Da crise do Espectador -...

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(...) E não se encara os ecrãs, dá-se-lhes o flanco, pois o corpo tem de voltar-se ao ouvir um som repentino que vem de um ecrã, escapando-lhe o que ocorre naquele a que virou costas. Depois de The Clock de Christian Marclay, o Museu Coleção Berardo pontuou a progra- mação de 2015 com outro nome de gran- de relevo internacional. A exposição Stan Douglas: Interregnum esteve patente entre 21 de Outubro, 2015 e 14 de Fevereiro, 2016, com curadoria de Pedro Lapa 1 . Com um já longo percurso a problema- tizar a História como discurso de legitima- ção e poder, Stan Douglas [Vancouver, 1960] será certamente muito sensível à perturba- ção que as “ironias do destino” exercem so- bre as “narrativas dos factos”. Quando, em 2008, a convite de Lapa (então ainda para a Fundação Elipse), o artista iniciava algu- mas das pesquisas que culminariam em Interregnum, não previa que a sua mais re- cente exposição em Portugal inauguraria num interregno pós-eleitoral cujo debate (apesar de morno) alguns polemistas empo- lavam quase tão quente quanto o Verão de 1975 cuja memória o canadiano também vi- nha ressuscitar 2 . Na sociedade portuguesa, por altura da inauguração, era particular- mente evidente que o filme “real” da História estava em processo de “pós-produção” e “re-edição” (ainda que tímida) da arqueo- logia e genealogia do seu “organograma” político e ideológico. E por cândido aca- so da vida (como os que se intrometem na Stan Douglas: Interregnum – Da crise do Espectador à sua (eventual) emancipação. DANIEL PERES História, enformando-a) foi no meio destas projecções a 40 anos que surgiu em Lisboa a longa-metragem The Secret Agent (2015) a invadir os anais autóctones da Revolução de Abril e do PREC [Processo Revolucionário em Curso] juntamente com a foto-instalação Disco Angola (2012) a justapor a ressaca do colonialismo português ao fenómeno do dis- co sound que lhe foi contemporâneo, numa mesma conjuntura internacional que recebia (e capitalizava) as utopias interculturais que acompanharam os auspícios e as frustra- ções dos diversos momentos de libertação política deste período histórico – um manan- cial utópico também interrogado pela misce- lânea musical da vídeo-instalação Luanda- -Kinshasa (2013). Ora, todo este alinhamento circunstan- cial aparentemente tão fortuito, acaba por auxiliar o entendimento de questões rele- vantes para a obra do autor. As suas inves- tigações relembram que a “realidade” só existe porque está sempre a re-ficcionar a factualidade do seu passado, a re-conjugar o seu pretérito imperfeito 3 . É essa constru- ção simbólica da memória colectiva o verda- deiro medium de Douglas, é lá que intervém: no mesmo processo sociológico que gera a pluralidade de discursos, oficiais e oficiosos, de que se faz a História. O artista prefere, RE • VIS • TA arte / reflexão / crítica 04. 2016 – n.º1

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(...) E não se encara os ecrãs, dá -se -lhes o flanco, pois o corpo tem de voltar -se ao ouvir um som repentino que vem de um ecrã, escapando -lhe o que ocorre naquele a que virou costas.

Depois de The Clock de Christian Marclay, o Museu Coleção Berardo pontuou a progra-mação de 2015 com outro nome de gran-de relevo internacional. A exposição Stan Douglas: Interregnum esteve patente entre 21 de Outubro, 2015 e 14 de Fevereiro, 2016, com curadoria de Pedro Lapa1.

Com um já longo percurso a problema-tizar a História como discurso de legitima-ção e poder, Stan Douglas [Vancouver, 1960] será certamente muito sensível à perturba-ção que as “ironias do destino” exercem so-bre as “narrativas dos factos”. Quando, em 2008, a convite de Lapa (então ainda para a Fundação Elipse), o artista iniciava algu-mas das pesquisas que culminariam em Interregnum, não previa que a sua mais re-cente exposição em Portugal inauguraria num interregno pós -eleitoral cujo debate (apesar de morno) alguns polemistas empo-lavam quase tão quente quanto o Verão de 1975 cuja memória o canadiano também vi-nha ressuscitar2. Na sociedade portuguesa, por altura da inauguração, era particular-mente evidente que o filme “real” da História estava em processo de “pós -produção” e “re -edição” (ainda que tímida) da arqueo-logia e genealogia do seu “organograma” político e ideológico. E por cândido aca-so da vida (como os que se intrometem na

Stan Douglas: Interregnum – Da crise do Espectador à sua (eventual) emancipação.DANIEL PERES

História, enformando -a) foi no meio destas projecções a 40 anos que surgiu em Lisboa a longa-metragem The Secret Agent (2015) a invadir os anais autóctones da Revolução de Abril e do PREC [Processo Revolucionário em Curso] juntamente com a foto -instalação Disco Angola (2012) a justapor a ressaca do colonialismo português ao fenómeno do dis-co sound que lhe foi contemporâneo, numa mesma conjuntura internacional que recebia (e capitalizava) as utopias interculturais que acompanharam os auspícios e as frustra-ções dos diversos momentos de libertação política deste período histórico – um manan-cial utópico também interrogado pela misce-lânea musical da vídeo -instalação Luanda--Kinshasa (2013).

Ora, todo este alinhamento circunstan-cial aparentemente tão fortuito, acaba por auxiliar o entendimento de questões rele-vantes para a obra do autor. As suas inves-tigações relembram que a “realidade” só existe porque está sempre a re -ficcionar a factualidade do seu passado, a re -conjugar o seu pretérito imperfeito3. É essa constru-ção simbólica da memória colectiva o verda-deiro medium de Douglas, é lá que intervém: no mesmo processo sociológico que gera a pluralidade de discursos, oficiais e oficiosos, de que se faz a História. O artista prefere,

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Stan Douglas: Interregnum / Daniel Peres

no entanto, mover -se no primado das po-tências ficcionais que animam essa feitura. Aliás, o seu trabalho revela que é justamen-te a intercepção da memória dos factos com as narrativas que a História inventa (isto é, um imaginário, uma mnemónica política e social, os seus ideários, convenções, mitos, uma moral) o que de mais importante pode ser montado e editado em qualquer estúdio onde “...a arte reorganiza os signos e as ima-gens [numa] indistinção fundamental entre arte e história, em que a ficção se move com grande à -vontade” 4. Actualizando a semióti-ca do passado na contemporaneidade, as pe-ças de Stan Douglas situam -nos nesta fron-teira entre a mise -en -scène da História e a da arte5. Onde ambas confluem, há um interreg-no insolúvel entre verdade e mentira, um es-paço e um tempo de ninguém, onde aconte-cemos e a que chamamos presente.

História e efeito de verdade“ – Sometimes a lie is the best way to tell a truth.” 6, deixa de Douglas na primeira sessão do ciclo de conferências que acompanhou Interregnum7. Espécie de ditado popular, usou -o sabendo que dele ecoam parado-xos que se manifestam na ética do seu tra-balho. A arte pode celebrar esta “máxima”, não será ela também válida para a História, as suas mediatizações, a sua escrita, o seu efeito de verdade?

Disco Angola e Luanda -Kinshasa encenam documentalidade para sobressaltar o presen-te com espectros do passado, projectando--nos na década de 1970. Revestem -se do rigor exaustivo de figurinos e cenários a que o autor já nos acostumou agudizado numa estratifi-cação de pormenores de datação e tipicida-de. Mas “Obviamente [que a sua] preocupa-ção não é (…) um efeito de verosimilhança

ou de puro simulacro [que] tornasse indes-trinçável a relação entre agentes históricos e sujeitos da enunciação” 8. Não obstante, haverá quem tema cair numa esparrela mi-mética de aparência documental (fobias iconoclastas de sintomatologia platónica). Haverá também quem preveja e condene uma primazia do discurso para desencriptar um hiperrealismo algo hermético. Mas é nes-sa sedução ludibriosa que se é convidado a um desvelamento – consciente – que poderá ir além do desmantelamento teórico de uma artimanha ou da decifração de enigmas téc-nicos. Importará antes a descoberta que o disfarce promove: a reminiscência reflexiva de um outrora histórico num agora estético (uma anamnese9 em imagem) em que, acre-dita Lapa (por tangência com Nietzsche via Agamben), “O retorno operado pela reence-nação pode mesmo implicar uma perspec-tiva crítica da história contra o próprio his-toricismo.” 10 Trabalhar essa desconstrução, é um repto tão sensorial quanto intelectu-al que estas peças lançam, não só à pers-picácia do sujeito mas à da instituição que as apresenta, pois o contexto museológico é fulcral para evidenciar e manobrar as pis-tas desse desmascarar. Desde logo, a ins-trumentação crítica dos novos media em que a tecnologia de ponta é conduzida meticulo-samente até uma ruptura com a sua própria capacidade simulacral.

Ao contrário de outras estratégias ar-quivísticas de Douglas, Luanda -Kinshasa e Disco Angola não se apropriam directamente de documentos pré -existentes (simulam--no). Também não se finalizam com tecnolo-gia de imagem própria da época que retratam nem instalam aparelhagem “obsoleta” no espaço expositivo, o HD é a sua pele. No caso de Luanda -Kinshasa, a datação tecnológica

1. Stan Douglas, The Secret Agent, 2015. Still de vídeo © Artista, Galeria David Zwirner (Nova Iorque) e Galeria Victoria Miro (Londres).02/15 /

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é de facto operada mas no plateau, onde uma grande parte do décor e dos adereços se funcionaliza para lá da invocação icono-gráfica dos anos 70. Naturalmente que os músicos tocaram de facto em live toda aque-la parafernália vintage e o exercício da mú-sica, em improviso, supera qualquer idola-tria retro com a sua autenticidade em acto. Mas esse é o tempo e são os instrumentos da performance musical, não os da grava-ção, edição e apresentação do que se vê e ouve, esses são meios digitais e infiltram -se nos primeiros para criar a aparição de um não -acontecimento. Aqueles músicos nunca estiveram todos juntos como o filme aparen-temente mostra e é esta mentira imagética – a disjunção entre o que se mostra e o que se vê – que efectiva que aquela música esteja, na verdade, a ser permanentemente recrea-da. Para tal, as gravações do ao -vivo da ban-da – por sectores e em dois dias diferentes – foram planeadas para se poderem cortar e descontinuar em segmentos minuciosos, inseridos num sistema informático que so-brepõe clips de vídeo e samples áudio sem boicotar a sua sintonia rítmica, harmónica e melódica, remisturando -os e recombinando--os ao longo de horas sem repetir arranjos. O efeito é o de um todo uno, fluido e produ-zido no mesmo momento (uma ficção, não--acontecida no passado que mostra; uma “realidade” no tempo presente do museu em que acontece).

O computador torna -se assim um dj vir-tual que compõe a música num outro ao -vivo, o da vídeo -instalação, o tempo do especta-dor, onde um efeito de captação ao 1°take é gerado pela sua antítese: a morosidade da edição audiovisual, a “magia” da montagem e o automatismo da programação compu-torizada. A aparente espontaneidade desta

jam impossível fabricou -se noutros estú-dios, os de cinema – desde o ambiente la-boratorial da rodagem, onde ganha corpo, aos de pós -produção onde verdadeiramen-te nasce. Para isso, o cenário de estúdio de gravação musical foi obviamente matricial, com os biombos acústicos a compartimen-tar o set e a permitir a gestão da perspectiva e da profundidade de campo numa plani-ficação circular que combina e recombina trechos11. Dá também toda a coerência aos auscultadores com o metrónomo e as cha-ves tonais, essenciais para a sintonização dos improvisos por parte dos músicos que permitiu posteriormente esta livre remistu-ra electrónica de segmentos. No papel de músico -actor intermedeiam -se esses dois tempos, o da verdade da música e o da fal-sidade da ficção -histórica. Com toda a incer-teza, ficcionamos cumplicidades entre as personagens – que dançam em sintonia com o que ouvimos sem sabermos ao certo o que ouviam. Num dos loops, o Djambé surge em solo: pressente -se na expressão do percus-sionista que ele ouve instrumentos na muni-ção que o dispositivo não está a reproduzir – é um falso solo, outros tocavam com ele. Começamos a especular sobre a constância do beat quando a baterista não aparece na imagem e suspeitamos das longas e regula-res repetições de um riff de guitarra -ritmo. Notamos que é exactamente o mesmo sam-ple que vai voltar a soar por diversas vezes, minutos à frente, ora com, ora sem a imagem do guitarrista e integrado numa orquestra-ção completamente diversa. Questionamos as consecutivas adições e subtracções de mais e mais pistas de instrumentos, cujo volume por vezes acompanha tenuamente o olhar da câmara em fade -in quando os exe-cutantes entram no plano e em fade -out

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É na contemplação deste off – significante – que as peças de Douglas atingem plenitude.

quando saem, numa suavização que já de-nuncia que a música segue o vídeo em vez do inverso. Numa das sequências o baixista toca o que ouvimos ao mesmo tempo que se vislumbra, por trás do painel acústico, a ba-queta da baterista a bater num prato crash que não está a soar. Consoante o loop, dão--se outras ocorrências em que aparecem instrumentos a tocar em mute, nomeada-mente na transição entre temas. Não sabe-mos como interpretá -lo, se como um lapso (hipótese tão incongruente com a meticulo-sa programação da peça) ou uma porta para o “como foi feito”, uma fractura com o dis-farce. Este estado permanente de dúvida é simultaneamente uma virtude e um risco desta filigrana hi -tech.

É alimentando esta desconfiança, um desconforto estranhamente familiar12, que

Luanda -Kinshasa revela como ela própria seria uma impossibilidade se a entendês-semos como o que à superfície parece ser um filme -documentário gravado há cerca de 40 anos atrás nos CBS 30th Street Studios de Nova Iorque, elevados a lenda por Miles Davis. É esse espaço mítico da história da música moderna, conhecido por The Church (cognome feliz para as elevadas conotações que recebeu no meio musical mas que surge do facto de ocupar uma antiga igreja, como o vídeo indica), que entra aqui em simbio-se cenográfica com os Olympic Studios de Londres, onde Godard filmou One plus One com os Rolling Stones em 196813. Na reunião destas e outras referências históricas – den-sidade citacional tão vincada em toda a obra de Douglas – há hiatos culturais a serem me-taforicamente transpostos pela música de

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fusão de um colectivo multi -étnico que con-cretiza na ficção dos 1970’s um pluralismo estilístico remoto que o experimentalismo dessa década não chegou a testar, espé-cie de previsão universalista que a História nunca saldaria. Essa consumação simbólica ocorre numa reencenação obsessivamente fidedigna desse passado como analogamen-te a tecnologia gera, no presente, timelines tão reais quanto a miragem intercultural que veiculam como fantasma histórico. “6h e 1 minuto” é a duração total em que o digi-tal sequencia diferentes colagens de som e imagem por dois temas musicais base, que conservam o modo mas que recebem uma remistura inédita a cada loop14. Contudo, é sem demora que a estranheza desperta e ler na legenda de parede a enorme disten-são temporal que a recombinatória confere à peça, já consagra qualquer intuição mais céptica sobre os seus artifícios.

Com efeito, a articulação com os ma-teriais museológicos é preponderante para o puzzle de “ficção”, “história” e “realida-de” de Douglas. Tabelas, folhetos e textos de parede acabam por engrenar a gramáti-ca artística mescladas no design de comuni-cação da instituição, esclarecendo que obra, museu e espectador disputam um mesmo território hiperreal15. A mediação com a in-formação auxiliar para gerir equívocos e de-senganos é bastante directa nas legendas de Disco Angola onde cada fotografia recebe duas datas: uma em itálico (fictícia e parte do título) e a da produção (coincidente com a nossa cronologia), acrescendo mais um de-sarme ao seu pendor cénico. As fotos dia-logam em 4 pares, cada um na sua parede: “Club Versailles, 1975, 2012” / “Êxodos, 1975, 2012”, onde uma festa numa sala apalaçada é justaposta ao embarque de “retornados”

(“CAVIAR...” rotula um caixote que espera entre as bagagens); em “Kung -Fu Fighting, 1975, 2012” / “Capoeira, 1974, 2012”, é o mar-cial que estreita culturas pela demonstra-ção descontraída de uma arte asiática num bar em paralelismo com um treino militar com importações do Brasil; “A luta conti-nua, 1974, 2012” / “Two Friends, 1975, 2012”, em que o visual funky de uma jovem frente a um mural do MPLA é contraposto ao sno-bismo fancy de um casal num bar cosmopo-lita; “Coat Check, 1975, 2012” em que, numa atmosfera de glamour decadente depois da folia, um livro espreita numa mala entre o vestuário aterrado num sofá ladeado por co-lunas de som. Da capa decifra -se parcial-mente “..EXU..”, do título e “...y Mill...”, do autor . Tratar -se -á de Sexus (1949), Nexus (1959) ou Plexus (1953) da trilogia The Rosy Crucifixion de Henry Miller, banida nos EUA, onde a primeira publicação só surge em 1965. Os espíritos libertinos da Nova Iorque dos anos 70, a que a foto remonta, podiam agora consumi -la sem censura alimentando utopias libertárias. Comunica com “Check--point, 1974, 2012”, um posto de controlo mi-liciano onde combatentes fitam a câmara na eminência de algo que parece estar prestes a acontecer.

Nas disparidades de cada par tecemos uma “iconologia de intervalos” 16 que vai ima-ginando a problematização de um legado histórico através do cruzamento de “...duas séries (…) [unidas] por um repórter [fictício] norte -americano (…) [uma] reporta o disco sound (…) utopia cultural, em breve trans-formada em mercadoria; a outra (…) [o] fim do colonialismo português em Angola e (...) o início da guerra civil, organizada pelos poderes da Guerra -fria infiltrados nos mo-vimentos de libertação, e que pôs fim às

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expectativas (...). No entrelaçado (…) revelam--se a suspensão, utopia e afirmação de uma nova ordem global” 17.

Posto isto, a “espontaneidade progra-mada” de Luanda -Kinshasa e os “instantâ-neos encenados” de Disco Angola relembram que a imagem documental está também ela sempre num interregno entre a sua capaci-dade de veracidade – veículo de demons-tração e verificação científica por parte do historicismo – e o seu ser -imagem (“apesar de tudo”, como diria Didi -Huberman) sub-jectivo, arbitrário. Estes falsos simulacros, levam -nos a concluir que a eminência de eventuais deturpações hiperreais é propor-cional à presunção de conhecimento que depositamos na imagem de “tipo” documen-tal, testando a credulidade ocularcêntrica18 da modernidade perante a objectividade – mítica – dos novos media e revelando a per-meabilidade do histórico ao duplo, à farsa. Douglas expõe com frequência esse curto--circuito no interior do medium, comum a outros artistas da sua geração, em que “...o documento entra continuamente em reces-são, e tende a perder valor enquanto inde-xação de um efeito de verdade...” 19. Mas de que dão testemunho estas imagens? É que o seu efeito de verdade histórica, traz efecti-vamente uma eficácia face ao passado - não no sentido “épocal” (essa é a máscara) mas quanto à sua premência política e cultural na contemporaneidade.

O espectador como interregno.Estreado com a exposição, “The Secret Agent (2015) [adapta a] novela homónima de Joseph Conrad [1907] a uma instalação cinemática [de] seis ecrãs distribuídos igual-mente em duas paredes opostas num am-plo espaço obscurecido.20 (…) [Trata -se] de

uma longa -metragem com (...) narrativ[a] cronológic[a]; profundas alterações são, no entanto, propostas a este género cinema-tográfico, a começar pela situação de ins-talação, que permite apresentar cada cena distribuída por dois ou três ecrãs e (…) envol-ver de um modo diferente o observador.” 21

Com a colaboração técnica de O Som e a Fúria, a rodagem do projecto ocorreu en-tre Fevereiro e Março de 2015, 40 anos de-pois do 11 de Março de 1975 que o assom-bra e para onde o guião transpõe as linhas estruturais da novela de Conrad. Mantêm -se os nomes das personagens (com pequenas alterações22), imbuídas agora em estereóti-pos com a marca do Maio de 1968, e enqua-dradas entre um cinismo revolucionário e o da nova ordem social, entre a hipocrisia ten-tacular do capitalismo global e a da espiona-gem. Discutem -se ideais sobre a revolução, a “estupidez” das massas, os “brandos--costumes” estanques da vida íntima, o ter-rorismo. Lisboa foi o cenário da História em 75 e é agora o da contracena de um elenco que conta com alguns dos mais badalados actores portugueses que nunca desfilam por marcos “turísticos” (ou não fosse esta uma história de conspiração e secretismo) mas povoam típicos ex -libris de bastidor. Entram e saem de um pequeno cinema, numa decla-rada ironia auto -referencial. Reconhecemos a fachada como sendo as traseiras do São Jorge – cujo interior passa a ser o do Nimas – negócio -disfarce de Verloc, onde o anar-quista infiltrado (satirizado no sotaque posh do britânico Adam Schiller23) se reúne clan-destinamente com a “tertúlia” da trama. No filme, fica na “ – ... Rua do Loreto twel-ve!”, onde na realidade funciona o Cinema Ideal no nº15/17 (no mesmo sítio onde tinha sido construído o cinematógrafo mais antigo

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da cidade em 1904) e, no nº12, o restauran-te A Tertúlia do Loreto. Reforçando a espe-cificidade local da peça, Douglas oferece ao público lisboeta a possibilidade de se enle-ar neste tipo de esmiuçamentos de segun-do e terceiro grau, no limite do supérfluo, e que podem ter estado na lógica construtiva do filme.

Mas apesar de firmar tantos elos “to-pológicos” e “topográficos” com Portugal, o filme é quase todo falado em inglês. Quase, pois para além do português se introme-ter com nomes típicos e expressões idio-máticas intraduzíveis24, há inclusivamente uma fala inteiramente lusófona, que não está no guião e aparece camuflada na so-noplastia de fundo. Dá -se na primeira apa-rição do Inspector Heat (Marcello Urgeghe) em que durante uma detenção percebe--se “– Então o nosso menino? Fez -se difí-cil? Levem -no...”. Aparecer dissimulada é mordaz, pois apesar de “sublimada” é ao mesmo tempo o momento de maior “efeito de verdade” da ficção -histórica levando a crer que a premeditação simbólica des-ta gestão de idiomas está para lá da mera acessibilidade linguística. Quem se aperce-be da oralidade deste momento cria mais uma camada de duplicidade na represen-tação teatral. Agora é como se as persona-gens optassem por falar inglês (de encontro ao público e de encontro à História) dando a ver a disjunção entre a persona do papel e o actor que a desempenha25. Deliberadamente ou não, esta sujeição à anglofonia reforça, assim, uma importância suplementar nes-te território de adaptabilidade. É, claro, a língua (literária) de Conrad (de ascendên-cia polaca e nacionalizado inglês no refúgio das invasões russas), de Douglas e do “pú-blico internacional”. Mas é também a língua

franca do consumo e do “capitalismo globa-lizado”, forma de poder que esta ficção pers-cruta e cuja pressão foi decisiva no rescaldo de mudanças revolucionárias como as que o filme acompanha. Com início na embaixada dos EUA, sita no Palácio Foz (no filme, claro), o enredo vai tecendo ficção, história e reali-dade, embalando o espectador em roteiros deambulantes, tanto pela situação perfor-mativa que assume na instalação, quanto pela nebulosidade do pedaço da História re-cente que invoca.

Ao entrar na instalação, damos por nós num cinema -outro, já longe do cinematógra-fo que tanto convoca revendo criticamente a história e a carga ideológica da experiência cinemática a partir da esfera museológica das artes visuais26. Cada cena é desmultipli-cada no espaço expositivo com a acção a de-correr simultaneamente em vários ecrãs. A mesma função espaço -tempo -movimento é sincronizada num primoroso entrosamento visual e sonoro de travellings e cross -cuttings entre projecções, distendendo toda a noção de lugar dentro e fora da filmagem. Um exem-plo é o momento entre Ossipon e Winnie, já no final, em que dois planos contínuos ro-dam com direcções opostas em torno dos dois actores, cada translação em seu ecrã, frente -a -frente, com as vozes das persona-gens uma de cada lado e a música a soar ao longo da sala. O espectador é surpreendido no meio de dois ângulos de filmagem que se cruzam sobre o mesmo diálogo sem que ne-nhuma câmara capte a outra.

Todo este desdobramento espacial im-plica que a tradicional posição, “o mais cen-tral possível”, não seja preferencial para enfrentar as superfícies luminosas do es-pectáculo. A postura do público corpori-za os sintomas desta revisão do medium,

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não se encara os ecrãs, dá -se -lhes o flan-co, pois o corpo tem de voltar -se ao ou-vir o som repentino que vem de um ecrã, escapando -lhe o que ocorre naquele a que virou costas. Opta -se pelas extremidades da sala para cobrir tudo mais sinoptica-mente, mas isso dificulta o visionamento das projecções mais afastadas obrigando a percorrer o espaço. Neste dispositivo multi--screen, o acompanhamento do plot é as-sim construído na omnisciência hipotéti-ca de uma profusão de pontos de vista em que “Por um lado, a possibilidade de (…) co-nhecimento panótico (…) sugere um poder acrescentado (…) por outro, uma sensação de perda constante.” 27 É justamente esta falsa omnipotência, ultra voyeurística, que quebra no espectador a tradicional ilusão de controlo sobre o objecto fílmico alimentada pela posição mais estática e central de um auditório convencional. Mas como no me-lhor Hitchcock, a instabilização (fisiológica) do observador compatibiliza -se emocional-mente com os impasses do argumento. Essa intriga é por sua vez inspirada num momen-to histórico de interregno que coloca tam-bém ele impasses interpretativos à História, deixando -a num interregno constante. Esta percepção em suspenso mas sem suspense, cimenta esta cadeia significante do senti-mento de interregno internamente ao drama.

Como toda a sinestesia, o cinemático nasce sempre de uma economia sensorial em que ganhos implicam perdas, mas aqui isso consciencializa -se mais em acto, numa situação que acciona o corpo do especta-dor a partir do corpo do dispositivo, isto é, da plasticidade tridimensional e escultóri-ca28 da matéria que faz a imagem. Quando duas personagens dialogam numa interlocu-ção frente -a -frente em ecrãs opostos, cada

um no seu plano contínuo (que se move nas exactas inclinações do olhar de um sobre o outro) o observador tem de escolher per-sonificar ora um ora outro, voltando sem-pre a um interregno. Ora, escolher já é agir e é nas decisões e indecisões dessa acção, consciente mas ao mesmo tempo tão con-dicionada pelo dispositivo que as guia, que está talvez o factor político mais relevante de The Secret Agent. É ele que aumenta e é aumentado pelas camadas mais discursivas da temática politizada. De resto, parece ser esta a lógica da política da obra de arte que a ética de Douglas sempre destaca e é talvez neste nível – da experiência estética – que deveria iniciar -se sempre a infindável quere-la, de tantos e apaixonados desacordos, so-bre arte, estética e política. Politicamente, toda esta inquietação sinestésica esca-va no próprio espectador como interregnum um “sétimo canal”, continuum com a vivên-cia e mundividência do quotidiano, plena de fragmentação, polifonia, descontrolo, tran-sitoriedade, perda, falha. Instiga eventual-mente no observador uma consciencializa-ção da ubiquidade do Espectáculo (Debord) no dia -a -dia da sociedade, cuja multiplicida-de mediática ele não controla e que o con-trola a ele, através de um excesso de ima-gens que ameaça uma “ausência total de margens por óbvia impotência representa-cional” e crítica do sujeito, que se torna um perpétuo espectador29. É neste sentido que The Secret Agent carrega simbolicamente outros encadeamentos históricos da pós--modernidade – preocupações culturais fre-quentes do trabalho de Douglas e centrais para a temática do filme - como o início de uma era de sistemas de vigilância global, para o qual os novos media – aqui em revi-são crítica – contribuíram grandemente.

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No entanto, quando imersos nestes seis canais de vídeo, não somos sujeitos a um “bombardeamento” de imagens como pe-rante Glimpses of the U.S.A. do casal Eams, um primórdio do expanded cinema com 7 ecrãs ainda todos justapostos num mesmo plano30. O descontrolo em The Secret Agent também não se assemelha ao que ainda sen-timos – se a tal já não formos imunes – quan-do soterrados por ecrãs nesta era avançada da informação cibernética. Nesses casos, há um frenesim sinestésico tendente para um puro sensacionismo, aqui, “...de possuir um suposto poder de controlo perceptivo (...) [o espectador] pass[a] a ser um agente que ac-tualiza na contingência dos seus movimen-tos uma possibilidade para a realização do próprio filme.” 31 O corpo deriva com a câma-ra mas sempre hipnotizado pela organização pausada de uma história.

Espectadores em Off.Não seria de todo a primeira instalação ci-nemática de Douglas a salientar a performa-tividade da percepção no espaço expositivo e a impor a gestão da perda como um “ga-nho” crítico. Tal já estava em Hors -Champs (1993) onde um único ecrã suspenso é pro-jectado em ambas as faces com imagens di-ferentes de uma mesma banda de Free Jazz (temática musical recorrente) a orquestrar temas emblemáticos seleccionados pelo choque simbólico face a factores étnicos, políticos e sociais dos músicos em causa. As duas vídeo-projecções estabelecem uma in-terlocução costas -com -costas, algo inversa ao frente -a -frente de The Secret Agent, mas que também implica o movimento do pú-blico “em contra-tempo” e o objecto fílmi-co como uma síntese corpórea de ocultação e desvelamento.

De facto, o autor tem proposto qua-se sempre interregnos como condição para o espectador e isso está desde logo subja-cente à narrativa recombinatória32 que tan-tos dos seus projectos geram. Nessas peças (que podem ir de foto e vídeo -instalações a apps móveis33), a imensidão de versões que os seus mecanismos engendram, juntamen-te com a longuíssima distensão temporal em que resultam, implicam em certa medi-da um espectador perpetuamente em falta, que não poderá abarcar ou sequer aceder ao objecto na íntegra, uma vez que a delimi-tação integral dessa unidade que é a obra, os limites dessa suposta integridade finita e total, se dissipam por fluxos descontinu-ados. Tal está presente nos “improvisos al-gorítmicos” de Luanda -Kinshasa tal como nas oito variações musicais de The Secret Agent34 em que a mesma narrativa é conta-giada por diferentes variações musicais que vão circulando pelos ciclos do loop e inter-rogando imediatamente a duração da peça: 52min? 8x52min? Essa dinâmica faz com que hajam inclusivamente blocos de imagem que se obliteram consoante a versão. Como na 6º cena, em que numa das projecções dois músicos tocam no palco do Clube Recreativo dos Anjos a música que acompanha o que se passa no ecrã em frente – “do outro lado do bar” – onde decorre a segunda conversa en-tre Ossipon e O Professor. O diálogo é sem-pre o mesmo mas a projecção com os mú-sicos muda consoante o loop, sujeitando a cena a diferentes ambiências musicais que lhe alteram o tom dramático. Quem assistir somente a uma formulação perderá as ou-tras, acedendo apenas aquela que lhe caiu em sorte, por puro acaso da vida.

Se na dilatação temporal de 24 hours Psyco (1993) de Douglas Gordon35 se afirma

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uma continuidade da ficção que pode ser acompanhada em dias descontínuos – tal como em The Clock (2010) de Christian Marclay, em que se combinava encontro com a obra à hora marcada (pois o cronógrafo da reprodução coincidia com os relógios da imagem em acordo com os nossos) – a va-riável de aleatoriedade em muitas das nar-rativas recombinatórias de Douglas faz com que o seu seguimento seja imponderável. No entanto, é preciso convir que, para todos os efeitos, as recombinações variam em bali-zas temporais pré -estabelecidas ainda que indeterminadas ou potencialmente infinitas. Naturalmente que é na linearidade do tem-po sucessivo da vida que engendram a des-continuidade do seu fluxo e é face a ela que a sua elasticidade joga a sua significância po-ética36. É justamente essa afirmação da im-parável continuidade do tempo prático que é importante, pois questiona o museu como laboratório de espaço e tempo próprio, se-parado, alienado, desmistificando a sua con-tingência na vida. O espectador poderia, em hipótese, assistir ao que foi “roubado”, bas-taria despender o “tempo-real” necessário – 6h, 9h, 157h no caso de Journey into Fear (2001)37 – para cumprir a “totalidade” do ob-jecto, subvertendo -o, pois nenhuma das ver-sões é a principal e todas contribuem para anular a ideia pré -concebida de um senti-do único para a obra de arte. O compromis-so do espectador é extravasado num limite impraticável, cujo cúmulo são as variações infinitas e a consequente duração eterna de Suspiria (2005).

Assim, nas narrativas recombinatórias o espectador está ciente de que é muito im-provável ou impossível assistir ao “espec-táculo” na sua totalidade, pois ele prevê e conserva no próprio fruidor o tempo da sua

ausência, um negativo, o off da assistência. É na contemplação deste off – significante – que as peças de Douglas atingem plenitude. Saber que não se saberá – que haverá irre-mediavelmente uma parte incógnita, ignota – predispõe a fruição, afectando a busca de um sentido para o curso da narrativa e a cons-trução de significação para a obra de arte. O sentimento deste jogo de perdas é um es-tado estético e uma experiência crítica, um processo de negatividade que o espectador pode identificar com a vivência quotidiana, também ela regida por essa constante va-riação entre pólos on de tomada de conheci-mento e pólos off de tudo o que nos escapa, o desconhecido que presumimos ser a maior parte do composto da existência. Imergindo o fruidor na consciência desta flutuação, os dispositivos de Stan Douglas promovem, eventualmente, uma subjectivação impul-sionada pela constatação das falências e constrangimentos que o atingem enquanto espectador – uma emancipação por via ne-gativa, um positivo.

Concluíndo a obra de Stan Douglas per-mite então formular uma noção lacunar para o estatuto de espectador. Abuso uma úl-tima vez da amplitude simbólica do título desta exposição para alvitrar que os seus dispositivos situam o espectador num in-terregno entre os modelos desenvolvidos por Rancière em O Espectador Emancipado, num entroncamento intermitente entre pos-turas passivas e activas; assistir e agir; es-tar sujeito, expectante, inconscientemen-te refém, ou ser um sujeito, subjectivado, e agente realizador do espectáculo. As suas peças convidam -nos a todos (autor incluí- do) a constatar algo profundamente elemen-tar, mas que sempre se esquece: que não se controla nem circunscreve a abertura que

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as imagens (e especialmente as da arte) fa-zem deflagrar. Em crise, o espectador vê ser -lhe subtraída a ilusória supremacia do seu estatuto - tão vendida e inflacionada hoje em dia – pois revela -se -lhe esse mal--entendido seminal que aponta o terreno simbólico da linguagem como algo finito, dis-creto e alvo de uma possível posse especia-lizada e hierarquizada. Desapossado, (termo de Rancière no mesmo texto38) constata com isso algo que também é tão óbvio quanto ho-meostaticamente esquecido para tolerar a vivência quotidiana: que participa de uma transitoriedade que a ele próprio lhe escapa.

Para se emancipar, talvez o espectador tenha primeiro de deixar de sê -lo. Talvez fa-lhando como espectador dê lugar, eventual-mente, a um sujeito crítico39. Em arte, esse sujeito desaliena -se, paradoxalmente, par-ticipando de um fingimento poético, que em Stan Douglas assume a espectacularida-de dos novos media numa hipérbole de fic-ção. Por vezes é necessária a melhor farsa para desmontar ilusões, a mentira mais so-fisticada para o maior “realismo”, o espectá-culo mais potente para sensibilizar falsida-des. Douglas cria na mnemónica do passado uma máscara de verosimilhança que for-mula o paradoxo de um não -acontecido que é também ele histórico, porquanto denun-cia os arquétipos desejantes de um outrora que nos devolve – como fantasma – o ver-dadeiro espírito de muito do que configura a actualidade. É na sua parte inverídica, no seu resto de inverosimilhança, que as suas apuradíssimas representações do passa-do transpiram o seu realismo. Seja um re-pórter fictício a contemporizar a cultura do disco sound com as expectativas da liber-tação de Angola (Disco Angola); a ocorrên-cia nos anos 70 de um universalismo musical

com um hibridismo estilístico que nunca se consumou (Luanda -Kinshasa); um atenta-do terrorista a uma torre de comunicações transatlânticas em Sesimbra secretamente encomendado pela embaixada dos EUA nas vésperas das primeiras eleições democráti-cas em Portugal (The Secret Agent), tratam--se todos de não -acontecimentos históricos, imagens de não -factos com que Douglas faz aparecer no evento presente da arte um “po-deria ter sido” 40 – da contemporaneidade.·

2. Stan Douglas, Luanda-Kinshasa, Still de vídeo. © Artista e Galeria David Zwirner (Nova Iorque).Stan Douglas: Interregnum / Daniel Peres11/15 /

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NOTAS:

1. O director artístico do Museu Berardo assina também o ensaio que dá título ao catálogo (Pedro LAPA, História e Interregnum: Três obras de Stan Douglas, Fundação de Arte Moderna e Contemporânea, Museu Coleção Berardo, Lisboa / trad. inglesa: Archive Books, Berlim, 2015) que contém o guião inédito do filme The Secret Agent. Na linha de The Clock de Christian Marclay e O Olhar do Colecionador, Interregnum ocupa uma grande fracção do piso -1 subtraída à segunda parte da exposição permanente. Verifica -se assim um padrão recente que vocaciona a traseira dessa enorme galeria para projectos temporários. A exposição contou com o apoio das galerias David Zwirner, Nova Iorque e Victoria Miró, Londres e esteve em simultâneo no WIELS de Bruxelas (09.10.2015 – 10.01.2016) com curadoria de Dirk Snauwaert.

2. “Long story short...” temo -la bem presente: A inauguração ocorrera poucas horas antes da indigitação do Primeiro Ministro que empossaria o já pré -anunciado governo mais fugaz da democracia portuguesa (poucos dias após o desencarceramento de um ex--Primeiro Ministro). Decorria o interregno de 51 dias até o Presidente da República se decidir a indigitar o líder da oposição com um acordo parlamentar.

3. Past Imperfect foi justamente o título da retrospectiva na Staatsgalerie de Estugarda. Chamo desde já a atenção para a perspicácia dos títulos que escolhe. Interregnum, não foge à regra.

4. Pedro LAPA, Op. Cit, p.16, explanando, com Rancière, que dada a “«impossibilidade de uma racionalidade histórica»”, “«fingir não é fabricar ilusões mas elaborar estruturas inteligíveis»” pois “«O real deve ser ficcionado para ser pensado»” advertindo “...para (...) não (…) afirmar que tudo é ficção.”. Pedro LAPA, Idem, citando Jaques RANCIÈRE, Estética e política. A partilha do sensível, Dafne, Lisboa, 2010.

5. Ideia seguida por outro título de exposição, Stan Douglas: Mis en scène , Haus der Kunst, Munique (20.06 – 12.10.14); Irish Museum of Modern Art (05.06 – 20.09.2015), Dublin, onde se apresentaram Luanda -Kinshasa e Disco Angola que figuram em Interregnum.

6. “Por vezes uma mentira é a melhor maneira de contar uma verdade.” (tradução livre).

7. Esta “Conversa entre Stan Douglas, Pedro Lapa e Sérgio Mah.” encetou esse ciclo. Não por acaso, as exposições de Stan Douglas têm promovido estas extensões, acentuando o pendor conceptual e curatorial da sua arte que permite sempre renovar o debate sobre o lugar do discurso e da teoria na arte contemporânea.

8. LAPA, Op. Cit, p.16.

9. Anamnesis remonta ao “conhece -te a ti mesmo” de Sócrates e às suas crenças no conhecimento gnosiológico como uma busca interior na imortalidade da alma que reaprende as formas imutáveis esquecidas de encarnações passadas. Foi adoptado, clinicamente (em todos os sentidos) pela psicanálise.

10. Pedro LAPA, Op. Cit, p.18.

11. É um decalque cenográfico em que não faltam técnicos de som, electricistas, jornalistas e groupies que, tal como os músicos, podem

confundir em si o verídico e o fictício. Douglas revelou que alguns figurantes, como o fotógrafo ou a anotadora, são profissionais contratados que de facto estão a realizar as tarefas técnicas que desempenham na mise -en -scène.

12. Há muita digestão critica deste conceito estético a partir de Freud. Cf. Sigmund FREUD, The Uncanny [Das Unheimliche], 1919 in http://web.mit.edu/allanmc/www/freud1.pdf [consultado a 28 de Janeiro de 2016]. Refira -se a título de nota a formulação ontológica de Unheimlichkeit em M. Heidegger.

13. Questionando já em muito o género do “filme -documentário”, a câmara de Godard vagueava pelos impasses da composição de Sympathy for the Devil, intercalando -os com imagens da “contra--cultura” dos anos 60. Como observou Sérgio Mah, na supracitada conferência, transmitia -nos a deriva por um processo criativo gaguejante, uma descontinuidade que culminaria na harmonia contínua do tema gravado. Douglas dá -nos o inverso, a fluidez original do improviso é fragmentada para depois montar uma continuidade fictícia, aparentemente sem “dores de parto”. Muitas houveram, certamente, não na performance musical, mas no intrincado planeamento de rodagem e da edição.

14. Douglas revela que, durante a produção, chamou -se Luanda ao mais ondulante e Kinshasa ao mais rocky.

15. Como talvez o poriam Baudrillard ou Eco.

16. O termo é aplicado ao Atlas Mnemosine de Aby Warburg, método dialéctico que justapunha em painéis fotos de obras de arte, rituais e objectos de culto de culturas díspares e de diferentes eras. Influenciou investigações da história da arte como a “Antropologia da Imagem” (Bild -Anthropologie) de Hans Belting.

17. Do texto de parede e folha de sala.

18. Apelo à exegese do termo dada por Martin Jay no seu Downcast Eyes: The Denigration of Vision in Twentieth -Century French Thought, University of California Press, 1994.

19. Pedro LAPA, Op. Cit, p.15. onde relembra ainda que Hall Foster denota este vector como tendência artística em “An Archival Impulse” in October 110, Fall 2004. Refira -se também a célebre problematização do conceito de “indexação” em fotografia por parte de Rosalind Krauss. Cf. Rosalind KRAUSS, Le photographic. Pour une Théorie des Ecarts, Edition Macula, Paris, 1990.

20. Como Lapa informa no catálogo, as cenas distribuem -se pelos três pares de ecrãs segundo um esquema: instituições, espaço público e espaço privado. Uma panorâmica aérea sobre Lisboa e as cenas de interior do cinema, aparecem nos três níveis como lugares de mistura e confluência. Na já referida conferência, o artista permitiu que o público a fosse adivinhando, acabando por dizer que são estratagemas que elabora para trabalhar e cuja “descodificação” não considera imperativa.

21. Pedro LAPA, Op. Cit, p.30.

22. Por exemplo Verloc, personagem principal, que no romance tem Adolf como nome próprio e que adopta o de outra personagem, Alexander Ossipon. Este french camrade em Conrad, passa a chamar--se Thomas Ossipon [Filipe Vargas], actualizado a distribuidor

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de propaganda maoista e embeiçado por Winnie [Beatriz Batarda], esposa de Verloc. Com este preciosismo (mais um entre a acumulação tão obsessiva quanto elegante de detalhes que conduz todas estas peças), talvez se pretenda induzir uma mistura de caracteres.

23. A este propósito, leia -se os perfis no guião que acentuam a familiaridade que Douglas estabeleceu com o contexto português do final do Estado Novo e o seu quadro internacional.

24. Como em “WINNIE: – There’s Cozido on the stove.” ou “AGENTE [Carloto Cotta]: Eh leca!..[parte omissa no guião] This just got interesting...”, resultando num efeito quase cómico.

25. O que se intensifica ao serem caras tão conhecidas como Miguel Guilherme (O Professor), Albano Jerónimo (Secretário de Estado da Justiça), Gonçalo Waddington (Subcomissário [COPCON]) e restantes.

26. Movimento com um alcance plástico que Krauss talvez definisse como post -medium (Cf. Rosalind KRAUSS, A voyage in the North Sea – Art in the age of post -medium condition, Thames & Hudson, Londres, 1999), onde se abordam os abusos de alguma crítica modernista (a greenberguiana em particular) na identificação da noção de medium com um essencialismo excessivo face a géneros e disciplinas cuja superação passou por novos hibridismos na segunda metade do século XX.

27. Pedro LAPA, Op. Cit, p.37.

28. Termo que Douglas usa para definir o carácter instalativo do cinemático. Cf. Pedro LAPA, Op. Cit, p.43.

29. Cf. Fernando José PEREIRA, “Arte e espacialidade internalizada” in Revista de Comunicação e Linguagem, nº34, Lisboa, 2005, p.168. No catálogo, Lapa também aponta esta ideia de impotência em Agamben que a induz numa estreita relação com a Sociedade do Espectáculo (1967) de Guy Debord chegando a dizer (com o radicalismo do costume) que “...o espectáculo (…) é a própria comunicatividade ou o ser linguístico do homem(…). (…) o capitalismo (ou qualquer outro nome que se queira dar ao processo que domina hoje a história mundial) (...) [caminha] para a alienação da própria linguagem (…) do logos (…) [que] identifica o Comum. A forma extrema desta alienação é o espectáculo, isto é, a política em que vivemos.”, in Giorgio AGAMBEN, A comunidade que Vem (2003), citado por PEREIRA, Ibidem, p.167.)

30. “Em 1959, Charles e Ray Eams (…) realizaram [na American National Exhibition, Moscovo] Glimpses of the U.S.A. (…) uma projeção sincronizada de sete ecrãs de 9x6m, suspensos de uma cúpula geodésica de Buckminster Fuller (…) [apresentando] milhares de imagens de arquivo (...) para convencer o público soviético das vantagens do capitalismo. Em plena guerra fria (…) o lançamento do Sputnik, em 1957, constituía o recalcado latente desta operação...”. Cf. Pedro LAPA, Op. Cit., pp.38 -41. Surge como referência para The Secret Agent, não apenas enquanto antepassado tecnológico mas pelas ligações temáticas que permite explorar. Para “expanded cinema”, Cf. Gene YOUNGBLOOD, Expanded Cinema, P. Dutton & Co., Inc., Nova Iorque,1970 in http://www.vasulka.org/Kitchen/PDF_ExpandedCinema/book.pdf [consultado a 28 de Janeiro de 2016].

31. Pedro LAPA, Op. Cit, p.37

32. Traduzo recombinant narrative, termo cunhado pelo artista para definir a orgânica destas obras.

33. Como o recente Circa 1948 em que as imensas multiplicidades da narrativa vão sendo construídas no interior de um ambiente interactivo de 3D virtual que retrata Vancouver no pós -II Guerra Mundial.

34. “...variações autónomas de “Clear Spot”[1972] de Captain Beefheart and The Magic Band...”(LAPA, Ibid., p.39), a cargo da guitarra de Paulo Furtado (The Legendary Tigerman) e das teclas de Filipe Costa.

35. Cuja obra left is right and right is wrong and left is wrong and right is right foi apresentada com Win, Place or Show de Stan Douglas em “Stan Douglas and Douglas Gordon: Double Vision”, 1/02/1999 – 02/04/2000, Dia Art Foundation, Chelsea, Nova Iorque.

36. Não será abusivo pressentir um eco pós -moderno do conceito de Vanitas, uma resistência à passagem do tempo pela descontinuação e dilatação elástica da narrativa, uma espécie de rebelião contra um “ser para a morte” (Heidegger) ao mesmo tempo que se sublinha a sua evidência.

37. Onde - inversamente a The Secret Agent - a dobragem é fundamental para a elasticidade narrativa. O Museu Coleção Berardo apresentou uma versão brasileira na mostra permanente durante largos meses.

38. Jaques RANCIÈRE, O Espectador Emancipado, Orfeu Negro, Lisboa, 2010, p.11.

39. A título de adenda, lembre -se que “crise” e “crítica” partilham a mesma raiz grega, krisis, que aponta para “seleccionar”, “separar”, “dividir”, Cf. http://www.etymonline.com/index.php?allowed_in_frame=0&search=krisis [consultado a 28 de Janeiro de 2016].

40. Pedro LAPA, Op. Cit, p.22.

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3. Stan Douglas, A Luta Continua, 1974, da série Disco Angola, 2012, fotografia (C-print digital), montada em alumínio dibond © Artista e Galeria David Zwirner (Nova Iorque).

4. Stan Douglas, Two Friends, 1975, da série Disco Angola, 2012, fotografia (C-print digital), montada em alumínio dibond © Artista e Galeria David Zwirner (Nova Iorque).

5. Stan Douglas, The Secret Agent, 2015. Still de vídeo © Artista, Galeria David Zwirner (Nova Iorque) e Galeria Victoria Miro (Londres).

6. Stan Douglas, The Secret Agent, 2015. Still de vídeo © Artista, Galeria David Zwirner (Nova Iorque) e Galeria Victoria Miro (Londres).

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