. E interessa -nos sobretudo pelo modo como fundamenta aquela função numa noção que tendemos a classificar como pertencente a um passado modernista (de raiz materialis-ta), i.e, a noção de matéria, que Margarida Mendes recupera, atribuindo -lhe novas sig-nificações que interagem com o nosso pre-sente histórico e lhe conferem uma politiza-ção, deixando cair qualquer pretensão mais purista. Matéria aqui é sinónimo de agen-ciamentos diversos, de fluxos inesperados e de um vitalismo feroz que se opõe determi-nantemente aos recentes processos de rei-ficação, sejam eles biológicos, mineralógi-cos, hídricos ou geológicos. Se neste aspeto Matter Fictions partilha algumas das preo-cupações que caracterizam hoje os debates do Novo Materialismo e do Antropoceno, tão presentes nos discursos curatoriais mais emergentes, a noção de matéria que traba-lha é suficientemente elástica como vimos para não ficar refém de centralidades que parecem determinar aquelas correntes de pensamento, como por exemplo a objetua-lidade física e material ou o mundo natural. Nenhuma ordem técnica ou concetual lhe é imposta. Ela tanto é verbal, como textual, material ou digital, tanto aponta para o hu-mano, o animal, o mar ou a camada geológi-ca antiga.

Já o texto de sala assinado por Mar--garida Mendes não enuncia com clareza o pressuposto curatorial, pois que muitos dos conceitos utilizados surgem desintegrados de uma ordem de reflexão, ao contrário do entendimento de linguagem sustentado pela própria exposição que luta constantemente contra uma função parasitária de si mes-ma. Note -se ainda que o texto parece repor, mesmo que involuntariamente, uma relação hierárquica entre o artista e o espetador, onde o logos se insinua como propriedade exclusiva da classe artística. Se ao primeiro, Mendes assegura uma “consciência apurada sobre os circuitos metabólicos da matéria (...) enquanto catalisadores de transforma-ções económicas e biopolíticas”, ao espeta-dor caberá então nas suas palavras “apren-der com eles” artistas “a reposicionar -se ontologicamente no mundo” 8.

Esperamos que o catálogo aguardado possa integrar estas mesmas questões fa-zendo justiça à qualidade desta exposição, que certamente constituirá um marco sig-nificativo na nossa mais recente história de exposições coletivas de arte contemporâ-nea realizadas em contexto museológico.·

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2. Diogo Evangelista, 84%, 2016. Video still. © Diogo Evangelista e Museu Coleção Berardo.

NOTAS:

1. Cf. entrevista a Gilles Deleuze e Félix Guattari para a revista Actuel realizada por Michel -Antoine Bournier em 1973 in AAVV, Capitalismo e Esquizofrenia. Dossier Anti -Édipo, Lisboa, Assírio e Alvim, 1976, p.198.

2. Gilles DELEUZE, “Post -scriptum sur les sociétés de controle” (1990) in Pourparlers, Paris, Les Éditions de Minuit, 1990, p.245.

3. Hal FOSTER, “Questionnaire on “The Contemporary” in October, 130, Fall, 2009, p.3.

4. Theodor W. ADORNO, Théorie esthétique, Paris, Klincksieck, 1995 (1970), p.319.

5. Cf. texto de sala.

6. Cf. texto de sala.

7. inhabitants -tv.org

8. Cf. texto de sala.

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3. Ursula Biemann, Deep Weather, 2013. Video still.© Ursula Biemann e Museu Coleção Berardo. 4. Vista geral da exposição Matter Fictions.Foto de Bruno Lopes. © Museu Coleção Berardo. 5. Diogo Evangelista, 84%, 2016. Video still.© Diogo Evangelista e Museu Coleção Berardo.

6. The Otolith Group, Hydra Decapita, 2010. Film still. © The Otolith Group e Museu Coleção Berardo.

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