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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
ALBERTO CAETANO PORTUGAL
As Contradições do Pós-Fordismo: A Insustentável Leveza do
Trabalho Imaterial na Produção de Software
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
SÃO PAULO
2017
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
ALBERTO CAETANO PORTUGAL
As Contradições do Pós-Fordismo: A Insustentável Leveza do
Trabalho Imaterial na Produção de Software
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora do Programa de Pós-Graduação
em Ciência Sociais da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência parcial
para a obtenção do título de Mestre em Ciência
Sociais, sob a orientação da Profa. Dra.
Rosemary Segurado.
SÃO PAULO
2017
BANCA EXAMINADORA:
DEDICATÓRIA
A todos os trabalhadores imateriais, especialmente os professores, que
cumprem um papel fundamental na construção de uma sociedade mais livre,
esclarecida, igualitária, democrática, inclusiva, e que apesar disso, notadamente
em nosso país, seguem recebendo um tratamento muito aquém de sua
importância.
Agradeço a todos que fizeram parte
do processo de outorga da Bolsa CAPES
na modalidade taxa, sem a qual esse
mestrado seria inexequível.
AGRADECIMENTO
A todos aqueles que participaram dessa pesquisa, que muito
gentilmente doaram uma parcela de seu precioso tempo para a realização das
entrevistas, evangelizadores, agile coaches e desenvolvedores. À Katia e ao
Rafael da Secretária de Pós-Graduação das Ciências Sociais, bem como aos
funcionários da biblioteca, todos sempre muito solícitos. Especialmente aos
membros da banca examinadora, Prof. Dr. Rafael Araújo e Prof. Dr. Sérgio
Amadeu que colaboraram de forma decisiva para que essa pesquisa ganhasse
um contorno final. Sobretudo, Profa. Dra. Rosemary Segurado, minha
orientadora, que com carinho e maestria soube dar direção às minhas aflições
diante das incontáveis frustrações, ansiedades, dúvidas e intuições, ao longo da
jornada do mestrado.
“Informam-nos que as empresas têm uma
alma, o que é efetivamente a notícia mais
terrificante do mundo. ”
(Gilles Deleuze)
RESUMO
Partindo de um olhar retrospectivo da reestruturação produtiva que marca a
passagem do fordismo ao Pós-Fordismo, da sociedade disciplinar para uma
sociedade de controle, essa pesquisa busca um aprofundamento dessa passagem
pelos estudos de Michel Foucault, e também por Hardt e Negri que situaram esse
momento como uma consolidação das empresas transnacionais. Para compreender
a produção e captura de conhecimento no contexto da sociedade de controle
neoliberal utilizamos a noção de noopolítica de Maurizio Lazzarato. O conceito de
trabalho imaterial que fundamenta a pesquisa foi inspirado nas noções de Hardt e
Negri nas quais ressaltam a mudança de perfil do trabalhador com ênfase nas
habilidades cognitivas, afetivas e comunicativas. Procura salientar a importância que
a produção de software possui na configuração do capitalismo atual, além de servir
de estudo de caso para compreender os processos de trabalho mais recentes. Para
entender de que forma tais processos se articulam com a sociedade de controle, e
com a ideologia gerencialista já presente nas empresas, possibilitando a criação de
subjetividades muito específicas, analisamos o movimento ágil no Brasil, que traz por
intermédio de suas práticas e valores uma nova forma de gestão e produção de
software. Busca, entre outros aspectos, compreender como se dá adesão de
indivíduos à valores, crenças e afetos neoliberais, tornando-se mais suscetíveis a
sociedade de controle. A pesquisa de cunho qualitativo utiliza a entrevista como
ferramenta para registrar a percepção de profissionais designados como
evangelizadores, que ocupam posição de destaque no movimento ágil.
Palavras-chave: Pós-Fordismo, trabalho imaterial, subjetividade, sociedade de
controle, ideologia gerencialista, neoliberalismo.
ABSTRACT
Starting from a retrospective look at the productive restructuring that marks the
transition from Fordism to Post-Fordism, from disciplinary society to a control society,
this research seeks to deepen this passage through the studies of Michel Foucault,
and also by Hardt and Negri, who placed this Momentum as a consolidation of
transnational corporations. In order to understand the production and capture of
knowledge in the context of the neoliberal control society, we use the notion of no-
politics by Maurizio Lazzarato. The concept of immaterial work that underlies the
research was inspired by the notions of Hardt and Negri in which they emphasize the
change of the profile of the worker with emphasis on the cognitive, affective and
communicative abilities. It tries to emphasize the importance that the production of
software has in the configuration of current capitalism, besides serving as a case study
to understand the latest work processes. In order to understand how these processes
are articulated with the control society, and with the managerialist ideology already
present in the companies, making possible the creation of very specific subjectivities,
we analyze the agile movement in Brazil, which brings through its practices and values
a New way of managing and producing software. It seeks, among other aspects, to
understand how individuals give themselves to the values, beliefs and neoliberal
affections, becoming more susceptible to the control society. Qualitative research uses
the interview as a tool to register the perception of professionals designated as
evangelizers, who occupy a prominent position in the agile movement.
Keywords: Post-Fordism, immaterial labor, subjectivity, control society, managerialist
ideology, neoliberalism.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Método Waterfall............................................................................. 90
Figura 2 - Scrum Framework ........................................................................ 113
Figura 3 - Quadro Kanban ............................................................................ 116
Figura 4 - Reunião Diária .............................................................................. 117
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Comparação entre Paradigmas de Métodos .................................. 92
SUMÁRIO
Introdução ....................................................................................................... 13
1.1 Exploração em moto continuo .................................................................. 27
1.2 Fordismo ................................................................................................... 33
1.3 Keynesianismo ......................................................................................... 36
1.4 Pós-Fordismo ........................................................................................... 42
2.1 Da sociedade disciplinar à sociedade de controle .................................... 55
2.2 Sociedade de controle .............................................................................. 61
2.3 Trabalho imaterial ..................................................................................... 69
2.4 O homo credor e a vida como dívida ........................................................ 74
3.1 Introdução aos métodos ágeis e contexto histórico .................................. 85
3.2 Análise do manifesto e princípios ágeis .................................................... 95
3.3 Principais métodos ágeis ........................................................................ 111
3.3.1 Scrum .................................................................................................. 112
3.3.2 Extreme Programming (XP) ................................................................. 118
3.3.3 Lean ..................................................................................................... 122
3.3.4 Kanban ................................................................................................ 126
CAPÍTULO 1 - REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA ....................................... 27
CAPÍTULO 2 - SOCIEDADE DE CONTROLE ............................................... 55
CAPÍTULO 3 - MOVIMENTO ÁGIL ................................................................ 85
4.1 Planejamento e execução das entrevistas .............................................. 131
4.2 Trajetória dos métodos ágeis no Brasil ................................................... 134
4.3 Análise do impacto de algumas práticas ágeis ....................................... 144
4.3.1 Time-box .............................................................................................. 144
4.3.2 Auto-organização ................................................................................. 147
4.3.3 Gestão visual ....................................................................................... 162
4.3.4 Especialista em métodos ágeis............................................................ 172
4.3.5 Melhoria contínua ................................................................................ 178
4.3.6 Liberdade e autonomia ........................................................................ 192
4.4 Análise da adesão das empresas aos métodos ágeis ............................ 209
Considerações Finais ................................................................................... 221
Referências ................................................................................................... 229
Anexos .......................................................................................................... 233
CAPÍTULO 4 - EVANGELIZADORES .......................................................... 131
13
Introdução
Visão geral sobre o contexto da pesquisa a partir do debate sobre o trabalho
imaterial, sociedade do controle e ideologia gerencialista. A importância da indústria do
software como principal representante da nova economia. Definição do objeto, objetivo e
do recorte espaço-temporal da pesquisa. Motivação e justificativa da pesquisa. Breve
descrição dos capítulos.
Diversos autores sustentaram que o capitalismo na passagem do século XX
para o século XXI apresentou diversas mudanças no seu Modus Operandi,
questionando o paradigma da produção de valor baseado na indústria tradicional. Ao
longo da história do capitalismo muitas revoluções tecnológicas se sucederam, porém,
o desenvolvimento das tecnologias de informação e de comunicação no final do
século XX trouxeram mudanças profundas nos processos de trabalho, afetando a
cadeia de produção de valor e todos os atores envolvidos nesse processo. O horizonte
temporal no qual vivemos nos dias de hoje é marcado pelo curto prazo, e afeta
diretamente a capacidade de controlar o futuro.
Nessa pesquisa procuramos descrever as mudanças ocorridas no mundo do
trabalho, desde o final do século XIX, com a Gerência Científica do Trabalho proposta
por Taylor, passando pelo Fordismo e pela reestruturação produtiva que tem seu início
na segunda metade do século XX, para configurar um período que pode ser entendido
como Pós-Fordista. Tais transformações implicam também na mudança de
sociedades disciplinares, bem caracterizada pelos estudos de Michel Foucault, para
sociedades de controle.
No afã de traduzir esse momento de passagem utilizaremos, sob vários
pontos de vista, o marco teórico da sociedade de controle. Hardt e Negri situaram essa
passagem como uma consolidação das empresas transnacionais. A partir dessa
mudança ocorre um recrudescimento da produção de subjetividades, a lógica das
instituições, antes baseadas no confinamento, expande-se para ocupar todo o espaço
social. O capitalismo cada vez mais se posicionará de forma privilegiada na
14
reprodução possibilitada pela velocidade proporcionada pelas tecnologias de
informação e comunicação, que representam dispositivos de controle que abrangem
todo o tecido social. Assistimos à passagem dos processos pesados, dos espaços
hegemonicamente rugosos, da burocracia asfixiante, para os processos leves que
adere bem a produção de desejos, afetos e conhecimento da sociedade pós-moderna.
Trata-se de uma realidade que se tece e se esfacela continuamente, caracterizada
por contradições e hibridismos. Uma tecnologia de poder que se apresenta como mais
uma camada sedimentar a se depositar sobre o solo árido das disciplinas e biopolíticas,
articula-se com elas produzindo dispositivos que modulam mentes, afetos e desejos.
Nas rachaduras da crise institucional nasce a sociedade de controle, o
marketing e a publicidade assumem nessa configuração uma posição de destaque,
pois trata-se aqui de criar mundos que operam uma influência que transbordam as
relações e capturam as subjetividades. Esse é o novo modelo de controle social que
Gilles Deleuze propõe em suas análises sobre o socius. A centralidade ocupada pelas
capacidades cognitivas e afetivas dos indivíduos se torna o objeto privilegiado da
extração da mais-valia. A produção de conhecimento e informação efetua-se na rede,
portanto os dispositivos de controle posicionam-se a partir das relações sociais para
capturar toda a produção coletiva com o propósito de privatizá-la.
Lazzarato (2006) cria o conceito de noopolítica para dar conta das novas
técnicas de controle que modulam desejos e crenças. O noopoder captura a cognição,
a memória e a atenção para explorá-las economicamente. A ideia do empreendedor
de si mesmo será produzida e reforçada por intervenções neoliberais, colocando
sobre as costas do trabalhador todos os riscos e fracassos que o mercado e o Estado
não querem mais assumir, contando para atingir esse objetivo com a anuência dos
próprios indivíduos. É o mercado que se incumbirá de criar mundos e de articular as
relações sociais dentro dos limites desses mundos de possibilidades, criação que
contará com a participação dos indivíduos, e também com o consumo e a produção,
cujas subjetividades serão meras engrenagens.
15
O conceito de trabalho imaterial que fundamenta essa pesquisa foi inspirado
na visão de Antônio Negri e Michel Hardt. Negri captura o momento mais agudo da
passagem do Fordismo para o Pós-Fordismo, dentro do contexto do movimento
operaísta italiano, observando a mudança requerida no perfil do trabalhador sob o
qual passa a pesar a responsabilidade por tomada de decisões, pela própria
qualificação, por reunir habilidades cognitivas, afetivas e comunicativas. Para Hardt e
Negri o trabalho imaterial torna-se hegemônico designa uma tendência, tornando as
fronteiras entre economia, política e social mais porosas, indistinguíveis, da mesma
forma que o tempo do trabalho e do não-trabalho. Destacam alguns elementos que
reforçam essa tese: o crescimento do setor de serviços; os setores mais ligados a
produção material que sofrem influência dos mecanismos de produção de informação,
comunicação e afetos; preocupação crescente com questões relacionadas à patentes
e direitos autorais, principalmente porque a produção imaterial acontece na rede de
forma cooperativa dificultando a apropriação.
O momento histórico, a atual fase do capitalismo é marcada pelo êxito do
neoliberalismo que impõe à sociedade um controle e uma intensificação do trabalho
sem precedentes, dessa investida exitosa surgem figuras subjetivas que são
construídas e mantidas com o propósito de reproduzir a servidão. Surge a figura do
homem endividado, que tem a sua vida pautada pela dívida para obter inserção social
desejada, e adquirir ou consumir os produtos e serviços essenciais a sua
sobrevivência. A culpa que advém da dívida solapa as forças criadoras subjetivas.
O sentido do trabalho transformou-se em um misto de liberdade e coerção,
armadilha que passa pelo empreendedorismo de si, que apesar de ter sido abalado
pelas crises do capital desde 2008, continuam em voga, articulado com a
subjetividade da dívida subjugam a todos ao risco e a incerteza com o consentimento
do subjugado. A sobrecarga de informação, a velocidade das mensagens cifradas,
repletos de vetores prontos para capturar a atenção forma um mecanismo privilegiado
de reprodução do controle em um contexto social no qual todas as interações são
16
tecnologicamente registradas e rastreadas.
Importante ressaltar como a produção de software se enquadra nessa
categoria como atividade que exige total envolvimento cognitivo, afetivo e
comunicacional. A produção de software hoje ocupa uma posição de destaque, pois
estará o tempo todo utilizando e produzindo algoritmos com os mais diversos
propósitos, centralidade que pode ser vista como o cerne da sociedade de controle.
Não é objeto dessa pesquisa um aprofundamento sobre a questão dos
algoritmos, mas devido a importância desse assunto por tratarmos da produção de
software a partir do contexto da sociedade de controle, cabem alguns esclarecimentos.
Algoritmos são rotinas construídas de acordo com uma lógica específica,
normalmente são introduzidas em uma máquina, que executará as instruções visando
solucionar um problema, expressa um padrão de comportamento, um procedimento
computacional que produz um conjunto de valores a partir de valores de entrada, pode
ser determinístico se depende apenas os dados de entrada, probabilístico se usa
dados aleatórios, e preditivo se usa dados do passado para tomar decisões futuras.
(Silveira, 2017)
Segundo Silveira (2017), no contexto da sociedade informacional emerge
uma nova dimensão do poder, o poder de análise que pode ser definido como
“capacidade de captar, organizar, armazenar, processar, projetar e analisar os dados
que podem ser gerados nas redes e dispositivos cibernéticos. O Big Data é uma
tecnologia que expressa o poder de análise na sociedade atual. ” (SILVEIRA, 2017, p.
40)
As grandes empresas digitais, representantes inequívocas do poder
econômico, justificam a opacidade dos algoritmos que constituem seus produtos e
serviços, usando três argumentos: a concorrência acirrada no meio digital, a
propriedade intelectual por se tratar de uma produção singular da empresa, e da
possibilidade constante de que os algoritmos sejam burlados. Por outro lado, uma
análise sociológica não deve “conceber os algoritmos como realizações técnicas
17
abstratas, mas deve desempacotar as escolhas humanas e institucionais quentes que
estão por trás desses mecanismos frios”. (GILLESPIE apud SILVEIRA, 2017, p. 51)
Silveira (2017) apresenta, a partir da pesquisa de Gillespie, seis dimensões
dos algoritmos de relevância pública e validade política, cito aqui de forma abreviada:
os algoritmos escolhem o que deve ser excluído e como os dados são produzidos;
tentam conhecer e predizer os usuários e desenhar conclusões a partir disso; definem
critérios que determinam o que é relevante, obscurecendo os critérios; apresenta-se
como algo objetivo e imparcial; os algoritmos se encaixam nas práticas cotidianas de
informação das pessoas, os usuários moldam suas ações em função do algoritmo e o
algoritmo se modifica conforme tais mudanças, há um ciclo recursivo entre cálculos
do algoritmo e os cálculos das pessoas; os código e algoritmos são obscuros para a
maioria, não para determinados especialistas e empresas; a apresentação algorítmica
dos públicos forma o sentido de si mesmo para esse público, e quem está melhor
posicionado para se beneficiar desse conhecimento.
O crescimento do setor de serviços que aponta para atividades “imateriais ou
cognitivas”, e a emergência da sociedade informacional a partir da centralidade que
adquiriu a informação, transformou a indústria de software no principal ramo da nova
economia. A produção de software tem se difundido em larga escala e adquire um
protagonismo tecnológico que excede a produção de hardware, pode ser adaptado,
configurado, possui uma plasticidade, como um éter se faz presente em todas as
atividades quotidianas, impulsiona outras áreas da economia e principalmente do
trabalho imaterial. O desenvolvimento de software se expandiu exponencialmente
dentro do contexto sociedade informacional, e, portanto, traz características próprias
dessa nova economia. Trata-se de uma atividade que está no cerne da sociedade da
informação e da sociedade do controle.
O propósito desta pesquisa é realizar um estudo de caso para compreender a
partir das propostas de processo de trabalho mais atuais utilizadas no
desenvolvimento de software, as dinâmicas do trabalho imaterial, como elas se
18
articulam com a sociedade de controle, e de que forma tais dinâmicas possibilitam a
produção de subjetividades específicas. A subjetividade será entendida nesse
trabalho como causa e efeito de instituições sociais em um dado contexto histórico.
Caracterizo o movimento ágil, lançado mundialmente em 2001, aportando no
Brasil em 2004, como um representante genuíno de um novo processo de produção
de software, trazendo valores, princípios e práticas, aderentes às ideias elaboradas
pelos teóricos do Pós-Fordismo, notadamente da sociedade de controle. As
contradições e promessas do processo de trabalho preconizado pelo movimento e
sua aderência com os conceitos de trabalho imaterial e noopolítica. Cabe também
expormos as vísceras desse processo a fim de conhecer suas raízes dentro de um
quadro teórico mais amplo da sociedade de controle, da sociedade informacional e do
neoliberalismo.
Pretende-se compreender como o movimento ágil, que pode ser entendido
como um novo processo empírico de produção de software, trazendo valores,
princípios e práticas que valorizam a incerteza e a adaptação, que preconiza uma
nova forma de trabalho, uma nova estrutura organizacional, uma mudança cultural
profunda da empresa, prezando por um ambiente mais democrático, por um ritmo de
trabalho sustentável, por autonomia e liberdade, se articula, notadamente em grandes
empresas, com a gestão gerencialista, entendida como uma ideologia prescritiva que
reproduz modos de viver e trabalhar, que busca por intermédio de um fundamento
racional maior eficácia e eficiência tanto da empresa quanto do indivíduo, e que visa
produzir formas de trabalho e subjetivação muito específicas. Tal articulação se
estabelece pelas próprias contradições do discurso gerencialista, e das mediações
que visam minimizar conflitos entre interesses organizacionais e individuais,
privilegiando os interesses organizacionais em detrimento dos interesses dos
indivíduos, dissimulando contradições sociais. Buscamos entender também que
apesar desse movimento preconizar uma maior humanização do processo de trabalho,
levaria pelo contrário a uma intensificação do mesmo.
19
Tal compreensão poderá elucidar de que forma se dá, a partir de um processo
de trabalho específico, a adesão dos indivíduos à valores, crenças e afetos neoliberais,
tornando as subjetividades suscetíveis a sociedade de controle, bem como as
resistências ou linhas de fuga possíveis, pois na visão dos autores acima
mencionados a subjetividade produzida nesse novo contexto possui uma potência
inventiva que permite resistir aos mecanismos de opressão, entrevendo uma outra
afirmação do desejo.
Buscamos construir esse entendimento a partir da percepção de profissionais
designados como evangelizadores, responsáveis por disseminar esse novo modelo
de trabalho, entendido por esses atores como a melhor forma de pensar e fazer
software, atuando a partir de comunidades que se articulam em torno de um novo
paradigma conhecido no mercado de tecnologia da informação como “processo ágil”,
largamente influenciado pelo espírito pós-fordista.
Implica também em desvendar o trabalho de profissionais que chamaremos
de “evangelizadores”, responsáveis por consolidar os processos ágeis no mercado
como uma forma mais apropriada de trabalho, promoveremos uma análise do seu
discurso, salientando seus apelos no sentido de constituir uma nova estrutura
organizacional e um novo perfil de liderança que sustentem os processos de trabalho
por eles preconizados. Estratégia de atuação que se baseia em rede, articulando
comunidades digitais e encontros presenciais, promovendo capacitações diversas,
lançando-se em jornadas empreendedoras, uma espécie de cruzada que visa “mudar
o mundo do trabalho”, não raramente utilizando uma abordagem que se pretende
revolucionária. Pretende-se aqui avaliar, entre outras questões, o quanto esse
discurso promove e reforça a ideia do indivíduo empreendedor de si e do capital
humano.
Os discursos de gestão e processos em geral acompanham as
transformações do capitalismo, e, portanto, das empresas também, difundido valores,
organizando o trabalho, promovendo engajamento, nos interessa aqui entender de
20
que forma esse discurso dos métodos ágeis tece uma teia que visa enredar todos os
atores desse processo em um novo modelo de trabalho, rejeitando um processo de
produção mais tradicional considerado burocrático e inadequado.
A escolha por uma pesquisa de cunho qualitativo relaciona-se com a própria
essência dessa abordagem eminentemente indutiva, que busca analisar os
comportamentos e pontos de vista dos atores sociais envolvidos na análise. A
abordagem qualitativa, utilizada nessa pesquisa, transita entre quatro escalas: na
escala macrossocial, das pertenças sociais e culturas; na escala mesossocial, das
organizações e instituições, das ações político-administrativas; a escala microssocial,
dos espaços e pequenos grupos; microindividual, do universo do indivíduo, da sua
subjetividade, seus afetos. Traz no seu bojo um repertório de técnicas que permitem
se adaptar às agruras da pesquisa de campo, aceitar a incerteza, assumir riscos.
Ferramenta adequada para ser aplicada como método de exploração de fenômenos
sociais emergentes, sua eficácia está em evidenciar a ambivalência das realidades
sociais. Busca-se compreender com essa abordagem a lógica social dos atores,
identificando eventualmente margens de manobra diante da coerção.
É uma prática de pesquisa que preza pelo improviso e pela flexibilidade, pois
explora a realidade sem hipóteses iniciais imponentes, partindo de um tema. O real é
opaco, os fatos serão analisados, explorados, não procura apreender toda realidade
social, mas a partir de um recorte, os pontos de vista se alternaram através das
escalas de observação. Leva em consideração as instâncias que estruturam a vida
social, seja a material, levando em consideração os espaços, os tempos, as injunções
da economia, seja das relações sociais esclarecendo relações de poder, de regulação,
de autonomia, de controle, de resistência, seja da imaginação, que confere sentido às
práticas quotidianas. As três instâncias se misturam e se articulam no real.
Empiricamente não se pode observá-las ao mesmo tempo, a partir de um recorte da
realidade. As três dimensões não podem ser esclarecidas mediante as mesmas
técnicas de coleta de informações. A técnica de coleta escolhida para essa pesquisa
21
foi a entrevista semiestruturada, depois de alguns transtornos e inquietações próprias
do trabalho de campo, que serão esclarecidas na seção de entrevistas do capítulo
quatro.
A entrevista é uma ferramenta que apreende as estratégias e as opiniões.
Optamos pela utilização da entrevista semiestruturada ou semidiretiva pela liberdade
que ela oferece ao entrevistado no desenvolvimento do seu discurso. É feita com base
em um documento formalizado, no nosso caso ele pode ser encontrado no apêndice
A. Trata-se de uma trama flexível de questões que se referem a problemática e
hipóteses. As perguntas são agrupadas em temas. A formulação das questões deve
convidar o entrevistado a expressar suas percepções e convicções, ser flexível o
suficiente para explorar questões que emergem.
A pesquisa de estudo de caso envolve o estudo de um caso dentro de um
ambiente ou contexto contemporâneo da vida real. Alguns a encaram como uma
escolha do que deve ser estudado, um caso dentro de um sistema delimitado pelo
tempo e espaço, outros como uma estratégia de investigação, optamos por encará-la
como metodologia: um tipo de projeto de pesquisa qualitativa que pode ser objeto de
estudo, como também um produto de investigação. A pesquisa de estudo de caso é
uma abordagem qualitativa na qual o investigador explora um sistema delimitado
contemporâneo da vida real, um caso, ou múltiplos sistemas delimitados ao longo do
tempo, por meio de coleta de dados detalhada em profundidade envolvendo múltiplas
fontes de informação, e relata uma descrição do caso e temas do caso. (CRESWELL,
2014)
A motivação para realização dessa pesquisa nasceu em parte de uma
necessidade de compreender a interação entre as pessoas e a produção de
subjetividades a partir das mudanças do processo de trabalho e das mudanças
tecnológicas, essas últimas sempre mais rápidas do que as primeiras. O pesquisador,
atuando há 35 anos na área de tecnologia da informação, notadamente na cidade de
São Paulo, elegeu-a como local para a realização do trabalho de campo em 2017.
22
Além da pesquisa de cunho qualitativo, ao longo do trabalho descreverei situações
pessoais vividas na área de tecnologia da informação fazendo bom uso da
familiaridade com o jargão da área, elucidando os conceitos mais técnicos sempre
que necessário.
Cabe salientar que o pesquisador atua, desde 2005, com métodos ágeis,
marcando presença na comunidade, eventos e fóruns de discussão, e disseminando
esse modelo de trabalho principalmente em grandes empresas, que sempre se
caracterizaram por uma baixa aderência ao novo modelo de trabalho. Tomado pelo
entusiasmo engajou-se em um movimento que prometia mudar o mundo do trabalho
do desenvolvimento de software para melhor, possibilitando a participação das
pessoas de uma forma mais efetiva, com plena autonomia, ritmo de trabalho mais
sustentável, conferindo mais sentido às atividades laborais quotidianas. Com o passar
do tempo tais promessas não se efetivaram, sem embargo, constata-se uma
intensificação do trabalho e uma autonomia controlada. Em alguns casos a iniciativa
se mantinha por algum tempo, promovendo um engajamento dos trabalhadores
jamais visto ao longo de seus anos de prática, transformando-se logo em seguida em
algo bem distinto da proposta original dos métodos ágeis. Hoje vivemos em um
contexto diferente no que diz respeito ao volume de empresas que aderiram ou estão
em vias de aderir aos métodos , o que pode ser corroborado pelas narrativas dos
evangelizadores, os métodos ágeis tornaram-se a abordagem preferencial, e antes o
que parecia improvável, muitas empresas de grande porte enxergam nesse modelo
de trabalho a única forma de sobreviverem à proliferação de Startups e Fintechs de
todo tipo, e talvez esse seja o principal motivador da ampla adoção que ora
presenciamos. Cabe notar que, pela própria percepção dos evangelizadores o saldo
é positivo apesar do distanciamento dos princípios e valores preconizados pelos
métodos ágeis.
Este trabalho também se justifica pela escassez de pesquisas na área de
tecnologia da informação e produção de software, especialmente no que diz respeito
23
à processos de trabalho. O pioneirismo dessa pesquisa está baseado na articulação
de referenciais teóricos da área de ciências sociais para entender a proposta de um
novo processo de trabalho para desenvolvimento de software que passa a ser
divulgado globalmente em um movimento batizado de “ágil”, iniciado em 2001 e
encabeçado por alguns engenheiros de software, na sua maioria estadunidenses.
Esta pesquisa foi estruturada em quatro capítulos, além da presente
introdução e considerações finais.
No capítulo um, apresento um quadro que analisa a reestruturação produtiva
do surgimento do Taylorismo ao Pós-Fordismo, passando pela crise do fordismo sob
várias óticas que se complementam, destacando a importância do Keynesianismo que
viabiliza o sistema Fordista de produção. O Pós-Fordismo caracterizado pela
flexibilização, intensificação e precarização do trabalho, vem acompanhado de um
novo espírito, de uma nova cultura organizacional em estreita relação com outros
âmbitos da vida social. Os impactos da inovação tecnológica da nova estrutura
produtiva na vida dos trabalhadores, revelando a busca, dessa nova estrutura, por um
consenso de uma subjetividade que aceite de forma pacífica a intensificação
proporcionada por novos processos de trabalho, e o inevitável aprofundamento da
precarização. Trata-se do contexto político e econômico do neoliberalismo que
ensejando o crescimento econômico globalizado fragiliza a situação laboral com a
redução de direitos trabalhistas e flexibiliza os contratos de trabalho. A partir da
exposição das mudanças que ocorrem nas esferas econômica, social, política e
cultural poderemos situar a importância crescente do trabalho imaterial e da sociedade
de controle.
No capítulo dois, analiso a importância do conceito de sociedade disciplinar
proposto por Michel Foucault, e sua relação com o Fordismo, no que diz respeito à
temática do poder, da disciplina imposta aos corpos confinados no espaço, bem como
a maneira como se lida com a dimensão do tempo. A passagem da sociedade
disciplinar para a sociedade de controle é sintetizada por Deleuze (2013) como uma
24
forma diferenciada de organização do poder, onde a fábrica é substituída pela
empresa, que funciona como um gás, se fazendo presente em todos os lugares,
terreno fértil para a flexibilização, incentiva uma ideia de autonomia e as
compensações são moduladas pela performance. Para Hardt (2000) essa passagem
não anula a disciplina, antes a intensifica por mecanismos mais sutis. Também reflito
sobre o êxito do neoliberalismo e da mutação antropológica que ele empreende
criando figuras subjetivas específicas, cujo propósito é reproduzir e perpetuar o
modelo neoliberal. Entre elas destaca-se a figura do homem endividado, que passa a
ter a sua sobrevivência pautada pela dívida. Exploramos também o conceito de
noopolítica, elaborado por Maurizio Lazzarato, para dar conta das novas técnicas de
controle, entendidas como um conjunto de dispositivos que visam capturar e controlar
a cooperação entre cérebros para explorá-los economicamente.
No capítulo três, fazemos uma introdução aos métodos ágeis, situando o
movimento, que tem seu marco oficial em 2001, em um contexto histórico. Procuramos
mostrar as diferenças entre uma organização do trabalho de software que já não
atendia mais as necessidades de mercado, que passou a mudar cada vez mais rápido,
tanto em termos de negócio como em termos tecnológicos, exigindo das empresas
uma adaptação no modelo de produção de software.
Destacamos o manifesto e os princípios ágeis que estão na base de todos os
métodos que se disseminam na esteira desse movimento, e problematizamos alguns
de seus aspectos. Destaco o conceito de leveza que está no cerne das propostas dos
métodos ágeis, trazendo as reflexões de Lipovestsky (2015) sobre o assunto.
Oportunamente introduzo trechos das narrativas dos evangelizadores, que fazem
sentido para as discussões empreendidas nesse capítulo. Vale destacar também a
discussão de como o tempo é percebido e gerenciado pelos métodos ágeis. Com a
justificação de melhor tratar problemas complexos, esses mecanismos de gestão do
tempo encerram uma flexibilidade e fluidez, instabilizando as relações sociais e
promovendo uma corrosão do caráter (SENNETT, 1999), e impondo uma
25
autodisciplina cada vez mais austera. Essas questões sobre o tempo serão tratadas
com mais profundidade no capítulo quatro. Destaco também a debate sobre a
obsessão por medição colocando em evidência os mecanismos sutis para controlar
os indivíduos a partir da sua subjetividade, mesclando autonomia e alienação
(GAULEJAC, 2015). As práticas e dispositivos de intensificação presentes nos
métodos ágeis também são levados em consideração, bem como a questão da
tecnologia presente no cotidiano laboral, desmistificando a ideia preconizada de
trabalho sustentável (ROSSO, 2008). Fazemos também uma sinopse dos principais
métodos ágeis (SCRUM, XP, LEAN, KANBAN), destacando tópicos que interessam
nessa pesquisa.
No capítulo 4, conceituamos e detalhamos a atuação dos evangelizadores,
que assumem um papel central na pesquisa pelo protagonismo assumido diante do
movimento ágil, e cujas narrativas são fundamentais para o entendimento do
problema proposto. Descrevemos em detalhes o planejamento e execução das
entrevistas, relatando os percalços e soluções encontradas. Estão organizadas em
três blocos, o primeiro abrange questões relacionadas à adesão dos evangelizadores
ao movimento ágil, a definição do que seria o método ágil na visão de cada um, as
percepções sobre a trajetória do movimento no Brasil e sua contribuição pessoal.
Aproximamos a narrativa dos evangelizadores do discurso de autoajuda na área de
gestão e fazemos uma introdução ao poder e ideologia gerencialista, sociedade de
controle e sua articulação com os métodos ágeis. Conceitos que perpassam o capítulo
de uma forma geral.
No segundo bloco de entrevistas, analisamos o impacto de algumas práticas
ágeis. Nesse bloco retomamos o debate sobre a gestão do tempo a partir do conceito
de time-box, que se constitui em um instrumento de intensificação e de modulação da
subjetividade dos trabalhadores, pois o tamanho e as atividades contempladas por
essa caixa de tempo, variam conforme as estratégias da empresa. A questão da auto-
organização traz um debate sobre o engajamento como controle e possibilidade de
26
emancipação (ZARIFIAN, 2002). A modulação das subjetividades dos trabalhadores
pode ser entendida também pela gestão de requisitos, que são os insumos para a
produção de software, viabilizada por um planejamento que implica em determinar
granularidade e quantidade de requisitos a serem produzidos. Destacamos também a
importância da formação de indivíduos que sejam empreendedores de si mesmos
reforçando a adesão à ideologia neoliberal (DARDOT; LAVAL, 2016), bem como a
autonomia controlada no contexto da gestão gerencialista. A gestão visual suscita o
debate sobre a imposição de transparência, presente no regime de visibilidade atual,
bem como a comunicação ubíqua e o seu efeito em termos de hipercomunicação e
hiperprodução (HAN, 2014). Destacamos a importância dos especialistas ágeis, por
ser o principal protagonista da adoção de métodos ágeis nas empresas. Esses
trabalhadores mantêm um forte vínculo com a comunidade ágil e com os
evangelizadores. Buscamos compreender as contradições que nascem da tentativa
de compatibilização entre ideologia gerencialista e métodos ágeis, bem como a ideia
de qualidade como elemento de mobilização da energia no trabalho. Principais
disseminadores da ideia de sucesso e de progresso, produzem um discurso sedutor
difícil de ser contestado. A melhoria continua, pilar fundamental dos processos ágeis,
também será analisada nesse bloco, destacando o fenômeno da avaliação como
poderoso sistema de controle, e como potente instrumento de legitimação da
organização. No último tópico deste bloco, retomamos o debate sobre noopolítica e a
colaboração entre cérebros (LAZZARATO, 2006), no contexto da liberdade e
autonomia preconizadas pelos métodos ágeis, buscamos compreender as adesões,
resistências, limites e possibilidades em torno dessas ideias.
No terceiro bloco discutimos sobre a adesão das empresas aos métodos ágeis,
como os evangelizadores enxergam essa adoção na atualidade, destacando as
contradições, dificuldades, soluções que emergem das narrativas.
As considerações finais fazem um balanço da pesquisa realizada e propõe
possíveis aberturas para estudos futuros.
27
CAPÍTULO 1 - REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA
Apresentação do quadro que analisa a reestruturação produtiva, do surgimento do
Taylorismo ao Pós-Fordismo, passando pela crise do Fordismo, sob várias óticas que se
complementam. A importância do Keynesianismo como política econômica e social e sua
relação com o sistema de produção Fordista. Caracterização do Pós-Fordismo,
flexibilização, precarização e intensificação do trabalho.
1.1 Exploração em moto continuo
Para que o capitalismo cumpra seu fim último, acumular capital, para além
dos limites que se contraponham a essa acumulação, terá que lançar mão de técnicas,
estabelecer padrões, a fim de exercer controle sobre a força de trabalho, garantindo
que a exploração tenha uma aparência de normalidade, seja aceita e desejada,
mantendo assim seu principal vetor de crescimento.
No final do século XIX, com o crescimento das empresas e de monopólios,
cresce a necessidade de controle e organização das empresas. Será Taylor com uma
proposta de gerência cientifica do trabalho, que dará um caráter cientifico às soluções
para equacionar os problemas que surgiram com a ausência de controle e
organização. Essa gestão cientifica se propunha a criar regras para garantir a
eficiência das rotinas de trabalho, com foco em dois elementos: tempo e movimento.
As leis cientificas da administração do trabalho de Taylor visavam a
exploração máxima, otimização máxima do corpo, dos movimentos do trabalhador
redundando na separação entre planejamento e execução do trabalho.
“Um tipo de homem é necessário para planejar e outro diferente para executar
o trabalho [...] em quase todas as artes mecânicas, a ciência que rege as
operações do trabalho é tão vasta e complexa que o melhor trabalhador
adaptado a sua função é incapaz de entendê-la, quer por falta de estudo, quer
por insuficiente capacidade mental” (TAYLOR, 1990, p. 43)
28
Atividades de gestão visando apropriação do conhecimento tácito dos
trabalhadores, prática presente tanto no Fordismo como no Pós-Fordismo, embora
abrindo mão de outros mecanismos para alcançar o mesmo objetivo.
“À gerencia é atribuída a função de reunir todos os conhecimentos
tradicionais que no passado possuíam os trabalhadores e então classificá-los,
tabulá-los, reduzi-los a normas, leis ou fórmulas, grandemente úteis aos
operários para execução do seu trabalho diário” (TAYLOR, 1990, p. 40)
A execução de tarefas fragmentadas levava a constituição do trabalhador
como um ser autômato, essas experimentações de rotinas de trabalho deveriam ser
lideradas por gerentes e não pelos próprios trabalhadores, assim se dá, apesar da
notória mudança de paradigma, em muitas empresas atualmente, um gerente
controlará, calculará os tempos, realizará o planejamento de todas as atividades
relacionadas ao processo de trabalho, controlando e organizando o trabalho das
equipes sob sua gestão.
“Se você é um operário classificado deve fazer exatamente o que este
homem lhe mandar, de manhã à noite. Quando ele disser para levantar a
barra e andar, você se levanta e anda, e quando ele mandar sentar, você
senta e descansa. Você procederá assim durante o dia todo. E, mais ainda,
sem reclamações. ” (TAYLOR, 1990, p. 46)
Taylor parte da premissa de que os trabalhadores não têm condições de
controlar o próprio ritmo de trabalho, pelo conhecimento que detém sobre a tarefa que
realizam, na maioria das vezes superior ao conhecimento dos gerentes que os
controlam, se constituindo em uma resistência política à exploração. Isso por si só
justifica a delegação de autoridade aos gerentes que devem assumir toda a
concepção do trabalho, expropriando saberes, controlando tempos e movimentos,
restando ao trabalhador a simples execução.
29
Pode-se observar também um estímulo a partir de remuneração variável como
proposta no fordismo.
“Instituiu-se preciso registro diário da qualidade e quantidade do trabalho
produzido [...] este registro permitiu ao chefe incitar a ambição de todas as
inspetoras, aumentou o ordenado daquelas que realizavam grande
quantidade de trabalho de boa qualidade, enquanto, ao mesmo tempo,
abaixava o salário daquelas que trabalhavam sem interesse ou despedia
outras que se revelavam incorrigivelmente lentas ou desleixadas. ” (TAYLOR,
1990, p. 71)
Trata-se de produzir mais, melhor e em menos tempo, o artefato tecnológico
que permitirá tal proeza é o cronometro, segundo Taylor o controle do tempo é
fundamental:
“Durante cerca de trinta anos, homens dedicados ao estudo do tempo em
colaboração com a administração das oficinas se consagraram
completamente ao estudo científico dos movimentos e a exata medida do
tempo por meio de cronômetros, em todas as fases do trabalho mecânico”
(TAYLOR, 1990, p. 73)
O viés ideológico dessas proposições é muito claro, revestido de caráter
científico, procura moldar o trabalho àquilo que o capital requisita em dado momento.
A vida de um ser humano nos dias de hoje é regida pelo relógio, o tempo foi
transformado em uma mercadoria negociável, a exploração de trabalhadores estaria
inviabilizada não fosse a presença ritmada desse artefato tecnológico. Não me parece
exagero dizer que o período histórico que marca o predomínio do capitalismo e da
sociedade disciplinar tenha também marcado a hegemonia do relógio em nossas
vidas. Além de medir o tempo a própria fabricação de relógios serviu para habilitar
tecnicamente o ser humano a produzir máquinas cada vez mais complexas na
revolução industrial. Na medida em que os capitalistas perceberam o novo valor que
30
o tempo adquirira, o trabalho se transformava na matéria-prima fundamental da
indústria. A regularidade e a inevitável monotonia desse ritmo de vida artificial eram
ditadas pelos patrões, nas palavras de Woodcock o escravo da fábrica reagia:
“Nas horas de folga, vivendo na caótica irregularidade que caracterizava os
cortiços encharcados de gim dos bairros pobres no início da Era Industrial do
século XIX. Os homens se refugiavam no mundo sem hora marcada da
bebida ou do culto metodista. ” (WOODCOCK, 1981, p. 122)
O século XIX cristalizou, através da religião, a ideia de que perder tempo seria
um pecado sem remissão. Disseminou a dependência servil ao tempo, e a virtude da
pontualidade. Atualmente presenciamos diversas formas de distúrbios de saúde
reputados à vida moderna, principalmente nas grandes cidades, devido às
dificuldades de mobilidade, às refeições rápidas, aos horários em nada flexíveis dos
compromissos de trabalho.
Todo esse rigor impetrado pelo uso opressivo do tempo só asseverou as
contradições e paradoxos entre eficiência e eficácia, regulando e ajustando os critérios
de qualidade de acordo com as metas de lucro. O trabalhador perde o sentido do
trabalho, e transforma o possível prazer em anseio pelo fim do expediente, para tentar
recompor suas forças nas garras de uma outra indústria, a cultural, dentro dos limites
da sua disposição física e psíquica, e de sua condição financeira. Sobre o uso
adequado do relógio Woodcock diz que:
“O tempo mecanizado serve como uma das formas utilizadas para coordenar
as atividades numa sociedade altamente desenvolvida, assim como a
máquina serve como um dos meios para reduzir ao mínimo todo trabalho
desnecessário. Ambos são válidos pela contribuição que dão no sentido de
tornar a vida mais fácil, e devem ser usados na medida em que auxiliam o
homem a cooperar eficientemente e a eliminar as tarefas monótonas e a
desordem social. Mas não se deve permitir que nenhum deles passe a
dominar a vida do homem como hoje acontece” (WOODCOCK, 1981, p. 124)
31
O aumento de produtividade é uma espécie de Santo Graal para o capitalismo,
pois busca-o incessantemente visando maximizar os lucros. Apenas o controle do
tempo não é suficiente para conseguir a aquiescência do trabalhador nesse imbróglio
que se tornou o conceito de produtividade. O bônus, estratégia antiga, entretanto
amplamente utilizada até hoje, consiste em conceder incentivos financeiros adicionais
à remuneração, no sentido de estimular o trabalhador ultrapassar as metas de
produtividade e qualidade estabelecidas previamente. Taylor destaca a importância
dessa estratégia:
É absolutamente necessário, então, quando os trabalhadores estão
encarregados de tarefa que exige muita velocidade de sua parte, que a eles
também seja atribuído pagamento mais elevado, cada vez que forem bem-
sucedidos. Isto implica não somente em determinar, para cada um, a tarefa
diária, mas também em pagar boa gratificação ou prêmio todas as vezes que
conseguir fazer toda a tarefa em tempo fixado. É difícil alguém apreciar, no
seu justo valor, o auxílio que o uso adequado desses dois elementos presta
ao trabalhador, para levá-lo ao mais alto nível de eficiência e rapidez em seu
serviço e aí mantê-lo, sem antes ter visto, sucessivamente, o mesmo
empregado trabalhar sob o velho e o novo sistema. (TAYLOR, 1990, p. 78)
Para realçar a fragilidade da estratégia do bônus, que podemos associar à
ideia de motivação extrínseca presente em manuais de gestão, vamos analisar
algumas premissas que o fundamentam. A primeira delas, segundo Oliveira (2010, p.
4), é a de que o trabalho seria uma espécie de castigo, ideia presente na bíblia, na
idade média e na modernidade com Adam Smith:
“O verdadeiro preço de qualquer coisa, aquilo que ela efetivamente custa ao homem
que a pretende adquirir, é a labuta e os incômodos a que é obrigado para adquirir.
Aquilo que efetivamente vale um objeto para o homem que o comprou e que
pretende dispor dele ou trocá-lo por qualquer outra coisa é a labuta e os incômodos
a que se poupa e que impõe a outras pessoas [...]. No seu estado normal de saúde,
força e disposição, e com um grau normal de habilidade e destreza, o trabalhador
deve sempre abrir mão de mesma quantidade de seu conforto, de sua liberdade e
de sua felicidade. “ (SMITH, 2010, p. 3 Apud OLIVEIRA, 1979, p. 27)
32
A própria Revolução Industrial, não deixou dúvidas sobre o aspecto penoso
que repousa sobre qualquer atividade laboral. Entretanto é necessário destacar que
se pode alcançar algum grau de motivação intrínseca, respeitados todos os
condicionamentos sociais que dificultam alcançá-la. Para além de toda precariedade
e intensidade, é possível em alguns momentos relativizar a ideia do trabalho como um
castigo, e romper com a dicotomia entre trabalho e não-trabalho encontrando um
sentido constantemente capturado pelo capital.
A segunda premissa, segundo Oliveira (2010, p. 5), parte da ideia de que, da
mesma forma que o patrão tenta maximizar o lucro, o empregado, trabalhando mais,
visa maximizar seu salário. Segundo Weber ganhar mais dinheiro é o bem maior que
se busca alcançar pela ética do espírito do capitalismo. Weber assevera que esta ética
não fazendo parte da natureza humana, pode ser produzida culturalmente, de forma
que:
“O capitalismo hodierno, dominando de longa data a vida econômica, educa
e cria para si mesmo, por via da seleção econômica, os sujeitos econômicos
- empresários e operários - de que necessita. E, entretanto, é justamente esse
fato que exibe de forma palpável os limites do conceito de “seleção” como
meio de explicação de fenômenos históricos. Para que essas modalidades
de conduta de vida e concepção de profissão adaptadas à peculiaridade do
capitalismo pudessem ter sido “selecionadas”, isto é, tenham podido
sobrepujar outras modalidades, primeiro elas tiveram que emergir,
evidentemente, e não apenas em indivíduos singulares e isolados, mas sim
por um modo de ver portado por grupos de pessoas”. (WEBER, 2004, p. 48)
Essa premissa está condicionada a relação direta em que os indivíduos
tenham suas mentalidades colonizadas pelo espírito do capitalismo, portanto também
não pode ter uma validade universal.
A terceira premissa, segundo Oliveira (2010, p. 6), coloca a vantagem
financeira como único caminho para obter máximo comprometimento dos
trabalhadores. Além dessa premissa ser condicionada pelas duas anteriores,
33
despreza completamente a motivação intrínseca caracterizada pelo prazer obtido
através do trabalho bem feito, do aprendizado continuo, e do reconhecimento.
Esse sentimento de fazer bem feito, é uma habilidade artesanal bem descrita
por Sennett:
“A expressão ‘habilidade artesanal’, pode dar entender um estilo de vida que
desapareceu com o advento da sociedade industrial - o que, no entanto, é
enganoso. Habilidade artesanal designa um impulso humano básico e
permanente, o desejo de um trabalho bem feito por si mesmo. Abrange um
espectro muito mais amplo que o trabalho derivado de habilidades manuais;
diz respeito ao programa de computador, ao médico e ao artista; os cuidados
paternos podem melhorar quando são praticados como uma atividade bem
capacitada, assim como a cidadania. Em todos esses terrenos, a habilidade
artesanal está centrada em padrões objetivos, na coisa em si mesma. As
condições sociais e econômicas, contudo, muitas vezes se interpõem no
caminho da disciplina e do empenho do artesão: é possível que as escolas
não proporcionem as ferramentas necessárias para o bom trabalho e que nos
locais de trabalho não seja realmente valorizada a aspiração de qualidade. E
embora a perícia artesanal possa recomendar o indivíduo com o orgulho pelo
resultado de seu trabalho, não é uma recompensa simples. ” (SENNETT,
2008, p. 19)
1.2 Fordismo
O sonho da produtividade levada às últimas consequências parecia ter se
concretizado com o surgimento do fordismo como novo modelo produtivo, ao fazer o
trabalho girar em torno dos trabalhadores através de uma esteira rolante. Mais do que
aprimorar os mecanismos de organização e controle do trabalho, o fordismo visava
conquistar o consenso dos trabalhadores, apesar da intensificação do trabalho
implícita na sua proposta.
À princípio Ford rejeita a ideia de ser mero seguidor de Taylor, dando uma
outra roupagem para os princípios de Taylor, em destaque a captura da subjetividade:
34
“Se um operário deseja progredir e conseguir alguma coisa, o apito será um
sinal para que comece a repassar no espírito o trabalho feito a fim de
descobrir meios de aperfeiçoá-lo” (FORD, 1954, p. 41)
Apesar disso o modelo de produção Fordista incorporou técnicas do modelo
taylorista, a ampliação de direitos sociais atenuou o conflito capital-trabalho,
associado a altos salários os trabalhadores suportavam a intensidade imposta pelo
ritmo de trabalho marcado pela esteira rolante.
Para colocar e prática seu modelo Ford elaborou e instituiu princípios de
gestão para reduzir o tempo de produção, visando a colocação de produtos mais
rápida no mercado, redução de estoques de matérias-primas, aumentar a
produtividade elevando o nível de especialização dos trabalhadores, e finalmente
implantando a linha de montagem.
Preconizava a redução de níveis hierárquicos combatendo o poder dos
“gênios organizadores”, que definem a estrutura de autoridade, o organograma com
suas funções limitadas, Ford salienta que a fábrica não deve ter uma organização tão
rígida, a maioria dos homens é capaz de manter a organização sem as alucinações
do poder formal. Ford realça a responsabilidade individual, sem possibilidade de
fragmentá-la em uma estrutura de comando-controle, muitos gerentes, coordenadores
e chefes levam a uma situação na qual a responsabilidade é sempre atribuída ao outro,
os cargos não importam, o que importa é a disposição de um homem de valor pronto
para encarar qualquer desafio e ganhar com isso.
Estimula a gestão participativa visando apropriar-se do conhecimento tácito
do trabalhador, deve haver liberdade de crítica, e a fábrica deve estar pronta para
acolher sugestões, isso deve ser registrado em um livro, e serão bem-vindas
principalmente as ideias relacionadas à redução de custos, sempre deixando claro
que ninguém é insubstituível.
A rigidez da disciplina estava presente conjugando normas e punições. Seu
objetivo era reduzir custos e tempo de diversas etapas produtivas. Esse padrão de
35
produção estava associado fortemente à produção de massa, ao compromisso de
manter benefícios sociais, a estimulação de consumo das mercadorias produzidas.
Manteve a rígida separação entre concepção e produção, da forma preconizada por
Taylor, mantendo um abismo de qualificação entre operários e gestores.
Gramsci observou as similitudes e contradições entre as técnicas de
organização laboral preconizadas por Taylor e Ford e a sua ultrapassagem por um
tipo superior de trabalhador, adequando-se ao desenvolvimento histórico do modo de
produção capitalista.
“Taylor exprime com cinismo brutal o objetivo da sociedade americana:
desenvolver ao máximo, no trabalhador, as atitudes maquinais e automáticas,
romper o velho nexo psicofísico do trabalho profissional qualificado, que
exigia uma determinada participação ativa da inteligência, da fantasia, da
iniciativa do trabalhador, e reduzir as operações produtivas apenas ao
aspecto físico maquinal. Mas, na realidade, não se trata de novidades
originais, trata-se somente da fase mais recente de um longo processo que
começou com o próprio nascimento do industrialismo, fase que é apenas
mais intensa do que as precedentes e manifesta-se sob formas mais brutais,
mas que também será superada com a criação de um novo nexo psicofísico
de um tipo diferente dos precedentes e, indubitavelmente, superior. ”
(GRAMSCI, 2001, p. 397)
Ideologicamente o fordismo foi muito além da inovação técnica. A produção
de massa estava atrelada a aspectos sociais, políticos e culturais, seja visando a
reprodução da força de trabalho e a sua manutenção, seja reforçando o hábito do
consumo. Modos de viver e pensar a vida são indissociáveis dos padrões de produção,
como assevera Harvey:
“A produção de massa significava consumo de massa, um novo sistema de
reprodução da força de trabalho, uma nova política de controle e gerência da
força de trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia, em suma, um
novo tipo de sociedade democrática [...] O fordismo equivaleu ao maior
esforço coletivo para criar, com velocidade sem precedentes, e com uma
consciência de propósito sem igual na história, um novo tipo de trabalhador e
36
um novo tipo de homem. Os novos métodos de trabalho são inseparáveis de
um modo específico de viver e pensar a vida. (HARVEY, 1992, p. 121)
Homem ajustado aos tempos, ritmos e exigências do trabalho à serviço da
acumulação capitalista. A intensificação do trabalho gerada pela inovação tecnológica,
notadamente para Ford, a esteira rolante, levou a um desgaste brutal da força de
trabalho, e índices elevados de turn-over nas empresas. As resistências à exploração
pelo ritmo alucinante que extenuava os trabalhadores, foram contidas em um primeiro
momento por medidas de aumento salarial pela Ford, e depois quando o modelo
fordista se tornou de fato um padrão a ser seguido, o Estado passou a desenvolver
políticas públicas salariais e de benefícios sociais, de educação e saúde. O consumo
estava ligado de forma umbilical ao crescimento industrial, despertando desejos por
bens até então inacessíveis, estimulando prazeres que afrontavam a postura
espartana exigida pela rotina e ritmo de trabalho.
No afã de conter os excessos do sexo e do álcool, que poderiam afetar a
produtividade, Ford contratou agentes, que eram responsáveis por uma cruzada
moralista, para fiscalizar e orientar a classe operária, para além dos muros da fábrica.
O fordismo se pretendia hegemônico, e de fato conquistou esse objetivo, ao conseguir
a adesão da classe trabalhadora apesar de toda resistência, a partir do chão da fábrica.
Para compreender o processo de construção dessa hegemonia e da resistência
operária cabe recuperarmos o contexto do Keynesianismo, doutrina econômica e
política que serviu de pano de fundo para essas transformações.
1.3 Keynesianismo
Com o fordismo houve um recrudescimento da divisão do trabalho visando
obter maior produtividade os operários ocupavam uma posição fixa na linha de
montagem, essa foi a grande inovação instalada em uma fábrica automotiva no
37
Estado de Michigan. Foi instituída a jornada de trabalho de 8 horas. No plano
corporativo ocorriam grandes fusões A utilização da tecnologia foi empregada de
forma intensiva. Com mais tempo livre e mais dinheiro o trabalhador, através do
consumo, devolvia parte do que ganhara. Mas a proposta de Ford não despertava a
confiança necessária para que o empresariado assumisse como modelo.
O Estado intervencionista surge a partir da crise econômica e do colapso da
Bolsa de Valores de Nova Iorque em 1929. Nos anos 1920 os Estados Unidos da
América apresentavam uma economia pulsante, era grande exportador e inspirava
grande confiança, anos que representaram também uma consolidação das práticas
Tayloristas-Fordistas. A pujança econômica era tal, que fortalecia o sentimento de que
as pessoas poderiam ficar ricas da noite para o dia apenas investindo na Bolsa de
Valores. Em 1929, depois de forte declínio na produção industrial, a país entrou em
profunda depressão tornando-se o epicentro de uma crise global.
Keynes estudou profundamente esse episódio da história econômica
mundial, ele denuncia em seus estudos um flagrante desequilíbrio entre oferta e
demanda, em função do aumento de produtividade na década de 1920, alavancada
por novas técnicas de produção e tecnologia.
Keynes exerceu influência direta sobre o New Deal, programa de viés
econômico e social, lançado na década de 1930 pelo presidente estadunidense
Franklin Delano Roosevelt para recuperar a economia. Em linhas gerais o programa
tratava de regular fortemente a economia por intermédio de agências federais,
investimento em políticas públicas sociais, de infraestrutura, e no setor privado. Visava
com isso combater o fantasma do desemprego que grassava sobre a população,
atingindo o fordismo em uma de suas engrenagens fundamentais, o consumo. Keynes
salientou que o Estado deveria assumir o papel de conduzir os investimentos dada a
limitação do capital privado, entretanto tal conduta despertava desconfiança do
mercado.
Keynes também teve papel fundamental nos acordos após as duas Grandes
38
Guerras Mundiais, na primeira como mero coadjuvante, sem nenhum poder de
influência, na segunda como protagonista. O acordo após a Primeira Grande Guerra,
homologado pelo Tratado de Versalhes, não agradou a Keynes que entendeu ser uma
vingança consubstanciada em acordo de paz, impondo aos derrotados um pesado
fardo financeiro.
Após 1929, o Keynesianismo disseminou um sentimento de segurança
através de medidas que mantivessem a economia estável. Isso foi possível graças às
medidas protecionistas que protegiam as empresas nacionais garantindo o lucro,
consolidado pelo consumo de massa. O papel dos sindicatos também foi importante,
na luta por melhores condições de trabalho e salariais. O Estado por sua vez
administrava as crises econômicas, amparava as empresas, investia em infraestrutura
e no bem-estar social, provendo educação, saúde e moradia, esta é a definição de
Estado Keynesiano, um coração pulsante que tentava articular e metabolizar mercado
e sociedade em um todo harmônico.
A conferência de Breton Woods em junho de 1944 definiu regras comerciais
e financeiras, a Segunda Grande Guerra Mundial ainda estava em curso, o acordo
vigorou até 1971, quando o dólar se tornara moeda fiduciária acabando com a
conversibilidade do dólar em ouro, o dólar passou a ser moeda reserva de muitos
países. Para que o novo sistema de regras fosse legitimado foram criados o Banco
para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) e o Fundo Monetário Internacional
(FMI). Havia um consenso entre as nações a respeito da intervenção do Estado na
economia. Ressentidos ainda da depressão1 de 1930, e sofrendo as consequências
da devastação causada pela guerra, a Europa ansiava por reestabelecer sua
economia e os Estados Unidos um mercado para colocar seus produtos, o acordo
preconizava um mínimo de barreiras ao fluxo de comércio e capital privado. Criou-se
1 As Disputas entre Estados colocavam-nos em uma situação de guerra iminente, o sistema internacional de pagamentos estava constantemente à beira de um colapso por conta de disputas alfandegárias. Os Estados reduziam as taxas de exportação visando equilibrar a balança comercial, entretanto tal estratégia gerou deflação, diminuição de produção, desemprego em massa, redundando na profunda crise de 1930.
39
um conceito de segurança econômica que justificava a criação de um sistema
internacional com feições liberais para garantir a paz. Existia também uma intenção
de conter a expansão do bloco socialista que se fortalecia. Para que o sistema
proposto no acordo funcionasse era condição sine qua non os Estados atuarem como
interventores nas suas próprias economias, assumindo o protagonismo na geração
de bem-estar social para a população, o ideário econômico Keynesiano tornou-se
referência.
Os Estados Unidos da América assumiram uma posição hegemônica nas
negociações, pois contava com uma economia pujante, uma indústria e uma matriz
energética poderosas, e o exército mais bem equipado. Depois de um período de
acumulação de capital sem precedentes, tornou-se a principal fonte de investimentos
para os países europeus. A liberação do comércio mundial pretendida fortaleceu ainda
mais a posição vantajosa dos Estados Unidos. Outra consequência desse processo
foi a propagação do fordismo como modelo de produção, principalmente através do
Plano Marshall, programa de recuperação Europeia visando reconstruir os países
aliados. A divisão internacional do trabalho, efeito deletério desse contexto, além de
levar no seu bojo o espírito do desenvolvimentismo, aprofundou a dependência entre
países subdesenvolvidos que ofereciam matéria-prima e países desenvolvidos,
depois que suas economias foram reestabelecidas exportavam produtos com alto
valor agregado, causando a estagnação de muitas economias.
Para Negri (1967) todas essas transformações sociais, políticas e
econômicas a começar pela revolução de 1848 na França, passando pela comuna de
Paris em 1870, e culminando com a revolução Russa em 1917, transformam a luta
operária em uma possibilidade objetiva e presente, que se torna referência para
operários de todo mundo. Negri entende que:
“El País de los soviets es el signo del antagonismo obrero que ha llegado a
estructurarse autónomamente como Estado; por esta misma razón se
convierte en un punto de identificación política interna para la clase obrera
40
internacional, em tanto que signo de una possibilidad objetiva y presente. A
decir verdad, aqui el socialismo pasa de la utopía a la realidad. De ahora en
adelante la teoría del Estado deberá ajustar cuentas no sólo con los
problemas inherentes al mecanismo de socialización de la explotación, sino
con una clase obrera políticamente identiificada y que ha devenido sujeto,
con una serie de movimientos materiales que ya dentro de su materialidad
acarrean toda la connotación política revolicionaria.” (NEGRI, 1967, p. 1)
Partindo dessa compreensão sugere que o Fordismo aliado ao
Keynesianismo surge como alternativa de negociação para conter um possível
protagonismo da classe operária, ameaça real e imediata ao capital, por organizar-se
politicamente. A repressão aos movimentos operários com leis que restringiam as
greves, os novos modos de produção, bem como uso intensivo de tecnologia, não
foram suficientes para desarticular a organização operária, debilitando o Fordismo nas
primeiras décadas de 1900. Tampouco arrefeceu o ímpeto da luta operária todo o
esforço de isolamento diplomático e político da Rússia. As greves eram cada vez mais
intensas e frequentes. Para Negri 1929 representa:
El contragolpe de las técnicas represivas antiobreras que repercute en toda
la estructura del Estado capitalista, es un 1917 que se ha convertido en un
momento interno de todo el sistema capitalista. La iniciativa política obrera de
1917, puntual y ferozmente destructiva, se ha objetivado, se ha convertido en
una continua e poderosa acción de erosión: controlada a corto plazo tras 1917,
se expresa ahora, en 1929, con toda fuerza que ha acumulado un desarrollo
interior y secreto. De este modo 1929 representa en la evolución del Estado
contemporáneo un momento de importancia excepcional. [...] Se trata, por el
contrario, de una reconstrucción capitalista del Estado a partir del
descubrimiento de la radicalidad del antagonismo obrero. (NEGRI, 1967, p. 3)
O Estado agora intervém e engloba todos os âmbitos da vida, traz para dentro
de si todos os conflitos, para Negri trata-se do nascimento do Estado Social que unifica
aspectos antagônicos da sociedade, socializa o modo de produção, impõe uma
organização social conquistando certo consentimento na exploração. Definitivamente
41
os capitalistas empreendem uma leitura muita específica do marxismo, que reconhece
antagonismos, e o põe em funcionamento ao mesmo tempo em que impede sua
liberação e a consequente destruição de um dos polos.
A forte intervenção do Estado presente no Keynesianismo amadurece a partir
das críticas de Keynes à economia liberal, ao laissez-faire, ao equilíbrio promovido
pela “mão invisível”. Um Estado que faz cumprir contratos, promove o bem-estar da
classe trabalhadora através de políticas públicas, que conduz os investimentos
necessários, que reestabelece a confiança necessária entre os atores econômicos. O
New Deal nos seus primeiros anos foi alvo de muitas críticas do mercado. Negri
destaca a perspicácia de Keynes que estudou as “vicissitudes capitalistas” entre 1917
e 1929, oferecendo uma solução que não agradou aos capitalistas mais
entusiasmados que acreditavam em um enriquecimento infinito, mas que estabelecia
as condições necessárias para que o capitalismo continuasse pulsando.
Para além da oportunidade política a intervenção estatal se coloca como
necessidade técnica, que garante o presente contra os riscos e incertezas do futuro,
produzidas por pressão da classe operária, estabelecendo um horizonte de segurança
relativamente amplo para o capital. Para Keynes a reforma capitalista do Estado é
uma exigência com o fim de atenuar a dramática tensão que o futuro suscita.
Entretanto, a intervenção do Estado não será suficiente, é necessário que ele se torne
estrutura econômica e sujeito produtivo, nas palavras de Negri:
“Garantizando la convención que une presente y futuro el Estado continua al
servivio de los capitalistas: planteándose a su vez como capital productivo el
Estado quiere superar también las fricciones estructurales que pueden
determinar la economia de mercado y una relación indirecta con cada uno de
los capitalistas. Se trata de un nuevo Estado: del Estado del capital social.”
(NEGRI, 1967, p. 14)
42
1.4 Pós-Fordismo
Uma nova fase do capitalismo, que já vinha se delineando com as crises do
padrão de produção fordista, torna-se cada vez mais presente a partir dos anos 1970,
com especial destaque para o modelo criado pela empresa japonesa Toyota.
Entretanto é mister enfatizar que surgiram várias alternativas ao modelo fordista.
Na Itália, o modelo sugeria empresas com estrutura reduzida, processos de
trabalho mais flexíveis, capacidade de inovar, emprego de alta tecnologia,
trabalhadores qualificados e multifuncionais. O Estado cumpria o seu papel
protecionista e flexibilizando leis trabalhistas. Havia uma certa aversão à hierarquia,
ao comando-controle taylorista, mas também ao trabalho em equipe, sendo este
último o maior obstáculo para o pleno funcionamento do novo modelo de produção.
O modelo taylorista-fordista também foi desafiado na Suécia, empregado
inicialmente na Volvo. Acentuada inovação na organizacional do trabalho, bem
acolhidas pelos trabalhadores que percebiam como uma mudança real no mundo do
trabalho, as adaptações levariam a mais produtividade e bem-estar crescente. A linha
de montagem foi constituída com pequenas células, compostas por trabalhadores
qualificados e multifuncionais, trabalhando de forma mais ou menos autogerenciada,
sem obstáculos para aplicação do conhecimento. Apesar de toda autonomia, e do
engajamento necessários para que o trabalhador fosse corresponsável pelas decisões
tomadas no processo produtivo, a ampla automação e as restrições impostas pela
divisão do trabalho, excluindo-os do processo de concepção, roubava-lhes o controle
sobre suas atividades.
As duas alternativas de constituição de um modelo alternativo ao taylorismo-
fordismo esbarraram em questões relativas à produtividade queda na margem de
lucro, incentivando a mescla de práticas tradicionais mais coercitivas, controle mais
rígido sobre as atividades.
Harvey, inspirado em Marx, sugere que o modo de produção capitalista tem
43
na sua essência a necessidade do crescimento, para satisfazer essa necessidade
explora o trabalho vivo, para viabilizar e maximizar essa exploração tem que ser
dinâmico na sua organização e agregar tecnologia constante aos seus processos.
Esse contrates e contradições inserem o capitalismo no mapa das crises infindáveis,
convivendo ciclicamente com superacumulação, altos estoques, capacidade produtiva
ociosa e alto desemprego, cuja a saída está sempre na reinvenção.
Ao final dos anos de 1960 é registrado mais um momento nesse mapa de
crises, que de fato já se desenhava há muitos anos: a classe trabalhadora começa a
reagir contra a intensificação e inevitável precarização gerados pelos processos de
trabalho com greves e absenteísmo, ocorre um declínio na produtividade. O modelo
fordista, profundamente marcado pela disciplina e pela automação, chega a um
esgotamento. Aos poucos o contrato social estabelecido pelo Estado de bem-estar
social que envolvia todos os atores econômicos em torno do consumo, é rompido.
Em 1968 estudantes e operários franceses unem-se contra esse modo de vida
fabricado pelo fordismo. A crise no consumo recaí sobre os declinantes níveis de
lucros das empresas. A crise do petróleo em 1973 alavanca os níveis de inflação. Os
Estados Unidos berço do fordismo, sofre com os custos altíssimos sociais e
econômicos, resultado da malsucedida campanha militar no Vietnã. Nações
periféricas que foram industrializadas começaram a concorrer globalmente com os
países ditos de primeiro mundo. Ocorreu uma acentuada mudança nos hábitos de
consumo, os consumidores exigiam produtos mais diferenciados. A economia
japonesa em crescente fortalecimento desde o final da 2a. Grande Guerra, apresenta
altos índices de produtividade, crescimento viabilizado pela cultura do pais de não
diferenciar relações familiares de relações laborais, por forte apoio estatal, e por um
padrão de produção criado pela Toyota, empresa do ramo automobilístico, conhecido
como STP, Sistema Toyota de Produção, que ao longo dos anos se tornou um padrão
para as outras indústrias japonesas. O modelo japonês foi concebido nas fábricas da
Toyota, a partir de um longo período de experimentações, o modelo amadureceu e
44
ganhou notoriedade na academia e no discurso gerencial, o que lhe conferiu um apoio
publicitário sem igual, a ponto de ser considerado por muitos como sinônimo de Pós-
Fordismo.
Ao final da 2a. Grande Guerra a indústria japonesa apresentava sérios
problemas, apresentava problemas de produtividade, aplicaram o modelo de
produção que estava em voga, o fordismo, entretanto adaptaram o modelo à cultura
japonesa, às necessidades socioeconômicas, produzindo veículos pequenos,
econômicos, de baixo custo e preço reduzido, respeitando a frágil infraestrutura do
pais. O Estado empenhou-se em apoiar a iniciativa com medidas protecionistas,
limitando investimento estrangeiro e importações.
O modelo japonês se diferenciava dos outros modelos principalmente pela
adequação da produção ao fluxo de demanda, no combate sistematizado ao
desperdício, ampla utilização da terceirização e da flexibilização das leis trabalhistas,
paulatinamente ocorre a introdução de inovações como o uso do kanban, just-in-time,
dos círculos de controle de qualidade, as equipes pequenas e qualificadas,
multifuncionais preparadas para resolver problemas de produção de qualquer
complexidade, reduzindo substancialmente o tempo de parada médio das máquinas.
A reestruturação produtiva que ocorre a partir desses eventos, é uma reação
à queda de produtividade, do consumo e do lucro. É necessário, portanto romper com
o contrato estabelecido pelo Estado de bem-estar social, dispersar a classe
trabalhadora, atingindo-a na sua capacidade de reivindicar salários e direitos, e
flexibilizar toda a estrutura laboral, da organização à produção.
A imprevisibilidade dos mercados globalizados, exigirá uma flexibilidade das
empresas em todas as suas dimensões, sejam elas organizacionais, trabalhistas ou
tecnológicas. A introdução maciça de tecnologia possibilitou o controle sobre as
atividades produtivas visando os altos índices de produtividade e qualidade desejados.
A automação irrestrita acentuou a redução de mão de obra. A nova era trazia no seu
bojo o desemprego, a redução drástica de direitos sociais e a ausência de política
45
salarial. Essa configuração produtiva condena ao limbo do desemprego ou do
subemprego, grupos menos favorecidos na estrutura social: mulheres, negros, idosos,
jovens, pessoas com baixa qualificação. O grupo de trabalhadores mais privilegiados
dos núcleos centrais das empresas cedem aos desígnios corporativos, que em troca
de um pacote de benefícios sedutor, devotam suas vidas à empresa atuando de forma
flexível, adaptável e disponível. Outro grupo intermediário deve atuar da mesma forma,
mas através de um contrato de terceirização, que exclui os benefícios.
Ao longo das transformações do capitalismo assistimos a um aprimoramento
constante das técnicas de controle, de cooptação de subjetividades, ao contrário do
discurso produzido pelas ideologias gerencialistas que, cada uma a seu tempo,
tentaram subsidiar o empenho e adesão das pessoas envolvidas no processo de
acumulação capitalista, de que teria atingido o estado da arte em gestão, entretanto o
que o ocorreu foi a intensificação e precarização do trabalho levada às últimas
consequências.
É possível fazer uma análise entre o modo de produção fordista e o Pós-
Fordismo que dá tom ao capitalismo global atual. Levando em consideração a
flexibilização da rígida burocracia presente nas empresas desde o início do século XX.
A crise do fordismo enseja uma crise das instituições causando instabilidades sociais
de toda ordem. Quando o curto-prazo se torna prioridade, impossibilita aos indivíduos
tecerem narrativas, antes elaboradas a partir de um planejamento de longo prazo,
possibilitado pela estabilidade do vínculo laboral, quando não conseguem mais criar
uma identidade a partir de seus talentos inatos e desenvolvidos em função de novas
capacitações que são requeridas a cada instante, e quando o processo de
presentificação se impõe, obrigando a abandonar vivências passadas:
“Uma individualidade voltada para o curto prazo, preocupada com as
habilidades potenciais e disposta a abrir mão das experiências passadas só
pode ser encontrada - para colocar as coisas em termos simpáticos - em
seres humanos nada comuns. A maioria das pessoas não é assim,
precisando de uma narrativa contínua em suas vidas, orgulhando-se de sua
46
capacitação em algo específico e valorizando as experiências por que passou.
Desse modo, o ideal cultural necessário nas novas instituições faz mal a
muitos que nelas vivem. ” (SENNETT, 2006, p. 14)
Essa busca por um ser humano ideal redundará em uma pandemia de
ansiedade e depressão. Todas essas questões colocam um desafio à subjetividade
requisitando uma resposta existencial. Nesse contexto de mudanças de uma cultura
fordista para uma nova cultura vale destacar o papel da burocracia. A burocracia foi
uma técnica adotada por empresas e Estados para garantir estabilidade e não
sucumbir diante das classes perigosas. Sennett reflete sobre a burocracia a partir dos
argumentos de Karl Marx, Schumpeter e Max Weber. Weber estudou com
profundidade o fenômeno da burocracia e a descreveu como uma técnica que torna
possível o planejamento de longo prazo, a previsibilidade. Para Weber a organização
militar se aproxima mais do capitalismo e reflete mais a modernidade em termos de
mecanismo de organização do que o próprio mercado.
Na passagem para o novo capitalismo ocorrem mudanças significativas que
solapam a base desse capitalismo social militarizado, que na verdade já vinha
passando por um longo processo de flexibilização há muitos anos.
O poder gerencial perde espaço para os acionistas, os burocratas perdem
poder para os investidores, que perseguem resultados de curto prazo, com o
desenvolvimento de tecnologias de informação e comunicação possibilitando a
coordenação de negócios globais a partir de um núcleo. Condição necessária para
que o capitalismo financeiro se consolidasse globalmente, permitindo a migração do
capital de um negócio para outros mais vantajosos muito rapidamente, de tal forma
que a informação se constituiu no ativo mais valioso das empresas.
Surge a partir dessas mudanças na nova arquitetura institucional
caracterizada pela flexibilidade exacerbada, levando a uma precarização das relações
de trabalho, por impossibilitar o planejamento de longo prazo garantido pela
estabilidade dos processos. O processo de flexibilização possibilitou que as empresas
47
se configurassem em termos de mão-de-obra conforme a necessidade do momento,
contratando e demitindo sem entraves burocráticos da legislação trabalhista. Para
atender as demandas diversificadas e atender os objetivos de lucro de curto prazo, se
faz necessário um trabalhador que execute diversas atividades e seja flexível para se
adequar a qualquer contexto de produção.
O capitalismo da acumulação flexível abalara os muros inexpugnáveis da
burocracia destituindo o sentido que as pessoas depositavam na atividade laboral, o
estilo de vida baseado no planejamento de longo prazo permite que se estabeleça
objetivos de longo prazo, que se tenha visibilidade dos riscos assumidos. Essa nova
cultura do capitalismo influencia a formação do caráter dos indivíduos por não
possibilitar tecer narrativas de vida de uma forma contínua. Sennett define o caráter
como:
“Valor ético que atribuímos aos nossos próprios desejos e às nossas relações
com os outros, ou se preferirmos, são os traços pessoais a que damos valor
em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem”
(SENNETT, 2012, p. 10)
O trabalhador flexível, em virtude das incertezas e mudanças ininterruptas de
contexto de vida, não consegue tecer laços de afinidade. As formas de poder que
emergem do modo de produção capitalista flexível ensejam uma reinvenção contínua
da empresa, ancorada em discursos de inovação e qualificação incessantes, os
nichos de mercado são ocupados estrategicamente e monitorados constantemente a
fim de se buscar outras oportunidades mais rentáveis em outros nichos, inserindo a
estrutura produtiva em um redemoinho infinito.
O trabalho em equipe é estimulado, algum poder é outorgado, mas somente
no âmbito do “como” fazer, ficando fora da esfera de decisão “o que” fazer, o “quando”
fazer, e muitas vezes “o porquê” fazer, essas ficam na esfera de decisão dos acionistas
e alto escalão da empresa. Autonomia da decisão que confere um caráter de
48
concentração da decisão, porém sem centralização, o controle passa a ser exercido
por diversos mecanismos eletrônicos como: indicadores, painéis digitais, sistemas
gerenciais de toda espécie que consolidam informações em tempo real.
A flexibilização do tempo na produção leva a uma flexibilização do caráter,
pela aceitação do curto prazo imposto e pela tolerância com a fragmentação das
atividades laborais. Com o rompimento dos laços sociais no trabalho, a identidade
social do trabalho fica comprometida, a capacidade imediatista se valoriza em
detrimento da experiência acumulada. O caldeirão de incertezas no qual o trabalho
flexível submerge coage os trabalhadores a assumir riscos, sem dar-se conta das
probabilidades de fracasso, não aceitar o jogo da competição é abraçar o fracasso
antes do embate.
Uma nova ética do trabalho é produzida, há muito não se fala mais dos planos
de carreira, porque a longa experiência profissional não tem mais valor, as instituições
não são mais estáveis para ancorar essa experiência, Sennett não propõe uma volta
ao passado, entretanto não vê a flexibilidade como solução para as mazelas do
trabalho no capitalismo social:
“Seria um mal-humorado sentimentalismo lamentar o declínio do trabalho
árduo da autodisciplina - para não falar da boa educação, do respeito aos
mais velhos e de todos os outros prazeres dos bons velhos tempos. A
seriedade da velha ética de trabalho impunha pesados fardos ao eu
trabalhador. As pessoas tentavam provar seu próprio valor pelo trabalho, em
forma de ascetismo leigo, como o chamou Max Weber, o adiamento da
satisfação podia tornar-se uma prática profundamente autodestrutiva. Mas a
alternativa moderna para a longa disciplina de tempo não é um verdadeiro
remédio para essa autonegação. “ (SENNETT, 2012, p. 118)
O trabalho flexível, preconizando o trabalhador multifuncional e adaptável a
qualquer contexto de negócios, procura romper com a rotina, reduz a burocracia, mas
não supera totalmente o fordismo, levando as relações de trabalho a outro patamar
de intensidade e precariedade, onde trabalho de equipe e rotina, autonomia e controle,
49
se articulam em uma mixórdia de discursos para modular a subjetividade dos
trabalhadores. Como construir uma narrativa, uma identidade, uma história de vida se
esse trabalhador está à deriva? A antiga bússola não funciona mais no mar revolto da
flexibilidade. Relações fugazes enfraquecem a confiança, a lealdade e o compromisso,
valores relevantes para alicerçar o caráter.
O trabalho em equipe substitui a vigilância ostensiva descrita por Foucault na
metáfora do panóptico, por uma pressão dos pares, diluindo a responsabilidade entre
todos os membros da equipe. O fenômeno social do fracasso transformou-se em uma
indústria a partir do discurso do empreendedorismo, mercado que faz fortuna para os
gurus da gestão que chegam com fórmulas prontas. O fracasso é uma experiência
constante diante da vida sem objetivos e fragmentada, na impossibilidade de tecer
uma narrativa. O antídoto seria na visão de Sennett do compartilhamento da
experiência, recuperar um senso de comunidade.
Sennett descreve uma partilha de experiências entre programadores da IBM,
que foram demitidos depois de uma reestruturação, substituindo estruturas
hierárquicas por estruturas organizacionais flexíveis. Ao longo do processo de diálogo
uma narrativa vai sendo tecida até que a responsabilidade pelo fracasso emerge como
questão fundamental, momento em que o fracasso deixa de ser algo caótico
inenarrável, obscuro. A culpa deixou de ser um peso.
O toyotismo se caracteriza por um sistema de emprego que garante
estabilidade, por uma produção empenhada em produzir no tempo certo e na
quantidade certa, participação dos trabalhadores no processo de melhoria continua,
foco no trabalho em equipes pequenas e multifuncionais, equilibrando especialização
e generalização de forma que fosse autossuficiente em relação às suas atividades. A
relação com as outras empresas, que por questões logísticas impostas pela filosofia
do just-in-time (produzir na quantidade e no tempo certos), era de subcontratação, a
Toyota mantinha um núcleo de elite de trabalhadores bem formados e regiamente
remunerados, enquanto as empresas subcontratadas gravitavam em torno desse
50
núcleo, mantendo trabalhadores sob trabalho intenso e precário, com baixos salários
e sem regalias. As empresas ocidentais incorporaram alguns traços do toyotismo
visando sair da crise, aumentando os lucros e a produtividade, dando início a um tipo
de acumulação conhecido como acumulação flexível, termo cunhado por David
Harvey (2014).
É possível a partir da tipologia criada por Bihr (1999) situar as empresas em
uma forma específica de absorção das características do toyotismo, farei um exercício
utilizando as empresas de tecnologia da informação, baseado na minha experiência
profissional e conhecimento da área. Na forma difusa temos um núcleo que coordena
esforços de empresas periféricas, o núcleo é composto por trabalhadores bem
remunerados, os restantes dos trabalhadores ficam lotados nas empresas periféricas,
via de regra terceirizados, trabalhando em condições mais precárias e sujeitos à
intensidade estabelecida pelo núcleo. É o caso por exemplo das fábricas de software,
que é contratada por grandes empresas, visando redução de custos e riscos de
processos trabalhistas.
Na forma fluída, a produção é contínua levando a intensidade e a
produtividade à níveis muito altos. A forma flexível combina organização flexível,
trabalhador ágil, multifuncional, com a flexibilização da força de trabalho, gerando
muitos conflitos entre empregados e terceirizados, pois, trabalham no mesmo
ambiente, mas não usufruem das mesmas condições, ficando muitas vezes expostos
ao trabalho mais intenso em troca de banco de horas ou horas extras. O cipoal de
modelos ou padrões de produção deixa escapar um elemento que parece articulá-los:
o controle do tempo. No taylorismo é o cronometro, no fordismo é a esteira rolante, no
toyotismo será o just-in-time e o kanban.
A ideologia por trás da flexibilização, marca distintiva do capitalismo vigente,
se empenha em propagar a crença de que todos tornaram-se livres, do rigor imposto
pela burocracia e rotina dos tempos áureos do fordismo e do estado de bem-estar
social. Se a nova fase do capitalismo requer um trabalhador adaptável predisposto a
51
assumir riscos, polivalente, o discurso de gestão vigente insiste na ideia de
“resiliência”, segundo a qual o ser humano pode ser dotado de elasticidade, preparado
para adaptar-se a qualquer contexto. Ao invés de autonomia e emancipação criaram-
se outros mecanismos de controle, quando o capitalismo atinge o limite na luta para
contornar suas próprias contradições. Um complexo conjunto de acontecimentos
colocaram por terra o fordismo e o Keynesianismo.
A crise de acumulação requer uma reestruturação produtiva trazendo no seu
âmago consequências políticas, sociais, econômicas e culturais. O contrato de
trabalho na vigência do fordismo assegurava proteção social, uma relação laboral de
longo prazo e uma dedicação integral. O capitalismo flexível cria instabilidade por
fragilizar o contrato de trabalho, que acarreta perda de direitos trabalhistas e ausência
de política de salários adequadas às necessidades dos trabalhadores. A ampliação e
aprofundamento da precariedade se dá de diversas formas: através de um sentimento
de insegurança generalizado, necessidade constante de corresponder a novos perfis
de trabalho, alternância entre períodos de trabalho e desemprego.
Em nossa sociedade o trabalho ocupa uma posição central, por constituir
identidades, por ser um importante componente subjetivo para construção de sentido
para a vida, além de afetar o ritmo de todas as outras atividades cotidianas, possibilita
fazer frente às necessidades de sobrevivência no presente e planejar de alguma forma
o futuro.
“Existir positivamente como indivíduo é ter a capacidade de desenvolver
estratégias pessoais, dispor de uma certa liberdade de escolha nas condutas
da sua vida porque não estamos na dependência do outro”. (CASTEL;
HAROCHE Apud SÁ, 2010, p. 6)
“Uma sociedade da incerteza e do risco está associada a uma concepção
liberal da sociedade encarando o risco como algo, dado, como uma fatalidade,
que não pode mudar nessa situação, cada qual procura estratégias
individuais que permitam vencer os obstáculos, esquecendo as dimensões
societárias e coletivas”. (CASTEL, 2005, p. 60)
52
O trabalhador requisitado pela reestruturação produtiva pós-fordista adere a
noção de empregabilidade2 segundo a qual a empresa deixa de ser responsável pela
aprendizagem do trabalhador, torna-se responsável por adquirir as competências, que
mudam de acordo com o contexto de negócios que a organização lhe apresenta. O
trabalhador passa a ser um empreendedor de si.
O Pós-Fordismo caracteriza-se entre outras coisas por uma flexibilização dos
contratos de trabalho, dos modelos de produção, das condutas profissionais, que
apontam para um novo espírito do capitalismo. Requisita um trabalhador mais
adaptável, que seja capaz de atuar em uma hierarquia mais horizontalizada e células
organizacionais autogeridas, que seja capaz de operar e interagir com uma tecnologia
sempre em constante atualização. A nova cultura organizacional que emerge desse
contexto, coloca ênfase no sujeito empreendedor, competitivo, que deve reunir
capacidades cognitivas, possuir domínio técnico na sua área de atuação, capacidade
de comunicação, e outras competências comportamentais como resiliência, pró-
atividade, comprometimento.
Tal perfil é reforçado pela própria cultura organizacional das empresas, pela
mídia e também pelas instituições de educação. Todo esse dinamismo exige uma
atualização ininterrupta de saberes, uma busca premida pelas inovações tecnológicas.
A área de tecnologia e desenvolvimento de software é exemplo patente do quanto as
qualificações são efêmeras. Experiências e conhecimento são úteis dentro de um
lapso de tempo muito curto. Não podemos deixar de observar que esse dinamismo
alimenta um mercado de educação contínua formado por certificações técnicas,
2 O termo empregabilidade, estrategicamente criado pelo discurso de gestão, isola o trabalhador na
sua relação com o mercado de trabalho pautado pela flexibilidade. Nessa equação talvez a incerteza
seja a única constante, funciona como um motor para que o trabalhador sempre tenha em vista as
condições do mercado, buscando a adaptação e qualificação que se fizerem necessárias. O termo
empregabilidade sugere uma constante contabilidade do capital humano, direcionando os
investimentos de acordo com uma lógica do mercado, seja na aquisição de softskills (comportamentos,
atitudes, personalidade, seja na aquisição de hardskills (conhecimento técnico). O regime de produção
preponderantemente imaterial aliada a ideia de trabalhador-empresa faz da empregabilidade uma
passagem de um lugar para outro sem sentido algum.
53
capacitações comportamentais e habilidades comunicativas.
Há uma dupla captura do trabalhador pela dívida, primeiro pelo sentimento de
dívida engendrado pela velocidade de mudança dos contextos tecnológicos e
organizacionais que constrói subjetivamente uma sensação de déficit de
conhecimento, segundo pelo receio de perder a empregabilidade contraindo dívidas
que figuram como investimentos educacionais necessários.
A velocidade é um vetor das mudanças, de forma que, vivendo uma época de
rápidas transformações tecnológicas, o empenho psíquico, todo o tempo de vida
laboral e extra laboral não são suficientes para acompanhar o ritmo das inovações. O
empreendedor de si é um capital que precisa render juros e dividendos a partir de uma
descomprometida e tênue participação da organização. Segundo Gaulejac trata-se de
um culto à excelência, um modelo cultural de comportamento que parte do
pragmatismo, da conquista, da performance e do sucesso. Essa excelência é bem
diferente da aprendizagem de uma profissão, que corresponde a um saber que vai
acumulando com o tempo.
“A nova excelência é aqui entendida num outro sentido: procurar a excelência
é procurar ultrapassar-se aproximar-se da perfeição, vencer-se a si próprio
como o alpinista que procura ir cada vez mais alto...” (AUBERT; GAULEJAC
apud SÁ, 2010, p. 7)
Nessa acepção, ela tem um caráter efêmero, de conquista pessoal, de
concorrência de indivíduos consigo próprio e com os outros na procura de sucesso.
Assim a preocupação da excelência, associada a uma seleção permanente dos
trabalhadores, significa que o indivíduo vive o seu cotidiano de trabalho em stress
constante e insegurança permanente. Essa avaliação constante lembra o mito de
sísifo, necessidade constante de legitimar sua competência. O que está em jogo em
relação ao trabalho, já não é conseguir fazer o trabalho bem feito, mas jogar o jogo,
onde o azar e a sorte estão presentes, segundo Sennett:
54
“O gosto pelo risco já não é considerado apanágio dos capitalistas e relação
a lugares especulativos ou de personalidades muito aventurosas. O risco
tornou-se uma necessidade cotidiana que pesa sobre os ombros da massa. ”
(SENNETT, 2012, p. 110)
55
CAPÍTULO 2 - SOCIEDADE DE CONTROLE
Analisamos a importância do conceito de sociedade disciplinar proposto por
Michel Foucault, e sua relação com o Fordismo, no que diz respeito à temática do poder.
A passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de controle é sintetizada por
Deleuze como uma forma diferenciada de organização do poder, onde a fábrica é
substituída pela empresa. Para Hardt (2000) essa passagem não anula a disciplina, antes
a intensifica por mecanismos mais sutis. Também reflito sobre o êxito do neoliberalismo e
da mutação antropológica que ele empreende criando figuras subjetivas específicas, cujo
propósito é reproduzir e perpetuar o modelo neoliberal. Exploramos também o conceito de
noopolítica, elaborado por Lazzarato, para dar conta das novas técnicas de controle,
entendidas como um conjunto de dispositivos que visam capturar e controlar a cooperação
entre cérebros para explorá-los economicamente.
2.1 Da sociedade disciplinar à sociedade de controle
É possível analisarmos a relação entre a empresa e o trabalhador como uma
relação de poder por intermédio da qual a primeira apreende o conhecimento
produzido pelo segundo. A disciplina de gestão do conhecimento, que esteve muito
em voga no meio corporativo nos anos 1990 e parte dos anos 2000, preconizava que
o conhecimento tácito do trabalhador deveria ser capturado e registrado em meio
eletrônico, tornando-se um ativo valioso para a empresa. Difundiu-se uma infinidade
de aplicativos de software que se prestavam a esse papel, entretanto como
argumentarei mais adiante, a captura do conhecimento se dá por dispositivos mais
sutis e menos intrusivos, não dispensa a tecnologia e vai além dela, diante de uma
produção biopolítica do saber, em uma sociedade do controle, que se dá
hegemonicamente em rede digital, e também da reprodução de trabalhadores mais
aptos ao trabalho flexível, multidisciplinar, alicerçado na qualificação ininterrupta,
facultando à empresa a prerrogativa de substituir rapidamente um trabalhador por
outro ou obter a informação que necessita no manancial inesgotável de conhecimento
na internet, e na própria rede que se forma a partir da empresa, com base no estímulo
à cooperação e colaboração, agregando todo valor e conhecimento aos produtos e
56
serviços criados, em ciclos de trabalho cada vez mais curtos e intensos.
A temática do poder foi exaustivamente perscrutada por Michel Foucault ao
longo de sua vasta obra, colocando o debate em uma perspectiva diferente dos
contratualistas que difundiram entre os séculos XVI e XVIII a ideia do Estado como
estrutura fundamental de organização da sociedade, portanto monopolizando todo o
poder garantido por um arcabouço jurídico. Em Vigiar e Punir Foucault analisa formas
históricas de poder e elabora o conceito de sociedade disciplinar constatando que as
relações sociais são constituídas por relações de poder e saber. O poder seria uma
teia que envolve a todos, não podendo, portanto, ser atribuído à uma instituição
qualquer. O poder deve ser analisado a partir das técnicas de dominação que o
viabilizam, portanto, o poder não pode ser apropriado, não é privilégio de um indivíduo,
grupo ou classe. Sobre o fenômeno do poder Foucault afirma que:
“É preciso não tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço e
homogêneo de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros,
de uma classe sobre outras; mas ter bem presente que o poder não é algo
que se possa dividir entre aqueles que o possuem e o detém exclusivamente
e aqueles que não os possuem. O poder deve ser analisado como algo que
circula, ou melhor, como algo que funciona em cadeia [...]. Nas suas malhas
os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este
poder e de sofrer sua ação [...]” (FOUCAULT, 2014, p. 193).
A importância que o conceito de sociedade disciplinar ganha nesse trabalho
parte de duas percepções, a primeira de que segundo Foucault, o auge desse regime
de poder alcança seu apogeu no final do século XIX e início do século XX, coincidindo
com o nascimento e consolidação do Fordismo. A segunda, viabilizar a análise do
surgimento de um outro regime de poder, a sociedade de controle, a partir do declínio
da sociedade disciplinar após a Segunda Grande Guerra Mundial.
A análise que Foucault empreende parte das práticas de punição presentes
na idade média, notadamente o suplício, como expressão de poder absoluto do
soberano. Paulatinamente esse poder será questionado e substituído por mecanismos
57
de vigilância e controle. Cada instituição produzirá um conjunto próprio de normas
para fazer funcionar esses mecanismos. A norma foi o veículo pelo qual o poder
soberano se disseminou pelo tecido social possibilitando o exercício da disciplina
sobre os indivíduos constituindo relações de poder. Sobre o poder disciplinar Foucault
ressalta que:
“É com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como
função maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar
ainda mais e melhor. [...] Em vez de dobrar uniformemente e por massa tudo
o que lhe está submetido, separa, analisa, diferencia, leva seus processos de
decomposição até às singularidades necessárias e suficientes. “Adestra” as
multidões confusas, móveis, inúteis de corpos e forças para uma
multiplicidade de elementos individuais [...] A disciplina “fabrica” indivíduos;
ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo
tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. ” (FOUCAULT,
2014, p. 167)
O poder se exercerá de uma forma microscópica, quase imperceptível, sobre
corpos obedientes e úteis, o corpo humano “entra numa maquinaria de poder que o
esquadrinha, o desarticula e o recompõe” (FOUCAULT, 2014, p. 135).
Aumenta a potência do corpo em termos econômicos diminuindo essa mesma
potência em termos políticos. Para Foucault essa produção de corpos produtivos e
submissos é realizada mediante um saber específico constituindo uma microfísica do
poder ou uma nova anátomo-política.
Tratam-se de dispositivos minudentes, que medirão o tempo e o espaço, para
que os corpos sejam ritmados a partir de uma ordem social burguesa estabelecida.
À primeira vista poderá parecer que Foucault sugere que o poder seja
essencialmente repressivo, entretanto há resistência, há confronto de forças nesse
terreno cotidiano, as lutas ocorrem nas finas teias da estrutura social. A posição social
define de que forma essa relação de poder se estabelecerá, entretanto, tal relação
não se resume aos polos dominante e dominado, porque para Foucault trata-se de
58
um fenômeno positivo que produz coisas, conhecimento, prazer, uma rede produtiva
que atravessa a sociedade, nesse caso lemos dominação como exercício de poder e
não como repressão. Apesar da dominação ser muito heterogênea, levando em
consideração os diversos papéis que um indivíduo exerce pautado pelas normas
próprias das instituições onde ele os exerce (trabalho, família, igreja, escola), o poder
não pode ser visto sob uma perspectiva de dominação de um sobre o outro, é algo
que circula. O indivíduo mesmo em situação de dominação poderá reivindicar seu
espaço e criar seus mecanismos de poder.
O poder disciplinar foi fundamental para que a Revolução Industrial lograsse
sucesso. Os mecanismos de vigilância e controle permitiram que o corpo, o tempo e
o trabalho fossem organizados eficientemente para promover o acúmulo de capital.
As fábricas eram construídas de tal forma a privilegiar a fiscalização dos trabalhadores.
O Panóptico de Jeremy Bentham é um modelo arquitetural que sintetiza novos
mecanismos do poder disciplinar. Segundo Foucault:
“O Panóptico funciona como uma espécie de laboratório de poder. Graças a
seus mecanismos de observação, ganha em eficácia e em capacidade de
penetração no comportamento dos homens: um aumento de saber vem se
implantar em todas as frentes do poder, descobrindo objetos que devem ser
conhecidos em todas as superfícies onde este se exerça” (FOUCAULT, 2014,
p. 198).
O Panoptismo tornou-se uma metáfora para o sistema de vigilância e controle,
exercido nas prisões, escolas, nas fábricas, o objeto desse sistema são as relações
de disciplina, nesse sistema os indivíduos sentem-se controlados pelo olhar do
observador. A abordagem disciplinar também incidiu sobre o tempo, tornando-o
organizado, otimizado e rentável. Dividir a duração em segmentos, organizar os
segmentos de acordo com um esquema analítico, fixar o término dos segmentos para
examinar os resultados obtidos, a partir desse esquadrinhamento do tempo coloca-se
as atividades em série, que o poder controla e corrige, possibilitando com que os
59
indivíduos fossem aproveitados de acordo com seu nível. Tais práticas podem ser
observadas nas fábricas tayloristas-fordistas e até hoje em atividade como a gestão
de projetos. Foucault destaca que:
“O ponto de apreço é o ‘exercício’, a técnica pela qual se impõe aos corpos
tarefas ao mesmo tempo repetitivas e diferentes, mas sempre graduadas.
Dirigindo o comportamento para um estado terminal, o exercício permite uma
perpétua caracterização do indivíduo, seja em relação a esse termo, seja em
relação aos outros indivíduos, seja em relação a um tipo de percurso. Assim
realiza, na forma da continuidade e da coerção, um crescimento, uma
observação, uma qualificação. ” (FOUCAULT, 2014, p. 158)
O corpo é apenas uma engrenagem em uma máquina da qual a disciplina visa
obter a máxima eficiência. O estabelecimento de horários fixos viabiliza o controle das
atividades, a divisão do tempo nasceu da prática religiosa como técnica para
estabelecer rotinas, foi incorporado no cotidiano por intermédio das escolas e
amplamente utilizados na fábrica. O poder disciplinar também buscou regular a
ocupação dos espaços, por meio de técnicas fixas e clausura, um espaço útil, com a
privacidade necessária para o exercício das atividades, mas constantemente vigiado
e hierarquizado. O poder disciplinar se estabelece nesse espaço-tempo controlado,
preservando o corpo para que seja dócil e produtivo. A trajetória dos corpos deve ser
meticulosamente pensada. Esse papel cabia à disciplina de organização e métodos,
ensinada nas faculdades de administração e amplamente exercida nas empresas e
fábricas e muito em voga pelo menos até a década de 1990.
A burguesia não sustentaria sua hegemonia somente com o aparato jurídico,
são necessárias tecnologias de poder disseminadas pelo tecido social de maneira
capilar. A divisão do trabalho proporciona um controle mais eficaz porque o
trabalhador deve executar atividades em tempos determinados, jamais conhecendo
todas as etapas do processo, conhecimento que lhe é vedado sendo apropriado pelo
capitalista, com a administração científica de Taylor e as inovações promovidas pelo
60
Fordismo principalmente no que diz respeito às especializações para restringir o
conhecimento e a linha de produção para maximizar a exposição dos trabalhadores,
esse controle e essa captura de saberes é levada às últimas consequências, restando
o trabalho intenso e alienado. Como já mencionado nessa pesquisa, tal controle se
efetuou com muita resistência, principalmente sindical. A vigilância perscruta a
maneira de ser dos indivíduos, suas atitudes e comportamentos, acumulando assim
conhecimento que possa ser utilizado para balizar condutas mediante exames
constantes e a partir de normas específicas. Essa relação simbiótica entre saber e
poder, o saber respaldando o exercício do poder e o poder viabilizando o acúmulo de
saber é basilar para a acumulação de capital. Os mecanismos de poder e produção
de saberes para Foucault ocorre de forma recíproca, porém a ausência de consciência
dessa via de mão dupla pode comprometer a autonomia e prolongar a dominação.
A apropriação do corpo na visão da sociedade disciplinar visa a apropriação
do tempo, uma vez que o tempo seja apropriado é possível pelo decurso de uma
infinidade de mecanismos disciplinares, extrair da força de trabalho, a maior lucro
possível. O poder que se exerce sobre o trabalhador é múltiplo, primeiro econômico,
para sobreviver necessita vender sua força de trabalho, segundo político, por
intermédio de uma hierarquia de comando e controle dentro das empresas, e por
último jurídico que regula essas relações e estabelece as punições necessárias.
Um dos aspectos já mencionados nesse trabalho sobre a relação de trabalho
diz respeito ao tipo de contratação que se modificou na reestruturação produtiva,
submetido à flexibilização redundando em precarização e intensificação do trabalho.
A perda de direitos trabalhistas em tempos pós-fordistas e neoliberais enfraquece uma
relação de poder que poderia ser mais equilibrada. O tipo de contrato que se
estabelece, portanto é um mecanismo de poder que preserva certa simetria garantida
por dispositivos legais. Vivemos um momento no Brasil no qual tal simetria entre as
partes está sendo vilipendiada por mudanças jurídicas e políticas que visam privilegiar
ainda mais o capital.
61
Foucault associa a tomada de consciência dentro do processo produtivo ao
cuidado de si, quando o trabalhador faz uso do seu poder e se apropria do saber
produzido nas relações, atua de forma coletiva para equilibrar a assimetria das
relações de trabalho e conquistar certa emancipação. Mais adiante problematizarei
essa questão do cuidado de si na perspectiva da sociedade do controle argumentado
por um lado a possibilidade de emancipação real e por outro a produção de indivíduos
empreendedores.
2.2 Sociedade de controle
Hardt e Negri situam a passagem da sociedade disciplinar para a sociedade
de controle com base na ideia do enfraquecimento da sociedade civil, e a passagem
do imperialismo dos estados-nação para uma ordem mundial das empresas
transnacionais e o mercado mundializado. Os moldes fixos das sociedades
disciplinares dão lugar às redes flexíveis e moduláveis.
“Os muros das instituições estão desmoronando de tal maneira que suas
lógicas disciplinares não se tornam ineficazes, mas se encontram, antes,
generalizadas como forma fluida através de todo corpo social. O “espaço
estriado” das instituições da sociedade da disciplina dá lugar ao “espaço liso”
da sociedade de controle”. (HARDT, 2000, p. 357).
Se os muros das instituições vêm abaixo, as distinções entre dentro e fora se
esmaecem, a soberania se defina pelo seu território e sua relação com todo o resto.
O espaço da modernidade é estriado, o espaço do império na pós-modernidade é liso,
o poder está em todos os lugares e em lugar nenhum, é uma utopia, um não lugar.
Para Hardt império, sociedade de controle e pós-modernidade são sinônimos.
As consequências do esmaecimento da fronteira que separava o dentro e o
fora se traduzem em uma produção social de subjetividade, que segundo as análises
62
empreendidas por Foucault, Deleuze e Guattari, é tecida a partir do campo de forças
sociais, estão enraizadas nele.
Trata-se de um processo em constante produção e reprodução, as ações
quotidianas formam e conformam as subjetividades, na visão de Hardt (2000, p. 368)
as instituições são como “arquipélagos de fábricas de subjetividades”. Nas instituições
modernas o lugar exercia forte influência na construção das subjetividades. Na
passagem para a sociedade de controle se intensificou a produção de subjetividades,
a lógica das instituições que antes funcionavam no seu interior agora se expande para
todo o social. A prisão antes da clausura, agora é a prisão movediça das tornozeleiras
eletrônicas. A crise é a indistinção do dentro e do fora, entretanto continuamos
capturados pelos tentáculos das lógicas e técnicas institucionais, da família, da escola,
da prisão, das fábricas, dos hospitais, que invadiram todos os espaços sociais.
Se não há um lugar para a produção de subjetividades, as mesmas são
produzidas de forma vaga e indefinível. O capitalismo encontra seu lugar privilegiado
de reprodução, sua velocidade de penetração nos espaços mais recônditos, é
diretamente proporcional ao desregramento. Um processo leve e fluido corrompe a
subjetividade continuamente, não obstante a passagem à uma sociedade de controle
deve variar em extensão e profundidade, dependendo da economia de um país e suas
instituições. De qualquer forma, qualquer regime de produção, seja ele taylorista-
fordista ou pós-fordista, somente se estabelece com a cooperação de instituições
sociais, econômicas e políticas, e seus respectivos gurus, evangelizadores e diáconos,
responsáveis por disseminar o espírito necessário. Na visão de Hardt seria parte de
um projeto imperial exportar a crise institucional:
“Em suma, enquanto no processo de modernização os países mais
poderosos exportavam, para os países dependentes, formas institucionais,
no atual processo de pós-modernização, o que se exporta é a crise geral das
instituições. A estrutura institucional do império é como um programa de
computador que contém um vírus, de forma que modularia e corromperia
continuamente as formas institucionais que o cercam”. (HARDT, 2000, p. 370).
63
Nessa sociedade de controle, imperial ou pós-moderna, as contradições e
ambiguidades se proliferam, caracteriza-se pelo hibridismo e pela corrupção, no
sentido de se esfacelar. É o caminho para estabelecer uma sociedade
substancialmente capitalista. Na sociedade moderna e disciplinar existia uma
superioridade do poder de Estado em relação às potências da sociedade, era marcado
por uma transcendência, conferindo ao espaço social uma qualidade de territorializado
e estriado. Nas sociedades de controle vigora uma forma de Estado imanente.
Para compreender as mudanças nas modalidades de governo
contemporâneas, principalmente a passagem de um poder de soberania, que se
ocupava de decidir sobre a morte do súdito e administrar sua vida, para um biopoder
que se apropria da totalidade dos processos vitais como objeto de governo. Nos
séculos XVII e XVIII surgem técnicas de poder centradas no corpo individual,
sociedade disciplinar, que promove uma dominação social a partir de dispositivos que
produzem e regulam hábitos e práticas, em espaços fechados. A partir da segunda
metade do século XVIII surge a biopolítica, tecnologia de poder que não se caracteriza
pela disciplina, todavia não a exclui, a biopolítica se estabelece nos espaços abertos,
e se dirige à espécie, seu objeto é a população, e suas ferramentas a estatística, as
previsões, as medidas globais. Trata-se de gerir a vida por intermédio de políticas
diversas: econômica, de saúde, de saneamento, de família, estabelecendo uma
margem de segurança contra os imprevistos que afetam a população.
O Biopoder como tecnologia de governo está presente tanto nas disciplinas
voltadas para os corpos, individualizantes como na biopolítica que objetiva a
população. Segundo Foucault em Segurança, Território e População não existe uma
linearidade de fases que se sucedem, apagando o rastro e se colocando como
tecnologia de poder única, ocorre uma mutação apresentando características distintas.
Trata-se precisamente da sociedade de controle, que difere da biopolítica no sentido
de que objetiva algo além dos processos biológicos (nascimento, morte, epidemias).
Tal tecnologia de poder viabiliza-se pela evolução tecnológica dos meios de
64
comunicação, dispositivos que visam controlar os cérebros, modular a memória, os
afetos e desejos dos indivíduos.
Nessa nova configuração o marketing e a publicidade assumem uma posição
de destaque pois de forma perspicaz, sutil e extenuante cria subjetividades e mundos
possíveis. Uma verdadeira crise institucional deixa entrever a emergência da
sociedade de controle, os espaços fechados sofrem reformas, já não exercem as
mesmas funções. Ainda existem, mas não explicam por si só todos os dispositivos de
governo. Os mecanismos de controle vão paulatinamente se articulando com as
disciplinas, administrado corpos, espaços e tempos de uma forma diversa, Deleuze
(2013) propôs o marketing como o novo modelo de controle social, como práticas de
gestão que modulam as multiplicidades em espaço aberto. As sociedades
disciplinares eram marcadas por redes institucionais estáticas, nas sociedades de
controle os mecanismos de controle tecem redes flexíveis, capazes de identificar a
posição de um elemento, de como eles se posiciona diante de si e dos outros, por
quais mudanças passou, o que pretende, doravante as mentes, as subjetividades, a
existência, serão mapeadas com precisão. Por um lado, essas redes flexíveis
expressam-se de forma aberta e transigente, por outro será astuta e extenuante, o
capitalismo para além de produzir coisas, produzirá sujeitos e formas de vida, estendo
os mecanismos de dominação sobre todas as relações sociais.
Nas sociedades de controle passamos de um modelo de fábrica para um
modelo de empresa, que procura modular, segundo Deleuze (2013), o salário que
varia de acordo com os méritos conquistados. Assim como a educação permanente e
continuada sucederá a escola, o sistema de modulação ocupará todos os espaços
sociais associando méritos acumulados à benefícios cedidos.
Deleuze (2013) dirá que não se trata mais de fabricar a partir de matéria-prima,
mas de comprar produtos prontos e montar peças, porque o objetivo é vender serviços.
Podemos constatar esse processo na área de software, com o surgimento das
arquiteturas orientadas a serviços (SOA), a componentização intensa, conjunto de
65
ferramentas para Cloud e BigData, modulares e parametrizadas, além da infinidade
de engrenagens de software para as mais variadas finalidades, extremamente
configuráveis. A área comercial e de marketing se transformaram na alma da empresa.
No centro da produção capitalista e da extração de mais-valia estão as capacidades
cognitivas e afetivas, a economia, o político e o cultural se imbricam de maneira
indissociável em uma produção biopolítica, os mecanismos de controle ocupam
mentes e corpos. A vida se torna uma engrenagem do capital sob um controle
perpétuo.
Os comportamentos de integração social e de exclusão próprios do mando
são, assim, cada vez mais interiorizados nos próprios súditos. O poder agora
é exercido mediante máquinas que organizam diretamente o cérebro (em
sistemas de comunicação, redes de informação etc.) e os corpos (em
sistemas de bem-estar, atividades monitoradas etc.) objetivando um estado
de alienação independente do sentido da vida e do desejo de criatividade.
(HARDT; NEGRI, 2001, p. 42)
A cooperação entre mentes começa fora da empresa, na produção de
conhecimento, linguagem, ciência, informação, posteriormente essa produção será
assimilada pela máquina capitalista, a cooperação de se dá forma pública, a
sociedade de controle captura no campo das relações sociais a produção da
cooperação entre cérebros que não mais se pode confinar. Novas políticas de poder
foram gestadas para além das biopolíticas e disciplinas que vigoraram no Estado de
bem-estar social e da organização do trabalho fordista.
Os acontecimentos que marcaram o ano de 1968 suscitam novas
subjetividades que lutam contra a apropriação privada do comum produzido e
asseveram a sua livre circulação, surgem então novas tecnologias de controle para
se apropriar dessa produção, por esse motivo a cognição e os afetos ocupam um lugar
de destaque, sendo o principal alvo dos mecanismos de controle e dos processos de
geração de riqueza. Os mecanismos de controle pavimentam o caminho para a
66
acumulação capitalista, quando captura as potencias cognitivas e afetivas, não
deixando escapar nenhuma dimensão da vida. A máquina comunicativa exercerá um
papel central nesse modelo de produção, controlando e capturando os fluxos de
trabalho e desejo no interior da urdidura social, a publicidade encontra a sua razão de
ser na produção de subjetividade.
Lazzarato (2006) cria o conceito de noopolítica para dar conta das novas
técnicas de controle, para Lazzarato os dispositivos de poder que nascem em épocas
distintas e tem propósitos diversos não se substituem, antes se agenciam mutuamente.
Assim o modelamento dos corpos se dá nos espaços confinados, a gestão de
populações através de técnicas biopolíticas, e a modulação da memória é pautada
pela noopolítica, a partir de redes tecnológicas, marketing e formação da opinião
pública. A memória é o que o capitalismo quer capturar para controlar a cooperação
entre cérebros. A partir da modulação de desejos e crenças, o noopoder pretende
capturar a inteligência, a memória e a atenção, para explorá-las economicamente,
novas subjetividades serão forjadas pela instituição da opinião pública e pela ação do
marketing. No final do século XIX surgem novas tecnologias de poder que agenciam
subjetividades no espaço aberto, marca o momento de nascimento da atual sociedade
de controle que se caracteriza pela emergência da cooperação entre cérebros e seu
funcionamento por fluxos e redes, e desenvolvimento de dispositivos tecnológicos de
ação à distância como telegrafo, o telefone, o cinema, televisão, internet.
Para Lazzarato (2006), Gabriel Tarde, é testemunha privilegiada dessa época,
e ele traçara um esboço de sociedade cuja centralidade é ocupada pela categoria por
ele denominada de público, não se tratando destarte de classe, massa ou população.
Tarde entenderá por público, não mais o público determinado por posição social ou
pela tradição, remete ao aditamento de algum produto, serviço ou opinião. O público
da mídia, dos meios de comunicação, “é uma massa dispersa, cuja influência de uns
espíritos sobre os outros se converte em uma ação a distância” Lazzarato (2006, p.
90).
67
A cada tipo de sociedade, evidentemente, pode-se fazer corresponder um tipo
de máquina: as máquinas simples ou dinâmicas para as sociedades de
soberania, as máquinas energéticas para as de disciplina, as cibernéticas e
os computadores para as sociedades de controle. Mas as máquinas não
explicam nada, é preciso analisar os agenciamentos coletivos dos quais elas
são apenas uma parte. (DELEUZE, 2013, p. 220)
A captura da multiplicidade de subjetividades se dará pelas novas tecnologias
de ação à distância, que se desenvolvem e se influenciam mutuamente em espaço
aberto. O que nos remete a uma subjetividade midiática. As máquinas de expressão,
constituída por tecnologias de velocidade, transmissão e contágio, vão modular por
intermédio do marketing, as vontades, desejos e crenças compartilhadas por um
público. A instituição da opinião pública e da inteligência coletiva junto com as
tecnologias de ação à distância vão expressar as novas relações de poder. O controle
sobre a opinião, estilo de vida e identidades vai além da disciplina e da biopolítica.
Trata-se de um modo de subjetivação que vem na esteira dos acontecimentos de 1968,
presentes nos movimentos culturais e políticos, caracterizada pela produção de bens
comuns através da cooperação entre cérebros.
Ainda a partir de uma perspectiva da sociedade de controle, podemos afirmar
que o empresário de si mesmo, produzido por intervenções neoliberais, garante que,
a partir de uma estrutura competitiva, todos os agentes sociais assumam seus riscos,
e encontrem por si mesmos, seu espaço na economia de mercado.
O capitalismo busca capturar a memória para controlar a produção entre
cérebros, a gestão desses mecanismos se dará por dispositivos noopolíticos, desse
modo as tecnologias de ação à distância operam como memórias artificiais
conectadas a memória e atenção dos indivíduos. O que se gerencia é a vida articulada
a máquinas de informação, com bases de dados, grandes reservatórios de
informações. Tudo está registrado, as consultas médicas, as dívidas, as compras, os
desejos e os sonhos, os hábitos alimentares, as preferências músicas e estéticas.
Esse é um tipo de governo que depende dos regimes de empresas, não do Estado,
68
embora exista articulação entre ambos. A empresa, pois, deverá criar mundos mais
do que mercadorias, para acolher a todos os indivíduos.
“E de que mundo se trata? Basta ligar a televisão ou o rádio, fazer um passeio
pela cidade, comprar um jornal ou uma revista, para saber que este mundo é
constituído pelos agenciamentos de enunciação, pelos regimes de signos em
que a expressão recebe o nome de publicidade e em que a expressão
constitui uma solicitação, um comando, que são, eles mesmos, formas de
avaliação, de julgamento, repertório de crenças trazido para o mundo, a
respeito de si mesmos e dos outros. A expressão deixa de ser uma avaliação
ideológica para se tornar uma incitação, um convite a partilhar determinada
maneira de se vestir, de ter um corpo, de comer, de comunicar, de morar, de
deslocar-se, de ter um gênero, de falar e assim por diante. ” (LAZZARATO,
2006, p.100)
Doravante será o mercado o articulador das relações sociais, não mais o
Estado, nem tampouco a sociedade civil. A produção noopolítica promove uma
homogeneização e não a singularização das individualidades.
É possível fazer uma conexão com as categorias de “maioria” e “minoria”
elaboradas por Deleuze, que não se refere a quantidade de pessoas, mas a um perfil
subjetivo específico utilizado como padrão de medida para outras subjetividades. A
gestão noopolítica da vida nas sociedades de controle se dá pela criação de modelos
predominantes. O jovem cheio de vida e energia, desejando se inserir no mercado,
usuário de tecnologia, buscando uma formação constante, não se constitui em maioria
no mercado de trabalho, mas serão as técnicas de marketing que estabelecerão um
molde, conformando desejos e crenças. Esse molde norteará uma infinidade de
iniciativas do mercado. As máquinas de expressão respondem a interesses de setores
dominantes, conformando perfis de subjetividades, como a subjetividade do
“empreendedor de si” tão cara ao neoliberalismo vigente. Assim se dá a modulação
de condutas, de comportamentos, de desejos, na sociedade de controle. Todos serão
afetados por essas máquinas de expressão e captura, que seguem rigorosamente uma
gramática neoliberal, dando origem a uma massa despolitizada e sequiosa por dinheiro.
69
2.3 Trabalho imaterial
O conceito de trabalho imaterial foi construído a partir das experiências de
Antônio Negri no movimento operaísta na Itália entre as décadas de 1960 e 1970.
Nesse período ocorre a fase mais aguda da transição do fordismo para o Pós-
Fordismo.
Desse acontecimento depreende-se o declínio do operário fordista habituado
ao trabalho mecânico da produção em massa, que será substituído por tipo de
operário que se depara com situações diversificadas, espera-se que tome decisões
assertivas, que exigirão mais qualificação, habilidades cognitivas, afetivas,
comunicativas, cooperativas. A hierarquia e o comando-controle passam a afetar
sobremaneira a produtividade, porque coloca empecilhos à criatividade e inovação,
conquistadas às custas do engajamento anímico irrestrito dos indivíduos. Na
linguagem contábil os produtos criados a partir da perspectiva do trabalho imaterial
serão considerados intangíveis, comunicação, informação ou relações afetivas.
Salienta-se que a característica principal não é o produto gerado, mas o processo em si.
O desenvolvimento de software enquadra-se nessa categoria de trabalho
imaterial, atividade que exige um grande esforço cognitivo e de comunicação, voltado
para resolução de problemas complexos, lida o tempo inteiro com linguagens de
programação atividade puramente simbólica, deve-se considerar que o código escrito
de alguma forma comunica ideias e estabelece procedimentos que serão executados
de acordo com algoritmos escritos pelo desenvolvedor. Mas também implica em
trabalho afetivo, pois além da sensação de bem-estar e satisfação que persegue ao
resolver problemas complexos e criar soluções com qualidade, deve interagir com
seus pares de maneira a compartilhar e buscar harmonia, e também interagir com
clientes e outros atores envolvidos nesse processo produtivo visando também a sua
satisfação.
Os departamentos de recursos humanos das empresas passam a orientar
70
seus colaboradores no sentido de serem mais cordiais na comunicação corporativa,
generosos, educados, da importância do traquejo social, do jogo de cintura, da
resiliência, de suportar de forma positiva as pressões e contradições do ambiente de
trabalho, fazendo do trabalho afetivo uma competência fundamental. O trabalho será
tão mais produtivo se as relações forem permeadas por confiança e espaço para o
ser e o fazer criativo.
No contexto do trabalho flexível, precário e intenso que procuramos
elucidar nesse trabalho, o conceito “colaborador” criado pelo discurso de gestão, soa
na verdade como um eufemismo que busca suavizar a realidade da exploração. O
termo amplamente utilizado atualmente busca passar a ideia de que o trabalhador é
artífice e protagonista do sucesso da empresa, adotando os objetivos da corporação
como se fossem seus próprios, o sujeito dessa forma se vê encapsulado pela cultura
organizacional. Vemos como o poder da linguagem, da comunicação e dos afetos,
utilizado pelo marketing interno das empresas tem uma eficácia insidiosa. Exalta a
cooperação, a tomada de decisões e a responsabilidade pela qualidade, produzindo
uma outra maneira de ver, sentir, pensar e fazer. Guarda relação estreita com o
processo perpétuo de qualificação, pois não se trata mais de disciplina, mas de uma
intensidade que o trabalhador impinge a si mesmo buscando um sentido existencial
entre objetivos que dizem respeito somente à empresa. Estratégia para garantir a
adesão do trabalhador ao trabalho fluído, multidisciplinar, que não se resume mais à
distribuição de tarefas, pois a exploração não está mais restrita ao tempo e espaço,
ela se dá de maneira rizomática ao sabor da sociedade de controle.
Ainda assim existe um esforço em automatizar todas as tarefas que forem
suscetíveis de serem automatizadas, reduzindo ainda mais o trabalho mais “braçal” e
repetitivo na produção de código. Há que se destacar também que o desenvolvedor
está inserido em uma rede gigantesca de blogs, sites técnicos, comunidades
tecnológicas de todo tipo, redes sociais, fóruns de discussão, de forma que muitas
soluções e troca de informações técnicas, de negócio e comportamentais ocorrem o
71
tempo inteiro, inclusive fora do trabalho, no suposto “tempo livre”. Cooperação que
extrapola os limites da empresa, em alguns momentos se tem a impressão de uma
diluição da individualidade em um mar de informações, ideias, conhecimentos e
experiências. Segundo Hardt e Negri:
“A informação, a comunicação e a cooperação tornam-se as normas da
produção, transformando-se a rede em sua forma dominante de organização.
Assim é que os sistemas técnicos de produção correspondem estreitamente
a sua composição social: de um lado, as redes tecnológicas, e de outro a
cooperação dos sujeitos sociais que trabalham” (HARDT; NEGRI, 2012, p.
156)
Essa nova estrutura do trabalho predispõe novas formas de exploração, no
fordismo a exploração do valor era baseada na espoliação da medida do tempo
individual ou coletivo, no Pós-Fordismo a espoliação se dará pelo trabalho cooperativo.
Na economia muitos tipos de trabalho coexistem, entre eles apenas um assume o
papel de transformar os outros, tornando-se hegemônico. Para Hardt e Negri
hegemônico designa tendência. (Hardt e Negri, 2012, 148).
No fordismo o trabalho industrial foi hegemônico, não quantitativamente na
sua origem, o trabalho puramente braçal ainda caracterizavam a agricultura e a
mineração. Com o tempo todas as indústrias e formas de trabalho se viram
pressionadas a acompanhar as mudanças ditadas pelo fordismo. Paulatinamente o
ritmo de trabalho industrial colonizou outras instituições sociais, como a família, a
escola. Com o declínio acentuado do fordismo nos últimos anos da década de 1960 e
início da década de 1970, ganha destaque o trabalho imaterial, cuja essência está na
produção de conhecimento, informação, comunicação, relações sociais, todo o resto
até mesmo o trabalho industrial passa a gravitar em torno desse núcleo que rearranja
todas as relações de trabalho e sociais. Na comunicação, afeto e cognição estão
sempre juntos, trata-se de uma unidade de corpo e mente que colocada em
movimento forma um todo produtivo e potente.
72
Quem produz software, por exemplo, deve ter em mente que ele deve
possibilitar “boas experiências” para os clientes, de forma que fiquem maravilhados,
que tenham a sensação de êxtase, a ponto de curtir, recomendar, emitir julgamentos
positivos, dessa forma o software ao ser utilizado cria afeto e também estimula a
cognição. Depois tudo isso pode ser capitalizado em uma campanha de marketing
que utilizará conhecimento, comunicação e afetos para gerar mais valor. Seja um
software comercial, um jogo digital ou o Internet Banking, o cliente também está
produzindo valor, afetos, conhecimento. Quando algo não lhe agrada ou apresenta
um defeito, mesmo sem receber por isso, ele interage com a empresa que vai
capitalizar essa experiência, e se possível corrigir as falhas, gerando mais valor. Ainda
assim a empresa fornecedora monitora os hábitos do cliente, formando uma grande
base de informações, conseguindo determinar aspectos que mais agradam. Veremos
adiante como a questão do feedback torna-se fundamental no processo de trabalho.
Hardt e Negri sugerem que o adjetivo biopolítico represente melhor essa nova
configuração do trabalho do que o termo imaterial, porque as fronteiras entre
economia, política e social praticamente esmaeceram-se, tornaram-se indistinguíveis.
A posição de hegemonia que o trabalho imaterial ocupa não se deve a seu aspecto
quantitativo, mas enquanto tendência, em um sentido qualitativo. Influencia outras
formas de trabalho e a sociedade como um todo.
Em outras palavras, Hardt e Negri sustentam que:
“O trabalho imaterial encontra-se hoje na mesma posição em que estava o
trabalho industrial há 150 anos, quando respondia por apenas uma pequena
fração da produção global e se concentrava em uma pequena parte do mundo,
mas exercia hegemonia sobre todas as outras formas de produção. Assim
como naquela fase todas as formas de trabalho e a própria sociedade tinham
de se industrializar, hoje o trabalho e a sociedade devem se informatizar”.
(HARDT; NEGRI, 2012, p. 151)
A hegemonia do trabalho imaterial também nada tem a ver com qualquer
73
teoria etapista, que utopicamente coloca o trabalho imaterial como sendo uma
evolução benéfica. Como alguns gurus da gestão, a exemplo da expressão
“trabalhador do conhecimento” cunhada por Peter Drucker, entre outros profetas da
nova economia.
Outra mudança profunda se dá com relação ao tempo de trabalho, que não
se restringe mais às horas dentro da empresa. Isso se faz notar com clareza no
trabalho do desenvolvedor de software e outros trabalhos ligados a indústria digital,
dada a complexidade dos problemas e tecnologias envolvidas, adquire-se o hábito de
pesquisar e aprofundar conhecimentos tecnológicos, que não caberiam no espaço de
tempo produtivo contratado, ampliando capacitações e competências, mas também
criando um tipo de subjetividade nerd 3 , bastante apreciada nesse segmento de
negócio. Aqui o tempo de trabalho se expande como um gás, ocupando toda a vida
da pessoa. Afetos, conhecimentos, comunicação, são elementos que possibilitam um
compartilhamento quase infinito, não sendo possível estabelecer esse fundo comum
através de bens materiais. Para sustentar a tese da hegemonia do trabalho imaterial
como tendência, Hardt e Negri apresentam provas. (Hardt e Negri, 2012, 152)
Em primeiro lugar o crescimento do setor de serviços, principalmente nos
países dominantes. A produção material acaba sendo transferida para países
periféricos, seguindo os ditames globais da divisão de trabalho e poder.
Em segundo lugar outros setores da economia sofrem influências e acabam
se enquadrando nas exigências de adequação e assimilação de mecanismos de
3 “Nerd é um conceito sociológico moderno que por vezes é descrito como uma tribo urbana, muito
embora possua características gerais mais imprecisas do que a maioria delas, e embora também não
preceda à autoidentificação. A ideia de "nerd" está profundamente atrelada, historicamente, à
adolescência e juventude, bem como à cultura do sistema escolar dos Estados Unidos, ainda que
também tenha sido exportada para outros países. Em termos gerais, o nerd é uma pessoa vista como
excessivamente intelectual, obsessiva por assuntos que a maioria das pessoas não se interessa, e com
falta de habilidades sociais fora do meio nerd. Tal pessoa pode gastar quantidades excessivas de tempo
em atividades impopulares, pouco conhecidas ou não, que geralmente são altamente técnicas,
abstratas ou relacionadas a tópicos de ficção ou fantasia, com exclusão de atividades mais comuns”.
Disponível em:< https://pt.wikipedia.org/wiki/Nerd/>. Acesso em: 05 de ago. 2017.
74
produção de informação, comunicação e afetos. Além disso outros segmentos do
setor de serviços vão emergindo e proliferando a partir dessa produção, como as
diversas consultorias de marketing e comunicação, as consultorias de coaching, as
consultorias de head hunter, as consultorias de treinamento em geral, via de regra
incorporando conceitos como complexidade, recentes descobertas das neurociências,
escolas de psicologia que se prestam a todo tipo de papel pragmático e utilitarista.
Em terceiro lugar a crescente importância e preocupação com controles e
questões legais relacionadas à patentes e direitos autorais. Vale destacar que tal
obsessão se dá porque diferentemente da propriedade material, a produção imaterial
se dá em rede, de forma cooperativa, e seu valor está relacionado ou é diretamente
proporcional a sua circulação e reprodução, esse caráter fugidio dificulta a sua
apropriação.
Em quarto lugar a produção se dá em rede, de forma colaborativa, baseado
em troca de conhecimento, a rede tornou-se a gramática através da qual deciframos
e nos situamos no mundo.
2.4 O homo credor e a vida como dívida
O momento histórico pelo qual passamos reflete o êxito do neoliberalismo,
que operou uma profunda mudança antropológica, urdiu meticulosamente todos os
fios necessários para estabelecer um controle e uma opressão sem precedentes.
Dentro desse contexto Negri e Hardt sugerem quatro figuras subjetivas que nasceram
a partir dessa nefasta transformação: o homem endividado, o homem midiatizado, o
homem securitizado e o homem representado.
O endividado é aquele que tem sua vida e sobrevivência pautada pela dívida.
O avanço neoliberal sobre as políticas de bem-estar transformou necessidades sociais
em produtos e serviços adquiridos mediante financiamento. Essa relação de controle
criada pelos contratos de prestação de serviços e financiamento de bens essenciais
75
molda nossos ritmos e escolhas, como exemplifica Negri e Hardt:
“Se você terminar o curso superior endividado, deverá aceitar o primeiro
emprego oferecido a fim de honrar sua dívida. Se comprar um apartamento
hipotecado, não deverá perder seu emprego, tirar férias, nem pensar em
deixar o trabalho. “ (HARDT; NEGRI, 2014, p. 160)
A dívida exerce uma coerção utilizando um expediente de culpa minando a
potência subjetiva e subordinando os endividados à uma lógica espúria. A produção
capitalista não está mais confinada às paredes de uma fábrica, expandiu-se
açambarcando a vida, explora nossas capacidades de criação, comunicação e afeto,
rompeu as barreiras de tempo do trabalho e não trabalho, atravessando nossas
subjetividades à velocidade da luz, quase não deixando rastros. O sentido do trabalho
mudou, mesclou-se de tal forma à vida, que faz coexistir liberdade e sujeição em um
paradoxo quotidiano por vezes indecifrável. O capitalismo, entretanto, precisa
subjugar, caso contrário o processo de acumulação corre risco de se romper, tal é sua
capacidade de se adaptar, para se esquivar do risco, da incerteza, coloca o motor da
acumulação na renda que se vale mais de instrumentos financeiros do que do lucro
propriamente dito, a dívida, portanto passa a ser o fiel da balança na relação de
produção. A dívida aqui assume um caráter mais amplo, não é só financeiro, mas de
trabalho, de consentimento, de excelência, de tempo. A medição de produtividade que
desde os primórdios do capitalismo se mostrou como ferramenta imprescindível de
comando e controle, perdeu sua legitimidade nessa nova máquina de fragmentar
corpos e almas. A dívida passa a exigir um comprometimento de produção em regime
de 24/7, como afirma Crary:
“Um ambiente 24/7 aparenta ser um mundo social, mas na verdade é um
modelo não social, com desempenho de máquina - e uma suspensão da vida
que não revela o custo humano exigido para sustentar sua eficácia [...] a
novidade está na renúncia absoluta à pretensão de que o tempo possa estar
acoplado a quaisquer tarefas de longo prazo [...] O tempo 24/7 é um tempo
76
de indiferença, ao qual a fragilidade da vida humana é cada vez mais
inadequada. ” (CRARY, 2015, p. 65)
O esforço midiático em esmaecer as fronteiras entre a necessidade e o
supérfluo coloca a relação consumo-sobrevivência em outro patamar, constituindo-se
em outra engrenagem na máquina da dívida. Crary lembra que:
“A ausência de restrições de consumo não é simplesmente temporal. Foi-se
a época em que a acumulação era, acima de tudo, de coisas. Agora nossos
corpos e identidades assimilam uma superabundância de serviços, imagens,
procedimentos e produtos químicos em nível tóxico e muitas vezes fatal. A
sobrevivência do indivíduo, a longo prazo, é sempre dispensável, se para
tanto seja preciso contar, mesmo que indiretamente, com a possibilidade de
interregnos sem compras ou sem o fomento delas. ” (CRARY, 2015, p. 71)
Atualmente vivemos um dilema no que diz respeito ao acesso à informação,
que não passa pela escassez, mas pelo excesso. O indivíduo não tem mais um
espaço existencial a partir do qual possa digerir todas as informações que recebe,
Deleuze falará de “vacúolos de solidão e de silêncio a partir dos quais eles teriam,
enfim, algo a dizer”. (DELEUZE, 1992, p. 166)
Para além da subjetividade ativa ou passiva, existe uma disputa sem trégua
pela atenção. O trabalho e a economia dependem cada vez mais da tecnologia e da
comunicação, sem as quais a colaboração da produção biopolítica não seria possível.
A mídia exerce uma dupla influência sobre a subjetividade ora aprisionando, ora
libertando.
Segundo Negri e Hardt podemos buscar uma inspiração na definição de
trabalho vivo e trabalho morto de Marx para entender o processo de produção da
informação:
“Enquanto a linguagem morta da administração e das máquinas codifica e
reforça o funcionamento da disciplina e as relações de subordinação, a troca
77
de informação viva entre os trabalhadores pode ser mobilizada na ação
coletiva e insubordinação [...] A classe e as bases da ação política são
formadas não por meio da circulação das informações ou até mesmo das
ideias, mas sim mediante a construção de afetos políticos, o que requer a
proximidade física. ” (HARDT; NEGRI, 2014, p. 102).
O homem midiatizado está sobrecarregado de informação morta, já não pensa,
apenas reproduz com base na sua conveniência insuspeita, versões de fatos e
acontecimentos produzidos por centros de poder que trabalham para que tudo tenha
aparência de mudança sem mudar absolutamente nada. A preponderância da
sociedade da informação articulada com a exacerbação da vigilância nos coloca no
cerne da sociedade de controle. Toda nossa interação com o mundo, sejam físicas,
emocionais, informais, laborais, intelectuais, cognitivas são rastreadas e registradas.
Vivemos reclusos nesse emaranhado tecnológico-prisional e nos regozijamos com a
falta crescente de liberdade. O medo é que caracteriza o homem securitizado, e a
mídia particularmente, ajuda a reforçar essa sensação de guerra constante, de
selvageria, do qual tentamos evadir, adestrando nossos desejos e receios, criando
uma atmosfera de suspeição e desconfiança. Tal situação opera na subjetividade uma
mudança mais sutil, nos transforma, para além de objetos, em sujeitos da segurança,
como próteses humanas do aparato de vigilância. O Estado de exceção permanente,
promovido pelo Neoliberalismo requisita e reproduz esse homem securitizado, que por
sua vez serve voluntariamente aos propósitos desse sistema político-econômico
opressivo.
O capitalismo global insiste na ideia de que a democracia representativa é a
solução mais bem-acabada da nossa civilização para inclusão política de todos os
indivíduos de uma determinada sociedade, mais uma vez a mídia investe no reforço
na figura subjetiva do homem representado sugerida por Negri e Hardt. A
representação seria mais obstáculo do que veículo para a realização da democracia,
pois todo o processo eleitoral está subordinado às elites que exercem seu poder
econômico para conquistar posições na complexa estrutura de tomada de decisões
78
estatal. Todos os movimentos sociais que almejam mais participação democrática são
sufocados ou incorporados por uma ampla frente parlamentar-midiática-judiciária. A
ideia de que essas “classes perigosas” possam participar do processo decisório,
mantém as pessoas atreladas ao decadente sistema representativo. O que torna esse
contexto mais dramático é o encapsulamento dos sistemas de representação política
nacionais, por instituições globais, que operam um afrouxamento da governança local
via implantação de políticas neoliberais. O representado torna-se um recipiente vazio,
acossado, despojado de suas vestes de cidadão, presa fácil de qualquer investimento
fascista.
Todas essas figuras subjetivas estão imbricadas, acionam-se reciprocamente,
formando um rizoma4, não obstante farei uma leitura no sentido de que o homem
endividado se constitui no nexo sobre o qual a sanha neoliberal repousa, e a partir do
qual todas as outras figuras se articulam para reforçar os grilhões do homem
endividado.
A dívida reforça os mecanismos de dominação, podemos falar de uma relação
dominante-dominado deslocada para uma relação credor-devedor. A fabricação do
homem endividado não se dá por coerção, mas pela produção de uma subjetividade
específica. Dotada de uma capilaridade ardilosa, penetra no tecido social de forma
indistinta colocando no mesmo plano trabalhadores e desempregados, consumidores
e produtores, ativos e inativos. Até mesmo a dita sociedade do conhecimento e da
informação, com suas esperanças de libertação, sucumbe diante da economia da
dívida, cujo instrumento privilegiado é a culpa. Decreta uma despossessão tripla: no
plano político promove ou acelera a derrocada da democracia representativa; das
riquezas conquistadas pelas lutas históricas contra as desmedidas capitalistas; e
sobretudo do futuro, do tempo como possibilidade.
A culpa e a responsabilidade engendrada a partir da subjetividade do
4 Segundo Deleuze e Guattari, é um labirinto, uma estrutura de passagem subterrânea, nele não há começo nem fim, é uma estrutura de passagem disposta em uma tal confusão métrica que se torna obscuro, não se sabe qual elemento ou lugar do labirinto nos levará ao próximo, um sistema de atalhos e desvios, mas jamais em vias diretas e retas. Um lugar de encontros imprevistos.
79
homem endividado, foi magistralmente costurada com a ideologia neoliberal das
décadas de 1980/1990 de capital humano, empreendedorismo de si, meritocracia,
conceitos que já não aderem como antes, apesar de todo esforço midiático e do
discurso de gestão ainda vigente. Toda mitologia criada em torno das aventuras épicas
de empreendedores já perdeu grande parte de seu glamour, o empresário criativo e
inovador, o funcionário empreendedor. Lazzarato (2013) aponta dois acontecimentos
recentes que contribuíram para arrefecer o sonho do empreendedor bem-sucedido: a
bolha da internet nos anos 2000 e a crise do Subprime em 2007/2008. A crise do
subprime, como ficou conhecida em 2008, ganhou proporções globais rapidamente,
impactado de forma deletéria a economia de diversos países, e foi considerada por
muitos como a pior crise desde o crash da bolsa de 1929. Gerou uma onda de
desemprego avassaladora, cortes salariais e um significativo aumento da pobreza
mundial, afetando principalmente os mais vulneráveis, mas também a camada jovem
da população. Uma crise que tem seu início no mercado imobiliário, se alastra pelo
setor financeiro e atinge empresas de qualquer tamanho e segmento.
A bolha das empresas “ponto com", termo que se refere a um aquecimento
demasiado do mercado que infla e pode estourar, se estendeu pelos anos finais da
década de 1990, e seu ápice no primeiro semestre de 2000. Nesses anos as ações
das empresas de comércio eletrônico e outras do segmento, alcançaram altos preços
nas principais bolsas de valores. Existia uma aposta demasiada do mercado no rápido
retorno de investimentos dessas empresas, havia muito capital de risco, provocando
um descaso sobre o que diziam aqueles que defendiam métodos mais tradicionais de
avaliação de ativos, inebriados com a possibilidade de altos lucros e do avanço
tecnológico que tais investimentos viabilizavam, deixaram a cautela de lado. Muitas
empresas ofereciam serviços e produtos gratuitamente esperando valorizar a marca
e ganhar no futuro, as despesas seriam pagas pelas ofertas públicas de ações. Entre
as causas para o estouro da bolha, queda vertiginosa das ações, podemos citar: a
corrupção corporativa, pois as empresas faziam largo uso da contabilidade criativa
80
para esconder seus balanços contábeis; os altos investimento no Bug do milênio,
milhares de aplicações de software não estavam preparadas para operar na virada do
milênio; e por último a percepção tardia de que a internet não oferecia reais
possibilidades de lucro rápidos e ilimitados para todos como se acreditava. Muitas
empresas faliram outras, entretanto lucraram muito com a crise, entre elas Google,
Yahoo e Amazon. Ao final da crise a internet se expandiu ainda mais e de forma mais
sólida. Bolhas tecnológicas são comuns na história do capitalismo, a exemplo das
ferrovias na década de 1840, dos carros e do rádio na década de 1920 e dos
eletrônicos na década de 1950.
Discurso de gestão que paulatinamente se transforma em discurso de
contenção de custos e de análise de riscos em vista de uma possível catástrofe
financeira global. O indivíduo deve seguir os passos do Estado e das empresas,
preocupar-se em primeiro lugar com suas dívidas. Trata-se também de uma amnésia
crônica e conveniente das crises financeiras cíclicas que drenam todas as riquezas
produzidas pela sociedade, e as transfere para os mais ricos e para as empresas. A
mídia, os empresários e os economistas, como legítimos operadores e beneficiários
do bloco de poder neoliberal, não desejam regular os excessos do capitalismo
financeiro, mas administrá-los mediante a chantagem da não quitação da dívida. A
orquestração de políticas neoliberais passa pela imposição de medidas de
austeridade, que normalmente incluem redução e congelamento de salários e
benefícios sociais, operando uma dupla pilhagem, ao mesmo tempo em que direciona
os recursos para pagamento dos títulos da dívida pública regiamente pagos com juros
escorchantes, abre as portas dos serviços de educação e saúde para a iniciativa
privada.
Lazzarato (2013) assevera que carecemos de conceitos que nos permita
analisar as finanças e a economia da dívida como política de sujeição, nessa
empreitada intelectual ele recupera a relação credor-devedor descrita no Anti-Édipo
de Deleuze e Guattari, como antecipação teórica do deslocamento do capital, busca
81
elementos na genealogia da moral de Nietzsche e na teoria marxista da moeda. A
partir desse referencial teórico levanta a hipótese de que o paradigma social deve ser
buscado na relação de crédito e dívida, que impõe uma assimetria e não uma
igualdade de intercâmbio, sua história antecede a história da produção e do trabalho
assalariado. Postula também que a dívida é uma relação econômica indissociável da
produção do sujeito devedor e sua moral, o conceito de economia abrange a produção
econômica e de subjetividades. Se quisermos combater o capital, devemos entender
como as categorias clássicas revolucionárias foram subsumidas, atravessadas e
redefinidas pela dívida. “Com o crédito se volta a uma situação verdadeiramente
feudal, de uma porção de trabalho devida de antemão ao senhor, ao trabalho servil. ”
(BAUDRILLARD apud LAZZARATO, 2013, p. 82).
O déficit estrutural é artificialmente criado por políticas públicas de emprego
que privilegiam a exploração do trabalho precário, facilitada pela flexibilização da
legislação trabalhista ideologicamente assentada na igualdade de negociação entre
empresários e trabalhadores. A dívida pública gerada pelo mercado financeiro, força
o Estado a gerar títulos que serão adquiridos pelos bancos privados drenando em
benefício próprio toda a mais valia produzida pela sociedade. As agências
internacionais que qualificam o nível de insolvência dos países, estão associadas ao
grande capital e trabalham no sentido pode produzir uma dívida pública impagável,
constitui-se, portanto, por seu poder de avaliação, em uma engrenagem vital do
moinho da subserviência. Outra fonte importante para os credores é o consumo, pois
através dele se mantém uma relação quotidiana com a economia da dívida,
carregamos o vínculo com o credor no cartão de crédito, um inocente pedaço de
plástico que nos transforma em devedores perpétuos.
Por todos os lados as riquezas escoem dos indivíduos, empresas e Estado
para os credores, a economia real não passa de mera engrenagem, de duto, para as
máquinas de valorização, acumulação e exploração capitalista. O crédito é um dos
melhores instrumentos de exploração que homem já criou, meros contratos assinados
82
se apropriam de trabalho e riquezas. Aquilo que a mídia chama eufemisticamente de
especulação constitui uma máquina de captura de mais valia, nas condições da
acumulação capitalista atual na qual é impossível distinguir renda de ganância. O
processo de mudança das funções da produção e da propriedade do capital, que
começa a se estabelecer na época de Marx, hoje está consumado, segundo Marx “o
capitalista se transforma em mero administrador do capital”.
O neoliberalismo promove a interpretação dos sistemas monetário-bancário-
financeiro mediante as técnicas que traduzem a vontade de fazer dessa relação um
objetivo político de primeira magnitude. Ela reflete sem ambiguidade alguma, uma
relação de forças fundada na propriedade, na crise. A relação entre proprietários e
não-proprietários do capital multiplica seu fluxo sobre todas as outras relações sociais.
A financeirização é um enorme dispositivo de gestão de dívidas públicas e privadas.
Por esse motivo Lazzarato (2013) sustenta a centralidade da dívida na contramão do
que repetem jornalistas especializados e economistas, ou seja, as finanças não são
um excesso de especulação que deve ser contido, é o instrumento por excelência do
capitalismo neoliberal, que afeta e compromete visceralmente a sobrevivência,
abrangendo todos os aspectos da existência material como a moradia, a saúde, a
educação, a alimentação, a cultura.
“A dívida não se coloca como desvantagem para o crescimento, constitui pelo
contrário o motor econômico e subjetivo da economia contemporânea, a fabricação
da dívida é a construção de relação de poder entre credores e devedores, núcleo
estratégico das políticas neoliberais. ” (LAZZARATO, 2013, p. 37)
A economia da dívida é decisiva para compreender e combater
adequadamente o neoliberalismo, que se articula desde a sua gênese em torno da
lógica da dívida. O ponto de inflexão do neoliberalismo se deu em 1979, considerado
por alguns como um “golpe”, possibilitou a conformação de enormes dívidas públicas,
com as taxas nominais para reembolso das dívidas subindo constantemente, geraram
83
um endividamento acumulado dos Estados de forma brutal. Diante da impossibilidade
de monetizar a dívida social, do Estado benfeitor, o próprio Estado organiza e coloca
em posição hegemônica os mercados financeiros, acarretando um aprofundamento
dos planos de austeridade, redução da máquina estatal e redução drástica de
benefícios sociais tão arduamente conquistados ao longo de muitas décadas de luta
contra a acumulação capitalista.
A dívida atua como máquina de captura e punição sobre a sociedade em seu
conjunto, como instrumento de gestão macroeconômica, funciona como dispositivo de
produção e governo de subjetividades coletivas e individuais, Lazzarato cita a teoria
econômica de André Orlean, que fala do poder credor e define a relação credor-
devedor como central na produção da governança, ou seja, mando capitalista:
“A potência credora, cuja a força se aprecia na capacidade de transformar o
dinheiro em dívida, e a dívida em propriedade, e influir diretamente nas
relações sociais que estruturam nossas sociedades. ” (ORLEANS apud
LAZZARATO, 2013, p. 93)
A regulação financeira coloca em primeiro plano o polo financeiro-credor, que
não se limita a influenciar as relações sociais, é em si uma relação de poder, implica
modalidades específicas de produção e controle de subjetividades, uma forma
particular de Homo Economicus, um Homo Credor.
A dívida exala uma moral própria, complementar a do trabalho, o esforço-
recompensa da ideologia do trabalho se soma à moral da promessa de reembolsar a
dívida, e a culpa de tê-la contraído. O poder da dívida não se exerce por opressão, o
devedor é “livre”, na medida em que assume um estilo de vida baseado no trabalho-
consumo. As técnicas que visam instruir como os indivíduos devem tratar a dívida já
começa na mais tenra idade. Já não é mais o pecado original que se recebe ao nascer,
mas as dívidas das gerações precedentes. O homem endividado está submetido à
uma relação de poder credor-devedor que o acompanha do berço à cova.
85
CAPÍTULO 3 - MOVIMENTO ÁGIL
Fazemos uma introdução aos métodos ágeis, situando o movimento, que tem seu
marco oficial em 2001, em um contexto histórico. Destacamos o manifesto e os princípios
ágeis que estão na base de todos os métodos que se disseminam na esteira desse
movimento, e problematizamos alguns de seus aspectos Vale destacar também a
discussão de como o tempo é percebido e gerenciado pelos métodos ágeis. Destacamos
também a debate sobre a obsessão por medição colocando em evidência os mecanismos
sutis para controlar os indivíduos a partir da sua subjetividade, mesclando autonomia e
alienação. As práticas e dispositivos de intensificação presentes nos métodos ágeis
também são levados em consideração, bem como a questão da tecnologia presente no
cotidiano laboral, desmistificando a ideia preconizada de trabalho sustentável. Fazemos
também uma sinopse dos principais métodos ágeis (SCRUM, XP, LEAN, KANBAN),
destacando tópicos que interessam nessa pesquisa.
3.1 Introdução aos métodos ágeis e contexto histórico
Nas últimas décadas a indústria de software assumiu uma liderança em
relação à todas as outras, tal liderança justifica-se pela presença em praticamente
todas as atividades econômicas. O ambiente de negócios caracteriza-se por uma
competitividade acirrada cuja inovação é o carro chefe. Na visão do mercado devido
a uma incompatibilidade entre qualidade e velocidade, o que diferencia empresas
desse segmento é a entrega de produtos com qualidade, de forma rápida e valor
agregado. Esse cenário exerce uma pressão sobre as empresas que por sua vez
procuram maneiras mais eficientes e eficazes de construir os seus produtos e serviços.
Por volta dos anos 1990, surgem os métodos ágeis como resposta possível aos
anseios dessa indústria, essa nova proposta traz no seu bojo a necessidade de
mudança cultural nas organizações, assim também como uma nova subjetividade,
sendo mais adaptativo que prescritivo, mais empírico que determinista, preconiza
desenvolvimento de software simples e leve, um foco maior em pessoas, alicerçando-
se sobre um conjunto de valores, princípios e práticas.
Esse novo processo de trabalho popularizou-se depois de um encontro entre
86
especialistas em desenvolvimento de software5 em 2001 numa estação de Esqui no
Estado de Utah nos Estados Unidos, do encontro resultou uma troca de experiências
e experimentos que evidenciou traços comuns. Para sacramentar e divulgar a
iniciativa elaboraram um documento que ficou conhecido como Manifesto Ágil:
Estamos descobrindo maneiras melhores de desenvolver software,
fazendo-o nós mesmos e ajudando outros a fazerem o mesmo. Através
deste trabalho, passamos a valorizar:
Indivíduos e interações mais que processos e ferramentas;
Software funcionando mais que documentação abrangente;
Colaboração com o cliente mais que negociação de contratos;
Responder a mudanças mais que seguir um plano.
Ou seja, mesmo havendo valor nos itens à direita, valorizamos mais os
itens à esquerda.6
“O Manifesto Ágil não rejeita os processos nem as ferramentas, a
documentação abrangente, a negociação de contratos ou o plano
preestabelecido, mas indica que eles têm importância secundária quando
comparados com indivíduos e interações, com software funcionando, com
colaboração com o cliente e com respostas rápidas a mudanças. A questão
não é a mudança em si, mesmo porque ela sempre ocorreu e ocorre de forma
frequente nos projetos. A questão é como receber, avaliar e responder a elas. ”
(PRIKLADNICKI, 2014, p. 1)
Com base o manifesto os especialistas definiram 12 princípios ágeis:
Nossa maior prioridade é satisfazer ao cliente com entrega contínua e
antecipada de software com valor agregado.
5 Os 17 autores signatários do Manifesto Ágil são: Kent Beck, Mike Beedle, Arie van Bennekum, Alistair
Cockburn, Ward Cunningham, Martin Fowler, James Grenning, Jim Highsmith, Andrew Hunt, Ron
Jeffries, Jon Kern, Brian Marick, Robert C. Martin, Steve Mellor, Ken Schwaber, Jeff Sutherland, Dave
Thomas.
6 12 Princípios ágeis. Disponível em: <http://www.manifestoagil.com.br/>. Acesso em: 9 jan. 2017
87
Mudanças de requisitos são bem-vindas, mesmo tardiamente no
desenvolvimento. Os processos ágeis tiram vantagem das mudanças,
visando dar vantagem competitiva para o cliente.
Entregar software funcionando frequentemente, de poucas semanas a
poucos meses, com preferência para a escala menor de tempo.
Pessoa de negócios e desenvolvedores devem trabalhar diariamente em
conjunto por todo o projeto.
Construa projetos em torno de indivíduos motivados. Dê a eles o ambiente
e o suporte necessário e confie neles para realizar o trabalho.
O método mais eficiente e eficaz de transmitir informações para a equipe
e entre a equipe de desenvolvimento é a conversa frente a frente.
Software funcional é a medida primária de progresso.
Processos ágeis promovem um desenvolvimento sustentável. Os
patrocinadores, desenvolvedores e usuários devem ser capazes de
manter um ritmo constante sempre.
Contínua atenção à excelência técnica aumenta a agilidade.
Simplicidade – a arte de maximizar a quantidade de trabalho não realizado
– é essencial.
As melhores arquiteturas, os melhores requisitos e projetos emergem de
times auto-organizáveis.
Em intervalos regulares, o time reflete sobre como pode ser mais eficaz,
então refina e ajusta seu comportamento de acordo.7
Antes do surgimento dos Métodos Ágeis o parâmetro de sucesso para
projetos de software era definido pelo The Standish Group, instituição de âmbito
internacional que colhe estatística sobre andamento de projetos globalmente define o
conceito de projetos bem-sucedidos como:
7 Manifesto ágil. Disponível em: <http://www.manifestoagil.com.br/>. Acesso em: 9 jan. 2017
88
“Aqueles finalizados dentro do prazo, dentro do orçamento e que contemplam
todas as funcionalidades originalmente especificadas; projetos desafiadores
são os que utilizaram um orçamento maior do que o previsto, finalizados fora
do prazo e que não contemplam todas as funcionalidades originalmente
especificadas; projetos que não tiveram sucesso são os que foram
cancelados em algum ponto do ciclo de vida desenvolvimento. ”
(PRIKLADNICKI, 2014, p. 2)
O surgimento dos Métodos Ágeis causou impacto na forma como as
empresas conduziam seus projetos, desde a negociação de contratos até a
gerenciamento das equipes. A mudança de paradigma do trabalho é acentuada, e
depois de 16 anos tem se mostrado como abordagem preferencial, independente da
forma como é aplicado.
A Engenharia de Software foi concebida na década de 1970 objetivando
mitigar a crise do software aplicando de forma sistemática e controlada princípios de
engenharia ao desenvolvimento de software complexos, que se caracteriza por um
conjunto de componentes abstratos de estruturas de dados e algoritmos
encapsulados na forma de procedimentos, funções, módulos, objetos, compondo a
arquitetura do software.
Nesse período a engenharia de software foi influenciada por processos de
manufatura, o que levou a uma padronização de processos.
Abrange todos os aspectos de produção de software, parte de uma
abordagem sistemática, usa técnicas de acordo com a natureza do problema, e
restrições impostas. Visa produção economicamente viável de software com
qualidade e confiabilidade. O desenvolvimento de um produto de software envolve
atividades como análise, design, implementação de código, testes e implantação,
documentação formal destinada a comunicação, serve-se de princípios, modelos e
métodos, técnicas e ferramentas, conta com uma equipe de especialistas, além de
zelar por custos e prazos previamente estabelecidos. A engenharia de sistemas é
mais abrangente, inclui hardware, software, informação, processo e pessoas, logo
89
incorpora a própria engenharia de software. Normalmente a produção de software
parte de um entendimento da necessidade de um cliente qualquer, envolverá
planejamento, construção de código, testes e implantação, para execução de tais
atividade os profissionais envolvidos devem levar em consideração certas
formalidades, envolve capacidades de abstração, gerenciamento de mudanças,
modularização e generalização.
O processo de software guia por um conjunto coerente de práticas o
desenvolvimento ou manutenção de software através de um ciclo, atribuindo papéis,
definindo artefatos e atividades técnicas necessária para transformar os requisitos
levantados a partir de um problema específico em software.
Nessa época surge um método de desenvolvimento de software que se
notabilizou por sua característica sequencial e ficou conhecido como waterfall ou
cascata, o trabalho flui através das fases de análise, projeto, produção de código,
testes e implantação. Para passar de uma fase para outra é necessário terminar a
fase anterior, a codificação só inicia se o projeto estiver concluído, os testes só iniciam
depois que todo código foi escrito, depois de testado o software é disponibilizado para
o usuário final em um ambiente de produção, a partir de então ele será mantido, pela
introdução de outras funcionalidades ou correção de defeitos. O custo de retornar para
uma fase anterior, caso ela não tenha atendido os inputs da próxima fase, é alto. Além
disso trata-se de um modelo que não atende um contexto de negócios em mudança
constante.
90
Figura 1 - Método Waterfall
Fonte: SITE ALTABEL.WORDPRESS.COM, 2017
É possível também traçarmos uma trajetória a partir das linguagens de
programação. Afinal ela compõe de forma significativa todo o esforço de projeto e
engenharia produzindo o software em si. É capaz de mostrar também a necessidade
crescente de atender a uma complexidade de tecnologias, cenários de negócios,
guindados pela mundialização e pela flexibilização imposta pelas reestruturações do
capitalismo. Não existe uma linearidade na história das linguagens de programação,
vários paradigmas conviveram por algum tempo, cada qual tentando resolver um
problema específico. A programação nos primórdios era realizada com código binário.
Foram criadas as linguagens de montagem (Assembly), as funções em código de
máquina são substituídas por mnemônicos, entretanto ainda se configurava como
baixo nível, ou seja, muito próxima da linguagem de máquina.
O próximo ciclo de tecnológico traz as linguagens procedurais. São as
primeiras em que podemos dizer serem de alto nível pois se aproximam da linguagem
humana. Trata-se de uma sequência de comandos que a máquina executará,
sequencialmente. Algumas linguagens se enquadram nessa classificação: C, COBOL,
PASCAL.
Em seguida os problemas são estruturados em funções, são como caixas que
91
recebem um dado, fazem alguma operação e devolvem algum resultado.
Finalmente chegamos ao paradigma de orientação ao objeto, aproximando o
código escrito dos conceitos do mundo real, originou-se nos estudos da cognição,
influenciando a inteligência artificial. Permitiu também a reutilização de partes do
software em alta escala. Um objeto é um código com estrutura e comportamento, são
organizados em classes e hierarquicamente, através de troca de mensagens ações
são tomadas e fenômenos são representados. Os objetos e classes a partir das quais
são criados, representam pessoas, objetos, processos do mundo real, físico.
Como vimos os métodos ágeis emergem pouco tempo depois de já
consolidado o paradigma de orientação ao objeto, e surgem também em resposta
àqueles métodos mais tradicionais, considerados burocráticos e inadequados à
natureza da atividade. Inicia-se um embate entre processos e leves e pesados. Além
da disputa técnica, existe uma disputa de narrativas, pois os métodos tradicionais já
ocupam um mercado que é almejado pelas abordagens ágeis. A comparação entre
paradigmas pode ser descrita da seguinte forma (PRIKLADNICKI, 2014, p. 4):
92
Tabela 1 - Comparação entre Paradigmas de Métodos
Tradicional Metodologias Ágeis
Pressupostos fundamentais Sistema totalmente
especificáveis, com
planejamento extensivo e
meticuloso.
Software adaptativo e de alta
qualidade, pode ser
desenvolvido por equipes
pequenas utilizando os
princípios da melhoria
contínua do projeto, orientado
a responder rapidamente as
mudanças.
Controle Orientado à processos. Orientado a pessoas.
Estilo de gerenciamento Comandar e controlar. Liderar e colaborar.
Gestão do conhecimento Explícito. Tácito.
Atribuição de papéis Individual, favorece a
especialização.
Times auto-organizáveis,
favorecem a troca de papéis.
Comunicação Formal. Informal.
Ciclo de projeto Guiado por tarefas ou
atividades.
Guiado por funcionalidades
do produto.
Modelo de desenvolvimento Ciclo de vida cascata ou
espiral.
Iterativo e incremental de
entregas.
Estrutura organizacional Mecânica (burocrática com
muita formalização)
Orgânica (flexível e com
incentivos a participação e
cooperação social.
Vivemos tempos de aceleração, de tecnologias e paradoxos. Lipovetsky (2015)
faz um diagnóstico do momento atual da civilização que é oposto a uma civilização
pesada, da disciplina árdua, dos desejos reprimidos, da prostração do eu, da opressão
da subjetividade, da submissão total a projetos da nação ou religiosos. O peso das
exigências morais era intolerável, mesmo com o iluminismo substituindo Deus pela
Razão nada mudou. Na revolução industrial, mesmo com todo avanço cientifico, só
se acrescentou o peso do trabalho, e depois mais tarde os dispositivos de controle
que começavam a proliferar. Lipovetsky (2015) entende que o cognitivo assume papel
preponderante na hipermodernidade, é ele que agrega valor na sociedade
93
informacional, investir no conhecimento torna-se uma exigência. Se a leveza sempre
exerceu um papel na nossa cultura hoje ela é índice do real. Tudo tende a diminuir de
tamanho, ser mais leve, mais rápido. Entretanto o paradoxo parece se impor mais uma
vez, um certo quantum de leveza objetiva se reflete na vida como um peso intolerável,
parece ser uma nova utopia que traz no seu bojo uma intensidade que não cabe na
nossa subjetividade, a depressão e a ansiedade são pesados fardos que carregamos
quotidianamente. A leveza tem seu peso e seu preço, certamente falta a Lipovetsky
(2015) uma leitura marxista que permita compreender a crueldade com que o
capitalismo e o neoliberalismo perpetuam sua ideologia atualmente. Sem embargo,
sua leitura não é de todo equivocada, senão, vejamos.
Leve, fluido, flexível, móvel, líquido, são termos intercambiáveis, e buscados
com obsessão, tornou-se um imperativo, hoje é visto como algo positivo e desejado.
Tudo se desmaterializa diante da ditadura da inovação, da mudança avassaladora, da
inconstância.
Todo esse impacto econômico, social e cultural tem reflexos no mundo do
software, as empresas devem se adequar a essas novas exigências, e sendo o
software um elemento crucial de vantagem competitiva, seu processo de produção
deve ser orquestrado de tal forma a viabilizar produtos leves, customizados,
rapidamente, sob o risco de tornar-se obsoleto.
Quanto menores os ciclos de produção, mais intenso ele se torna em função
de cerimônias que devem ser realizadas e artefatos que devem ser produzidos, a
leveza no contexto da ideologia gerencialista, da velocidade e do controle, com suas
exigências cada vez mais irrealistas de rentabilidade e produtividade transformam a
leveza em um eufemismo da intensidade, a promessa de sustentabilidade fica apenas
no horizonte. A leveza experimentada no consumo não se aplica na produção imaterial.
Apesar de Lipovetsky não analisar com profundidade as questões
relacionadas ao impacto da leveza no trabalho imaterial, quando defende por exemplo
o trabalho home office como se isso fosse uma excelente solução para o trabalhador,
94
sem levar em consideração a perniciosidade dessa modalidade de trabalho, deixa
entrever uma certa sombra em meio ao esplendor da fluidez que exalta:
“Será que os assalariados que tratam da informação vivem muito melhor seu
trabalho imaterial do que os operários do velho mundo industrial? As novas
condições da concorrência e os imperativos de rentabilidade estão,
certamente, na origem desses desconfortos, mas as tecnologias do digital
também têm sua parte na medida em que instauram a ditadura das respostas
imediatas, a impossibilidade de se distanciar, uma pressão temporal
permanente, o sentimento de viver “enterrado no trabalho”. Em toda parte,
as grandes empresas pedem para reduzir os prazos, fazer mais com menos:
uma implacável lógica de urgência invadiu a esfera do trabalho. Ela engendra
muito mais um homem hipertenso, despossuído do sentido de sua atividade,
do que um homem leve. À medida que desmaterializam o trabalho, as novas
tecnologias aumentam constantemente o peso da carga psicossocial
suportada pelo assalariado. O imaterial digital é menos mensageiro de
existência nômade do que de vida em fluxo, em “zero de atraso”.
“ (LIPOVETSKY, 2015, p.130)
O que direciona o método ágil são novos modelos de comportamento e
atitude, uma nova maneira de ver, pensar, sentir e agir, uma nova subjetividade.
Apesar de todos os métodos ágeis definirem algumas práticas, cada Método Ágil
define suas próprias práticas, mas todos partilham dos valores e princípios postulados
pelo Manifesto Ágil.
O fato do Manifesto colocar mais peso nos itens que se encontram à esquerda
se justifica pelo fato de engenharia de software até aquele momento ter colocado mais
ênfase nos itens da direita. Aqui podemos começar a entender a sutileza de um
pensamento que tenta compatibilizar extremos, adaptar, fazer coabitar propostas
antagônicas, modus operandi que ficará mais claro quando articularmos o
pensamento ágil com a ideologia gerencialista. Existe um reconhecimento de que a
engenharia de software é embrionária em relação ao conhecimento de outras áreas
da engenharia, o manifesto assume uma posição despretensiosa diante dos
processos já estabelecidos convidando a uma reflexão visando aprendizado.
95
3.2 Análise do manifesto e princípios ágeis
Indivíduos e interação mais que processos e ferramentas
Atualmente é praticamente impossível pensar em desenvolvimento de
software sem considerar o uso de ferramentas e processos, mas o manifesto alerta
para o fato de colocarmos ênfase na comunicação, pois tornou-se uma atividade muito
burocrática, esboços e modelos feitos de maneira colaborativa valem mais do que
documentos formais. Não obstante as ferramentas digitais cumprem um papel de
controle sobre as atividades de desenvolvimento de software. O evangelizador João
faz uma observação interessante sobre este valor do manifesto ágil:
“Quando você diz que pessoas e relações são mais importantes que
processos e ferramentas, o que está se dizendo na verdade é que pessoas,
processos e ferramentas incríveis podem gerar produtos, serviços e negócios
incríveis. Essa é uma dimensão que está se perdendo, o ágil hoje está se
assumindo a posição que os processos mais tradicionais e prescritivos tinham
no passado, pelo excesso de processos, frameworks e ferramentas” (JOÃO,
2017)
Software em funcionamento mais que documentação abrangente.
Entende-se aqui o excesso de documentação como desperdício, ao longo do
tempo foram criados papéis cujo o objetivo principal era documentar, principalmente
por medo de que esse saber concentre-se exclusivamente na cabeça dos
desenvolvedores, o cenário que temos hoje é uma documentação excessiva, que
nunca é consultada ou atualizada. Isso acabou valorizando mais a documentação
extensa do que software com qualidade de produção, a ponto de cronogramas
apresentarem um percentual de conclusão de oitenta por cento sem uma linha de
código escrita.
96
Colaboração com o cliente mais que negociação de contratos.
Se o desenvolvimento de software é um processo de aprendizado, fica difícil
definir algo previamente que só se conhece fazendo. Porém devido à falta de
confiança entre clientes e fornecedores, o contrato passou a regular essas relações
com sérios prejuízos para ambas as partes. De um lado tenta-se conter o escopo,
para que não ultrapasse o custo contratado, de outro tenta-se deixar aberturas para
incluir mudanças que surjam no meio do caminho e sejam incorporados pelo preço já
contratado. Os métodos ágeis sugerem um trabalho mais próximo com o cliente
construindo colaboração e confiança, para além de um contrato qualquer.
Responder a mudanças mais que seguir um plano
Aprendizado e mudança são os lados de uma mesma moeda. Inclusive
somente dessa forma a solução fica muito aderente às necessidades, e se alcança a
tão propalada vantagem competitiva. Por este motivo as mudanças devem ser
tratadas de uma forma distinta, e acolhidas se de fato agregam valor ao produto. Os
planejamentos extensos estão fadados ao fracasso em um ambiente onde impera a
instabilidade de tecnologias, a velocidade de mudança dos negócios, e o turn-over
alto. Os métodos ágeis preconizam um planejamento menor e mais frequente visando
adaptar-se a essa instabilidade.
Até aqui podemos observar o quanto o Manifesto Ágil é vago nas suas
proposições, o que dará margem como veremos adiante a muitas adequações,
adaptações dentro do universo corporativo. Os princípios ágeis foram pensados a
partir do Manifesto, suas proposições não são menos vagas, porém abrangem outros
aspectos do processo de trabalho. Sobre os princípios serão construídas as práticas.
O Manifesto, os Princípios e Valores servem de base para definir, na opinião de toda
a comunidade, inclusive evangelizadores, aquilo que é conhecido como “Mindset Ágil”.
Farei uma análise dos princípios ágeis com base em observações realizadas ao
longo de muitos anos dedicado a implantação de métodos ágeis nas empresas, os
princípios permeiam as narrativas dos evangelizadores que serão analisados mais adiante.
97
1. Nossa maior prioridade é satisfazer ao cliente com entregas contínuas
e adiantada de software com valor agregado. Nesse princípio começamos a
perceber como entram no jogo as contradições. Como vimos houve uma valorização
excessiva da documentação e dos controles em detrimento da produção de software.
Some-se a isso a percepção de que os trabalhadores técnicos envolvidos na
construção do software sentem uma compulsão por fazer as coisas de uma forma
bem-feita utilizando a melhor tecnologia possível em detrimento daquilo que o cliente
precisa em tempo hábil, na medida certa.
2. Mudanças nos requisitos são bem-vindas, mesmo tardiamente no
desenvolvimento. Os processos ágeis tiram vantagem das mudanças, visando à
vantagem competitiva para o cliente. Esse princípio comprova que os métodos ágeis
surgem em uma época em que a economia mundial chega em um patamar de
aceleração incompatibilizado com a forma tradicional de construir software, as
demandas exigem uma produção mais rápida e uma disponibilização para o mercado
evitando a sua obsolescência. Tradicionalmente clientes e fornecedores se protegiam
por questões de custos a respeito do escopo a ser produzido, por um lado requisitos
que não serviam para nada, por outras travas contratuais para evitar mudanças. Com
isso, mudanças de requisitos passam a ser tratadas como algo natural. Para fazer
frente a nova realidade os métodos ágeis dispõe de técnicas e ferramentas, o
problema é que a organização como um todo dificilmente está preparada para atender
esse novo cenário, a organização sendo orientada por eficiência e custos não realiza
os investimentos necessários. Normalmente o ônus dessa situação é sentido pelas
equipes de desenvolvimento, que passam por momentos de frustração e ansiedade
quando não conseguem atingir as metas com as quais se comprometeram. De
qualquer forma os clientes se beneficiam do potencial competitivo da adaptabilidade
a novos cenários de mercado.
98
3. Entregar frequentemente software funcionando, de poucas semanas
a poucos meses, com preferência à menor escala de tempo. Esse princípio faz
uma referência explícita ao anterior, e acrescenta um elemento novo: time-box. Trata-
se de uma forma de gerenciar o tempo cujo o objetivo é lidar com a complexidade,
manter o foco, produzir ritmo e permitir que se verifique de tempos em tempos a
construção de software. Seja o time-box fixo como propõe o método ágil Scrum, ou o
time-box relativo como propõe o método ágil Kanban, deixa claro que o longo prazo
não existe mais, e que a linearidade do tempo se dissipa. Nada mais tem estabilidade,
seja o trabalho ou as relações pessoais, a variação e as mudanças de equipes,
cenários, problemas a serem resolvidos, projetos a serem executados, demandas de
mercado que emergem de um dia para outro, as transações pontuais devem se
encaixar nesse tempo fragmentado, bem representado pelo conceito do time-box.
Relações sociais estáveis, leais e fidedignas não se constroem ou não se mantém
nesses retalhos de tempo. Uma falsa ideia de liberdade que a flexibilização traz no
seu bojo promove uma corrosão do caráter, pulverizando laços sociais e valores,
pilares importantes para garantir a estabilidade da personalidade, que dão um sentido
de permanência para o “eu”. Esse “eu” que se fragmenta precisa de um tempo
igualmente fragmentado para se adaptar ao oceano de incertezas que se abate sobre
ele. A comprovação da sua competência se dá nesse ritmo imposto por esse
fatiamento do tempo, os ciclos ditam um aparente recomeço, como diria Gilles
Deleuze, na sociedade do controle nunca se termina nada, em contraposição à
sociedade disciplinar que não se parava de recomeçar.
Exacerbação da rotina se dá pelas cerimônias propostas pelos métodos ágeis,
que são reuniões que se repetem segundo os princípios daquilo que se convencionou
chamar de gestão empírica, baseada em ciclos de planejamento, execução,
verificação e consolidação (PDCA), permeado por pontos de inspeção, coleta de
feedback e adaptação.
Para Richard Sennett (1999, p. 10) o caráter é “o valor ético que atribuímos
99
aos nossos desejos e as nossas relações com os outros, ou se preferirmos, são os
traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os
outros nos valorizem”. Diante de um contexto de experiências fragmentadas,
nenhuma narrativa coletiva se sustenta. A utilização das caixas de tempo é a
fragmentação levada às últimas consequências. Para além da fragmentação podemos
falar de um esfacelamento do caráter.
As equipes ágeis funcionam como ilhas de produção especializada que
atendem a um backlog priorizado de demandas, de um produto específico, e que
nunca tem fim. Para o trabalhador se apresentam duas alternativas, aceitar o risco
imposto por esse ambiente de incertezas e extrema competitividade, ou aceitar o
fracasso, não é sem propósito que um dos valores ágeis é a coragem.
Em termos de precarização esse novo paradigma laboral não deixa nada a
desejar para outros modelos de produção em épocas anteriores, embora seja uma
precarização acolhida pelo trabalhador por intermédio do discurso do empreendedor
de si, da responsabilização, de uma autonomia controlada. Richard Sennett salienta
bem o caráter dessa fase atual do capitalismo:
“Quem precisa de mim, em um regime onde as relações entre as pessoas no
trabalho são superficiais e descartáveis e os laços de lealdade, confiança e
compromisso mútuo se afrouxam em decorrência das experiências de curto
prazo? ” (SENNETT, 1999, p. 164).
A descartabilidade das pessoas em voga é construída na base da indiferença
disseminada pelo sistema, tratando os esforços dos trabalhadores como mercadorias
e estabelecendo contextos de baixíssima confiança, de forma que a indiferença e a
desconfiança passam a ser atribuídas ao próprio caráter das pessoas, pois a empresa
passa a ser o único caminho para o sucesso segundo uma ideologia gerencialista que
ameniza a crueldade do sistema.
100
“A corrosão dos laços sociais traduz-se pelo questionamento da
generosidade, da fidelidade, da lealdade, da solidariedade, de tudo o que faz
parte da reciprocidade social e simbólica nos locais de trabalho. Como a
principal qualidade que se espera do indivíduo contemporâneo é a
mobilidade, a tendência ao desapego, e à indiferença que dele resulta, isso
acaba contrariando os esforços para exaltar o “espírito de equipe” e fortalecer
a “comunidade da empresa”. ” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 366)
Essa importante ferramenta para impor disciplina será mais discutida adiante
a partir da fala de evangelizadores. De qualquer forma a disciplina é exacerbada e
está em sintonia com uma nova sociabilidade requerida pelo trabalho flexível, o
indivíduo é convidado a gerenciar riscos em um contexto econômico instável, em
mudança constante, imerso na incerteza, hipercompetitivo, reforçando a crença de
que a resolução de problemas se assenta no próprio indivíduo desconsiderando
questões complexas e existenciais arraigadas em um cenário social, histórico e
político. A disciplina está atrelada a construção desse empreendedor de si, sobre os
ombros do qual se deposita todas as responsabilidades pelo seu sucesso e
principalmente pelo seu fracasso. Sem disciplina não seria possível atingir níveis de
empregabilidade e empreendedorismo que esse novo ethos imposto pelo
neoliberalismo requisita.
4. Pessoas de negócio e desenvolvedores devem trabalhar diariamente
em conjunto por todo o projeto. Desnecessário afirmar como esse princípio se liga
aos anteriores. Aqui ressalta-se a importância de os clientes participar não só da
definição do problema, como também da definição da solução que será construída
pela equipe de desenvolvimento. Em empresas grandes o impacto disso é alto, pois
além dos silos de informação e poder que existe nas empresas, a área de negócios
não parece dispor de tempo suficiente para participar ativamente da construção do
software.
5. Construa projetos em torno de indivíduos motivados. Dê a eles o
ambiente e o suporte necessários e confie neles para realizar o trabalho. Aqui temos
101
mais uma contradição evidente, a empresa reforça a ideia do trabalho individual, e ao
mesmo tempo orienta as equipes ágeis a trabalhar de forma auto-gerenciadas. A auto-
gestão requisita autonomia, comunicação mais direta e constante, alto nível de
comprometimento, foco na entrega de software com qualidade e valor agregado, ou
seja, rentabilidade. Veremos adiante à luz da teoria da ideologia gerencialista e do
depoimento de evangelizadores, que na prática quotidiana das empresas existe uma
autonomia controlada, seja por uma falsa percepção de anarquia que esse modelo
traz, seja pelas relações de poder estabelecidas, apesar da gestão visual o grau de
falta de confiança e de segurança psicológica não permite que a auto-gestão aconteça,
de qualquer forma o discurso tem utilidade no que diz respeito à conquista de adesão.
6. O método mais eficiente e eficaz de transmitir informação para a
equipe e entre a equipe de desenvolvimento é a conversa frente a frente. Nesse
princípio encontramos mais um paradoxo. É notório que a tecnologia tem possibilitado
formas diversas e alternativas de comunicação. Isso se deu também por uma
necessidade da flexibilização e da mobilidade que passou a ser exigida dos
trabalhadores. A qualidade da comunicação não é a mesma que a presencial por
causa da comunicação não-verbal que se perde. A empresa continua estimulando o
uso de recursos eletrônicos para comunicação por um lado, por outro com a
introdução dos métodos ágeis nas empresas, a necessidade de comunicação
presencial aumenta exponencialmente, o resultado disso é overhead de comunicação,
originando ou intensificando distúrbios psíquicos como a ansiedade.
7. Software funcional é a medida primária de progresso. Interessante
observar o esforço para conter a burocracia e os processos teoricamente
determinísticos e controláveis. Esse princípio faz uma referência direta a todos os
outros que focam na rentabilidade. A burocracia e o controle ocultam uma falta de
confiança generalizada, mas não explicitada, o que torna difícil combatê-la, mais uma
vez fica evidente a sobrecarga da quantidade de normas e procedimentos a se cumprir.
O objetivo da gestão é fazer cooperar duas engrenagens, a organizacional e
102
a psíquica, cria-se uma espécie de armadilha de paradoxo onde há um jogo entre
angústia e satisfação. O indivíduo fica dependente desse processo que estimula a
autonomia e a liberdade, o poder de contestação fica enfraquecido, pois levaria a
contestar a si próprio, devido ao engajamento. A sociedade do controle desenvolveu
mecanismos sutis para controlar o indivíduo a partir da sua subjetividade, que induz
cada um a exercer sua autonomia, liberdade e criatividade em nome de um poder
próprio que reforça a submissão e o conformismo. Uma mescla perfeita de alienação
e apologia da subjetividade, Gaulejac (2015, p.127) sugere uma “alienação à segunda
potência”, pois é o próprio sujeito seu principal agente. Analisaremos adiante a mesma
questão, com relação à auto-organização, à luz do conceito de engajamento subjetivo
elaborado por Philippe Zarifian a partir do referencial teórico de Gilles Deleuze.
8. Os processos ágeis promovem desenvolvimento sustentável. Esse é
um dos pontos mais críticos, com tantas obrigações, burocracia, controles e
consequente sobrecarga de tarefas torna-se impossível manter um ritmo sustentável,
sobra pouco tempo para fazer aquilo que de fato precisa ser feito. O foco em eficiência
e rentabilidade que orientam a empresa a ocupar cem por cento do tempo dos
trabalhadores, não deixa tempo para outras atividades preconizadas pelos métodos
ágeis como melhoria contínua e da gestão do trabalho da própria equipe, que passa
a ser uma incumbência sua também. O desenvolvimento de software por ser uma
atividade imaterial, cognitiva e afetiva, exige grande concentração e criatividade,
porém impossibilitadas pelo consumo do tempo em outras atividades e pela pressão
de fazer cada vez mais. Ao definir o método ágil Mateus também demonstra um certo
desconforto com o rumo tomado pelo movimento depois de 15 anos:
“Ajuda as empresas e equipes a acelerar o processo de feedback, a maioria
coloca como ponto central a geração de valor, que é extremamente
importante, mantenho-me fiel a motivação de origem, a consequência é que
teríamos redução de desperdício, mais valor agregado, antecipação de
investimentos, redução de riscos. Ciclos curtos, redução do path de
comunicação, tudo isso está ligado à aceleração de feedback e
103
aprendizagem. Esse processo corre um risco tremendo hoje por conta do
imediatismo, mais velocidade que ritmo, isso se traduz em trabalho não
sustentável, o que esperar se o próprio criador do Scrum criou um livro cujo
o título é “Fazer o dobro na metade do tempo”? ” (MATEUS, 2017)
O mundo do trabalho nas últimas décadas tem sido palco de um processo de
intensificação laboral. Qualquer trabalho apresenta um certo grau de intensidade, é
condição intrínseca de qualquer trabalho, o trabalho transforma a natureza usando
meios e instrumentos seguindo um projeto, quando ele é executado há um dispêndio
de energia física e psíquica. Intensidade se refere ao grau de dispêndio dessa energia.
Uma atividade concreta envolve capacidades físicas, cognitivas e afetivas do
trabalhador. Também entram na conta da intensificação as relações de cooperação
com outros trabalhadores, e relações societais. Se há mais gasto de energia, há
intensificação. Se os resultados são maiores em termos quantitativos ou qualitativos
é índice de maior gasto de energia, logo a alteração da intensidade eleva os resultados,
entretanto nem sempre isso ocorre, o desgaste físico, emocional e cognitivo no limite
leva a uma inevitável queda de desempenho. Outro fator significativo é o tipo de
vínculo ou subordinação entre aquele que trabalha e o agente que controla o trabalho:
“O grau de intensidade resulta de uma disputa, de um conflito social que opõe
o interesse dos trabalhadores aos empregadores. Não é o indivíduo
trabalhador quem decide autonomamente suas condições de trabalho e
estabelece o grau de empenho pessoal com a atividade. O ato de compra e
venda da força de trabalho confere ao comprador poder sobre como será
utilizada essa mercadoria. As empresas e os administradores pautam
determinações inarredáveis quanto ao como deve ser realizada determinada
tarefa e consequentemente qual o grau de intensidade requerido. “ (ROSSO,
2008, p. 24)
Nessa relação de poder há resistência e padrões de intensidade que são
assumidos como referência pelo trabalhador, através dos quais dosa a intensidade,
mas não lhe garante o controle, e por esse motivo a intensidade é objeto de disputa.
104
Nos métodos ágeis existe um conceito de trabalho energizado e ritmo sustentável,
preconizada pelo Extreme Programming, e também do respeito pela capacidade
produtiva, preconizada pelo Lean Thinking, além disso nos processos de
planejamento é instituído que a equipe estime as demandas que precisam ser
atendidas, e que no início de cada ciclo produtivo, chamado de iteração ou Sprint,
determinado por um time-box específico, escolha os itens que na sua percepção tem
condições para serem produzidos nesse ciclo.
Os resultados da implantação dessas práticas são distintos em empresas do
tipo Startup e grandes corporações. No primeiro, nas quais o grau de envolvimento
dos desenvolvedores no processo de gestão é consideravelmente maior, existe um
outro tipo de cooptação da subjetividade. No segundo tipo uma camada de gestão se
sobrepõe ao processo, trabalhando para subverter essas práticas, e conquistando a
anuência mais por pressão do que por uma pseudoparticipação, ou uma autonomia
fortemente controlada. Em qualquer caso a intensificação é uma realidade que não
dispensa as estratégias de ambos os lados, de um a resistência para dosar o ritmo e
do outro a coerção para acentuá-lo.
Para destrinçar o imbróglio quando tratamos de intensidade, justifica-se
distingui-lo da produtividade, dado que este conceito oriundo da economia subsumi o
de intensidade, sem fazer-lhe a devida distinção. Um trabalho é produtivo quando o
resultado apurado entre dois tempos é maior do que a medição inicial. Esse resultado
pode ser obtido de diversas maneiras. Quando há uma alteração no meio material
denominamos aumento de produtividade, se há maior desgaste ou envolvimento por
parte do trabalhador, decorrente ou não de tecnologia, denominamos aumento de
intensidade.
No caso da mudança organizacional podemos entender a intensificação da
mesma forma, depende do consumo de energia em um sentido mais amplo, ou seja,
físico, emocional e cognitivo. Por exemplo racionalização de processos altamente
burocratizados aumenta a produtividade e não a intensidade. Normalmente os
105
processos sofrem alterações para aumentar a produtividade, mas também visam
aumentar o envolvimento do trabalhador levando a uma intensificação.
Na atual fase do capitalismo as atividades de serviços predominam sobre o
trabalho industrial, esse por sua vez também sofre influências de componentes
imateriais, logo é mister avaliar como o trabalho imaterial é afetado por práticas
intensificadoras.
“Tanto no trabalho material, físico, quanto no imaterial, o trabalhador faz uso
de outras faculdades além se sua energia física. Faz uso de sua inteligência,
de sua capacidade de concepção, de criação, de análise, de lógica, emprega
os componentes de afetividade ao relacionar-se com as pessoas, sejam os
colegas de trabalho, os dirigentes das empresas e dos serviços estatais, os
clientes. Utiliza as experiências adquiridas anteriormente no trabalho, sejam
em termos relacionais e grupais, sejam em termos de habilidades individuais
herdadas gerações após gerações ou aprendidas nos processos educativos.
“ (ROSSO, 2008, p. 30)
Da Revolução Industrial aos dias de hoje por consequência da divisão do
trabalho e do emprego das tecnologias de informação e comunicação o espaço
ocupado pelo trabalho imaterial expandiu muito, exigindo mais da capacidade de
conhecimento, comunicação, emoção, do que em outras épocas.
A Toyota e seu método de produção exerceu forte influência sobre os
precursores dos métodos ágeis, seja na ênfase dada as capacidades cognitivas do
trabalhador, seja no incentivo à liberdade e autonomia para controlar defeitos e evitar
perdas, no uso da criatividade em benefício da empresa, estimulando as capacidades
de socialização e relacionamento cooperativo.
Outra problemática que se impõe é a dimensão do valor perante a
imaterialidade. A área de software, como tantas outras da esfera do trabalho imaterial,
concentra cada vez mais capital, isto posto, a competição por resultados, eficiência e
produtividade são cada vez maiores, logo é alvo de um processo inigualável de
intensificação. Aqui a teoria do valor não encontra um solo estável para se estabelecer,
106
a reflexão do valor diante da cooperação, dos afetos, das relações com os outros
indivíduos, encontra limites muito claros, pois considera a dimensão de tempo do
trabalho por meio da fórmula do tempo médio socialmente necessário:
“Um pesquisador faz uma descoberta e o valor dessa descoberta pode ser
infinito ou nenhum. Infinito se a descoberta pode ser comodificada,
mercantilizada, transformada em mercadoria. O valor do trabalho do
pesquisador não é representado pelo tempo médio socialmente necessário.
A faísca cerebral e a fogueira mental que conduziram à descoberta são de
natureza distinta do tempo médio e isso lhe confere um potencial infinito de
valor. ” (ROSSO, 2008, p. 34)
A pesquisa não se transforma em mercadoria rapidamente, ao pesquisador
restam direitos autorais ou de marca registrada. O trabalho imaterial está cada vez
mais presente, e a métrica do tempo do trabalho socialmente necessário não se aplica
a essas atividades, é crítico incorporar dimensões qualitativas como uso de
inteligência, afetos, criatividade, relações sociais, que vão além do tempo médio
socialmente necessário. Ademais as tecnologias de comunicação, computadores,
celulares, software de todo tipo, aplicados ao trabalho romperam com a barreira do
tempo do trabalho e do não-trabalho.
“A tese da sociedade da inteligência tinha como pano de fundo desvelar uma
sociedade que aos poucos fosse se liberando do trabalho e conduzida para
o campo das atividades emancipatórias que são o reino da inteligência e da
liberdade. O problema com essa interpretação é que não é isso que está
ocorrendo na sociedade contemporânea. “ (ROSSO, 2008, p. 41)
Nas décadas entre 1950 e 1970 surgiram algumas visões utópicas a respeito
da emancipação do trabalho em relação ao capital, ideias constantemente citadas por
alguns evangelizadores ágeis, como sociedade do conhecimento e da informação,
gurus como Peter Drucker se notabilizaram por preconizar a ideia de que o mundo se
107
desloca inelutavelmente para uma emancipação do trabalho intelectual, imaterial. O
que acontece na prática, e sustentado por muitas pesquisas, é que o trabalho imaterial
sofre impacto de outras estratégias de intensificação, implicando em uma série de
novos problemas de saúde, inclusive na esfera do psicológico e do psiquiátrico.
Tal utopia está muito presente no discurso dos evangelizadores ágeis que
anunciaram no alto do seu entusiasmo, e ainda continuam afirmando com menos vigor,
uma transformação edênica do mundo do trabalho.
Não é objeto desse trabalho realizar exaustiva análise da Teoria do Valor ou
analisar a história da intensificação no mundo do trabalho, entretanto acho importante
destacar o processo de intensificação a partir da última reestruturação produtiva
marcada por exigências de velocidade, agilidade, ritmo, polivalência, versatilidade,
flexibilidade, acúmulo de tarefas e busca incessante por resultados.
Vivemos uma revolução tecnológica significativa, cujos os contornos e
impactos ainda não conseguimos compreender na sua totalidade. O que podemos
constatar é uma intensificação do trabalho crescente, porque leva a um envolvimento
visceral do indivíduo, exigindo destes mais resultados no mesmo espaço de tempo,
redundando em aumento da exploração do trabalho.
No segmento de software são postas em prática duas estratégias de
intensificação, a constante transformação tecnológica e a reorganização do trabalho,
esta última umbilicalmente ligada aos métodos ágeis.
O novo paradigma de gestão da força de trabalho já estava pronto e sendo
utilizado pela Toyota há muito tempo quando o mercado a ele aderiu. Partindo de uma
crítica ao sistema fordista de massa, que não mais se adequava a um mundo com
baixo crescimento econômico e com restrições de demanda. A crítica maior caia
sobre a noção de desperdício, de perda. Entre as perdas mais significativas podemos
citar: a superprodução, os tempos de espera, os transportes desnecessários, os
processos de fabricação, os estoques não vendidos, as idas e vindas perdidas, os
defeitos de produção, a rigidez da especialização dos trabalhadores, trabalho que não
108
agrega valor, a resposta que a Toyota formulou para essas questões nos ajuda a
interpretar os mecanismos de intensificação.
Proponho analisar as soluções dadas, à luz da influência desse sistema nos
processos de desenvolvimento de software, fazendo uma leitura das principais
características já mencionadas, implícitas aos métodos ágeis.
A superprodução equivale a uma produção de software que abrange muitas
funcionalidades que sequer são utilizadas pelo usuário, ou que perdem seu valor
devido ao tempo que levam para ser produzidas, a solução dada sugere que o
tamanho dos lotes de requisitos, que são os insumos para a produção de software,
seja menor, a fim de manter o foco no que agrega mais valor de negócio e
disponibilizar a solução mais rapidamente. Os tempos de espera diz respeito aos
gargalos gerados pela cadeia de valor de produção, formada pelas diversas atividades
necessárias a produção de software, a solução dada sugere a diminuição do tempo
para execução dessas atividades, e nivelamento do número de itens de acordo com
a capacidade produtiva, entre as atividades para agilizar o fluxo. Os transportes
desnecessários dizem respeito a quantidade de atividades da cadeia de valor, que
deve ser reduzida, evitando a perda ou má interpretação de artefatos que transitam
entre essas fronteiras. Os defeitos de produção dizem respeito a problemas
encontrados no software e que são resolvidos tardiamente gerando um retrabalho
desnecessário, a solução é aderir a uma qualidade em tempo de produção
significando que os testes devem ser realizados na medida em que o software é
escrito. A quantidade de pessoas envolvidas no processo é resolvida com o conceito
de equipes reduzidas e enxutas, assim como a especialização excessiva, com
equipes multidisciplinares ou polivalentes, cujos membros apesar de possuir uma
especialização são estimulados a conhecer outras tecnologias, expresso pelos termos
técnicos “Profissional T-SHAPE” ou “Profissional FULL-STACK”. A automação cada
vez mais aplicada nesse ambiente produtivo, induz o desenvolvedor a se envolver
mais com questões de negócios, de gestão do processo, e acentuar a velocidade do
109
fluxo de produção.
Todo esse contexto produtivo indica uma variação, nos períodos de maior
demanda a equipe trabalha de forma mais intensa, levando a mesma a uma
reconfiguração constante com contratações e dispensas, e muitas vezes recorrendo
a horas-extras trabalho, via de regra negociadas como banco de horas, ou
incorporadas nas horas de não-trabalho. Em tempos de não variação de demanda a
intensificação se dá pelo combate ao desperdício, aumentando a eficiência, e por
consequência a intensidade, não há mais tempo de trabalho morto. A noção de slack,
de folga para promover melhoria contínua preenchem essas lacunas. A polivalência
também implica em intensificação pois requer esforço adicional, cognitivo, afetivo, de
concentração para aprender outras tecnologias e tarefas.
O kanban também é considerado um dos pilares do Sistema Toyota de
Produção, sua origem está em um pedaço de papel que fornecia informações para
que o operário soubesse o que produzir, e para onde encaminhar a produção. Nos
processos ágeis os dispositivos visuais, os radiadores de informações também são
importantes porque permite controlar a produção e indicar problemas, intensificando
o trabalho quando necessário, a partir do status diário que se obtém visualmente no
ambiente de trabalho, normalmente o kanban é elaborado em uma parede, janela ou
quadro branco. Ele cria fluxos de informação que vão na direção da equipe, e
também daqueles que exercem o controle sobre o que e como está sendo produzido.
O Kanban exerce um controle sobre desempenho individual e da equipe, de forma
que o trabalho seja conduzido no ritmo, velocidade e padrão definidos pela empresa,
e não pela equipe, se constituindo na principal ferramenta de intensificação.
9. Contínua atenção à excelência técnica e bom design aumenta a
agilidade. A qualidade de código garante entre outras coisas, ambiente sustentável
de alta produtividade, a entrega contínua de código e a agregação constante de valor,
elimina a necessidade de documentação exaustiva, reduz o retrabalho e facilita a
tomada rápida de decisões. A questão é a quantidade de tempo que se tem para
110
atingir esse objetivo, na prática as relações entre custos e qualidade são muito
paradoxais.
O evangelizador Tomé faz uma observação sobre a como a qualidade deveria
ser tratada, o discurso da qualidade não se efetiva por questões de custo,
rentabilidade e produtividade, ainda assim o trabalhador é responsabilizado pela sua
aplicação:
“É a qualitividade, falta nas implementações da maioria dos processos ágeis,
com o passar do tempo a complexidade vai aumentando, e a produtividade
da equipe caindo, é inevitável por conta do acumulo de complexidade, a
equipe precisa ter um tempo alocado em torno de 20 ou 40 % do tempo para
investir em qualitividade, em qualidade para ganhar produtividade,
normalmente digo para os times fazerem o que quiserem para aumentar sua
própria produtividade, pode ser aumentar cobertura de teste, refatorar,
automatizar o processo de build, estudar uma nova lib. É preciso ter tempo
para afiar o machado, os gestores não confiam nas equipes para fazer isso,
não alocam tempo para isso pela incerteza do resultado. Mas não existe outro
caminho para as equipes se tornarem referência, a complexidade vai
aumentando a ponto de jogar tudo fora. ” (TOMÉ, 2017)
10. Simplicidade – a arte de maximizar a quantidade de trabalho não
realizado – é essencial. O que se quer dizer aqui é manter o foco no que tem valor
de negócio e proporcionar vantagem competitiva ao seu cliente. Reduzir desperdícios
e eliminar o que não é importante. A complexidade e os defeitos aumentam na
proporção direta da quantidade de código produzido. Em grandes corporações devido
a quantidade de tecnologias e exigências arquiteturais, esse princípio torna-se
bastante utópico, embora seja viável em outros contextos.
11. As melhores arquiteturas, requisitos e design emergem de times
auto-organizáveis. Aqui mais uma vez nos deparamos com a polêmica questão da
auto-organização ou auto-gestão. Acreditou-se por muito tempo que a incerteza
poderia ser controlada por aparatos de gestão de projetos, que o gerente de projetos
presciente poderia dominar todos os riscos e evitar impactos nos projetos.
111
Entretanto o ambiente de complexidade, incertezas e de mudanças ininterruptas
requisita outra abordagem, mais baseada na experimentação e no feedback. Uma
gestão mais empírica que prescritiva. Para tanto é necessário ter lideres capacitados,
porém é necessário também que se abra mão do poder gerencialista, e aqui começam
os problemas.
12. Em intervalos regulares, o time reflete sobre como se tornar mais
eficaz e então refina e ajusta seu comportamento de acordo. Não existe nenhum
processo de desenvolvimento de software maduro o suficiente que possa servir de
modelo, o mito da busca do processo perfeito permeia os ambientes de tecnologia.
Na prática o que pode garantir uma certa maturidade é a melhoria contínua, que
também é bastante difícil de implementar em empresas que visam em primeiro lugar
eficiência e rentabilidade máximas. Melhoria contínua requer esforço, tempo. A
responsabilidade recaí sobre as costas da equipe de desenvolvimento, que sente
frustração por elaborar planos de ação de melhoria contínua e não poder executá-los,
ou quando percebe que existem problemas corporativos que não são tratados da
mesma forma e que afetam a equipe que nada pode fazer a respeito. A maioria das
empresas focadas em rentabilidade e eficiência tratam a melhoria continua de uma
forma banal.
3.3 Principais métodos ágeis
Importante salientar que os métodos ágeis fazem uma referência explicita ao
manifesto e princípios ágeis analisados anteriormente, expandindo sua aplicação para
as práticas cotidianas de trabalho.
112
3.3.1 Scrum
O Scrum é um framework ágil que auxilia no gerenciamento de projetos
complexos e no desenvolvimento de produtos. Ele evidencia problemas através de
ciclos curtos de melhoria (PDCA), por meio de inspeções adaptações e feedback. São
pilares principais são a transparência e a colaboração. É conhecido como um
framework que prescreve um conjunto de práticas leves e objetivas, muito utilizadas
na área de desenvolvimento de software. As práticas do Scrum também podem ser
utilizadas para projetos de outra natureza, desde que possuam certo grau de
complexidade, pois só assim suas práticas de inspeção e adaptação fazem sentido.
Já foram publicados casos de sucesso da aplicação do Scrum em projetos de áreas
variadas, como marketing, produção, implantações estruturais, escrita de artigos e
livros, e até mesmo para o trabalho estratégico da gestão organizacional.
O Scrum tem por princípio um processo iterativo e incremental para o
desenvolvimento, focando na adaptabilidade. Ele aborda problemas como a variação
de requisitos e imprevisibilidade, que são peculiaridades da produção de software. Um
dos aspectos mais importantes do Scrum é a adaptação a mudanças, é dada uma
prioridade às funcionalidades que agregam mais valor. As variáveis técnicas e de
ambiente de um projeto de software mudam muito trazendo imprevisibilidade para o
processo.
113
Figura 2 - Scrum Framework
Fonte: SITE SCRUM.ORG, 2017
O processo começa com uma fase de planejamento, a fase de Sprint segue o
modelo do ciclo PDCA, no final da Sprint é feita uma demonstração para o cliente
(Review) para obtenção de feedback, e em seguida uma reunião de retrospectiva para
melhorar o processo. As entregas podem variar para acompanhar as necessidades
do negócio. Todo o trabalho será conduzido por ciclos chamado de Sprints. Os
requisitos priorizados ficam registrados no Backlog do produto. Os requisitos com
valor de negócio mais alto recebem uma prioridade mais alta. Ao final de cada Sprint,
um conjunto de funcionalidades prontas é entregue.
O Scrum emprega uma gestão empírica, considerando que existe uma
possibilidade de o problema não ter o seu entendimento esgotado na análise, e que
na medida em que é construído os requisitos mudam, é preciso ter flexibilidade para
atender os desafios que emergem.
Entre as suas principais características, podem-se citar:
As equipes pequenas e multidisciplinares que trabalham de modo
colaborativo para produzir software de forma incrementais em iterações curtas;
As equipes se auto-organizam para realizar o trabalho requerido nas Sprints
são necessárias uma responsabilidade compartilhada e uma liderança situacional.
O Scrummaster é um papel responsável por disseminar o processo ágil pela
114
empresa, facilitar as cerimônias e remover impedimentos para que o trabalho da
equipe flua, a comunicação e cooperação entre as pessoas se intensificam.
Origem
Em 1986, Takeuchi e Nonaka publicaram na HBR (Harvard Business Review)
um artigo no qual comparavam equipes de alto desempenho e multidisciplinares com
a formação Scrum existente nas equipes de rugby. Eles descobriram que equipes
pequenas e multidisciplinares produziam os melhores resultados.
Jeff Sutherland e outros implementaram o Scrum na empresa Easel
Corporation em 1993, incorporando os estilos de gestão preconizados por Takeuchi e
Nonaka, em 1995 Jeff Sutherland e Ken Schwaber formalizaram o processo para a
indústria mundial de software no primeiro artigo publicado sobre Scrum na conferência
OOPSLA (Programação Orientada ao Objeto).
O Scrum integra conceitos de Lean, desenvolvimento iterativo e incremental,
teoria das restrições, teoria dos sistemas adaptativos e complexos e dos estudos
sobre gestão de conhecimento de Takeuchi e Nonaka.
O Scrum foi pensando para lidar com resolução de problemas complexos em
ambientes imprevisíveis, por conta das dinâmicas dos mercados.
Papéis
Dono do produto (Product Owner): É o responsável por gerenciar o Backlog
do produto, garantir o retorno sobre o investimento, definir a visão do produto,
gerenciar a entrada de novos requisitos e definir a sua ordem, gerenciar o plano de
releases, gerenciar orçamentos e riscos do produto ou projeto e aceitar ou rejeitar o
que será entregue ao final de cada iteração. Ou seja, ele é o responsável por gerenciar
o produto de forma a assegurar o valor do trabalho executado pelas equipes de
desenvolvimento. O sucesso do produto está relacionado à sua capacidade de
compreender as necessidades do negócio e do mercado, de forma que o Backlog do
produto reflita a importância de seus itens, e de transmitir essas informações ao
restante da equipe.
115
Equipe de desenvolvimento: Responsável por desenvolver incrementos do
produto, segundo a definição de pronto, entregando-os ao final de cada iteração,
também é responsável pela estimativa quanto ao tamanho dos itens do Backlog do
produto a serem desenvolvidos e por estar de acordo com a meta da Sprint. A equipe
deve contemplar as especialidades necessárias à execução do trabalho, diferentes
pontos de vista e opiniões e experiências promovem a criatividade na transformação de
um requisito em incremento de produto. Deve ser auto-organizada dentro do contexto
técnico e da Sprint, ninguém os orienta nessa transformação, possuem
responsabilidade e autoridade sobre o trabalho, a equipe realiza o microgerenciamento
sobre si mesma, andamento e distribuição das tarefas, qualidade, prazo, etc.
Scrummaster: É a pessoa que mais conhece o Scrum, ele é responsável por
orientar o dono do produto, garantir que as regras estão sendo cumpridas e os valores
seguidos. Facilita as cerimônias, ajuda a remover os impedimentos, sem recorrer a
autoridade. Ele não exerce papel ativo na engenharia de software, usa técnicas de
facilitação para que os problemas e as soluções se tornem claros.
Artefatos do Scrum
Backlog do produto: É uma lista ordenada criada pela equipe Scrum; só o
Product Owner pode mantê-la. O formato mais comum dos itens é a história de usuário
cujo modelo especifica quem está pedindo, o que está pedindo e qual valor de negócio
agregado a esse item, os itens mais importantes ficam no topo e tem um detalhamento
maior. Esses itens são itens de negócios que junto com outros formam grandes blocos
de funcionalidades. Também cotem itens não funcionais como questões sobre
arquitetura tecnológica utilizada ou questões sobre segurança, tempos de respostas,
etc.
Backlog Sprint: É um conjunto de itens selecionados para serem
implementados durante a Sprint, ele tem uma meta a ser atingida, e as tarefas técnicas
necessárias para implementar os itens de negocio
Incremento de produto: Ao final da Sprint a equipe entrega um incremento
116
do produto de acordo com as cartas de qualidade DOD (Definition of Done) e DOR
(Definition of Ready), ambas definem exigências com relação à regras, atividades e
artefatos que devem ser atendidos para a entrega ser considerada realizada.
Outros artefatos: O Scrum recomenda a utilização de outros artefatos como
os gráficos de acompanhamento das atividades (burn-down, entre outros) e o próprio
quadro kanban, que permite fazer uma gestão visual do trabalho em curso.
Figura 3 - Quadro Kanban
Fonte: SITE ZAPIER.COM, 2017
Cerimonias do Scrum
São eventos de duração fixa (time-boxed) realizados em intervalos regulares,
implementando a gestão empírica – inspeção-feedback- adaptação.
Sprint: É um ciclo completo de desenvolvimento de duração fixa executado
de forma iterativa e incremental. Uma Sprint tem uma duração média de 1 a 5
semanas. O escopo pode sofrer uma negociação constante, mas o que está
relacionado com a meta da Sprint não pode ser modificado.
117
Planning: Sessão de planejamento no início de cada Sprint, para planejar o
trabalho daquele ciclo, a duração varia conforme o tamanho da Sprint. A reunião é
separada em duas: o que vamos entregar no final e como será construído. Na primeira
parte a equipe faz uma previsão das funcionalidades que serão desenvolvidas, o
Product Owner pode ajudar, mas não pode interferir, depois de escolher a equipe
define uma meta que guiará o trabalho. Na segunda parte decompõe cada item em
tarefas técnicas de um dia ou menos.
Scrum diária: Reunião de 15 minutos na frente do kanban onde cada membro
diz o que fez desde a última reunião, o que fara até a próxima e se tem algum
impedimento. Reunião tática diária para sincronizar o trabalho entre membros, não se
trata de uma reunião de prestação de contas, é uma reunião colaborativa para
acompanhar o trabalho da Sprint.
Figura 4 - Reunião Diária
Fonte: SITE KANBANTOOL.COM, 2017
Revisão da Sprint: É uma cerimônia que é realizada ao final da Sprint. A área
de negócios interessada no produto deve participar da cerimônia, além da equipe
Scrum. O maior objetivo dessa cerimônia é coletar o feedback sobre o que foi
produzido para eventuais melhorias no próximo ciclo. O Product Owner aprova ou não
as entregas da Sprint, de acordo com a meta acordada com a equipe, a equipe faz
uma apresentação, inicia um debate com os presentes, e atualiza os artefatos para
determinar o progresso atual do projeto.
118
Retrospectiva: Cerimônia que ocorre depois da revisão, participam todos os
membros da equipe, e o foco é o aprimoramento do processo de trabalho, interação
entre o membros, práticas e ferramentas utilizadas, identificam-se problemas e cria-
se um plano de ações visando melhoria.
Hoje, o Scrum, é o método ágil mais empregado no mercado nacional,
movimentando um mercado de certificações, capacitações e consultorias muito
grande. Pelo aspecto gerencial de sua abordagem, sua introdução permitiu a
aceitação, principalmente por parte de grandes empresas, das abordagens ágeis.
3.3.2 Extreme Programming (XP)
O XP foi criado por Kent Beck a partir de um projeto na indústria automobilista
Chrysler. Tratava-se de um sistema de folha de pagamento, com histórico de
problemas de custos e prazos estourados. O XP é fortemente baseado em
colaboração e na confiança nas equipes de desenvolvimento, preconiza um conjunto
de práticas de engenharia de software bastante específicas. As práticas visam agregar
valor e zelam pela qualidade do código escrito.
Valores
Poderíamos dizer que os valores são o coração dos métodos ágeis, não são
muito tangíveis mas guiam todas as práticas.
A comunicação é o primeiro valor, os desenvolvedores devem ir além do
código, precisam cada vez mais entender de pessoas. A atividade em si de
desenvolvimento requer bastante comunicação com usuários e clientes, além de
disseminar conhecimento.
A simplicidade seria o segundo valor, arquiteturas, modelagens e estilos de
codificação mais simples, são mais fáceis de serem codificadas e mantidas. A ideia é
adicionar requisitos na medida em que se fazem necessários, reduzindo assim a
possibilidade de defeitos.
119
A coragem é o terceiro valor, inovação, empreender mudanças, aceitar as
próprias vulnerabilidades, comprometimento, dizer o que pensa e assumir as próprias
deficiências requerem coragem.
O feedback é o quarto valor, se traduz pela avaliação por parte do cliente
principalmente sobre uma parte da entrega, se atende as necessidades ou precisa de
ajustes, além disso o feedback entre os membros do time é fundamental.
O respeito é o quinto valor, dá sustentação para todos os outros valores,
dificuldades são consideradas oportunidades de melhoria, respeito pela capacidade
produtiva, pelas singularidades das pessoas.
Equipe
A equipe de XP deve reunir todas as pessoas com as habilidades necessárias
para fazer frente aos desafios do projeto ou produto: programadores, designers,
analistas, testadores, clientes, executivos. Entretanto alguns papéis são fundamentais
para garantir o sucesso da equipe.
O coach é o especialista no processo, alerta sobre os desvios dos valores ou
práticas, não pressiona a equipe por entregas, é um papel que pode ser exercido por
um desenvolvedor experiente.
O tracker coleta e divulga informações sobre o projeto, com a finalidade de
descobrir oportunidades de melhoria, dissemina a informação com radiadores nas
paredes. Deve se ater a um pequeno conjunto de métricas.
Os clientes são os conhecedores das regras de negócio, das prioridades, das
necessidades a serem atendidas. É importante a proximidade dos clientes da equipe
de desenvolvedores, pois as dúvidas surgem a cada instante, caso isso não ocorra, o
desenvolvedor assume o risco de tomar decisões de implementação que caberiam ao
cliente, ou ainda, aguardar disponibilidade do cliente para dirimir as dúvidas.
Documentação
A interação e comunicação intensa entre indivíduos é preferida em detrimento
de documentação extensa. Os requisitos são instáveis e manter documentação
120
atualizada é custoso, além do que um documento sempre está dependente de
interpretação. Código simples e bem escrito, critérios de aceite e testes automatizados,
são em si uma boa documentação. Se alguma documentação for necessária deve-se
submeter a sua elaboração ao princípio do valor agregado.
Os cartões de história são formas de descrever as necessidades e desejos
dos clientes, eles guiam o trabalho da equipe e são índices para incentivar o
detalhamento. As metáforas seriam termos específicos para explicar de forma
intuitiva a concepção do produto ou projeto.
Princípios
Os princípios transformam os valores em práticas, eles estão interligados
entre si, o XP possui quatorze princípios:
Humanidade: A produção de software depende dos desenvolvedores. É
importante levar em conta que suas necessidades individuais devem ser respeitadas
e balanceadas com os interesses de negócio e as necessidades da equipe.
Economia: A equipe deve conhecer as necessidades de negócio e definir
prioridades que agreguem o máximo de valor no menor intervalo de tempo,
flexibilidade para reagir a mudanças com rapidez é importante para acompanhar
revisões nas prioridades de negócio.
Melhoria: Melhorias devem ser implementadas constantemente. Primeiro,
busque uma solução simples: isso satisfará o princípio da economia e ajudará a
equipe a melhorar seu entendimento do problema, depois busque uma solução
elegante e por último uma solução ótima, sendo que está terá um custo e um prazo
mais elevado.
Benefício mútuo: As atividades devem sempre trazer benefícios para os
envolvidos. Deve-se privilegiar práticas que trazem compreensão e confiabilidade, não
é o caso de documentos ou planejamento extenso.
Semelhança: Boas soluções devem poder ser aplicadas novamente, inclusive
em outros contextos e escalas
121
Diversidade: A equipe deve reunir muitas habilidades, opiniões e pontos de
vista para aumentar sua flexibilidade e conseguir várias perspectivas que ajudarão a
encontrar a melhor abordagem para cada situação.
Passos pequenos: Entregas de tamanho pequeno para que seja possível
manter a qualidade.
Reflexão: Periodicamente a equipe deve refletir sobre o seu próprio trabalho.
Fluxo: O ritmo do trabalho deve ser sustentável ao longo do tempo, a
quantidade de entrega deve se manter estável.
Oportunidade: Mudanças e problemas são vistos como oportunidade de
melhoria.
Redundância: Encontrar maneiras de assegurar qualidade, reduzir riscos,
aumentar aprendizado e diminuir a concentração de conhecimento.
Falha: A equipe deve ter coragem de experimentar alternativas quando a
solução não está clara.
Qualidade: Qualidade não é negociável, tempo e escopo devem ser
ajustados à qualidade.
Aceitação de responsabilidade: As responsabilidades são aceitas e não
impostas. Cada membro da equipe deve estar comprometido e disposto a colaborar
da melhor forma possível com a equipe.
O ciclo de projeto
É bem parecido com o ciclo do Scrum, com fase de exploração, jogo de
planejamento sempre com pequenos ciclos iterativos e incrementais, com pontos de
inspeção e adaptação. O que diferencia bastante as duas abordagens são as práticas
de engenharia de software preconizadas pelo XP, tais como: testes automatizados,
refatorações, programação em par, padronização de código, propriedade coletiva de
código, repositório de código, integração contínua, build ágil. As práticas estão
interligadas entre si e fazem referência direta aos princípios, que as ligam aos
valores. Além disso o ambiente deve privilegiar a colaboração e incentivar o uso da
122
gestão visual através de kanban e radiadores de informação.
Importante dizer que o XP foi o primeiro método ágil a ficar conhecido no Brasil,
principalmente no meio acadêmico, sua aceitação foi baixa, porque era visto como
algo “subversivo” porque conferia muito poder aos desenvolvedores, sendo rejeitado
por gerentes de projetos e líderes em geral. Os processos ágeis começaram a ter mais
aceitação com a chegada do Scrum, embora a semelhança seja muito grande, a
narrativa de controle e gestão que envolveu a introdução do Scrum no Brasil foi
acentuada. Hoje o Scrum se combina com práticas de engenharia de software do XP
para prover mais qualidade, produtividade, eficácia e eficiência na produção.
3.3.3 Lean
O Lean tem suas raízes na indústria de tecelagem japonesa no fim do século
XIX. Diante da situação improdutiva na indústria da tecelagem, devido a muita
intervenção humana, acarretando paradas, perda de qualidade, e de produtividade.
Sakichi Toyoda cria a primeira máquina de tear elétrica em 1896, de alta velocidade e
menos suscetível a paradas. A máquina ao primeiro sinal de defeito parava, dessa
forma um só trabalhador conseguia monitorar dezenas de máquinas. Tudo isso
redunda em redução de custos e aumento de qualidade, transformando o Japão em
um expoente no ramo.
O método caracteriza-se pela entrega de valor agregado crescente, com
menos esforço (importante frisar, com drástica redução de mão-de-obra). Da
influência da cultura japonesa destaca-se a responsabilidade e disciplina.
Automação com toque humano, Jidoka, é uma palavra que suaviza a
articulação entre trabalhador e máquina. Nos métodos ágeis existe uma iniciativa para
automatizar atividades repetitivas, eliminando variação de resultados e reduzindo
tempos, como testes, deploy e criação de ambientes.
Encontrar problemas tardiamente eleva custo de produção e a frustração da
123
experiência de quem usa o produto. A automatização se faz necessária pois o tempo
para testar é exíguo. Vale lembrar que os princípios e práticas se referenciam
mutualmente, aqui existe uma clara referência às técnicas de engenharia ágil do XP.
Quando temos testes escritos e compilação automatizados temos feedback
praticamente imediato de possíveis efeitos colaterais indesejáveis.
Na década de 1920, Kiichiro Toyoda viaja pelo mundo e toma contato com a
indústria automotiva, retorna certo de que não existe outro caminho a não ser investir
na produção de carros. Assim a família Toyoda abandona o ramo de tecelagem e
ingressa na indústria automotiva, produzindo o primeiro carro em 1936. Inspiraram-se
no modelo de produção em massa de Ford, e na forma como os supermercados
americanos funcionavam, recolocando produtos nas gondolas assim que eram
consumidos, traduzindo-se em baixos estoques. Assim nasceu o conceito de just-in-
time, ou sistema de produção puxada, consistindo em reduzir desperdícios,
produzindo o que é necessário, no tempo certo e na quantidade certa.
O poka-yoke é outro conceito que significa criar mecanismo para evitar erros.
Em software isso equivale a criar interfaces que possuam mecanismos que de
prevenção de erros, e mais uma vez as práticas do XP são uma referência importante,
como a programação em par e a revisão de código, o resultado é a produção de um
código de alta qualidade. O custo da correção de um erro descoberto no software
cresce exponencialmente em relação ao tempo que se passou desde que foi criado.
Para que o erro não aconteça mais, as pessoas precisam parar e refletir sobre suas
causas, raízes e consequências. Aqui são utilizadas técnicas como diagrama de
Ishikawa e os cinco porquês. Todos têm permissão para parar a produção e corrigir o
erro, mesmo que isso ocorra muitas vezes por dia, vale mais a pena corrigir o
problema nesse momento. O Andon é um sinalizador que mostra a todos que existe
um problema, pode ser um dispositivo visual qualquer associado a um mecanismo de
mensagens, por exemplo.
No sistema Toyota, cada processo na cadeia de geração de valor é cliente do
124
anterior, esse é o sistema puxado, implementado com o uso do kanban, sistema de
controle visual baseado em cartões que contém as informações necessárias para
produção sempre em uma quantidade especifica, evitando desperdícios e estoques.
No caso do software isso equivaleria a uma acumulo de requisitos a serem produzidos
parados em algum ponto da cadeia, criando os gargalos. Todo esse processo requer
colaboração intensa das pessoas. Devido à resistência por parte dos trabalhadores, o
presidente descia ao chão de fábrica para apoiar os trabalhadores, além disso a
Toyota considerava a capacitação e a liderança fundamentais para que o sistema
funcionasse como um todo. Todos esses elementos formavam o Sistema Toyota de
Produção, que ganhou expressão global a partir de 1973.
Esse sistema buscava a perfeita integração entre pessoas, processos e
ferramentas. E podemos traduzir a influência que exerceu sobre a produção de
software a partir de alguns princípios.
Princípios
Fluxo constante de entrega para o cliente: orquestração de um ambiente
complexo para entrega de valor agregado, que vai da área de negócio, passando pela
produção de software, à infraestrutura.
Privilegiar o aprendizado da organização: isso implica em aporte constante
de conhecimento, além de incentivar a criação de conhecimento de forma colaborativa.
Cultura de melhoria continua: desenvolver pensamento crítico para produzir
melhorias constantemente.
Eliminar desperdícios: pertinácia na remoção de todo e qualquer
desperdício na cadeia de produção de valor.
No que diz respeito à liderança temos dois grandes modelos, o de comando-
controle, e o de auto-organização, no Lean as pessoas estão no centro do processo,
o Lean preconiza a formação de equipes que possam dar conta de toda a cadeia de
geração de valor, portanto equipes multidisciplinares. O engenheiro chefe é a posição
mais importante, porque conhece bem o produto e se preocupa com questões de
125
negócio, e nesse caso assemelha-se ao Product Owner do Scrum, e também dá a
última palavra sobre questões técnicas. A experiência do cliente é valorizada e
coletada ao longo de toda a cadeia de produção de valor. O engenheiro chefe
coordena o trabalho de diversas equipes envolvidas na produção. Já foi considerado
por alguns como um “ditador benevolente”. Dá direcionamento técnico, estimula e
inovação, ele vê os trabalhadores como trabalhadores do conhecimento, que se
apropriam com orgulho daquilo que estão construindo.
A ideia que se disseminou pela produção de software foi essa: criação de
produtos com alto grau de assertividade, alto padrão de qualidade, equipes completas
de forma sustentável e visando melhoria continua.
Outra figura importante nesse contexto é o do líder de competências, que
exerce um papel de capacitação e mentoring, seu foco é prover o aprendizado
continuo, estimular a busca obsessiva por melhoria, agir sobre a cultura da empresa
para quebrar paradigmas, é responsável por criar as competências necessárias ao
longo da cadeia de produção, lembrando vagamente o papel de Scrummaster do
Scrum.
As pessoas devem se comportar no sentido de fortalecer a comunicação e
a colaboração. As equipes devem ter todas as competências necessárias para
transformar um conceito em produto, assim como os seus membros devem buscar
serem generalistas, ainda que sejam especialistas em alguma área, devem também
ser responsáveis por saber o que fazer e como fazer, pois o sistema é puxado, e
não existe alguém que atribua tarefas ou verifique o andamento de tais tarefas. Todos
os níveis da organização têm autonomia para tomar decisões, o que significa entre
outras coisas, reduzir desperdícios, a informação percorre um caminho acidentado,
perde qualidade, é distorcida, consome tempo.
Tipos de desperdício
Para que valor seja entregue de forma continua é necessário eliminar o
desperdício da cadeia de produção de valor.
126
Muda: atividades realizadas que não agregam valor para o cliente, exemplos
são documentos, reuniões, escrever e-mails, entre outros.
Muri: está relacionado à sobrecarga de processo. O pensamento da eficiência
absoluta está relacionado com o uso da capacidade de 100% das pessoas, o que leva
a intensificação do trabalho e condições de trabalho não sustentáveis. Se não houver
um slack, uma folga, não será possível tratar a variação que surge daquilo que está
sendo produzido. Se o trabalho não é sustentável, não sobra tempo sequer energia
para aprendizado e inovação. Respeitar a capacidade produtiva requer uma nivelação,
diminuindo a variação dos lotes de coisas que entram na produção, as demandas, no
caso do software os requisitos, na Toyota isso é conhecido por Heijunka. Se você
cadenciar o que entra no sistema é possível ter mais estabilidade e previsibilidade,
reduzindo a incerteza no planejamento. Portanto, para alcançar tais objetivos a
colaboração, a disciplina e a responsabilidade são necessárias.
Mura: refere-se a defeitos. No caso do software, mais uma vez as práticas do
XP são requeridas, desenvolvimento orientado por testes (TDD), programação em par,
testes e compilação automatizados, refatoração, simplicidade, arquitetura emergente.
3.3.4 Kanban
O kanban parte da premissa de que a imposição de um método, processo,
modelo de trabalho para uma empresa que tem um contexto muito especifico está
fadado ao fracasso. São muitas as especificidades: níveis de maturidade divergentes,
limites de orçamento, natureza dos riscos, culturas heterogêneas, mercados com
características únicas. O que há em comum é o trabalho do conhecimento, e a
necessidade de gerar valor.
O ponto de partida do Kanban é elaborar um mapa do contexto atual, das
características do trabalho como é realizado hoje. Essa representação é feita por um
quadro kanban, um dispositivo visual, a partir do qual se cria uma realidade
127
compartilhada para todos. Os problemas, impedimentos, gargalos emergem
visualmente, a partir dessa realidade atual se caminha em direção de uma realidade
desejada, o quadro se modifica à medida que entendemos a necessidade, trata-se,
portanto, de um sistema evolucionário e não revolucionário. Esse método, o
Kanban, surgiu depois que o Scrum e o XP já eram utilizados no mercado, antes o
kanban designava tão somente um dispositivo visual, a partir de 2007 passou a ser
visto como metodologia.
Houve uma aproximação da teoria das restrições, baseada no conceito de
tambor-pulmão-corda. O modelo do Kanban segue uma ideia de mudanças
incrementais visando uma transformação cultural da empresa, o caminho é o da
otimização e não da substituição, consequentemente a resistência para adoção será
menor. Transformações rápidas e radicais tem problemas sérios de viabilidade, tanto
no que diz respeito às pessoas, que tem que se adaptar a novos contextos enquanto
resolvem problemas do quotidiano, e problemas de ordem econômica. A gestão visual
é fundamental nessa abordagem, a partir dela a equipe toma decisões. Alguns pré-
requisitos devem ser atendidos: instalações físicas que possibilite o uso de quadros,
volume de trabalho significativo que muda de status constantemente, motivação para
colaborar e adotar uma transparência no processo de trabalho, a equipe deve
desenhar o seu processo de trabalho. É um método pouco prescritivo, não impõe a
execução de papéis, artefatos ou cerimonias, é nisso que reside seu ponto forte,
reduzir a resistência, embora na prática exista uma composição com outros métodos
ágeis.
O primeiro passo é compreender a característica das demandas, em segundo
lugar o fluxo de valor, e por último refletir essa realidade em um quadro kanban.
Todas as situações são representadas no mapa, portanto este precisa ter uma riqueza
de detalhes expressos em cores e cartões de tamanho diferentes, e outros elementos
visuais. Um ponto crítico é a definição do nível ideal de granularidade das demandas,
influenciando a cadência de entregas e ritmo da equipe, ao percorrer o fluxo da cadeia
128
de valor, os itens de trabalho passarão por ciclos sucessivos de expansão e contração,
e no final consolidados para seguir o fluxo de produção. Outra prática do Kanban é
limitar a quantidade de trabalho que pode estar em determinado ponto do fluxo de
valor (WIP – work in progress), uma vez o limite atingido, nenhum item avança até o
gargalo ser resolvido. As pessoas são obrigadas a atuarem do ponto de gargalo, pois
não tem sentido o processo anterior àquele que apresentou o gargalo continuar
produzindo, encontra-se um ritmo de acordo com a capacidade produtiva quando você
externaliza e trata as restrições. Os slacks ou folgas surgem a partir dos gargalhos.
Pare de começar e comece a terminar esse é o axioma do Kanban. Os limites são
estabelecidos com base na intuição. Os buffers são áreas intermediárias que
garantem que a parte do processo mais lenta tenha um estoque de itens mínimo para
puxar. Itens que apresentam problemas no fluxo e precisam voltar para operações
anteriores, podem ser sinalizados com indicadores de stop-the-line, técnica
desenvolvida no Lean para criar um senso de urgência para resolução de problemas,
requerendo uma ação imediata, porque interrompe o fluxo. As regras de auto-
organização e colaboração são definidas pela própria equipe. Cada membro puxa um
item para trabalhar, não existe delegação, os itens não são empurrados para os
membros. Cada vez que se posiciona na frente do kanban para começar algo novo, é
necessário se perguntar se para fazer o trabalho fluir não seria mais interessante atuar
em algum gargalo, é um olhar mais sistêmico do que individual. O líder nesse contexto
vai participar da definição de regras e atuar somente nas restrições.
Para facilitar a auto-organização preconiza-se uma reunião diária ou frequente
na frente do quadro, é um momento de planejamento tático da equipe, cria-se
realidade compartilhada, sincronização de todos os trabalhos em execução. Os
eventos ocorrem de acordo com uma cadência definida pela equipe. O Scrum utiliza
o conceito de time-box para prover cadência, as cerimônias como revisão e
retrospectiva podem acontecer de acordo com um gatilho, de acordo com um certo
número de itens em alguma fila do kanban. No Scrum a unidade de trabalho é a
129
história de usuário, no Kanban é um incremento de valor de negócio (BVI). Não é
dimensionado para caber em uma unidade de tempo, embora a sua granularidade
seja controlada, cada cerimônia tem sua própria cadência, é desacoplada das
entregas. Por exemplo, se cinco itens chegam na fila de “testado”, é realizada uma
apresentação (reunião de revisão) para o cliente para obter feedback do que foi
construído até aquele momento. No Scrum a reunião de revisão sempre acontece no
final da Sprint determinada por um time-box.
O Kanban pode ser aplicado em uma variedade grande de negócios e
contextos, como por exemplo agências de publicidade, qualquer atividade que envolva
“trabalhadores do conhecimento”, portanto é possível expandir a agilidade para
todas as células das empresas, bastando para isso estar relacionada de alguma
forma a cadeia de valor. Em áreas onde a imprevisibilidade é muito grande e a
urgência e severidade priorizam as demandas ao invés de valor agregado, o Kanban
funciona muito bem. De qualquer forma visibilidade, fluxo de valor, WIP limitado,
sistema puxado, colaboração, balancear capacidade produtiva e demandas, tem o
potencial para transformar ambientes de trabalho sem muita resistência. As filas de
demandas (Backlog) são grandes e a priorização (classificação por importância ou
urgência) inconstante.
A melhoria continua é a espinhal dorsal do método Kanban, adequar o
trabalho à capacidade produtiva, visualizar o processo, melhorar a colaboração,
remover gargalos e impedimentos, elaborar estratégias e políticas de trabalho
adequadas. A abordagem sistêmica leva a um constante debate sobre melhoria, e
coloca a tônica do trabalho sobre as pessoas que são os verdadeiros agentes
da mudança.
131
CAPÍTULO 4 - EVANGELIZADORES
Conceituamos e detalhamos a atuação dos evangelizadores, que assumem
um papel central na pesquisa pelo protagonismo assumido diante do movimento ágil,
e cujas narrativas são fundamentais para o entendimento do problema proposto.
Descrevemos em detalhes o planejamento e execução das entrevistas, relatando os
percalços e soluções encontradas. Estão organizadas em três blocos, o primeiro
abrange questões relacionadas à adesão dos evangelizadores ao movimento ágil, a
definição do que seria o método ágil na visão de cada um, as percepções sobre a
trajetória do movimento no Brasil e sua contribuição pessoal. No segundo bloco de
entrevistas, analisamos o impacto de algumas práticas ágeis. No terceiro bloco
discutimos sobre a adesão das empresas aos métodos ágeis, como os
evangelizadores enxergam essa adoção na atualidade, destacando as contradições,
dificuldades, soluções que emergem das narrativas.
4.1 Planejamento e execução das entrevistas
No âmbito desse trabalho chamo de evangelizadores aqueles profissionais
que em um dado momento se filiam ao movimento ágil e passam a divulgá-lo por
intermédio de comunidades virtuais, listas de discussões, eventos, consultoria e
treinamentos. É notória a proximidade dos evangelizadores com os Gurus que
fundaram o movimento ágil, a comunicação é intensa e a participação em eventos
internacionais torna-se rotina. É marcante o fato de que todos eles vieram de um
contexto de desenvolvimento mais tradicional, alguns relatam caos, outros, excessos
de burocracia, atuando em pequenos clientes ou pequenas demandas, e metade do
público entrevistado não possui curso superior.
As entrevistas revelam vários aspectos sobre a forma como os
evangelizadores se posicionam diante do movimento ágil que aspira a criação de um
mercado muito específico. Os codinomes utilizados aqui foram deliberadamente
inspirados em apóstolos cristãos.
Havia planejado inicialmente entrevistar dez evangelizadores, consegui
executar a entrevista com sete, dos três não entrevistados, um disponibilizava de
132
apenas quinze minutos, tempo insuficiente para realizar a entrevista e os outros dois
alegaram não mais atuarem na área. O critério de escolha foi o de participação no
movimento desde o seu início, a forma de abordagem foi facilitada pelo fato de que
todos eles fazem parte da rede de contatos pessoais do pesquisador, que atua no
movimento ágil há doze anos
As entrevistas foram todas realizadas remotamente utilizando ferramentas
como o hangout da Google ou o Appear-in, sendo que três delas os entrevistados
encontravam-se em outro país, outros três estavam em outros estados do Brasil, e um
participou da entrevista de forma assíncrona via whatsapp, ou seja, ao longo de um
dia eu enviava as perguntas as quais ele respondia, eventualmente fazia algum
questionamento a partir da resposta dada.
As entrevistas com os evangelizados, que se subdividiram em sete agile
coaches e sete desenvolvedores, foram todas realizadas presencialmente. As
entrevistas com os agile coaches foram facilitadas pelo fato deles também fazerem
parte da rede de contatos pessoais do pesquisador. Inicialmente havia previsto
realizar dois grupos focais com os desenvolvedores, mas as dificuldades técnicas
inviabilizaram essa estratégia, levando-me a realizar entrevistas semiestruturadas.
Mesmo aplicando a técnica da bola de neve, foi muito difícil realizar os agendamentos,
a alegação principal era a falta de tempo. Algumas foram realizadas nos intervalos de
trânsito de um destino para outro, em ambientes agitados, o que dificultou um pouco
a concentração e prejudicou a gravação.
Todas as entrevistas foram transcritas gerando centenas de páginas.
As entrevistas semiestruturadas, com duração média de duas horas, foram
subdivididas em três blocos: o primeiro abrangia questões relacionadas à adesão ao
processo, definição do que é o método ágil, trajetória do método no Brasil e
contribuição para o movimento. O segundo abrangia questões relacionadas à
aderência do processo nas empresas, sustentação da iniciativa ágil ao longo do tempo,
mudanças do método quando implantado em grandes empresas. Terceiro bloco
133
abrangia questões relacionadas ao impacto de diversas práticas nas pessoas como:
time-box, gestão visual, melhoria contínua, auto-organização, quais empecilhos as
pessoas encontram para utilizar o método, porque rejeitam ou aderem.
Devido a exiguidade do tempo estruturei a pesquisa para focar apenas nos
evangelizadores, pois a análise mostrou-se complexa e ensejava a utilização de
outros aportes teóricos não previstos. A solução foi apreciar o material coletado sobre
os evangelizados em futuros artigos, dando assim continuidade à pesquisa. Conclui
também que as perguntas feitas aos desenvolvedores devem ser reformuladas para
um melhor entendimento dos processos de subjetivação. Entre evangelizadores e
evangelizados identifiquei um terceiro grupo que foram identificados como agile
coaches, e que também requerem um aporte teórico específico, pois compartilham de
características dos dois grupos.
Para conduzir uma investigação em campo com os sete desenvolvedores
entrevistados foi escolhida a técnica bola de neve, não se trata de uma forma de
amostra estocástica, a dinâmica consiste em escolher os participantes principais,
designados como sementes, com potencial de relacionamento e conhecimento da
área de pesquisa, com trânsito na comunidade objetivo da pesquisa, esses indicaram
outros participantes e assim por diante, até chegarmos em um ponto de saturação,
que é atingindo quando as narrativas se repetem não trazendo mais nenhum elemento
novo. A dinâmica dessa técnica de amostragem estabelece um recrutamento em rede,
o fato de que as sementes tenham destacada atuação no seu meio, pode ser um fator
que apresenta vantagens e desvantagens, no âmbito dessa pesquisa se apresentou
como vantagem. No caso da pesquisa os atores que possuem informações relevantes
são os profissionais mais experientes em métodos ágeis, nesse caso trata-se de
amostragens intencionais, destaca-se também a possibilidade de encontrar perfis
diversos sócio, econômicos, culturais e técnicos.
134
4.2 Trajetória dos métodos ágeis no Brasil
Constatamos que há uma discordância dos rumos tomados pelo movimento
hoje, alguns aproximam o movimento ágil dos gurus da administração, João afirma
que:
“Ágil não tem nada de novo, se aproxima de conceitos e princípios que gurus
da gestão como Peter Drucker, Jim Colins, Kenneth Blanchard e Spencer
Johnson, o que tem de diferente é que os agilistas levaram à sério esse
conhecimento, esse ensinamento e tiveram disciplina em executar. Os gurus
da administração não conseguiram criar uma comunidade, uma igreja,
uma religião. Na medida em que os métodos ágeis conseguem criar uma
religião, a coisa fica muito forte” (JOÃO, 2017)
Pedro também aproxima o surgimento dos métodos ágeis de conceitos
criados por gurus da administração, nesse caso Peter Drucker que cunhou a
expressão trabalhador do conhecimento, desqualificando um jeito de trabalhar que já
não funciona por não considerar a incerteza:
“Na essência é uma reavaliação do que significa trabalhar com projetos na
era do conhecimento, na qual o desenvolvimento de software está inserido.
Você tem que descobrir qual é a coisa que tem que ser feita enquanto você
faz, ao invés de ter isso pré-definido, essa e a grande base do ágil. Antes o
que você fazia era definir um jeito de fazer as coisas e perseguir esse jeito
durante a execução do projeto, estabelecer uma certa conformidade com a
maneira de fazer, e trabalhar para aumentar a eficiência dessa maneira de
fazer, mas isso mata o processo de descoberta, que é a essência de um
trabalho do conhecimento, e é ruim lidar com o risco da incerteza embutida
nisso, os processos ágeis vieram com um modelo de gestão mais apropriado
para um ambiente onde você está sem saber exatamente o que precisa ser
feito, porque será definido ao fazer. Permite uma adaptação melhor ao
objetivo final que se quer chegar, a maneira mais tradicional se adequa bem
à trabalhos repetitivos, mas um novo terreno requer um novo modelo”
(PEDRO, 2017)
135
Para Lucas os processos ágeis sofreram significativa influência da Toyota:
“Poderíamos falar do manifesto ágil que resume isso bem, mas falando de
uma maneira mais pessoal seria diminuir os ciclos de feedback, antes de
trabalhar com os métodos ágeis tínhamos ciclos longos de entrega [...] O
segundo ponto foi trazer responsabilidade para as pessoas que fazem parte
de uma equipe, de melhorar o próprio trabalho, influência do lean e do TPS
(sistema Toyota de produção) do kaizen, de pequenas melhorias que fazem
diferença, trazer essa mentalidade faz diferença muito grande para uma
equipe descobrir as práticas que eles precisam, para conseguir ter mais
sucesso no trabalho e prevenir defeitos. Outro ponto seria o foco constante
para agregar valor para o cliente, antes era evitar que o cliente não mudasse
de opinião, o fornecedor procurava se proteger por um contrato, a agilidade
traz o cliente para o centro do processo. ” (LUCAS, 2017)
Lucas ainda acrescenta a influência das empresas do vale do silício, e de
como isso trouxe credibilidade para o movimento:
“As empresas startups foram chegando, as grandes empresas do vale do
silício declarando-se agilistas, isso trouxe credibilidade, hoje as empresas
que trabalham de uma forma tradicional é que estão atrasadas. A agilidade
conquistou isso com eventos, com uma comunidade forte. ” (LUCAS, 2017)
Os evangelizadores relatam suas percepções desde que os métodos ágeis
chegaram no Brasil, apontando a necessidade de flexibilização e adaptação para
ganhar mercado, Mateus assevera que:
“No início era muita teoria e pouca prática, depois com a proximidade do
mundo real, começou-se a ter uma ideia de flexibilizar um pouco mais, e fazer
do jeito que poderia funcionar na empresa, a realidade de mercado é que
cada empresa tem seu jeito de trabalhar, todas elas estão mesmo que
indiretamente, mesmo que erroneamente, se apropriam do processo e se
adaptam, no ágil o desprendimento com a teoria veio mais rápido do que com
outros métodos, o Scrum guide e outras literaturas afirmam algumas coisas,
mas a maioria das empresas não estão muito aí para isso, se apropriam do
136
método, e criam com sua própria cara. A aplicabilidade para Startups e
Fintechs é diferente do que para empresas grandes, e mesmo entre as
grandes existem muitas variações. " (MATEUS, 2017)
João relata como o processo era visto como algo sem fundamento algum, até
se transformar em uma referência em termos de processo de trabalho, critica o fato
do processo ter se massificado e perdido qualidade, e como os métodos ágeis podem
vir a se tornar referência para a gestão no século XXI:
“A principal é que no início era coisa de amador, de maluco, usávamos
técnicas de guerrilha. Hoje tornou-se objeto de desejo, todo mundo quer, não
sabe como funciona, e tem a impressão de que se não fizer vai perder
mercado [...] O que era rechaçado agora é adorado. O segundo ponto é que
o nível operacional do ágil virou commodity, só que não é bem feito, a
empresa diz fazer ágil, quando você vai ver é comando--controle ágil. Há
crescimento exacerbado, há comoditização no nível da execução, do delivery.
Há disputas entre métodos, entre comunidades [...] hoje você tem que
desenvolver as pessoas e horizontalizar a organização. Os métodos ágeis,
pensamento ágil, é a diretriz que os novos modelos de gestão do século XXI
deveriam adotar. (JOÃO, 2017)
A exemplo de João, Paulo lamenta a perda de qualidade com a massificação,
e ressalta o fato de como os métodos ágeis, que começaram com uma proposta de
melhorar a produção de software, foram além disso, lamenta também a tentativa de
escalar o processo com inevitável perda da essência da proposta original:
“É o efeito meme das coisas, existe uma geração de Scrummaster que estão
fazendo ágil em ambientes ágeis, aprenderam a fazer ágil, mas de um jeito
torto, microgerenciam a equipe, e servem de proxy entre equipe e Product
Owner. O que mudou tem muito a ver com a resposta do que é ser ágil, no
começo era ligado à tecnologia e software, mas quando o ágil entrou nas
grandes empresas assumiu um outro formato, no ágil de raiz, quando foi
pensado a partir do contrato do Manifesto Ágil, os agilistas não imaginavam
que o ágil chegaria onde chegou, hoje você tem empresas com 1.000
pessoas usando ágil, e ele não foi pensado para isso, hoje o ágil assumiu
137
diferentes formatos, de forma que se torna difícil dizer o que é ágil realmente,
do ponto de vista do comportamento, do processo. Tentou absorver mais as
dores, a forma do mundo corporativo pensar, e disso nasceu um mutante que
estamos tentando compreender” (PAULO, 2017)
Talvez os frameworks que surgiram para escalar o processo, como o SAFe,
fortemente protagonizado pela IBM, cumprem o papel de adaptar o método ágil ao
discurso gerencialista, perdendo seu caráter mais humano e social.
Aqui Tiago relata a trajetória dos métodos ágeis, de como ganhou o mercado
pelas empresas digitais, da adoção de estratégias para vender a agilidade como algo
viável e inevitável:
“Primeiro aderiram as empresas que prestavam serviços para corporações globais,
os chamados Early Adopters8, depois seguiram as empresas de internet como IG,
Globo e depois a mídia mais tradicional e algumas empresas de pacotes software.
A adoção passa por várias etapas, cada grupo adere por vários motivos, primeiro
aderem os desenvolvedores, depois os gerentes de projetos mais tradicionais e
depois o pessoal de métodos. É um processo muito dialético, na minha estratégia
de evangelização adotei muito a demonização dos métodos tradicionais. O que eu
fiz foi construir um discurso focado em tentar encontrar duas ou três crenças que
faziam com que os envolvidos valorizassem um conjunto de ideias. Projetei uma
palestra para mostrar isso, para hackear o Mindset desses caras que impediam a
entrada do ágil nas empresas. [...] também li Maquiavel que diz que uma nova
ordem é uma das coisas de maior risco, porque o status quo não quer, e os que
querem tem muito a perder. [...] Assisti umas oito vezes o documentário do Al Gore
“Uma verdade inconveniente”, não concordo com ele, mas produzi meu discurso
assim, deixar os opositores acossados e com vergonha. [...]. Escrevi um artigo cujo
título era “Você é um recurso ou uma pessoa? ”, tentava encontrar os agentes de
mudança para treiná-los e inspirá-los. No início as pessoas diziam que era
impossível o ágil tornar-se Main Stream, agora entram os late Adopters9, e aí a
essência se perde. Estamos entrando numa era de disrupção contínua, as
empresas terão que ser ágeis para sobreviver. ” (TIAGO, 2017)
8 São os segundos a aderir um produto, uma ideia, um processo, depois dos inovadores.
9 Adotam um produto, uma ideia, um processo, depois dos Early Adopters.
138
A reestruturação produtiva enseja duas grandes mudanças, a da base técnica
de produção, e a formação/qualificação do trabalhador adequado a esse novo
contexto, sempre em busca de mais eficiência e eficácia, e novos controles também
adequados a nova realidade. A produção flexível requisitou novos conhecimentos e
competências. Novas organizações de trabalho são garantidas por processos
pedagógicos, como é o caso da autoajuda, formar indivíduos que se autogovernem
sem entrar em conflito com a sociedade, educação para o consenso, com forte
compromisso de se adaptar mudanças, visando uma produtividade sempre crescente.
A autoajuda inspira novos paradigmas, impingi modelos, estabelece novas
regras de sociabilidade, conduz a aceitação de valores, enfim uma nova subjetividade,
que contempla modos de estar no mundo, de pensar, de sentir e agir desintegrando a
vida comunitária e acentuando o individualismo. A exemplaridade é o recurso mais
utilizado, pessoas bem-sucedidas, modelos de empregabilidade, de
empreendedorismo, posição social conquistada com base exclusivamente na ação
individual. Busca-se com a autoajuda transpor obstáculos receitas aparentemente
empíricas, racionais, pragmáticas para resolver qualquer problema, de existenciais à
financeiros.
O apelo à adaptabilidade é constante como forma de fazer frente a contextos
laborais, sociais e econômicos instáveis. Alguns termos são muito utilizados por
evangelizadores dos métodos ágeis como: flexibilidade, polivalência, maestria,
autonomia, transparência, colaboração, empreendedorismo, vontade de inovar,
capacidade de se comunicar e de dar e receber feedback, coragem, a todo momento
esse discurso tangencia os preceitos da autoajuda. Saber resolver problemas
combinando recursos diversos, focar no aprendizado, se engajar às demandas da
empresa.
Vivemos uma época de novo paradigma produtivo, tornou-se necessário forjar
um novo discurso para essa nova matriz ideológica, na qual a flexibilidade, a
competitividade e o individualismo ocupam uma posição de destaque. O
139
desemprego passou a ser visto como ato voluntário, levando a uma responsabilização
sem precedentes do trabalhador. O aumento da complexidade na atividade laboral
ensejou também uma valorização dos chamados soft-skills em relação à qualificação
técnica, compreende habilidades e comportamentos abstratos tais como: pensamento
crítico, criatividade, capacidade de comunicação, auto-organização, negociação,
inteligência emocional, resolução de problemas complexos, tomada de decisão,
flexibilidade cognitiva, orientação para servir, colaboração, polivalência, resistir a
pressões, entre outras. No discurso de gestão fala-se do CHA, que significa
conhecimento, habilidade e atitude. É preconizado o trabalho em equipe, a pró-
atividade, a disposição para os desafios e para lidar com mudanças.
O contexto de flexibilização, competividade, aumento de eficiência e eficácia,
da rentabilidade faz convergir os discursos de empresários, gestores, gurus da
autoajuda e do movimento ágil. Para uns significa sobrevivência, para outra
intensificação. A pedagogia agilista aproxima-se muito da pedagogia toyotista, que
exerceu forte influência sobre o movimento ágil, nota-se:
“A facilidade com que a pedagogia toyotista se apropria, sempre do ponto de
vista do capital, de concepções elaboradas pela pedagogia socialista, e com
isso estabelece uma ambiguidade nos discursos e nas práticas pedagógicas
[...] isso tem levado muitos a imaginar que, a partir das novas demandas do
capital no regime de acumulação flexível, as políticas e propostas
pedagógicas de fato passaram a contemplar os interesses dos que vivem do
trabalho, do ponto de vista da democratização”. (KUENZER, 2002b, p.78
apud TURMINA, 2014, p. 200)
Toda essa pedagogia tem um triplo papel, é um lenitivo para a violência a qual
as subjetividades são submetidas, oculta as contradições do sistema capitalista, e
consolida crenças e valores da ideologia neoliberal visando integração a uma nova
sociabilidade.
Importante observar também como o movimento antes de mais nada era uma
grande oportunidade de negócio, sua faceta mais ideológica estava sempre presente,
140
entretanto era colocada em segundo plano quando a estratégia era ganhar mercado,
isso fica claro com o relato de Mateus:
“Eu era o único ou mais inclinado a fazer o link do ágil com o mundo
corporativo real. A gente tinha uma comunidade radical que entendia bem de
tudo, mas quando sentava na frente de um CIO10 para falar, o CIO dava
risada, porque era um discurso radical. A galera que era radical, está com um
discurso diferente hoje, de falar com o CIO o que ele quer ouvir. Apanhei
muito, fui considerado um traidor do movimento, quando me tornei um CST11,
quando comecei a falar de certificação e a representar a Scrum Alliance12 no
Brasil. Todo mundo dizia que a certificação não vale para nada, é um mercado,
e que a Scrum Alliance era o PMI13 do Scrum! Mas eu achava que era um
jeito das empresas ouvirem o movimento, sempre me esforcei para que meus
treinamentos fossem além da certificação, mesmo que o objetivo da pessoa
fosse esse, garantir que a pessoa saísse picada pelo vírus, atraída pela causa.
Eu era o único que me aventurava a dar palestras no PMI, colocar terno e
gravata, conversar com executivos, isso foi muito importante para o Agile
estar no nível que está no Brasil. [...]. Se você não fala a língua do mercado,
as grandes empresas não querem ouvir, hoje todo mundo naquela época está
fazendo o que eu comecei a fazer. Todo mundo percebeu que deveríamos
nos manter fiéis aos conceitos, mas buscar aproximação com o mundo
corporativo. [...]. Tudo que você faz tem efeito colateral, se foi mais ou menos,
se compensou ou não, depende de onde se queria chegar, na época nós
queríamos divulgar o método ágil, e chegar no Main Stream14, e para chegar
lá algumas coisas são necessárias, em retrospectiva, o PMI se tornou mais
parecido com o Ágil e não o contrário. Será que isso teria acontecido se
continuássemos a fazer piquete na frente das empresas e a chamar gerente
de projeto de babaca? [...] Primeiro conseguimos vender o discurso para os
coordenadores e líderes de área, depois para gerentes de projeto, essa foi
uma barreira importante a ser transposta, mas hoje o maior desafio é o
pessoal que está na governança e no compliance, e também no C-Level15,
para que comprem o ágil de verdade, não o ágil Fake. Na história da gestão
quando você faz um movimento para ganhar escala, para influenciar pessoas,
10 CIO significa Chief Information Office, normalmente a autoridade maior da tecnologia na empresa.
11 Uma certificação que permite que o instrutor ministre cursos oficiais pela Scrum Alliance.
12 Empresa fundada pelos criadores do Scrum para divulgar o método mundialmente.
13 Instituto que divulga a gestão de projetos e o seu guia principal o PMBOK
14 Conceito que expressa tendência, ou moda principal/dominante, corrente principal
15 Equivale ao nível de diretoria, alto escalão da empresa.
141
você quebra coisas pelo caminho. No início do ágil tínhamos duas opções,
uma era formar uma sociedade alternativa em retiro, e esperar que o mercado
ouvisse o recado, a outra era ir para cima do mercado corporativo. ” (MATEUS,
2017)
Pedro diz como é importante manter o método como uma referência aberta,
que facilita a adaptação:
“Foi de 2012 para cá que descobri que não temos que trabalhar com os
métodos em si, não temos mais o que falar de Scrum, Lean ou XP ... Já se
falou tudo, os métodos viraram referência, quando você instancia16 o método
para um projeto você percebe que não é uma simples adoção, você tem que
construir, a maioria adota a postura “Como eu faço o ágil?”, não é uma postura
do tipo “como eu resolvo o problema?”, é uma postura de conformidade,
precisa que alguém diga o que está fazendo de errado porque o método deve
estar certo. A postura correta é ir além dos métodos e olha-los como
referência, e assumir uma postura de designer, ou seja, eu estou fazendo
design de um sistema de trabalho, e as pessoas não querem fazer essa
transição, querem o conforto da conformidade, no momento em que a coisa
para de funcionar há uma negação sobre a postura que deve ser tomada. As
pessoas acabam se rendendo à mediocridade. Há necessidade de
conscientizar as pessoas sobre essa mudança, eis minha contribuição, ela é
necessária se você quiser sair da zona de conforto e resolver problemas que
você não consegue, o que eu tenho tentado fazer ultimamente é fazer essa
transformação de mentalidade, esse Mindset das pessoas, para que elas
entendam a relação com o trabalho, uma relação de design, de um sistema
de trabalho ao invés de uma busca de conforto com o método” (PEDRO, 2017)
Como já vimos nessa pesquisa, na ordem industrial as organizações eram
hierárquicas e piramidais e o poder se exercia conforme normas disciplinares. O
gerenciamento em linhas gerais pode ser visto como uma tecnologia política ou arte
de governar os homens e as coisas, dirigir e ordenar.
O modelo que rege as empresas hoje é policentrado, reticular, o modelo de
poder se exerce em uma coerção sutil, como se fosse uma adesão voluntária, os
16 Equivale a criar uma versão do método para uma situação especifica, customiza-lo.
142
indivíduos são submetidos a injunções paradoxais.
Diante do sistema disciplinar a gestão gerencialista apresenta-se como um
progresso, indivíduos desejam ser reconhecidos, é o primado da adesão e da
mobilização psíquica a serviço da empresa. Há um comprometimento subjetivo e
afetivo. Uma canalização das pulsões. Para os evangelizadores do movimento ágil
esse é um dos principais ganhos, que ao adotar os métodos ágeis:
“Essas práticas devem ser levadas para muito além da área de
desenvolvimento de software numa organização, tenho conversando com
empresas e sempre sugiro a prática de que o trabalho deve ser melhorado
pelo próprio trabalhador e não por alguém que o coordena. É um dos grandes
marcos do Mindset lean, isso faz muita diferença, você está colocando a
mente de tudo mundo para pensar como o trabalho pode ser melhor, mais
rápido, gerar resultados melhores, os programadores têm como automatizar
o próprio trabalho, remover trabalho manual, perda de produtividade. A
cultura de feedback é sensacional, o face-to-face, você diz para o colega o
que ele faz de legal e aquilo que ele pode melhorar, você consegue criar
cultura de transparência, assumir que não são perfeitos, que nosso ego não
pode falar mais alto! ” (LUCAS, 2017)
O poder gerencialista visa transformar essa energia vital e libidinal em força
de trabalho, trata-se de uma economia do desejo, que se utiliza da sedução e do
reconhecimento, o trabalho passa a ser uma experiência convidativa, excitante. Toda
a responsabilidade por desenvolver competências fica por conta do indivíduo, cada
qual deve buscar atingir os seus objetivos com entusiasmo. O desejo é requisitado o
tempo todo. Ao contrário do regime disciplinar a vigilância agora é nos processos de
comunicação, esse sim, constantemente inspecionado e adaptado para atender os
objetivos da corporação. Você deve medir as palavras, calibrar o discurso, e recai
principalmente sobre os resultados, que deve ser mostrado e explicado, a autonomia
do fazer se contrapõe ao controle severo sobre os resultados.
O Sistema gerencialista rompeu com o modelo do sistema disciplinar,
ancorado na submissão total à uma hierarquia, não se trata mais de cumprir ordens,
143
mas realizar projetos, a vigilância ostensiva e hierárquica foi substituída pela
autonomia controlada.
Com relação ao tempo, busca-se um engajamento total, a rentabilidade
almejada já não cabe no tempo de trabalho regulamentado, não há possibilidade de
canalização das potencialidades subjetivas sem a captura do tempo total, existencial,
criou-se uma porosidade entre o tempo do trabalho e do não-trabalho. As tecnologias
de comunicação concorreram para transformar todos os tempos perdidos em frações
de tempo que são utilizados para resolver qualquer problema não importando onde
você esteja, o tempo de trabalho torna-se ilimitado, a mídia e a literatura especializada
em negócios criam todos os dias mil fórmulas para que cada um gerencie melhor o
seu tempo, estar conectado é uma exigência. O nível de tarefas executadas de forma
paralela em um único dia beira a insanidade. O ciclo de PDCA17 é uma constante não
só para a equipe como processo de trabalho, mas também para as atividades
individuais, ele se repete muitas vezes em um dia de trabalho. Os processos ágeis
preconizam a utilização de time-box, caixas de tempo limitadas para resolver alguma
coisa, pode ser uma reunião ou uma parte de um software que precisa ser produzido,
a justificativa é colocar um limite para tratar assunto complexo de forma que ao
executar um ciclo PDCA você possa obter feedback e melhorar, além de garantir o
foco e a atenção, acontece que na prática parece que muitas fatias ou caixas de tempo
se sobrepõe, não é possível transformar o tempo em uma espécie de fractal18, por
questões óbvias de limitação física, apesar da ilusão de ubiquidade criada pela
tecnologia. Cria-se uma série de mecanismos para priorizar, evitar interrupções,
entretanto a intensificação é inevitável, e a responsabilidade de adequar demandas e
tempo recaí sobre o indivíduo.
17 Planejar, fazer, verificar, sintetizar
18 Estrutura geométrica complexa cujas propriedades, em geral, repetem-se em qualquer escala.
144
4.3 Análise do impacto de algumas práticas ágeis
4.3.1 Time-box
Os métodos ágeis preconizam o fatiamento do tempo em frações chamadas
de time-box, de uma forma geral é uma prática vista de forma positiva porque ajuda a
organizar o trabalho, reforça o foco, cria senso de urgência exercendo pressão sobre
as pessoas, como vemos nas respostas dos evangelizadores sobre o impacto do time-
box sobre os indivíduos:
“Tem um impacto positivo, criando pressão no sentido que afeta as pessoas
para que façam mais em menos tempo, ajuda a ter mais foco, time-box dos
ciclos, iteração, Sprints, mas também das reuniões. Garantir que o tempo seja
utilizado com inteligência, a reunião vai custar menos para a organização, e
para o time em geral, e gerar resultados mais eficientes”. (LUCAS, 2017)
Chamo a atenção para o “fazer mais em menos tempo”, percebemos como as
caixas de tempo são utilizadas para intensificar o trabalho.
“O efeito do time-box remonta à escassez, não tenho todo tempo do mundo
para fazer isso, tenho uma fatia de tempo, tenho que descobrir o que é mais
importante, e o que cabe, vai me ajudar a ter uma vantagem competitiva maior,
a pressão para fazer um trabalho mais assertivo, com pontos de
verificação o sistema se autorregula” (PAULO, 2017)
O fato de não ter “todo tempo do mundo” coloca sobre as costas da equipe e
das pessoas uma responsabilidade total sobre o que fazer, descobrir o que agrega
mais valor, enfim responsabilidade sobre o sucesso dessa atividade específica.
“Há frustração de não entregar, incentiva-se a entregar mais, o time vai querer
jogar melhor cada vez mais, baseado nos pontos entregues na última Sprint.
145
Depende de como você coloca o processo, se o time se vê numa situação de
fazer promessas muito duras, o time vai se defender, vai inflacionar os pontos,
você está criando um risco. Não quero que o time me prometa nada, querer
ver a performance do time hoje e o que podemos fazer para, melhorar isso, e
não planning contínuo. O problema do kanban com gestão de filas é não ter
nenhuma meta, só fluxo contínuo, e as pessoas gostam de desafios,
adrenalina, ver o pessoal correndo no final da Sprint é legal, as pessoas
ficam viciadas em sucesso. “ (TIAGO, 2017)
Nessa narrativa podemos ver como se trata de levar a equipe e as pessoas
ao limite, a frustração é aceitável desde que motive o time a fazer mais, aqui não
importa as consequências subjetivas, como a ansiedade que se torna uma constante,
fica evidente a contenda que existe entre métodos que defendem a utilização do time-
box fixo, como o Scrum, e métodos que preconizam a utilização de time-box relativo,
como o Kanban, ou seja, existe um time-box não muito rígido que pode ser um pouco
expandido conforme a necessidade do que está em produção, entretanto o efeito
psicológico nos dois casos parece o mesmo.
“Combate a síndrome do estudante, o perfeccionismo, a procrastinação, a
multitarefa, traz senso de urgência, o dia do prazo é todo dia, permite fazer
correção de curso antecipado, leva a intensificação do trabalho, é mais
compensador, mas tem que ser sustentável. ” (TOMÉ, 2017)
Tomé salienta as qualidades do time-box, mas alerta ingenuamente, quero
crer, sobre a sustentabilidade dessa prática, ou seja, ela deve ser usada desde que
intercalada com tempos de descanso, recuperação, como se isso fosse possível em
organizações pautadas pelo uso eficiente dos “recursos humanos”.
Mateus argumenta que se a equipe tiver maturidade suficiente, disciplina, o
time-box não é requerido como prática, pode até atrapalhar:
“Aumenta a capacidade de organização das pessoas, e cria um sentido de
urgência, o impacto pode ser positivo, dependendo do contexto de negócio.
146
Em algum momento o time-box vai desaparecer, foi importante para todas as
conquistas do movimento ágil, é importante ainda hoje porque as pessoas
não sabem organizar seu próprio trabalho, foram sempre gerenciadas,
comandadas, não conseguem fazer gestão de tempo decente, não
conheciam sua velocidade, sua capacidade de trabalho, não tinham sentido
de urgência, já que os períodos de projetos eram grandes, a procrastinação
sempre deixa tudo para depois, como medida disciplinar era e ainda é
importante na maioria dos casos, imagina que você já tem disciplina, que já
tem autoconhecimento do seu ritmo de trabalho e a fluidez é tamanha que
você já consegue entregar numa velocidade maior, nesse caso o time-
box se torna uma burocracia. (MATEUS, 2017)
Pedro considera que os fatores positivos são importantes, principalmente
porque possibilita um ciclo de inspeção-feedback-adaptação, mantra da melhoria
continua, mas limita a entrega de valor de negócio quando time-box é fixo:
“Sobre as pessoas não sei, sei sobre o modelo de gestão. Tem lados positivos
e negativos, é contextual, os lados positivos, você quer ter um ritmo de
interrupção do processo produtivo para reavaliar o propósito, que seria a
cerimônia de Review do Scrum. O lado ruim é que se tenta usar o time-box
como única maneira de fazer, por vários motivos que é o jeito que se faz, o
time-box tem um problema sério, ele não adere (o fixo) às metas de negócio,
a meta que se deve perseguir para incrementar o valor de negócio no projeto,
não se adere porque está preso no tempo, então você estabelece uma meta
e depois essa meta, como você não consegue encaixar no tempo do time-
box, você acaba reduzindo ou esticando o escopo. ” (PEDRO, 2017)
Essa narrativa me lembra o mito grego de Procusto, que conta a história de
um homem que obrigava os seus hóspedes a caber perfeitamente na sua cama, ora
esticando-os ora amputando-lhes os membros, penso que não se trata de fazer caber
a demanda em uma caixa de tempo, mais do que requisitos o que são esticadas e
amputadas são as subjetividades, que fica sempre com um sentimento de
inadequação.
Embora haja uma crença de que o trabalho pode ser sustentável, raramente
toda carga de trabalho cabe em um time-box, se levarmos em conta todos os controles,
147
reuniões, atividades relacionadas à auto-gestão, levando a uma inevitável
intensificação do trabalho.
Não existe mais linearidade no trato com o tempo, é preciso acolher a urgência
e o aleatório. Mobilizado pelo sucesso o profissional não é instado de forma autoritária
a abrir mão de seu tempo pessoal, aceita tacitamente.
A modelagem de comportamentos se dá pela introjeção de valores e
princípios, mecanismo utilizado tanto pelo discurso gerencialista como pelo discurso
dos métodos ágeis. Dessa forma, pragmatismo e empirismo, a exigência permanente
de atender a todos os stakeholders19, o primado dos resultados financeiros e a entrega
de valor agregado em ciclos curtos, a exemplaridade das atitudes e o líder coach,
facilitador, busca-se uma adesão livre e espontânea aos objetivos da empresa, uma
identificação total que inspire orgulho. Cabe a empresa enaltecer o trabalho em equipe
e exaltar a qualidade.
4.3.2 Auto-organização
Nos métodos ágeis existe o conceito de auto-gestão ou auto-organização que
vale tanto para o indivíduo como para a equipe, e se caracteriza por:
Não existe alguém que distribua as tarefas.
Tem autonomia para decidir o que fazer e como entregar.
Mantem o foco no ciclo de trabalho atual.
É facilitada quando a equipe é pequena.
Busca transcender os seus limites.
Busca um ritmo.
19 Significa público estratégico e descreve uma pessoa ou grupo que tem interesse em uma empresa,
negócio ou indústria, podendo ou não ter feito um investimento neles. Em inglês stake significa
interesse, participação, risco. Holder significa aquele que possui.
148
Partilha responsabilidade e estimula cooperação.
Desenvolve competências por pressão do grupo.
Cria ambiente seguro para o aprendizado.
O foco deve ser resolver problemas de negócio.
Para Deleuze as sociedades da disciplina são efêmeras, surge no século XIX,
aos poucos vai cedendo lugar para as sociedades de controle, que operam em
espaços abertos sem duração determinada, por intermédio de controle flexíveis e que
funcionam a uma velocidade vertiginosa. Controles que não funcionam mais como
moldes, mas por modulações, ou um molde que se adapta à situação do momento. A
fábrica conhecia um salário e benefícios codificados, na empresa hoje o salário é
índice da modulação realizada por avaliações continuas, o sentimento de instabilidade
é permanente.
O trabalhador na fábrica recomeçava um trabalho continuamente, na empresa
nunca se termina nada, porque as mudanças são constantes, tudo é reconfigurado e
modulado, o trabalho, as metas, os propósitos, o aprendizado. O engajamento se
configura ao mesmo tempo como o cerne de um controle por dominação e como uma
fonte de possibilidades de emancipação, de autonomia.
A modulação do uso de tempo se dá pela tecnologia que opera em regime de
24x7, seja um computador, um celular ou um tablet, o trabalho se libera das cargas
horárias rígidas, torna-se modulável de acordo com a intensidade desejada.
Os espaços são alargados pelo mesmo motivo, a tecnologia que permite uma
mobilidade cada vez maior, é possível trabalhar em qualquer lugar, tornando o espaço
também modulável.
A modulação se dá também pelos requisitos, que são insumos para a
produção de software, pelas funcionalidades a serem construídas que ditam ritmos,
velocidades, energia empenhada, de acordo com a granularidade, a data, a
quantidade. Esses requisitos são constantemente priorizados em uma lista conhecida
149
por Product Backlog de acordo com as estratégias da empresa, interessante observar
como grande parte dos princípios ágeis fazem menção às entregas.
OKR é um instrumento de planejamento que vem ganhando popularidade
Brasil. OKR significa Objectives and Key Results, é um framework para estabelecer
metas utilizadas pelas grandes empresas digitais atualmente, constrói engajamento
a partir de metas quantificáveis e dinâmicas, podem ser definidas e revistas a cada
três, quatro ou seis meses, dependendo de como a empresa está estruturada para
acompanhar o processo. OKR promove alinhamento e cadência, é importante que
todos os envolvidos estejam focados nas mesmas prioridades e dentro do mesmo
ritmo.
Os princípios que norteiam a implementação de OKR aproximam muito das
abordagens ágeis, seja pela simplicidade, clareza e leveza; seja peos ciclos curtos
e sua dinamicidade que permitem realizar adaptação às mudanças que surgem; seja
pela colaboração porque envolve negócios e tecnologia em torno do mesmo
propósito, engaja a alta gestão, a gestão média e a produção que criam seus OKR’s
táticos de ciclo mais curto alinhados com o OKR estratégico que tem um ciclo mais
longo.
O OKR é uma ferramenta de transformação cultural que ajuda as equipes
que buscam alto desempenho, pois privilegia foco e disciplina. Os valores que guiam
o OKR são muito próximos dos mesmos valores que guiam os métodos ágeis: a
transparência, os OKR’s estão disponíveis para todos; foco, a definição de poucos
OKR’s; disciplina, os OKR’s fazem parte do cotidiano e exigem um acompanhamento
constante que pode ser feito nas cerimônias ágeis. O OKR promove a busca por metas
ambiciosas, e faz isso lançando mão de duas estratégias: revisão de metas que tira
as equipes da zona de conforto, ou seja, se as metas se mostram fáceis demais,
elas “são esticadas”. Desacoplar metas dos salários e bônus, para que a equipe
busque metas mais elevadas e ambiciosas. Essas estratégias requerem mais
maturidade organizacional, podem ser implementadas ao longo do processo.
150
O OKR consegue estabelecer um fio condutor entre a alta gestão e a
produção, passando por todos os níveis organizacionais, são vagos, pois as pessoas
precisam se adaptar e gerir suas atividades de forma auto-organizada para atender
aos objetivos estratégicos, e dessa forma o OKR permite uma modulação de
subjetividades, deixando claro o que se pretende como portfólio de produtos, ao
mesmo tempo abrindo espaço para que as pessoas se apropriem desses objetivos,
criando os seus próprios objetivos alinhados aos corporativos, todos os requisitos e
funcionalidades gravitaram em torno desses objetivos estratégicos e táticos.
É o trabalhador que de forma “auto-organizada” inicia a suas atividades,
modula sua carga de trabalho, o que pressupõe compromisso, ou como se diz
“ownership”, um sentimento de propriedade do trabalho, como se fosse dono do
negócio, essa é a modulação do engajamento subjetivo.
Não há ninguém que lhe diga o que fazer e quando fazer, embora exista uma
vigilância por parte dos papeis de liderança exercidos. No caso do método ágil esse
papel é exercido de certa forma pelo Scrummaster ou pelo Product Owner, mas nada
disso dispensa a pressão por pares, ou seja, a vigilância dos próprios colegas. Além
disso existe a kanban, dispositivo visual que reflete o status do trabalho atual, ou
ferramentas eletrônicas que acompanham o fluxo do trabalho.
“Em contrapartida, ganha novo alcance uma tradicional forma de controle do
trabalho: por objetivos e resultados. O que é novo não é esse controle em si,
mas sua junção com as diferentes facetas da modulação. Isso se exprime em
uma coisa simples (que com frequência é das mais potentes): o assalariado
deve prestar contas regularmente dos seus resultados, e os objetivos que lhe
são atribuídos podem ser rapidamente reatualizados. O indivíduo circula "ao
ar livre", mas um feixe o retém e orienta — o feixe das transmissões de
informação e de comunicação, o qual é consideravelmente potencializado
pelas conexões entre sistema portátil de tratamento de informação, telefonia
móvel e acesso à internet. ” (ZARIFIAN, 2002, p. 27)
151
No método ágil essas verificações e atualizações se dão dentro do ciclo
PDCA, composto por diversas cerimonias ou reuniões, cujo objetivo é implementar a
gestão empírica baseada na tríade inspeção-feedback-adaptação.
Se a tecnologia por um lado facilita e amplia o controle, por outro possibilita
uma autonomia e uma emancipação. A mesma tecnologia possibilita acesso à
conhecimentos que ampliam as possibilidades laborais. Quando a tecnologia não
funciona bem, ou se há restrições na utilização, o trabalhador verá isso como
retrocesso de liberdade. O uso da tecnologia para resolver problemas mais
rapidamente traz uma satisfação. Por outro lado, o tempo ganho através desse
recurso é utilizado de maneira intensiva para atender a outras demandas. Trata-se,
pois, de intensificação, não é o bem-estar do trabalhador que vem em primeiro lugar,
mas a eficiência, a produtividade e a rentabilidade, o que torna os benefícios
tecnológicos para o indivíduo, na maioria das vezes impalpável. A visão de Zarifian
nesse caso é mais otimista no sentido de que as tecnologias de certa forma:
“Conferem ao indivíduo um poder de auto-organização de seu tempo e de
seu espaço que responde a uma expectativa crescente na organização da
vida social. Além disso, constata-se, para grande desespero de algumas
hierarquias, que a modulação pode ser parcialmente transgredida: atividades
ditas "pessoais" vêm se inserir nos horários legais de trabalho e o uso das
ferramentas de informática é "deturpado"”. (ZARIFIAN, 2002, p. 29)
A tecnologia seria uma espécie de Jano, deus grego das mudanças e
transições, tem poder sobre todos os começos, e tem duas faces, uma voltada para
frente e outra para trás, uma face coopta atividade subjetiva do trabalhador, sob uma
forma de relação de dominação, e outra face a do sentido pessoal e coletivo dado à
ação social, sob uma forma de relação de emancipação. É inexequível segregar uma
face da outra.
Para Tomé a auto-gestão assume matizes um tanto quanto utópicas, e,
portanto, difícil de se concretizar, ainda que seja em empresas onde não haja
152
hierarquia rígida:
“Estamos bem longe do autogerenciamento, sempre acaba surgindo uma
hierarquia tácita, até nas empresas mais flats, os caras mais velhos,
experientes assumem uma certa liderança, e muita gente não tem motivação
para se auto-gerenciar. ” (TOMÉ, 2017)
Pedro afirma que a auto-gestão deve estar atrelada aos interesses maiores
da organização, evitando os extremos, de um lado um comando-controle absoluto e
de outro o caos sem liderança alguma, afirma também que a auto-organização deve
buscar uma liderança situacional, onde todos em determinado momento venham a
exercê-la, de acordo com a natureza do problema a ser resolvido:
“A resposta é semelhante a resposta que eu dei sobre o problema que se
quer resolver, autogerenciamento não é a meta em si, uma empresa não se
torna melhor se for auto-gerenciada. Não é algo a se perseguir, em alguns
casos funciona bem. Qual o benefício de se ter auto-gestão? Se você tem um
benefício que se conecta com o que você tem beleza, se não, não ... Ou você
tem uma liderança coordenando ativamente o trabalho, o complicado ai são
os extremos, caos, você não tem liderança, no outro extremo comando-
controle absoluto, microgerenciamento, a equipe só faz o que o gerente quer,
não tem nenhuma liberdade, o caminho do meio é melhor, existe valor na
liderança, confundimos a experiência de uma liderança ruim, ineficaz, com
não ter nenhuma, as vezes a solução é ter uma liderança melhor... Definição
de liderança: é aquele para quem você olha quando não sabe o que fazer! A
liderança emerge dependendo da situação, é situacional, contextual. Por
exemplo, estou com problema de deploy, alguém da equipe que conhece bem
o assunto lidera isso... A parte boa da auto-organização é distribuir a
responsabilidade para o grupo e não a centralizar. ” (PEDRO, 2017)
Na visão de Paulo a estrutura e práticas de gestão da empresa devem
conviver pacificamente com as iniciativas auto-organização ágeis, afirma que a auto-
organização deve estar atrelada aos interesses maiores da organização, evitando os
extremos, mas de alguma forma sugere uma espécie de autonomia controlada:
153
“Se o gestor é responsável por tudo o que acontece na empresa, está a par
de todos os detalhes. A auto-gestão questiona isso, hoje nas empresas existe
uma dificuldade de conciliar essas duas coisas, a maneira de pensar dos
gestores e a auto-gestão não são excludentes, dá para coabitar, a sensação
de caos da auto-gestão traz um desconforto, mas funciona se bem conduzido.
O time tem responsabilidade sobre a gestão também, no ágil. Na prática ser
gerenciado é confortável, a culpa não é minha se tal coisa não der certo, não
desenvolve o senso de ownership, leva a perda de energia, de motivação,
beira a mediocridade, deixa de inovar, empreender. ” (PAULO, 2017)
João afirma que no futuro será inevitável aderir a auto-gestão, pois a gerência
média desapareceria com a automatização de decisões, afirma também que as
pessoas não são formadas para agir de forma auto-organizada:
“Vamos fazer computadores poderosos e tomar decisões baseadas em big
data, usando inteligência artificial, algoritmos, sai na HBR, é mais assertivo
do que seres humanos decidindo... o que sobra para o ser humano? Liderar!
Com o crescimento da IA o middle management vai desaparecer!
Precisaremos de líderes verdadeiros que criam ambientes para que equipes
auto-gerenciadas emerjam, a própria universidade não treina para a auto-
organização, foca no individualismo, aí o que cara vai para a empresa que
cobra trabalho em equipe e colaboração. ” (JOÃO, 2017)
Tiago reconhece que é um problema introduzir essa ideia que, diga-se, é uma
das pedras angulares dos métodos ágeis, por causa da perda de poder dos gestores,
que não foram educados para assumir esse papel, e que em último caso precisariam
de coaching para se enquadrar nesse papel de liderança definido pelos métodos ágeis:
“Acho conflitivo, talvez esse seja o maior problema para introduzir o ágil, os
gestores perdem muito com a auto-gestão, não estão preocupados em criar
ambientes, as pessoas não foram educadas para exercer esse papel [...] não
tem motivação e a identidade é incompatível com isso [...] falta coaching. ”
(TIAGO, 2017)
154
Mateus afirma que a dificuldade em fazer funcionar a auto-organização é a
falta de confiança de que as pessoas podem executar as suas atividades da melhor
forma possível:
“Desconexão grande, o jeito como o gerenciamento é aplicado hoje nas
organizações, vem de uma máxima de que as pessoas não querem fazer o
seu trabalho, ou elas não sabem fazer direito, ou são preguiçosas, o papel de
liderança está concentrado na parte burocrática, no comando-controle.
“ (MATEUS, 2017)
A busca pelo lucro está vinculada ao ideal, ninguém trabalha apenas para
pagar as contas no final do mês, busca-se um propósito maior, por esse motivo a
gestão gerencialista coloca ênfase na adesão, na mobilização, na responsabilidade,
o trabalho torna-se o locus privilegiado para a realização de todas as potencialidades
humanas.
Na narrativa de Lucas fica claro como ele encarna com riqueza de detalhes o
discurso neoliberal e do empreendedorismo de si:
“Acho que isso impera cada vez mais nas organizações, a ideia das pessoas
se auto organizarem, a ideia das pessoas autodisciplinadas, a ideia do
gerente de um, intra-empreendedorismo, pessoas que trabalham com um
propósito, com uma missão, que entendem seu objetivo, e que farão o que
tiver que fazer para fazer o seu trabalho da melhor forma possível, sem a
necessidade de ter alguém cobrando, supervisionando. Não tem ninguém
para supervisionar, você apresenta os seus resultados, você atinge os seus
objetivos junto com o time, e seu time todo está preocupado, seu time vai te
ajudar, se você não for auto-organizado você não se adapta, é o seu próprio
time que te demite, as contratações são feitas pelo time, as demissões
também. O fato de ter alguém que te controle para ver se você atinge os
objetivos está mudando. As pessoas não recebem mais o que devem fazer,
elas recebem a coisa mais em alto nível, objetivos, seu papel é resolver isso,
como você vai resolver, você vai buscar a solução. Essa abordagem divide
os profissionais, em gente que não consegue ter essa criatividade,
autodisciplina, tem gente que não consegue ser executor. As pessoas
precisam ter essa liberdade, essa autonomia, e exercer essa criatividade,
155
para trazer a individualidade, e aquilo que elas podem trazer no início do
trabalho que estão realizando, então acredito nessa mudança de abordagem
da liderança nas organizações, para líderes que apresentam um caminho ao
invés de cobrar desempenho das pessoas. Não que as pessoas não tenham
que performar bem, dar o seu melhor no seu dia a dia de trabalho, não
significa que não possa existir momentos de descontração, que não podem
dar risada, se divertir, o trabalho tem que ser agradável, você passa mais
tempo nele do que com a família. Isso não significa que não tenha que ter
pressão para entregar resultados. ” (LUCAS, 2017)
Em tempos neoliberais a empresa se torna a célula que compõe o tecido
social, requerendo por sua vez uma subjetividade aderente a tal realidade. Adjetivos
não faltam a esse novo homem impreciso, flexível, precário, fluido, sem gravidade,
calculador, competitivo.
“Se existe um novo sujeito, ele deve ser distinguido nas práticas discursivas
e institucionais que, no fim do século XX, engendraram a figura do homem-
empresa ou do “sujeito empresarial”, favorecendo a instauração de uma rede
se sansões, estímulos e comprometimentos que tem o efeito de produzir
funcionamentos psíquicos de um novo tipo. Alcançar o objetivo de reorganizar
completamente a sociedade, as empresas e as instituições pela multiplicação
e pela intensificação dos mecanismos, das relações e dos comportamentos
de mercado implica necessariamente um devir-outro dos sujeitos. “ (DARDOT;
LAVAL, 2016, p. 325)
As relações mercantis, que se constitui em um dos muitos panos de fundo
para esse contexto, sempre operaram uma redução antropológica, um rompimento
dos vínculos humanos, fato já constatado por pensadores como Marx, Weber e
Polanyi. O neoliberalismo opera uma redução antropológica brutal.
Para a produção desse novo sujeito, diversas técnicas serão utilizadas,
entretanto nenhuma delas passa pela coerção, mas de uma subjetividade moldada
para cumprir as atividades que lhe foram destinadas, como “fator humano, ativo,
engajado, plenamente ciente de suas responsabilidades pronto para entregar-se de
corpo e alma a atividade profissional. Esse projeto de si passa pelo desejo, pela
156
vontade de realizar-se integralmente, o propósito é suscitar nesse novo sujeito objeto
de um novo poder, a sensação de que trabalha para uma empresa como se
trabalhasse para si mesmo. Trabalhando incansavelmente tem a sensação de que
esse desejo brota de sua alma, técnicas refinadas de motivação e estimulo entram em
jogo aqui para que se alcance esse objetivo.
Esse novo sujeito deve se conduzir de forma competitiva, assumir todos os
riscos e eventualmente o fracasso de suas ações, visar uma melhoria continua dos
resultados:
“Do sujeito ao Estado, passando pela empresa, um mesmo discurso permite
articular uma definição do homem pela maneira como ele quer ser “bem-
sucedido”, assim como pelo modo como deve ser “guiado”, “estimulado”,
“formado”, “empoderado” para cumprir seus “objetivos””. (DARDOT; LAVAL,
2016, p. 327)
O modelo da empresa é construído pela mídia, por instituições educacionais,
e também pelo departamento de recursos humanos, formando uma rede inextrincável
de conceitos, um caldo cultural do qual ninguém ousa escapar, sob pena de não atingir
a realização pessoal, bem-estar, prosperidade e sucesso, os propósitos parecem
humanistas para que se estabeleça uma nova tecnologia de poder de forma sutil, cujo
o resultado é a transformação do ser humano em mercadoria.
A singularidade da ideologia gerencialista está em formar sujeitos “resilientes”,
uma subjetividade estoica que suporte todas as adversidades, só reforçadas pelo
comportamento desse novo sujeito competitivo, guiado pela ânsia de auto-realização,
de forma que se adapte a qualquer contexto imposto pela empresa. Essa mesma
ideologia que se desenvolveu ao longo dos anos de 1990 criticou severamente a
burocracia, as hierarquias para romper com o modelo antigo. Por outro lado, e isso
pode ser constatado na narrativa de alguns evangelizadores, a apologia da incerteza,
da complexidade, da flexibilidade, é abundante em promessas proporcionando uma
adesão ainda maior ao modelo.
157
Aqui cabe salientar o discurso presente nas comunidades ágeis, como a
empresa ideal é o locus de todas as inovações, mudanças, adaptações contínuas por
causa das variações das demandas, da busca pela qualidade total, desta forma
impõe-se ao sujeito um trabalho interior constante:
“Ele deve cuidar constantemente para ser mais eficaz possível, mostra-se
inteiramente envolvido no trabalho, aperfeiçoar-se por uma aprendizagem
contínua, aceitar a grande flexibilidade exigida pelas mudanças incessantes
impostas pelo mercado. Especialista de si mesmo, empregador de si mesmo,
inventor de si mesmo: a racionalidade neoliberal impele o eu a agir sobre si
mesmo para fortalecer-se e, assim, sobreviver na competição. ” (DARDOT;
LAVAL, 2016, p. 330)
As inúmeras técnicas de gestão que objetivam controlar e avaliar
constantemente o engajamento subjetivo dos trabalhadores estão cada vez mais
presentes nas empresas, e se expressam em painéis com métricas consolidadas a
partir de diversas fontes alimentadas pelos próprios trabalhadores, como é o caso das
matrizes de maturidades. Se os resultados são bons distribuem-se prêmios
motivacionais como troféus e outros artefatos, se resultados não são satisfatórios as
sanções devem repercutir na carreira, no salário e as vezes resulta em demissão
sumária.
A empresa se torna um modelo que deve ser adotado, porque passa a
mensagem de uma eficácia em produzir melhorias, a empresa como modelo de uma
nova ética é a ponte entre o governo de si e o governo das sociedades, um ethos da
vigilância sobre si, corroborados pelas técnicas de avaliação. Aqui a autoajuda,
presente desde os primórdios do liberalismo, cumpre um papel fundamental, respalda
a ideia de que cada indivíduo pode ter pleno domínio da vida, gerenciá-la como quiser,
dar vazão aos seus desejos, para tanto basta saber elaborar a estratégia adequada.
É um modo de governo livre, não prescritivo, baseado em valores e princípios, como
a pró-atividade, a responsabilidade pessoal, a vontade de melhorar e crescer. Esse
158
trabalhar para si mesmo vai muito além do ambiente de trabalho, estende-se a todos
os setores da vida, melhorando resultados e desempenhos de forma continua. O
carro-chefe do sucesso é sempre a empresa, a nova ética do trabalho é ponto de
conexão entre os objetivos de excelência corporativos e os anseios pessoais. É como
se o contrato entre empresas de si mesmo e as corporações fosse absolutamente
simétrico.
O sujeito autônomo opera sobre si mesmo, de forma que ele:
“Aprenderá por si mesmo a desenvolver “estratégias de vida” para aumentar
seu capital humano e valorizá-lo da melhor maneira. “A criação e o
desenvolvimento de si mesmo” são uma “atitude social” que deve ser
adquirida, um “modo de agir” que deve ser desenvolvido, “para enfrentar a
tripla necessidade do posicionamento da identidade, do desenvolvimento de
seu próprio capital humano e da gestão de um portfólio de atividade”.
(DARDOT; LAVAL, 2016, p. 337)
A atitude empresarial não se conquista sem a ajuda de especialistas em
“estratégias de vida”, especialistas em empresa de si mesmo, que divulgam as suas
fórmulas de sucesso em livros, eventos presenciais, cursos, eventos midiáticos.
Dessa forma o empreendedor de si vai construindo sua caixa de ferramentas para o
sucesso: como manter se manter empregado, como enriquecer, como emagrecer,
como falar em público, como empreender melhor, como se comunicar melhor.
Divulgam-se técnicas de inteligência emocional, ferramentas de análise de
personalidade, com o objetivo de se autoconhecer para aproveitar melhor as
oportunidades que surgem, mas também expandir esse comportamento para todas
as áreas de vida.
O discurso gerencial preconiza o uso de diversas técnicas, tais como o
coaching, a programação neurolinguística, procedimentos ligados a uma escola ou
guru, visando um melhor domínio de si, das emoções e das relações, tornar o “eu”
mais resiliente. Todos esses saberes se apresentam com um fundo psicológico, cujo
159
discurso tem caráter empírico e racional, conferindo-lhe legitimidade. Cada técnica
possui instrumentos e um modus operandi próprio que deve ser utilizado
prioritariamente na empresa, mas cabe em qualquer outra situação na vida, técnicas
que visam a conduta de si e dos outros.
Nos métodos ágeis, seja pela narrativa dos evangelizadores, seja pelo próprio
mercado, essas técnicas se mesclam com as práticas dos métodos, e passam a
operar como apoio para que se incorpore os valores e princípios ágeis, ou para
adequar as identidades aos papéis que devem ser exercidos.
Entram em cena técnicas de meditação, mais recentemente mindfullness,
além de teorias das mais diversas naturezas como complexidade e caos, preparando
as mentes para atuar em contextos de incerteza. O que importa é o domínio dos
estados do “eu”, dos mecanismos de comunicação, das engrenagens das emoções,
aprender a se sincronizar com as situações e pessoas, para se atingir a eficácia
máxima, estimular a responsabilidade e a autoestima. A campo privilegiado para
aplicação dessas técnicas de governamentalidade é a empresa, cuja a possibilidade
de lucro e sucesso é percebida como constante, a transparência e a comunicação são
fundamentais para a produtividade.
No contexto empresarial atual a mudança e a adaptação são condições
essenciais de sobrevivência, e por esse motivo essas técnicas apresentam-se como
ferramentas ideais para a condução dos indivíduos, pois garante melhorar a liderança
e colocar os indivíduos na direção de um objetivo, uma missão ou visão comuns.
Cabe aos “gerentes da alma”, expressão lacaniana, instituir uma nova forma
de governo cujo objetivo é conduzir os sujeitos para que assumam um comportamento
e uma subjetividade específicos no trabalho. Todo indivíduo é um gerente em potencial,
e seu papel é resolver problemas.
“O domínio de si mesmo e das relações comunicacionais aparece como
contrapartida de uma situação global que ninguém consegue mais controlar.
Se não há mais domínio global dos processos econômicos e tecnológicos, o
160
comportamento dos indivíduos não é mais programável, não é mais
descritível e prescritível. O domínio de si mesmo coloca-se como uma
espécie de compensação ao domínio impossível do mundo. O indivíduo é o
melhor, senão o único “integrador” da complexidade e o melhor ator da
incerteza”. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 342)
Não devemos perder de vista que a entidade de referência sempre é a
empresa que busca de maneira continua a produtividade, a eficiência, a rentabilidade,
o lucro. A melhoria do indivíduo fica subordinada a esse contexto, que ao mesmo
tempo que o produz, é legitimado pelas suas ações, um microcosmos em harmonia
com a empresa e o mercado, pois ser “”aberto”, “síncrono”, “positivo”, “empático”,
“cooperativo”, não é para a felicidade dele, mas sobretudo e em primeiro lugar para
obter do “colaborador” o desempenho que se espera dele”. (DARDOT; LAVAL, 2016,
p. 344).
Trata-se de gerir as subjetividades, como se ao aplicar conhecimentos da
psicologia, da ética e de outras áreas não se visasse outra coisa que a melhoria do
ser humano integralmente, entretanto são os interesses da empresa que estão em
jogo.
Essa adaptação das personalidades às expectativas da organização se dá
desde a seleção, através de testes e entrevistas. Depois as avaliações e formações
internas continuaram avaliando o alinhamento sempre levando em consideração
resultados, mas principalmente a motivação, a vontade de se mobilizar em direção
aos objetivos corporativos. Aqueles que tem apetite pelo desempenho e a capacidade
de lidar com um contexto paradoxal, a qualidade deve ser total desde que não reduza
a rentabilidade, deve-se trabalhar em equipe, porém o desempenho individual é
constantemente exaltado. Por conta disso a violência na empresa hipermoderna é
psíquica, não tem a ver com a repressão como no sistema disciplinar, mas com
paradoxo, ser autónomo em um contexto coercitivo, ser criativo quando se exige
extrema racionalidade. A mobilização é intensa, e no horizonte está o sucesso e um
desejo de onipotência. O que regulava a relação de trabalho era um contrato muito
161
claro, hoje o que regula é uma imposição paradoxal. O processo de identificação
crescente com a empresa faz a autonomia perder sua razão de ser, com o tempo
aquilo que seria uma estratégia onde todos ganham revela-se como uma dupla perda,
uma perda subjetiva e a perda do emprego, pois com o baixo rendimento o indivíduo
não interessa mais a empresa. A perversidade está em fazer o indivíduo se dobrar
sobre o próprio desejo, de cooptar a maquinaria psíquica e coloca-la à mercê do
funcionamento da máquina organizacional:
“O compromisso do assalariado é sem fim, a partir do momento em que ele
projeta seu próprio ideal sobre a empresa. O compromisso da empresa é
apenas parcial, pois ela condiciona a manutenção do emprego aos
desempenhos de cada agente, sem levar em conta de que esses
desempenhos dependem do conjunto. Cabe a cada um dar provas de sua
utilidade, de sua produtividade e de sua rentabilidade. “ (GAULEJAC, 2015,
p. 122)
Não existe mais qualquer possibilidade de empresa apresentar um quadro
estável ao qual se possa aderir, o que se pede é flexibilidade e adaptação à incerteza,
trata-se de uma autonomia controlada. A organização reticular funciona com base na
flexibilidade e mobilidade, em um sistema de comunicação informal, visual, interativo
e policentrado, de uma governança por meio de regras que se caracteriza pela
discussão e negociação, o enquadramento se dá pela apuração dos resultados, é
nesse contexto que se exerce o poder. A contestação desse sistema torna-se
particularmente difícil porque envolve o indivíduo em uma teia de paradoxos. Essa
fronteira entre a incerteza e a burocracia fica evidente na narrativa de Paulo:
“Fazer com que a gente assuma a nossa incapacidade de prever o futuro,
assumir que vamos errar e aprender, e quanto menor o ciclo de aprendizado
melhor, é necessário reforçar o feedback mais rápido, o ágil propõe trabalhar
com lotes menores de coisas, fatias de tempos menores, a quantidade de
planejamento da forma tradicional de se trabalhar visava domínio de distância
e profundidade, no ágil escolhemos ter uma big picture de baixa resolução,
162
não olhar tão longe nem com tantos detalhes, as pessoas resistem aos
experimentos, porque querem saber de tudo, tentam planejar tudo, acertar de
primeira, preferem cortar a árvore de uma só vez ao invés de parar para afiar
o machado. Inicialmente todos gostam do ágil, mas quando se deparam com
a premissa de que os ambientes são complexos, começam a se perguntar
sobre escopo, planejamento, previsibilidade. Resistem a viver no caos
controlado, a burocracia traz conforto. ” (PAULO, 2017)
Há ao mesmo tempo alienação, porque o indivíduo é governado a partir do
interior por forças estranhas a ele próprio, e exaltação da subjetividade, você é incitado
a ser autónomo, criativo para no final das contas reforçar sua dependência e
conformismo. Difícil contestar algo que opera dentro de si, porque leva à contestação
de si mesmo.
4.3.3 Gestão visual
Outro aspecto dos métodos ágeis que contribui para o entendimento de uma
aproximação com a sociedade de controle é regime de visibilidade imposto pela
gestão visual, concretizada pela utilização de kanban, e outros radiadores de
informações, na área de trabalho.
O debate sobre a transparência tem sido uma constante nos dias atuais, seja
no âmbito da política, das redes sociais ou no ambiente coorporativo. A comunicação
deve ser ubíqua, as coisas tornam-se transparentes quando:
“Abandonam toda a negatividade, quando se alisam e aplanam, quando se
inserem sem resistência na corrente lisa do capital, da comunicação e da
informação. As ações tornam-se transparentes quando se tornam
operacionais, submetendo-se aos processos do cálculo, da direção e do
controle. ” (HAN, 2014, p. 11)
163
O tempo transparente transforma-se em um eterno presente, tempo
desprovido de destino, um futuro otimizado por fatias de tempos já comprometidas,
um tempo asséptico porque desprovido de toda dramaturgia, de todo sentido.
Desnudado de suas dimensões mais humanas perdem sua singularidade para a
dimensão econômica, que torna tudo comparável descaracterizado de singularidade,
“O sistema social submete hoje todos os seus processos a uma coação de
transparência que visa torna-los operacionais e acelerá-los. ” (HAN, 2014, p. 12)
A linguagem não pode ser ambígua, depreende-se disso a necessidade do
discurso único, a transparência tem que eliminar o estranho, nesse caso a velocidade
da comunicação será irrestrita, o estranhamento, a resistência do diferente incomoda
o sistema que se pretende uniforme, a uniformidade também facilita o controle. Os
dispositivos visuais nas empresas, kanban, tendem a ser uniformizados, e se não
forem, painéis e ferramentas eletrônicas são criadas posteriormente para forçar a
uniformização e a coleta de dados de produtividade e qualidade. Fala-se em métodos
ágeis na necessidade do consenso, do debate, das intersubjetividades, mas não há
tempo hábil para isso, a gestão visual teria o objetivo principal criar uma realidade
compartilhada, compartilhar visões, mas gestão visual mais uniformiza do que ressalta
as divergências. A ideia é tornar os indivíduos parte funcional de um sistema, uma
simples engrenagem de uma máquina. Trata-se de uma violência, pois:
“A alma humana tem necessidade, sem dúvida, de esferas nas quais possa
estar em si mesma sem o olhar do outro. Há uma impermeabilidade que lhe
é inerente. Uma iluminação total queimá-la-ia e seria causa de uma forma
especial síndrome psíquica de Burnout. Só a máquina é transparente. A
espontaneidade, o que é do registro de um acontecer e a liberdade, traços
que constituem a vida em geral, nada comportam de transparência”. (HAN,
2014, p. 16)
A transparência tem valor se acompanhada de liberdade e autonomia.
Segundo uma visão da psicanálise o homem não é transparente sequer para si
164
mesmo, o inconsciente deseja sem limites, e o “eu” nega aquilo que o inconsciente
afirma, o que inviabiliza a transparência interpessoal. A falta de transparência mantém
a relação viva, a violência da transparência imposta está em não respeitar uma
alteridade que não pode ser eliminada. Todos os recônditos da circunspeção são
dilacerados e expostos para serem explorados, a transparência tem muitos limites,
mas é vendida como algo ilimitada. Uma certa distância psicológica se faz necessária,
nem tudo pode ser integrado à velocidade do capital, da comunicação e da informação.
Mais informação não leva necessariamente a decisões melhores, a intuição
vai sempre além, tem sua própria lógica. Menos informação talvez produza algo a
mais. Como é possível exercer criatividade ou inovar se não há lacunas de informação
ou visão, o pensamento e a inspiração requerem um certo vazio, é uma negatividade
necessária. O pensamento degenerado transforma-se em puro cálculo. Mas a
transparência quer suprimir toda negatividade, na qual o espírito se detém lentamente,
para alcançar toda aceleração possível. A positividade exacerbada leva ao
esgotamento, à depressão. A transparência é positiva em sua essência, para evitar
que o sistema seja colocado em questão. Toda hiperatividade, hiperprodução e
hipercomunicação é obscena.
Aqui temos mais uma contradição, os métodos ágeis preconizam a execução
de práticas chamadas de cerimônias, são reuniões com um time-box e com um
objetivo definido. O termo cerimônia nos remete a algo que tem seu tempo e ritmo
próprio, mas só é possível acelerar um processo que seja aditivo, e não narrativo. A
exigência de transparência faz com que os as cerimônias e rituais sejam eliminados
pois não podem se tornar operacionais, são obstáculos à aceleração dos ciclos de
informação, comunicação e produção. Tais cerimônias, nome impróprio por sinal, são
desprovidas de narrativas, são cenicamente pobres, só contam, tornam-se um objeto
de gestão, essa transparência inexorável é que a caracteriza como obscena. Ocorre
um empobrecimento semântico, pela falta da narratividade. A transparência imposta
rompe com todos os limites, que é a zona da insegurança, da transformação, da
165
confiança. Narrativa difere de acumulação de dados, fatos, e outros resíduos, “destrói
o aroma do tempo”. (HAN, 2014, p. 50).
“O tempo torna-se aditivo, vazio de toda narratividade. Os átomos não
desprendem aroma. É necessária uma atração figurativa, uma gravidade
narrativa, que os una pela primeira vez como moléculas aromáticas. Só as
configurações complexas, narrativas, exalam aroma. ” (HAN, 2014, p. 52)
A narrativa não cabe no tempo produtivo, nem se estabelece por intermédio
da gestão visual. Nas diversas narrativas que veremos a seguir nota-se diversos
pontos já analisados com relação à ideologia neoliberal e gerencialista, João
reconhece que o impacto da gestão visual é alto, mas que pode ser amenizado se
você contratar as pessoas certas e estabelecer um convívio pacífico e familiar, e por
fim ele mesmo reconhece a utopia que propõe:
“É muito alto, ciclos curtos, inspeção e adaptação, todos os problemas vem à
tona, principalmente falta de conhecimento, habilidade, atitude, estado
emocional, acredito na transparência radical, para isso você tem que criar um
ambiente seguro, se não as pessoas terão medo. Começa por trazer as
pessoas certas, saber contratar as pessoas por sua atitude, crenças e valores,
esperamos que haja respeito! É uma família! Respeito humano. O segundo
ponto é a liderança, o líder vai ter que suportar essas crenças e valores, não
acredito em auto-organização sem liderança, são formadores de opinião,
influenciadores, precisam ser exemplo, se não foram demita-os, humildade
para ensinar e aprender, respeito, alguns dizem que isso é utópico. ” (JOÃO,
2017)
Mateus acredita que seja possível se adequar à gestão visual depois de um
tempo de “educação”, e de que é possível criar um ambiente de segurança psicológica:
“No início causa incomodo grande, porque as pessoas não estão
acostumadas a expor o seu trabalho, nas atividade diárias, não estão
acostumadas com as outras pessoas vendo e dando opinião, isso incomoda,
166
parece ser um julgamento, mas vai educando as pessoas a entender e aceitar
a opinião alheia, você consegue assim fazer o seu melhor, há um incomodo
muito grande, mas as pessoas aderem depois de um período de rejeição, no
início dá uma sensação de vulnerabilidade um sentimento de insegurança, as
pessoas não sabem se fazem o trabalho bem ou mal, se é competente ou
não, tem relação com a liderança e o tipo de ambiente da empresa.”
(MATEUS, 2017)
Tiago afirma que criar constrangimento entre pares é uma prática saudável, e
que para evitar excessos você depende de gestores:
“É constrangedor, criar constrangimento entre pares de alguma forma é uma
coisa que bem usado pode ser positivo. Bom uso e mal-uso? Aí é foda [...]
encontrar equilíbrio nisso, tem que monitorar, o agile coach, os gestores
devem estar atentos, monitorar o humor, a percepção de valor, estão
gostando de trabalhar aqui? Temos tempo para afiar o machado? Em uma
empresa implantamos o dia da semana dedicado à melhoria, a produtividade
melhorou os outros quatro dias. São coisas que fogem do
planejamento“ (TIAGO, 2017)
Paulo afirma que expor as suas vulnerabilidades é bom, como se as pessoas
mesmo em ambientes com extrema segurança psicológica expusessem suas vísceras,
mas indica um caminho por onde as subjetividades são moldadas:
“Questão bem crítica, difícil quantificar, tangibilizar, existe sim um impacto
porque você se expõe, mas o time, o ambiente, terão visibilidade maior e
inclusive das vulnerabilidades, da forma como você pensa, suas crenças,
como você se sente, através dessa visibilidade, dessa transparência, você
consegue causar melhoria, isso convida ou expele as pessoas, medo de
expor suas vulnerabilidades. O autor das 5 disfunções de um time, o
verdadeiro team member é aquele disposto a estar pelado na frente dos
outros, não ter restrição, confiar, não estar na defensiva. O ágil ajuda a
desnudar, evidenciar fragilidades. O que fazer? É o processo empírico, de
aprendizado, vai doer, vai incomodar, você não vai saber fazer isso, ao longo
do tempo você itera várias vezes e isso vai se tornando natural. ” (PAULO,
2017)
167
Lucas concorda que o impacto seja alto, mas aposta que é a melhor forma de
conseguir engajamento, que se feito de forma correta não se transformará em
ferramenta de controle, como se isso de fato fosse possível:
“É bastante alto, feito da maneira correta conseguimos enxergar claramente
o que cada um está fazendo. O processo mais tradicional tinha a figura do
gerente de projeto, agora todas as pessoas são incentivadas a acompanhar
o meu trabalho, não por desconfiança, mas porque faço algo importante,
relevante para a organização, algo que alguém pode ajudar, dar feedback,
então começamos a criar visibilidade, transparência naquilo que cada um
está fazendo, isso pode incomodar, você começa a montar métricas como
lead time, tempo de fila, são coisas que podem expor ineficiência do processo,
isso pode trazer desconforto grande, medo de ser visto como improdutivo. De
um ponto de vista sistêmico quando algo não vai bem não procuramos nas
pessoas, mas nos processos, vai melhorando o processo, não buscamos
culpados, buscamos entender os problemas dos processos, para que o
processo seja mais eficaz e eficiente. Com um Mindset correto, com o
contexto correto, será visto como correta essa prática, mas corre o risco de
descambar para a desconfiança e o controle. ” (LUCAS, 2017)
Pedro não vê impacto negativo, e concorda que a pressão de pares leva a
maior eficiência, por constrangimento subjetivo e não por imposição de um chefe:
“Não vejo impacto negativo, se o ambiente for muito controlado e as pessoas
cobradas individualmente pelo seu trabalho, talvez gere algum tipo de
problema, em geral a exposição é positiva, ajuda a sair da zona de conforto,
é um feedback, mas tem o receio de constrangimento, se você não tem uma
interação muito social do resultado do seu trabalho a sua referência é você
mesmo, se um trabalho que deveria levar um dia leva 3 ou 4 dias para fazer,
e seu chefe nunca reclamou, da próxima vez você vai fazer em 6 ou 8 dias, e
vai aumentar cada vez mais, mas se você está prestando contas para um
grupo social, que te avalia socialmente, você terá mais dificuldade de se
colocar ineficiente para o grupo, é uma forma de manter as pessoas
produtivas. Não é bom para a pessoas se esconder atrás da ineficiência. ”
(PEDRO, 2017)
168
O paradoxo fica bem claro quando se analisa o papel do gestor, que vive
diariamente o dilema da contradição entre capital e trabalho.
Identifica-se com a exigência do lucro e ao mesmo tempo vive as agruras da
imprevisibilidade da carreira, a pressão, a competição selvagem, o gerenciamento
garante pela combinação de diversos elementos a sobrevivência da empresa. É a cola
entre capital, tecnologia, trabalho, regras, procedimentos, seu papel é amenizar as
contradições ou agudizá-las, dependendo do momento, das diretrizes corporativas,
das metas dos acionistas.
Cada período histórico atribui um papel específico ao gestor, que precisa
compatibilizar a exigência de lucro, com a adaptação ao mercado, e a melhoria das
condições de trabalho. Assim foi o período Fordista que se estendeu por 30 anos, ao
final dos anos 1970, esse sistema sócio-político-econômico encontra o seu ocaso.
Com a mundialização e a financeirização acentuada, fase neoliberal do capitalismo,
as empresas transnacionais passam a ocupar uma posição de hegemonia, antes
ocupada pelo Estado, as relações entre capital e trabalho não serão as mesmas,
assim também o papel dos gestores será o de provar para os acionistas que vale mais
à pena investir na empresa do que aplicar no mercado financeiro, situação bem
propícia para flexibilizar as relações de trabalho e os direitos trabalhistas, para colocar
a redução de custos e a busca frenética por eficiência na ordem do dia.
De forma que ao final do século XX temos a seguinte situação:
“As lógicas de produção estão cada vez mais submetidas às pressões das
lógicas financeiras. A economia financeira substitui a economia industrial. O
peso dos mercados e sua mundialização põe de novo em questão os modos
de regulação econômica até então dominados pelo Estado/Nação. A
desterritorialização do capital explode os ferrolhos que permitiam controlar
sua circulação e de limitar efeitos especulativos. A fusão das
telecomunicações com a informática instaura a ditadura do “tempo real e a
imediatidade das respostas às exigências dos mercados financeiros.
“ (GAULEJAC, 2015, p. 45)
169
Quando as relações entre capital e trabalho são reconfiguradas na esfera
macro, reconfiguram-se as relações de poder dentro da empresa, as relações
humanas e sociais passam a ser de responsabilidade dos Recursos Humanos da
empresa, cuja missão é flexibilizar o máximo possível a mão-de-obra para atender às
exigências do mercado. Com a concorrência acirrada, as respostas devem ser rápidas,
promovendo encurtamento de prazos, aceleração do ritmo de trabalho,
responsabilização do trabalhador pela sua trajetória profissional, trata-se de fazer
mais com menos:
“O conjunto das funções da empresa está subordinado à lógica financeira
pelo viés de técnicas de gestão que levam os agentes a interiorizar a
exigência de rentabilidade. Cada equipe, cada serviço, cada departamento,
cada estabelecimento tem objetivos a atingir, cuja medida, cada vez mais
frequente é, por vezes, efetuada em tempo real. A obrigação de resultados,
medida conforme o metro da rentabilidade de cada um, deve ser assumida
por cada elemento do sistema. “ (GAULEJAC, 2015, p. 48)
Existe uma aura de pragmatismo em torno do que se entende por gestão, o
que afasta qualquer associação ideológica, toma como partida a ação eficaz, seria
uma metalinguagem que exerce influência sobre todos aqueles que estão dentro do
universo corporativo. As grandes autoridades no assunto, os gurus da gestão,
prescrevem soluções um misto de ciência, autoajuda e ideologia gerencialista, a
ciência analisa e procura compreender o problema, o discurso de autoajuda remove
o pensamento crítico e a ideologia coloca tudo isso a serviço de um poder estabelecido.
Seria uma insanidade ir contra uma melhor utilização e organização dos recursos de
qualquer instituição, o que confere à gestão enquanto ciência uma certa isenção,
normalmente se coloca em um campo multidisciplinar dada a complexidade crescente
das interações entre humanos e tecnologia, em planos tão distintos como a economia,
a política, o social, a cultura. A gestão é levada à uma especialização extrema, pois a
prática é o caminho para o funcionamento e a perpetuação da instituição empresa, o
170
saber prático modela comportamentos nas áreas financeira, comercial, contábil,
recursos humanos e tantas outras. Cada vez mais os indivíduos olham para o mundo
através das lentes da gestão, trata-se de um sistema de interpretação e de uma escala
axiológica muito específica, tornando cada vez mais difícil distinguir o que seja ciência
ou ideologia nesse caso. As revistas de gestão na sua maioria são estadunidenses,
assim como os autores dos seus artigos, o que leva esse híbrido de ciência e ideologia
a uma posição hegemónica, e não deixa ser um instrumento geopolítico.
Um bom exemplo disso é o Movimento Ágil no Brasil, que nasce a partir da
iniciativa de alguns profissionais de tecnologia, que se filiam aos “gurus” do Movimento,
que são todos estadunidenses. O que vemos é uma verdadeira cadeia de transmissão
de conhecimento, os “evangelizadores” nacionais constituem o seu próprio mercado
de consultoria, legitimados pelos pais fundadores do movimento, atuam de forma a
criar um exército de multiplicadores, que irão disseminar essas ideias dentro das
empresas. O foco da educação em gestão é levar a eficácia e principalmente a
eficiência aos píncaros, não vem ao caso entender as relações de poder.
“A serviço do poder gerencialista, a ideologia gerencialista se funda sobre
certo número de pressupostos, de postulados, de crenças, de hipóteses e de
métodos, dos quais convém verificar a validez. O paradigma objetivista dá um
verniz de cientificidade à “ciência gerencial”. Ele se declina segundo quatro
princípios que descrevem a empresa como um universo funcional, a partir de
procedimentos construídos sobre o modelo experimental, dominado por uma
concepção utilitarista da ação e de uma visão economicista do humano.
“ (GAULEJAC, 2015, p. 70)
O que não pode ser mensurado não existe, o homo economicus se pauta por
esse princípio, cria o mundo da previsibilidade, da otimização, do cálculo, o que se
descortina no horizonte é a possibilidade de uma existência programada, asséptica.
Os registros do subjetivo, do imaginário, do emocional não subsistem.
171
“O homo economicus pode ser assimilado a um monstro antropológico
habitado por uma suposta racionalidade que reduz todos os problemas da
existência humana a um cálculo. Essa ficção autoriza certos pesquisadores
a não mais se preocupar com a observação concreta da condição humana
para se evadir no universo abstrato das equações matemáticas.
“ (GAULEJAC, 2015, p. 71)
Uma segunda questão que se coloca nesse mundo da gestão é a confusão
entre razão e racionalidade, ponto muito explorado pelo discurso de autoajuda
utilizado nas relações de trabalho, como veremos adiante. A racionalização tem duas
facetas, a primeira que visa o esclarecimento, mas também pode servir para se
proteger daquilo que incomoda, uma vez estabelecida uma certa lógica, deixará de
fora aquilo que não tem aderência, portanto a racionalização é instrumentalizada pelo
poder para ceder aos ditames da eficiência, enquanto a razão é o caminho para o
conhecimento, para entender o sentido das coisas. A experiência de cada um, rica em
contextos, situações das mais diversas, com suas dores e descobertas, seus conflitos
e acordos, só pode ser compreendida pelo uso da razão (Gaulejac, 2015).
A empresa é vista como um todo, cuja as unidades que a compõe contribuem
para o seu perfeito funcionamento, parte de um comportamento dado como normal
para se identificar desvios, disfunções, conflitos não aderentes ao padrão ideal. Existe
uma dependência mutua entre a parte e o todo. O problema é que esse ideal nunca
está em discussão, é tacitamente aceito, a ciência da gestão se constrói sobre esse
paradigma funcionalista, a partir do qual são erigidos modelos, parâmetros, ciclos e
indicadores. Trata-se mais de adaptar do que compreender, mais normatizar do que
explicar. Os indivíduos devem ser moldados se adaptando as expectativas de um
ambiente que se funda em uma normalidade nunca questionada. O padrão ideal é
estabelecido pelo poder através de normas que submete o exame da conduta dos
agentes sociais aos mecanismos de adaptação.
Vale salientar a importância desses mecanismos de adaptação, pois é
amplamente utilizado no discurso ágil, principalmente quando se trata de adaptar os
172
princípios, valores e práticas ágeis à cultura da empresa. Paulo fala sobre a dificuldade
de adaptar o processo à cultura da empresa e qual o caminho que essa adaptação
deve seguir, fazer conviver método ágil e ideologia gerencialista:
“Pouca aderência, no que tange a compatibilidade entre o que o processo
propõe e a cultura da empresa em geral, tem muita fricção no processo de
mudança, é um salto muito grande, as pessoas tem que abandonar muitos
modelos e crenças mentais antigas. Como vou controlar o budget se não
estou certo de quanto vou gastar no desenvolvimento? As coisas não se
encaixam bem, só tem um jeito de fazer isso, um dos lados tem que ceder,
arregaçar, como tentar colocar uma peça redonda em um buraco quadrado.
O outro jeito é adaptar, criar adaptadores, fazer com que os Mindsets
coabitem, mas o resultado é incerto. ” (PAULO, 2017)
4.3.4 Especialista em métodos ágeis
A famosa “organização cientifica do trabalho” defendida por Taylor embora
obsoleta deixou suas raízes experimentais, do trabalhador como objeto de observação
e avaliação por experts, aqui podemos intercambiar o termo experimental por empírico,
também muito presente do discurso ágil, porém matizado pela equipe que trabalha de
forma auto gerenciada. Veremos como a melhoria contínua está assentada na ideia
de dissecar os problemas, ainda que de forma coletiva, para alcançar níveis de
qualidade e produtividade cada vez maiores. Existe um uso extensivo também da
teoria dos sistemas, cujos trabalhadores são elementos que interagem entre si, e com
o sistema formado pelas relações estabelecidas por todas as interações. Os experts
dominam a elaboração e aplicação do método, existe debate democrático sobre os
meios, mas jamais sobre os fins, existe abertura para discutir sobre o “como”, nunca
sobre o “porque”.
“A racionalidade instrumental consiste em pôr em ação uma panóplia
impressionante de métodos e de técnicas para medir a atividade humana,
173
transformá-la em indicadores, calibrá-la em função de parâmetros precisos,
canalizá-la para responder às exigências de produtividade. “ (GAULEJAC,
2015, p. 76)
Os especialistas ágeis dotados de uma linguagem própria, de um saber,
mobilizam um poder que impõe:
“Uma modelação do real sob a forma de painéis de instrumentos, de
indicadores, de ratios etc., igualmente linguagens normativas que se impõe
aos atores da empresa. “ (GAULEJAC, 2015, p. 77)
O Expert é dotado de um poder que lhe é outorgado por algum tempo, quando
é um consultor seu discurso terá o espírito da recomendação, se for funcionário
exercerá os seus pontos de vista a partir do mais genuíno empirismo, munido de um
discurso de verdade, será seguido e raramente questionado, muitas vezes tratarão as
pessoas, objeto do exercício de seu conhecimento e experiência, como cobaias,
realizando medições, testando abordagens diversas, técnicas inovadoras, seu
objetivo é aparelhar as equipes de trabalho. Entretanto o compromisso com o poder
outorgado se sobrepõe a necessidade de dar conta das continuas mudanças pelas
quais atravessam qualquer coletivo humano, pode correr o risco de ser um
especialista na arte de mudar para manter certas coisas do jeito que estão. A gestão
traz no seu bojo uma certa disposição para negar o movimento dos agentes sociais,
históricos, tentando apreender uma realidade criada e recriada continuamente por
esses agentes, constituindo-se em mais uma contradição.
O papel do Agile Coach é fundamental hoje para as empresas que pretendem
realizar uma “transformação ágil”, na visão de Tiago esse profissional deveria atuar
em todas as áreas da empresa, e intervir nos hábitos das pessoas, na cultura da
empresa:
174
“Atualmente o ágil otimiza só um silo da organização, é lamentável. Criar
hábitos corretos, criar um ambiente de transparência para as pessoas
entenderem qual é o jogo, devem jogar a partir disso, ajudar a jogar melhor.
Você cria impedância cultural nas bordas do processo, fica uma coisa mais
vertical que horizontal, parecendo que ágil é coisa de TI. O agile coach deve
atuar na cultura, nos hábitos das pessoas, cuidar para que o processo
funcione, gerir os conflitos nas bordas. Reforçar os hábitos, influenciar,
encontrar os Early Adopters da empresa, dar voz a eles para criar esse
movimento. ” (TIAGO, 2017)
Paulo concorda que para uma transição para o paradigma ágil a empresa
necessita contar o papel de especialista em transformação ágil, e que deve ser
tolerante, pois as resistências devem ser naturalizadas, atuando com perseverança
na “conversão de corações e mentes”:
“Resumidamente tem a ver com ajudar a fazer a transição para o ágil,
minimizar o atrito, existem vários desafios, vários problemas, vai ser difícil, a
mudança organizacional, ajudar as pessoas a trilharem esse caminho. É um
papel que está na confluência de forças antagônicas, quando o agile coach
encontra alguma resistência, tem que entender que a pessoa não faz isso por
maldade, é uma resposta natural, como uma defesa do corpo. O agile coach
convive com isso o tempo todo. ” (PAULO, 2017)
Lucas afirma que a importância do papel está em ser um agente de mudanças,
que ajuda a adaptar o processo e ao mesmo tempo manter fidelidade a seus princípios
e valores, por isso esse papel é crítico, paradoxal e muito problemático:
“É um agente de mudanças, ajudar a empresa a se manter fiel aos princípios
ágeis, ajudar as pessoas a descobrir como a agilidade faz sentido no contexto
de cada um. As empresas são diferentes umas das outras, empresas de
produtos, serviços, equipes de tamanhos diferentes, seria ingênuo pensar
que todas as empresas vão adotar agilidade da mesma forma. Quanto ao
método existe uma mescla de métodos, extreme programming, Scrum e lean.
Deve tangibilizar tudo isso levando em consideração o contexto da
organização. ” (LUCAS, 2017)
175
Pedro enfatiza não gostar do nome que foi atribuído a esse papel, embora
reconheça a sua importância, como um consultor que traz outro ponto de vista, mas
corre o risco de transformar a agilidade em um objetivo e não em ferramenta para
resolver problemas de negócio:
“Ajudar o time no processo de transformação ágil em uma empresa que tem
vários times, acho isso ruim, visão estreita que precisa ser ampliada, acho o
nome ruim porque tem agile no nome e tem coach no nome. Entretanto essa
figura é necessária, ela existe, tem alguém que olhe de fora, sirva de apoio,
buscar uma prática, uma forma de olhar para o sistema de trabalho e enxergar
coisas que o time não vai enxergar, sugerir mudanças, ajudar o time a fazer
experimentações, ajudar o time a fazer medições [...] Agente de mudança
com visão estreita transforma o ágil em objetivo e não em ferramenta. ”
(PEDRO, 2017)
A maximização e otimização dos desempenhos individuais são perseguidas
vorazmente a fim de atingir graus de eficiências cada vez mais altos, a fim de garantir
a rentabilidade. O problema emerge somente se pode ser resolvido, qualquer
atividade de reflexão é considerada prescindível se não concorre para aumentar a
eficiência. Os indivíduos são valorizados na proporção direta desse ganho. Trata-se,
portanto, da expressão de um utilitarismo focado nas ações pessoais, desconsiderada
a preocupação e a motivação coletiva.
Autonomia e liberdade adquirem um valor desde que associadas a melhoria
de desempenho financeiro.
Um dos grandes ganhos preconizados pelos métodos ágeis é evidenciar as
fragilidades da organização, fica fácil entender porque tal iniciativa causa tanta dor, e
promove rejeições, quem aponta fragilidades e não apresenta uma solução é
considerado um subversivo, levando as pessoas a um estado de ansiedade ou inércia.
O que não é considerado útil não tem sentido, logo deve ser descartado.
176
“A questão não é mais, então, produzir conhecimento em função de critérios
de verdade, mas segundo critérios de eficiência e de rentabilidade dos
objetivos fixados pelo sistema. É outro aspecto da racionalidade instrumental,
que tende a considerar como irracional tudo aquilo que não entra em sua
lógica. “ (GAULEJAC, 2015, p. 78)
Um último fundamento da ideologia gerencialista é o humano visto como um
fator da empresa, suscita toda uma problemática que deverá ser examinada pelo
departamento de recursos humanos. Aqui se dá a inversão entre o econômico e o
social. O homem produz a empresa, não o contrário, sendo o objetivo da empresa
enquanto construção social é contribuir para o bem-estar social, caso contrário só
contribui para a reificação do humano. Tratar o humano como coisa ou recurso da qual
se deve extrair a máxima produtividade como se fosse a engrenagem de uma máquina
é admitir que “a finalidade humana não é mais fazer sociedade, ou seja, produzir
ligação social, mas explorar recursos [...]” (GAULEJAC, 2015, p. 81).
Para Mateus os métodos ágeis trouxeram uma valorização do humano,
mesmo que não aplicando os métodos da maneira adequada, acredita na
possibilidade de uma real autonomia, e se diz satisfeito por presenciar as mudanças
no mercado ao longo dos anos:
“O lado humano que o ágil trouxe, melhores ambientes de trabalho, melhoria
na comunicação, tratar seres humanos como seres humanos, as empresas
são mais abertas, mais democráticas, isso tem influência dos métodos ágeis,
grande parte das organizações, mesmo fazendo isso de forma fake foram
influenciadas. As equipes têm mais voz, se olharmos para a teoria, realmente
grande parte do que pretendemos com o ágil fica no discurso, mesmo assim
comparando com 20 anos atrás, mesmo com que só no discurso já tem
comportamento diferente. ” (MATEUS, 2017)
O mecanismo utilizado pela ideologia gerencialista para prevalecer, fazer valer
seus preceitos e objetivos não passa pela coerção, mas pela conquista da adesão
voluntária, por um consentimento. A aura de atração criada pela oportunidade de
177
progresso, o desejo de exercer sua autonomia empreendendo e o culto da qualidade
revela-se como irresistível. A qualidade principalmente enseja entusiasmo e mobiliza
nossas aspirações mais profundas.
Nos anos 1990 o discurso da qualidade proliferou e tornou-se uma força motriz
mobilizando a energia do trabalho para exceder as metas de desempenho
continuamente sem deixar transparecer que a verdadeira motivação era o lucro.
Vários programas de qualidade foram criados e amplamente difundidos, são mapas
que guiam as empresas no caminho que leva à perfeição, tida como prática
extraordinária de conduzir a empresa para obter os melhores resultados, superar e se
distinguir não abrange partilhar isso com outros, “exceto impelir todos os semelhantes
em um projeto de perpétua superação, em uma corrida na direção de um ideal mítico
inacessível”. (GAULEJAC, 2015, p. 87).
A ênfase no sucesso colocada nesses manuais de qualidade leva a uma
competição sem fim, busca-se um ideal de perfeição que acaba se tornando uma
condição para a sobrevivência de indivíduos e empresas, não é suficiente executar
bem o seu trabalho, a situação atual sempre pode ser melhorada.
O sucesso requisita comprometimento, de todos, e principalmente dos
gestores, se algo dá errado certamente é porque faltou empenho, essa é a razão.
Escolhe-se uma meta, um objetivo de alto nível de forma que a mobilização psíquica
do grupo seja facilmente engajada. Assim todos investem seu desejo e energia nesse
objetivo comum introjetado.
O progresso deve ser uma constante, o horizonte tênue da qualidade e do
sucesso se esvaecem logo que se tenta delimitá-los, não se render às lógicas do
progresso é cair no abismo escuro da estagnação. Entretanto, não existe progresso
infinito, nada se concebe sem um fim, assim como luz e sombra se co-determinam, o
progresso é indissociável do regresso, logo não é necessariamente bom. Daí a falta
de perspectiva histórica.
178
O ideal dos manuais de qualidade é caminhar rumo ao infinito sem
contradições, é, portanto, na essência um discurso positivista.
Nos métodos ágeis a medida do progresso é inerente à gestão empírica, ciclos
contínuos de planejamento, execução, verificação e consolidação 20 , que se
retroalimenta com feedback oriundo de pontos específicos de inspeção e adaptação.
4.3.5 Melhoria contínua
A melhoria contínua é uma prática cara a todos os métodos ágeis, é o motor
principal que leva as equipes à excelência, entretanto não é uma prática isolada, ela
requer ritmo sustentável, requer auto-organização, portanto não deve ser imposta.
Sua aplicação é prejudicada em ambientes onde a eficiência guia as iniciativas, de
uma forma geral a ideologia gerencialista despreza essa prática por se tratar de uma
cerimônia na qual os indivíduos expõe as suas subjetividades, e tentam tecer uma
realidade compartilhada. A gestão prefere impor ferramentas de avaliação eletrônicas
e centralizadas, como a matriz de maturidade que é elaborada por um grupo próximo
a alta gestão da empresa. A retrospectiva é uma cerimônia que estimula a criatividade,
a colaboração, a autonomia, mas que perde a sua efetividade por falta do devido apoio.
Curiosamente a retrospectiva, que visa a melhoria contínua do sistema como um todo,
é vista com cautela pela empresa, porque necessariamente abre mão do seu controle.
Paulo associa a melhoria continua com evolução da espécie, não leva em
consideração que no contexto da empresa, a melhoria continua está umbilicalmente
ligada a meritocracia, a ideologia gerencialista, a ideia do empreendedor de si:
“Não vejo impacto negativo, de maneira geral, acho que o ser humano, na
média, busca por melhoria, não no sentido competitivo, parte de nossa
natureza, de homo sapiens, essa coisa de feedback, de visibilidade, tem alto
20 Conhecido com PDCA - Plan, Do, Check, Act
179
retorno sobre o que você está fazendo. ” (PAULO, 2017)
Tiago associa a melhoria continua com a ideia da organização servidora, cuja
a existência se justifica pelo serviço ao cliente, não descarta a possibilidade de
frustração, entretanto coloca a frustração como parte do jogo, ou a falta de tempo para
promover ações em direção da melhoria contínua:
“O impacto é positivo, existem pessoas que procuram mais estabilidade, para
algumas gera mais estresse, entender melhor as características das pessoas,
no início elas se engajam, mas depois se confrontam com coisas que não
dependem delas, e que são potencialmente gargalos do ambiente e se
frustram. A organização não está melhorando na velocidade que eles estão
melhorando, de que vale meu empenho se os outros não estão engajados?!
Talvez também o estresse por não resolver problemas. Tudo se resume em
ter tempo e motivação para aplicar a melhoria, porque vou fazer isso? Tem
que ter uma narrativa, não trabalhamos para o gestor, para o diretor,
trabalhamos para o cliente, gosto dessa ideia da organização servidora”.
(TIAGO, 2017)
O fenômeno da avaliação se impõe de forma insidiosa, apesar da aparência
ética, dissimula um poderoso sistema de controle, de caráter avassalador e
opressivo. Figura como inevitável pois deita suas raízes no desenvolvimento
científico e tecnológico. Sua penetração na lógica operacional da sociedade é
profunda e inexorável. Se utiliza de uma linguagem neutra e universal, hierarquiza
pessoas e ações de acordo com seus critérios. Tenta enquadrar a vida social em
uma análise quantitativa qualquer. Ferramenta primeira da estimulação da
competitividade:
“Atende à lógica do capital, privilegiando o resultado, o desempenho, o êxito do
prazo exíguo e da resposta urgente e irrefletida, em detrimento do tempo e das
condições necessárias ao pensamento distanciado que exigem a construção
de um saber reflexivo e crítico sobre o mundo que nos cerca e ao trabalho
paciente do cuidado e da atenção às pessoas. ” (BALANDIER, 2015, p. 11)
180
O Objetivo para além de submeter tudo ao quantitativo é estabelecer um
saber-poder, um saber superior a todos os outros, uma nova forma de governo, um
dispositivo de intervenção, de onde emanam os critérios soberanos.
Nunca se trata de uma avaliação técnica somente, mas um instrumento de
poder, que remete a uma gestão que visa a eficiência e a rentabilidade. O fenômeno
da avaliação causa profundo impacto na vida social e nos sujeitos, não é possível
avaliar as singularidades, o esmero, o trabalho intelectual.
“Avaliar atividades se transforma em avaliação das pessoas que as executa,
gerando novas formas de desconfiança, hipocrisia e rivalidades exacerbadas,
acentuando a individualização e a competitividade extremas. ” (BALANDIER,
2015, p. 12)
A reflexão das atividades laborais é substituída pela avaliação, que tem por
natureza deteriorar a convivência.
Para além da mensuração quantitativa dos problemas sociais, presenciamos
uma dominação exercida por computadores, apoiados em tecnologias como a big
data 21 , a inteligência artificial, learning machine 22 , algoritmos de toda espécie,
21 Refere-se a um grande conjunto de dados armazenados. Caracteriza-se por: velocidade, volume,
variedade, veracidade e valor. Termo amplamente utilizado na atualidade para nomear conjuntos de
dados muito grandes ou complexos, que os aplicativos de processamento de dados tradicionais ainda
não conseguem lidar. Disponível em:< https://pt.wikipedia.org/wiki/bigdata/>. Acesso em: 05 de ago.
2017.
22 O aprendizado automático ou aprendizado de máquina é um subcampo da ciência da computação
que evoluiu do estudo de reconhecimento de padrões e da teoria do aprendizado computacional em
inteligência artificial. Habilidade de aprender sem ser explicitamente programado. O aprendizado
automático explora o estudo e construção de algoritmos que podem aprender com seus erros e fazer
previsões sobre dados. Tais algoritmos operam construindo um modelo a partir de inputs amostrais a
fim de fazer previsões ou decisões guiadas pelos dados ao invés de simplesmente seguindo inflexíveis
e estáticas instruções programadas. Enquanto que na inteligência artificial existem dois tipos
de raciocínio (o indutivo, que extrai regras e padrões de grandes conjuntos de dados, e o dedutivo), o
aprendizado de máquina só se preocupa com o indutivo. Disponível em:<
https://pt.wikipedia.org/wiki/learningmachine/>. Acesso em: 05 de ago. 2017.
181
possuindo uma aura de saber superior e infalível, a sociedade digital reforça o império
dos números.
“O número chega ao poder, tanto mais quanto o economismo contemporâneo
e o capitalismo financeiro na sua mobilidade excitam a concorrência, a busca
contínua do resultado máximo, a rapidez estratégica de utilização da
urgência. ” (BALANDIER, 2015, p. 15)
Uma espécie de mar ideológico circunda o arquipélago do humano, legitima o
poder, reforça as relações assimétricas. A cumplicidade com os avaliadores faz
esquecer que nem toda coisa social pode se transformar em mercadoria, existe um
limite para a reificação. Cabe perguntar se algo escapa ao fenômeno da avaliação, se
algo é de alguma forma inavaliável.
Podemos presumir que a filosofia da avalição é um potente instrumento de
legitimação de organizações. Não é somente uma técnica para corrigir ações, tem
forte apelo ideológico e se encaixa bem em todas as esferas da sociedade com a
ideologia neoliberal. Uma de seus principais engodos e tentar impor uma semelhança
a temas que não poderiam ser comparados, sendo, portanto, arbitrário em suas
proposições.
Trata-se de um novo instrumento de intervenção fundamentado em
indicadores, painéis, matrizes de maturidade, que podem ser aplicados a qualquer
organização, a crença geral é a de que o progresso, e seus adendos, produtividade,
eficiência, eficácia, não são possíveis sem avaliação, Martuccelli explicita 8 princípios
básicos:
“- Tudo é suscetível de ser medido e, no devido tempo, submetido a
avaliação, exercício que permite transformar debates ideológicos em casos
técnicos;
- Todo o mundo deve ser avaliado e posto em concorrência, o que caminha
no sentido de uma democratização;
- A avaliação, na medida em que se apoia em referências comuns, em uma
182
forte credibilidade e em critérios técnicos irrepreensíveis, assegura uma
gestão mais transparente do poder;
- A avaliação como modo de gestão assegura a melhor utilização possível
dos recursos econômicos e humanos;
- A avaliação aumenta a eficácia porque permite fazer emergir, por
comparação, as boas práticas, o que possibilita, em seguida, declinar
recomendações mais ou menos universais;
- A avaliação motiva e implica continuamente tanto as organizações quanto
os indivíduos, porque visam melhorar de modo constante tendo em mira a
próxima avaliação;
- A avaliação, ao tornar o poder mais eficaz e transparente, é um poderoso
mecanismo de legitimação das organizações;
- A avaliação, ao tirar, graças à reatividade que ela assegura, as conclusões
dos limites das antigas formas de racionalização organizacional, inaugura
uma nova era na racionalização de nossas sociedades. ” (MARTUCCELLI,
Crítica da filosofia da avaliação in BALANDIER, 2015, p. 39)
Existem atividades que por causa de sua natureza ou por restrições técnicas
torna-se difícil mensurar. No caso do método ágil devido a opacidade e imaterialidade
das atividades que envolve muita comunicação, em reuniões corporativas, e-mails,
telefonemas e cerimônias do próprio método. Os objetivos as vezes se sobrepõe em
meio a tantas demandas, mesmo assim a ânsia de medir persiste, inclusive com
critérios que levam à perversão da avaliação, por serem essencialmente subjetivos e
não raramente embasados em propósitos políticos e metas pessoais.
Se tudo é avaliável, todos devem ser avaliados, aparentemente parece
democrático, entretanto se refletirmos, por exemplo, sobre as estratégias de avaliação
360 graus, verificaremos uma discrepância de avaliação entre chefes e subordinados,
a assimetria que se estabelece entre ambos impacta diretamente um possível plano
de ação, além do fato de que, para alguns a avaliação será constante, para outros
episódica. Não existe, pois, igualitarismo, nem redução de arbitrariedade. O fato do
julgamento ser baseado em expediente cognitivo, não elimina o fato de que criar um
indicador é realizar uma escolha política por omissão. A questão da transparência aqui
fica prejudicada a partir do momento que a formulação de indicadores não é colocada
183
em debate. Os indicadores não levam em consideração o exercício do poder, que
opera na zona de incerteza. Os atores que transmitem informações de avaliação
relativas as suas práticas exercem controle sobre o que mostrar, cada qual produzirá
informação de acordo com seus interesses, não se trata de disciplina, mas de jogo
estratégico, que deve ser controlada, mas não extinta.
A avaliação tem um custo alto, pois exige alocação de tempo e investimento
cognitivo, as vezes de uma multidão. A avaliação está umbilicalmente ligada a
eficiência enquanto meta suprema da organização, por isso o esforço de avaliação
cresce exponencialmente e por consequência o custo. Prática que visa evitar
desperdícios é em si um desperdício.
A filosofia da avaliação compõe um vasto corpo de iniciativas neoliberais que
abrangem todos os tipos de instituição de forma global, pretende encontrar o melhor
caminho, estabelecer as melhores práticas, para que se possa aplicar em qualquer
contexto. Está no âmago daquilo que Negri chama de império. Não é possível
aprendizado mutuo quando esse mecanismo se baseia em poderes assimétricos, um
bom exemplo são os padrões de qualidade criados pela onda de qualidade total da
década de 1990, como ISO ou CMMI para desenvolvimento de software, entre outros.
As atividades são organizadas em função dos indicadores, que sugere um tipo de
colonização. A avaliação é normativa e performativa, deixa de ser um meio para se
tornar um fim. O objetivo de fundo é sempre a melhoria da organização, que oculta
um desejo de dominação. A avaliação ganha contornos mais perversos quando passa
para o nível do indivíduo:
A avaliação não é, então, apenas um aumento de mecanismos de controle; é
outra maneira de fazer aceitar as coações do trabalho, por parte do
assalariado, pelo viés da responsabilização. Seu escopo é fazer que o
indivíduo se sinta sempre e em tudo responsável, não apenas por tudo o que
faz (senso de responsabilidade) mas por tudo o que lhe acontece (princípio
da responsabilização). A responsabilização situa-se na raiz de uma exigência
generalizada de envolvimento forçado dos indivíduos e na base de uma
filosofia que os obriga a interiorizar, sob a forma de falha pessoal, a sua
184
situação de exclusão e fracasso. No âmbito da filosofia da avaliação, as
desigualdades de resultados tornam-se um caso de fracasso pessoal.
(MARTUCCELLI, crítica da filosofia da avaliação p. 39 in BALANDIER, 2015)
A intensificação exige envolvimento total do trabalhador com a empresa, o que
exige, por sua vez um sistema de recompensas embasado na avaliação, que resultam
não raramente em injustiças e frustrações, pois as imposições de envolvimento
excedem em muito as exíguas recompensas. Além do que a meritocracia é colocada
em xeque pela arbitrariedade e pela bajulação. Outro agravante é a urgência insuflada
na vida social pelo próprio ethos capitalista que fazem com que os indivíduos exijam
cada vez mais rápido as recompensas prometidas. Devido a esse contexto o clima de
desconfiança aumenta, em pleno contraste com o discurso de solicitação de
comprometimento, levando via de regra à uma simulação generalizada. Se os
trabalhadores imergem no discurso imperativo do lucro, da eficiência e eficácia difusa,
com exceção de posições estratégicas e momentos críticos, o quotidiano se desdobra
de maneira mais flácida, pois existem nichos de ociosidade, a margem de ação de
cada um permite balancear a intensidade com momentos de lentidão. Os métodos
ágeis preconizam o ritmo sustentável, ainda que isso não seja incentivado pela
empresa, os atores criam estrategicamente vacúolos de morosidade por uma questão
de saúde física e psíquica.
Pedro avalia o impacto da melhoria continua sobre as pessoas afirmando que
se trata de uma obrigação, de encontrar sentido para as coisas que você faz, da
necessidade de ser uma prática sustentável, que raramente acontece na prática:
“Impacto é aumentar a autoestima e a significância do que é feito, você fica
mais no fluxo, tem o lance de você fazer o seu trabalho parte da sua obrigação,
a segunda parte da sua obrigação é fazer de uma forma que ele possa ser
feito melhor, no futuro, obrigação ética. Você expandir a melhoria continua
para todos os setores da sua vida. O problema é algo que você faz que
degenera ao longo do tempo, se ele ao longo do tempo se estabiliza, nesse
caso não preciso de melhoria continua. Fazer o trabalho e pensar em forma
185
de fazer melhor, encontrar mais significado no que faz, de encontrar fluxo. A
folga tem um papel importante nisso, para a sustentabilidade também, além
do que precisa ter espaço para o imprevisível. ” (PEDRO, 2017)
Apesar de toda a nocividade da filosofia da avaliação, as sociedades aderem
com entusiasmo a ela. Não existe mais a ilusão do controle absoluto, mas a
reatividade é desejada em meio a um contexto de incerteza, fluido que se modifica a
todo momento, assim a adaptação é a palavra chave para fazer frente ao imprevisível,
o estoque zero, o Just-in-time, a luta constante contra o desperdício, a colaboração, a
transparência, a flexibilidade, a polivalência, todas essas características compõe uma
nova racionalidade. Um sistema eficiente que elimina todas as possibilidades de
ociosidade, errar rápido para certar rápido exige sistemas de avaliação ubíquos, para
além das subjetividades cooptadas.
João declara que a melhoria continua tem a ver com propósito, maestria e
autonomia, e que o poder de transformação da empresa está no indivíduo, é preciso
analisar até onde a gestão das empresas atualmente privilegia esse tipo de ambiente,
e como é possível compatibilizar isso com a busca por maior eficiência e produtividade
abrindo mão do controle e da intensificação do trabalho:
“Gosto da abordagem do Daniel Pink, motivação 3.0, pessoas são motivadas
por um ideal, um propósito, por maestria e autonomia, você gostaria de
transformar o ambiente onde o trabalho é executado? Você gostaria de
desenvolver as pessoas para trabalhar em empresas do século XXI? Ter
autonomia, gente que iria trabalhar de graça! Essa é a questão da inspeção,
adaptação e melhoria contínua, maestria e autonomia levam a melhoria
continua, quando você tem a competência para fazer essa transformação, é
movido pelo propósito de transformar o mundo, você se aprimora sozinho e
depois muda o mundo”. (JOÃO, 2017)
A avaliação seduz porque nutri uma crença coletiva de eficácia, um
sentimento de domínio, uma certa previsibilidade. É evidente que usando a
introspecção já modificamos várias vezes uma conduta pessoal, a associação da
186
experiência pessoal com a experiência organizacional reforça a adesão a avaliação.
Ninguém questiona que todos devem prestar contas democraticamente, muito menos
a aspiração de ver seus próprios esforços reconhecidos, portanto essa aspiração
também reforça a adesão a avaliação. Estrategicamente trata-se do estabelecimento
de uma nova tecnocracia, por uma elite que não terá suas competências técnicas
questionadas.
Em tempos neoliberais assistimos a um profundo enfraquecimento dos
vínculos sociais. A relação com o tempo e o espaço foi subvertida pela velocidade e
aceleração tecnológica, todos os limites se romperam diante da desterritorialização
promovida pela globalização. Estamos além da disciplina e do controle, o controle
agora é contínuo, se faz presente em todas as esferas da vida, induzindo a falta de
confiança, uma suspeita difusa, de instituições e indivíduos, o tipo de personalidade
que se forja nesse contexto é de natureza fugaz, efêmera, submissa, dependente,
desconfiada. A prestação de contas é em tempo real, abrange tudo que se está
fazendo agora, é reduzir a prestação de contas ao ponto de não se perder tempo nem
rentabilidade, o que for imprevisível ou inédito não deve ser avaliado. Por isso talvez
uma das práticas mais bem vistas do método ágil seja a gestão visual, os radiadores
de informação.
“A avaliação incessante convertida em instrumento de controle contínuo, que
ignora, quando não despreza, o indivíduo isolado na sua singularidade,
decorre desta desconfiança e a reforça. Ela tenta reduzir a parte de
desconhecido reduzindo-a doravante ao número, à quantificação, à
linguagem formal do governo, sem conteúdo, sem substância em sociedades
nas quais os funcionamentos e as identidades são fragmentados, misturados,
múltiplos, instáveis, difusos e incertos. O valor, doravante cifrado, tende a ser
desprovido de conteúdo. “ (HAROCHE, O inavaliável em uma sociedade de
desconfiança p. 70 in BALANDIER, 2015)
A avaliação tem sempre um caráter subjetivo, entretanto invisível, fugidio,
oculta-se atrás de cálculos. O que a avaliação quer de fato é reduzir o campo da
187
subjetividade dos avaliados para que seja possível modelar os comportamentos. A
subjetividade que requer margem de iniciativa e liberdade pode representar uma certa
insubmissão ou resistência, reside nisso a importância de suprimir o pensamento
crítico, visando alcançar mais eficácia, eficiência, adaptação, inovação. A adaptação
torna-se fio condutor porque suprime a dúvida, a hesitação, a recusa, a interioridade,
o inavaliável.
A mudança, o ritmo, contrasta com o ritmo pessoal, à engenhosidade,
habilidade de obter êxito, obsta o sentimento de continuidade, desqualifica o
pensamento, forja-se assim uma personalidade adaptável e flexível que se molda a
objetivos fixados previamente. Resistir a esse sistema equivaleria ao ostracismo,
entretanto se é impossível a resistência institucional, a resistência intelectual preserva
uma certa margem:
“Ela supõe a liberdade, a criatividade, a inventividade, a audácia exigida pela
atividade e experiência de pensar, implicando, ademais, a paciência diante
da ausência de eco, da indiferença encontrada por um trabalho de reflexão;
requer, enfim, a força de caráter, a determinação, a autoconfiança nas horas
de falta de reconhecimento. “ (HAROCHE, O inavaliável em uma sociedade
de desconfiança p. 84 in BALANDIER, 2015)
As injunções da produtividade intensa abreviaram o tempo de pensar, o
julgamento crítico, a avalição continua tende a privar o indivíduo de liberdade e
experiência interior. Mescla-se com o trabalho cognitivo momentos ociosos, hiatos,
morosidades, suspensões, divagações, distrações, diversões, uma diversidade de
momentos que compõe um trabalho invisível que se desdobra por um tempo e supõe
uma subjetividade. A singularidade resiste a qualquer sistema, Claudine Haroche
inspirada em Deleuze lembra que:
“Criar sempre foi algo mais que do que comunicar – hoje, convém acrescentar:
algo mais do que produzir. Seriam necessários, então, momentos de pausa,
de não funcionamento de silêncio, criar vacúolos de não comunicação,
188
interruptores, para escapar ao controle” (HAROCHE, O inavaliável em uma
sociedade de desconfiança p. 88 in BALANDIER, 2015)
Tal afirmação corrobora em tese o que os métodos ágeis afirmam sobre a
necessidade de trabalho sustentável, slack, respeito da capacidade produtiva, e a
importância da cerimônia de retrospectiva, e também porque essas mesmas
cerimônias baseadas em colaboração coletiva e práticas intersubjetivas são preteridas
por ferramentas de avaliação corporativas.
Mateus descreve bem a prática de melhoria continua na grande maioria das
empresas, uma ferramenta de intensificação do trabalho, com o tempo a prática vai
sendo deixada de lado por conta das entregas, o debito técnico vai aumentando, então
aquilo que poderia ser feito de maneira tranquila e sustentável ao longo do tempo,
torna-se uma exigência insustentável afetando o trabalho como um todo:
“Entra toda questão de educação em volta disso no início tem um sentimento
de cansaço, vou ter que melhorar continuamente, significa que estarei
correndo, correndo, correndo para melhorar. Aí entra a questão do ritmo
sustentável, a melhoria contínua nesse caso não tem impacto negativo, torna-
se pesada se não há ritmo sustentável, aí o esforço é grande, se 100% do
tempo está focado em execução, tudo que é necessário para melhoria fica
acumulado, e quando vem a necessidade de melhoria a porrada é grande. ”
(MATEUS, 2017)
Qualquer modelo de excelência visa atingir desempenhos cada vez mais altos,
que leva necessariamente a comparação com desempenhos anteriores ou com base
em alguma meta estabelecida ou pior comparando com o desempenho de outros
levando à uma crescente competição, pois “o trabalho não consiste mais em realizar
uma tarefa predefinida em tempos e em horas, mas em realizar desempenhos. ”
(GAULEJAC, 2015, p. 91). Os métodos ágeis não recomendam a comparação de
desempenho entre pessoas e equipes, é essa é uma das adaptações que o processo
sofre ao ser introduzido em grandes empresas.
189
O problema de qualquer modelo de gestão é se apresentar como científico,
por estar apto a compreender a realidade da empresa com objetividade e neutralidade.
Os processos ágeis valorizam o teste de hipóteses em meio à incerteza e
imprevisibilidade, mas seu discurso é subvertido pela ideologia gerencialista e
transformado em um discurso operatório, cujo o objetivo é melhorar os resultados
financeiros. Quando não convém dizer certas coisas em reuniões, sustentar
determinadas opiniões ou apresentar dados coletados a partir de situações reais,
evita-se confrontação com situações reais, dotado de objetividade, pragmatismo e
neutralidade o discurso gerencialista suscita a adesão necessária, mas também a
rejeição quando:
“O sentido prescrito não corresponde ao sentido que cada trabalhador lhe dá,
este vive uma incoerência que, longe de o mobilizar, leva-o a se desestimular
de sua tarefa, o sentido do trabalho é construído a partir de um modelo ideal
e não a partir da realidade concreta. A qualidade é definida a partir de
indicadores pré-estabelecidos, a não a partir de critérios reais que os agentes
utilizam para definir a qualidade daquilo que eles fazem, os únicos critérios
que são significativos para eles. ” (GAULEJAC, 2015, p. 95)
Aqui vemos cair por terra toda a auto-gestão, liberdade e autonomia
preconizada pelos métodos ágeis. A criação de boas práticas, de procedimentos
documentados em frameworks de uso geral, define o que deve ser encorajando ou
desencorajando, prescrevendo condutas que as pessoas têm de aderir livremente.
Como veremos na quase totalidade das implantações de métodos ágeis a estratégia
preferencial é sempre top-down, ou seja, imposta desde cima do alto escalão, muito
raramente bottom-up, ou seja, a partir da vivência dos próprios trabalhadores que
nesse caso aderem de forma autônoma ao método. É importante observar que o
discurso gerencialista não se apropria do método ágil, mas o modula conforme as
suas necessidades visando otimizar recursos humanos, ampliar o marketshare,
favorecer a flexibilidade, produzir adesão, normalizar comportamentos, promover
190
autonomia controlada. Faz isso com a anuência do próprio método que traz a vocação
da adaptação no próprio DNA. Ao invés de uma imposição por decreto, as pessoas
são convidadas a colaborar, desde que o resultado da colaboração passe pelo crivo
de alguém que identificará desvios e recomendará um ajuste ou descarte daquilo que
não se adapta. Trata-se mesmo de um discurso contraditório, faz um movimento
pendular entre a rigidez disciplinar, o paradoxo, a contradição são os meios pelos
quais consegue modular o discurso. As normas mesmo que aceitas voluntariamente
produzem efeitos de poder. Se os métodos ágeis preservassem seus valores e
princípios poderia produzir uma democracia corporativa interessante, mas quando
colocado em prática não resiste à modulação de um discurso próprio de uma cultura
gerencialista pré-existente e arraigada.
Assim como nos modelos de qualidade dos anos 1990, os métodos ágeis
sofrem forte influência do pensamento sistêmico, preocupados em valorizar o humano,
em refundar a avaliação em práticas empíricas. Ambas se dispõem a combater a
burocracia e a tecnocracia, sem embargo, quando colocadas em prática nas
organizações, acabam vilipendiando as subjetividades entrando em contradição com
sua proposta por adotar medidas que engessam as possibilidades de construção de
relações sociais benéficas.
É possível que grande parte das corporações sofra do mal da quantofrenia,
que designa “uma patologia que consiste em querer traduzir sistematicamente os
fenómenos sociais e humanos em linguagem matemática. (GAULEJAC, 2015, p. 98)
Não se pode compreender ou dominar a realidade com medições, o engodo
começa quando fracionamos a realidade para poder facilitar os cálculos, comparações,
a ilusão da representação objetiva não permite responder questões sobre a qualidade
do conjunto, a ética dos comportamentos, impactos e ponderações entre os diversos
elementos. O desempenho integral de um sistema depende da combinação de uma
infinidade de elementos, inclusive dos subjetivos ou intersubjetivos.
Dessa forma em corporações que resolvem adotar os métodos ágeis vemos
191
a difusão de diversos tipos de modelos e matrizes e de maturidade que enfatizam as
informações sobre quantidade de entregas, quantidade de defeitos, execução de
práticas, cumprimento de prazos, e desprezam informações como percepção da
colaboração, da autonomia, do aprendizado, do ritmo sustentável de trabalho.
A insignificância e a quantofrenia são duas figuras do poder. Uma permite
evitar a crítica e a contestação, pois ela impede de chegar ao sentido dos
mecanismos que estão em prática, e a outra permite apresentar como neutro
e objetivo um programa que leva os agentes a interiorizar a ideologia
gerencialista. (GAULEJAC, 2015, p. 101)
Tanto os especialistas da qualidade quanto os agilistas operam um discurso
que promove uma confluência de interesses, desprezando os conflitos e
antagonismos que emergem das relações humanas. As empresas são organismos
sociais e como tais, sempre instáveis e prenhe de incertezas. Essa visão de
estabilidade é expressa por grandes players do mercado, como a IBM, que prestam
consultoria para grandes corporações, trabalhando para consolidar uma visão de
mundo determinística e preditiva. É o caso do Framework23 SAFe, dotado de uma
estrutura que permeia toda a organização, da área de negócio à produção de software,
abrindo todas as portas possíveis para que a ideologia gerencialista se aproprie de
diversas práticas e valores ágeis, e os coloque a serviço da eficiência e da
rentabilidade, mantendo a estrutura burocrática e os controles necessários, entretanto
seu objetivo explícito é “escalar”24 o processo na empresa.
O pessoal é convidado a pôr em coerência os planos dos recursos humanos
com a política, a estratégia e a estrutura da organização. Trata-se de fazê-lo
aderir à organização, de moldá-lo conforme o modelo da empresa.
23 Um Framework ou arcabouço conceitual é um conjunto de conceitos usado para resolver um
problema de um domínio específico.
24 Escalar aqui pode ser entendido como disseminar o processo por toda a empresa, colocá-lo em prática e estabilizá-lo, mantendo os preceitos essenciais da metodologia ágil.
192
Flexibilidade, comunicação, reatividade, motivação, mobilidade e empenho
são as palavras-chave de uma política de qualidade na gestão dos recursos
humanos. São todos termos que exprimem a necessidade de uma
mobilização psíquica a serviço dos objetivos da empresa. (GAULEJAC, 2015,
p. 103)
As regras, procedimentos e dispositivos trazem no seu bojo, de forma menos
visível, o poder, orienta os objetivos e as tomadas de decisão. O poder então está nas
mãos daquele que escreve as regras do jogo. Os trabalhadores são envolvidos pela
engrenagem do processo que os submete, adesão facilitada pela participação dos
próprios empregados na elaboração das normas, transição habilmente facilitada pela
atuação do Agile Coach25 , assim as prescrições gerais serão transformadas em
prescrições concretas. E justamente aqui reside a maior incongruência entre os
métodos ágeis e poder gerencialista, por um lado o estímulo à auto-gestão,
transparência, colaboração, autonomia, criatividade; por outro a prescrição, a
arbitrariedade, as normas a instrumentalização e a dependência. A incerteza é
constantemente mascarada pela objetividade de instrumentos de gestão que se
pretendem neutros. Não obstante é justamente dessa dobra que se dá a modulação
dos discursos.
4.3.6 Liberdade e autonomia
Voltando para a noopolítica, para entender a cooperação de cérebros, não
podemos mais partir da empresa, pois não podemos embasar uma compreensão do
que seja o capitalismo contemporâneo na exploração do trabalho, o trabalho seria na
visão de Lazzarato (2006) um modo de captura da cooperação entre cérebros, e não
25 Corresponde a uma função criada recentemente nas empresas, cujo objetivo é dar suporte à implantação da metodologia ágil no contexto da empresa.
193
um elemento central que constitui o mundo.
Retomando as ideias já esboçadas anteriormente, a empresa não produz
mercadorias, mas cria mundos onde as mercadorias ou serviços serão utilizados. Da
mesma forma que a Alcatel em 2001 separou-se das fábricas, algumas empresas
brasileiras seguem o mesmo caminho, como é o caso de três dos maiores bancos
nacionais. Separa-se assim todos os serviços e empregados que estão envolvidos na
criação de mundos: pesquisa, marketing, comunicação, tecnologia, todas as
máquinas de expressão. O produtor e o consumidor, o serviço ou o produto estão
imersos no mesmo mundo, isso se dá não mais por técnicas disciplinares, a realidade
da empresa se confunde com as relações entre trabalhadores e consumidores.
Lazzarato (2006) assevera que “a expressão e a efetuação dos mundos e das
subjetividades neles inseridas, a criação e realização do sensível (desejos, crenças,
inteligências) antecedem a produção econômica”. Portanto os clientes ocupam uma
posição de centralidade na estratégia das empresas, uma vez que se trata em primeiro
lugar de criar demandas. Consumir significa pertencer a um mundo, constituído por
regime de signos, que trazem no seu bojo um repertório de crenças, um convite a
participar de uma determinada maneira de ser.
As sociedades de controle se distinguem pela proliferação de ofertas de
mundos, mundos formatados, que foram forjados para uma maioria, esvaziados de
singularidades. A liberdade está na escolha de possíveis que outros constituíram,
especialistas, nos é vedada a construção dos mundos, tudo é possível, a partir de um
leque de opções pré-determinadas, mas ao mesmo tempo nada é possível, quando
se trata de criar o novo.
Você pode ser ágil, mas é um ágil que eu acho que deve ser, assim é a forma
como as grandes empresas se apropriam dos métodos ágeis, e promovem uma
adaptação a sua própria cultura e diretrizes.
A sensação de insuficiência, descontentamento, lassidão advém da não
experimentação do acontecimento, promovida pelo capitalismo hodierno, o
194
acontecimento se reduz a ações de marketing e publicidade, pois antes do produto ou
serviço estar disponível, já foi vendido, já foi produzido um “mundo”, ao qual equivale
um público. Os investimentos nas máquinas de expressão superam os investimentos
da produção em si. Publicidade e acontecimento tem em comum o fato de disseminar
maneiras de sentir, induzindo maneiras de viver, a alma é afetada primeiramente para
depois “in-corporar”. A empresa promove mudanças incorporais.
“A publicidade constitui a dimensão mental do simulacro de acontecimentos
que a empresa e as agências de publicidade inventam, e que devem ser
encarnados nos corpos. A dimensão material do simulacro se realiza tão logo
as maneiras de viver [...] se efetuam nos corpos”. (LAZZARATO, 2006, p.
103) ”
São produtos e serviços que obtemos como possíveis, em meio ao fluxo de
informações, do caldo de comunicações no qual estamos submersos. As
subjetivações produzidas por essas máquinas de expressão circulam de forma
ininterrupta como ritornelos usando sons e imagens. Os indivíduos, são afetados
primeiro por transformações incorporais e depois corporais, entretanto grande parte
da raça humana fica só com as transformações incorporais, seja pela televisão ou
pelo celular. Trata-se de um duplo encontro, primeiro a alma é afetada, e depois o
corpo. As narrativas são mundos possíveis, formatados, porém uma dobra que
envolve virtualidades, o que está oculto no desenvolvimento da dobra pode produzir
efeitos heterogêneos, impensáveis, porque as mônadas são singularidades
autônomas, a apropriação capitalista é sempre imprevisível, existir é diferenciar-se. O
capitalismo tenta controlar esses mundos por uma constante modulação. A sociedade
de controle restitui os dispositivos disciplinares, sem os quais ele não poderia modular
os cérebros, e capturar a memória e a atenção. O paradigma da sociedade de controle
não é mais o corpo confinado do trabalhador, mas o corpo obeso, repleto de mundos,
corpos tatuados pelos signos, palavras, os logos das empresas. As máquinas de
expressão agem pelo exemplo e não pela disciplina, servindo de balizamento para as
195
condutas.
As transformações incorpóreas produzidas por essas narrativas perseveram
como ritornelos, circulam pelo mundo, para conquistar mentes e corpos. Todo esse
processo é anterior, organizando o trabalho e o não-trabalho, portanto, para Lazzarato,
pensar a produção a partir da categoria “trabalho” seria redutor demais.
Partindo de uma asseveração da neomonadologia pretende-se reformular a
teoria do trabalho:
“O “possível” (um produto ou um serviço) que vai expressar o “mundo”
normatizado da empresa não existe a priori, ele precisa ser criado. O mundo,
os trabalhadores, os consumidores não preexistem ao acontecimento. São,
ao contrário, engendrados pelo acontecimento. ” (LAZZARATO, 2006, p. 108)
Segundo Gabriel Tarde a invenção é uma criação de possíveis que se
atualizam nas almas de consumidores e trabalhadores, diferenciando aquilo que os
economistas clássicos chamam de produção, que nesse caso trata-se de reprodução.
Hoje a atividade de criação e efetuação das subjetividades é apropriada pelas
empresas. A captura dessa atividade se dá pela captura do acontecimento. “A
organização do trabalho passa a ser investida da lógica do acontecimento, pelo
agenciamento da diferença e da repetição” (LAZZARATO, 2006, p. 108).
Segundo Philippe Zarifian, do ponto de vista das disciplinas, o acontecimento
não é desejável, tudo deve acontecer conforme o planejado, não pode fugir ao que foi
normalizado, a visão disciplinar da organização do trabalho é contrária à invenção, ao
acontecimento. A incerteza, a necessidade de fazer face às mudanças impacta
visceralmente a organização do trabalho, uma instabilidade que abala sua estrutura,
de coisas não previsíveis. Parece-me que a produção de software, pelo prisma da
justificativa dos métodos ágeis, encaixa-se perfeitamente nesse contexto. Quando se
fala de zona de conforto, parece que as pessoas estão mais influenciadas pelo
ambiente criado pela própria empresa do que por iniciativa própria.
196
“A resposta ao surgimento do imprevisível, do incerto, dos acontecimentos, é
dada pela mobilização da atenção individual e coletiva ao que está se
passando, ao que já passou e ao que vai passar, e isso significa invenção,
capacidade de agenciamento, de combinações, de fazer acontecer.
Acontecimentos e invenções se distribuem ao longo do ciclo de produção
(desde a concepção do produto à sua fabricação) e se articulam com as
rotinas, os hábitos, as operações codificadas”. (ZARIFIAN apud LAZZARATO,
2006, p. 109)
Tal resposta parece ser dependente de um certo quantum de liberdade,
autonomia, e guarda estreita proximidade com o conceito de auto-organização
preconizado pelos métodos ágeis.
O capitalismo contemporâneo controla a produção prestando atenção aos
acontecimentos, sejam eles produzidos no cliente, no mercado ou na empresa, implica
em aprendizado com as incertezas e mudanças, estar pronto para se antecipar,
produzir em conjunto.
Ainda segundo Zarifian, o mercado é a constituição de uma clientela, que por
sua vez exige fidelização e inovação, fidelizar significa capturar atenção e memória,
os cérebros, constituir desejo e crenças. A produção visa os modos de vida,
transformação das capacidades de ação futura, os serviços antecipam as demandas,
concretizando-as. Essa antecipação se dá na esfera do virtual, requerendo a
mobilização dos recursos da comunicação.
Para além da modulação do espírito, a empresa requisita também uma
modelagem dos corpos, e articula essas duas dimensões, pretende com isso criar um
mundo também para o trabalhador, que adere a desejos e crenças corporativos.
Inspirando em Leibniz, Zarifian transcende a dicotomia, o paradoxo entre individual e
coletivo, incluindo o individual e o coletivo na mônada:
“A relação do indivíduo com sua atividade tende a se tornar uma mônada,
uma totalidade em si [...]. Esta relação não é mais vista como fracionamento,
funcionamento determinado, da divisão orgânica do trabalho. Torna-se global
por si mesma[...]. ” (ZARIFIAN apud LAZZARATO, 2006, p. 112)
197
Isso pode significar que apesar da empresa impor uma forma de se fazer o
ágil, o trabalhador ao tomar contato com o método, não só por intermédio da empresa,
mas também por intermédio dos consultores especialistas, da internet, dos diversos
canais, materiais, evangelizadores, experiências com o método das mais diversas
formas, podem assim tecer um próprio entendimento e construir um processo de
trabalho singular.
A competência exigida pelas empresa pós-fordistas, de se confrontar com a
incerteza, o absolutamente novo, abrange os autônomos e independentes bem como
os dependentes e subordinados. A empresa com suas normatizações pode invadir a
mônada desde o seu interior, mas não destrói a sua singularidade, ela mesma permite
que o universo da empresa tenha sentido, mas sempre com base em uma
reformulação. O discurso de autonomia da empresa pode ser substituído por um
conflito intestino que se dá no processo de digestão da mônada, é um trabalho que
requisita autonomia, de um lado a autonomia e singularidade do trabalhador, por outro
a captura e pertencimento ao mundo da empresa.
Mateus ressalta a importância da participação da empresa no
desenvolvimento de autonomia e liberdade dos trabalhadores e da importância do
vínculo de confiança para que um outro de tipo de construção de conhecimento seja
possível:
“Não acredito em um on/off de liberdade e autonomia, mas em níveis de
liberdade, a capacidade de autonomia vai aumentando a medida que você
vai aprendendo, os processos ágeis defendem isso, e tem impacto na maioria
das organizações, não acredito que os trabalhadores sejam capazes de lidar
com tamanha liberdade e autonomia, quando a organização faz um
investimento para desenvolver a competência das pessoas, as pessoas vão
se preparando e se mostrando competentes para lidar com determinado tipo
de liberdade e autonomia. Tudo depende do nível de autoridade e confiança
entre aquele que concede a liberdade e autonomia e aquele que a pleiteia.
Sobre o trabalho individual e trabalho em equipe, precisamos voltar na
questão sobre os extremos, numa gestão tradicional, a coisa é focada no
individual, o mundo ágil trouxe muito a questão do trabalho em equipe. Nos
198
últimos anos houve uma romantização muito grande, tudo tem a ver com
equipe, e as vezes um time trabalhando junto e fazendo tudo junto apresenta
resultados ruins. Você tem que descobrir a cadeia de valor de cada trabalho,
existem tipos de trabalho que você só vai conseguir gerar valor para o negócio
se for feito em equipe, mas existem trabalhos onde você só será capaz de
gerar valor fazendo individualmente. Equipes criativas sabem quando
trabalhar em equipe e quando não trabalhar, criam uma inteligência coletiva,
a ponto de saber como e quando, esse é um segundo nível de auto-
organização que vemos nos animais e que não somos capazes de fazer,
somos um extremo ou outro. Sobre especialização e generalização,
especialização sempre vai existir, se alguém quer ser tester e se identifica
com isso tudo bem, o que é inadmissível é ele ser um ignorante no restante
da engenharia de software, tenho que conhecer minha cadeia de valor e ser
generalista nisso, mesmo que seja um especialista em uma parte da cadeia
de valor”. (MATEUS, 2017)
João salienta que autonomia pode, na visão da empresa, elevar o risco do
negócio, e o quanto afeta as relações de poder estabelecidas:
“Liberdade e autonomia tem a ver com experimentações, existe um risco em
ser disruptivo demais e botar em risco uma marca ou modelo de negócio, isso
gera medo. O segundo ponto é vai impactar os aspectos gerenciais, vi mexer
no status quo da gestão, a maior restrição é o poder da hierarquia, dos
gestores. Para mexer nessas estruturas de poder há que se ter habilidade
política em primeiro lugar. O terceiro ponto é a grife, porque a IBM está no
Santander? São os melhores? Se der algo errado foi a IBM que fez... não é
tomada de decisão em favor da organização, e sim individual, minimizar o
risco individual do executivo”. (JOÃO, 2017)
A narrativa de Paulo esclarece a contradição intrínseca à ideia de auto-
organização e a necessária liberdade e autonomia que ela traz, e a captura por parte
da empresa do conhecimento gerado. Em seguida afirma a importância da
singularidade e como ela se funde com outras se aproximando bastante da ideia de
cooperação de cérebros, e de como a especialização excessiva pode ser um
empecilho para a colaboração:
199
“Autonomia é bom, liberdade não sei se é adequado, processo ágil preconiza
isso. A restrição maior é, o ágil você pode se auto-organizam do jeito que
você quiser, mas o foco é resolver um problema específico, que tem prazo,
custo definidos, enfim restrições. Todo esse devaneio tem que fazer sentido,
não é uma coisa totalmente lúdica, tem que se traduzir em capital tudo isso.
Sobre o trabalho em equipe e individual, o espaço individual é necessário,
ritmo, criação, o seu pensamento, o indivíduo é singular, tem um jeito único
de pensar, existir, deve ser respeitado, sua singularidade deve prevalecer,
mas no seu time ela se transforma, no processo de fusão se funde com outras
singularidades e fica maior. A menor unidade gerenciável na empresa deveria
ser o time, parar de gerenciar o que os indivíduos estão fazendo, e focar-se
no resultado do time. Não é o Mindset vigente, continuamos a acreditar que
o desempenho individual é mais importante e desconectado dos demais.
Crescemos como indivíduos, cada um tem as suas necessidades, agendas,
você tem elementos de competitividade, as empresas tentam tirar proveito
disso, e ainda estimulam! A questão da especialização e da generalização
tem dois pontos. O primeiro é que as pessoas se aprofundam em alguns
assuntos mais que outros, a especialização nesse caso precisa ser
respeitada, do ponto de vista econômico pode ser menos custoso um
especialista resolver. Esse é o grande equilíbrio para definir o “T”, o balanço
entre especialista e generalista, na prática todo mundo pode entender de tudo,
ter uma visão do todo, tentar colaborar com o todo, entretanto é saudável ser
um especialista em alguma coisa. O mercado de capacitação insiste na
especialização, a empresa valoriza isso. A complexificação das tecnologias,
plataformas e a economia de escala também favorecem a especialização”.
(PAULO, 2017)
Para explicar o controle nas empresas Zarifian utiliza a metáfora do elástico,
pois o trabalhador não se encontra mais agrilhoado ao posto de trabalho, está
umbilicalmente ligado à empresa por um elástico:
“O assalariado pode, livremente, esticar o elástico, ele não está mais preso,
pode mover-se, deslocar-se ao sabor de suas iniciativas e de seu savoir-faire,
de acordo com suas próprias faculdades decisórias e de julgamento. Mas, eis
que o elástico é tensionado, uma força periódica de chamamento se exerce
sobre o trabalhador, e ele tem que prestar contas [...]. A pressão dos prazos,
dos resultados a atingir, substitui aquela do cronômetro das operações
elementares do trabalho. Mas seria falso pensar que esse controle só se
exerce periodicamente. Na verdade, é onipresente. Permanentemente - o
200
assalariado deve pensar – vão ficar no meu pé, me importunando noite e dia”.
(ZARIFIAN apud LAZZARATO, 2006, p. 114)
Parece lembrar o taylorismo, mas é diferente, a diferença abre uma
perspectiva de explicação para a sujeição e para a resistência.
O desencontro entre subjetividades e as estratégias da empresa, ocasionado
pela atualização das almas e a encarnação dos corpos, promove um confronto com a
gestão, desse deslocamento podem se originar tanto desvios exitosos quanto um
colapso subjetivo. As técnicas de controle se articulam com técnicas disciplinares, a
intensidade de aplicação as quais os trabalhadores serão submetidos depende de
posição hierárquica, competências e tipo de produção, dessa forma as técnicas de
poder formam camadas sedimentares e se articulam.
“Com a advento da cooperação entre cérebros, não basta mais dizer que o
trabalho se tornou afetivo, linguístico ou virtuoso, posto que é a configuração
mesma da acumulação e da exploração capitalista que se modifica
radicalmente. “ (LAZZARATO, 2006, p. 120)
O software livre é um bom exemplo de como a cooperação se dá antes da
captura, uma co-criação que se dá sem empresa ou capitalismo, que depende apenas
do acesso a bens comuns (ciência, saber, internet, saúde).
É uma invenção que ocorre pelo agenciamento de uma pluralidade de
inteligências, de conhecimentos e afetos que circulam em uma rede, que articula
desenvolvedores e usuários, uma criação e realização recíprocas que faz de todas as
mônadas colaboradores. Essa forma de criação é pública, porque envolve desejos e
crenças de todos, uma atividade que tem um lado da iniciativa individual e singular e
uma natureza pública. Os velhos preceitos da economia política e do marxismo não
explicam os lucros exorbitantes da Microsoft, não se trata somente da exploração dos
trabalhadores. Mas se explica pela clientela, formada e mantida por fidelização e
inovação, e do monopólio que se estabelece. Nesse caso os empregados da empresa
201
mantem uma interface com a cooperação de cérebros, neutralizando a co-criação, de
forma que a potência de agenciamento converge para a empresa.
“E como se realiza essa captura? A forma imediatamente pública da
cooperação é negada pelo segredo que rege as atividades da empresa e o
segredo que rege as atividades da empresa e o segredo que rege a difusão
dos softwares (impossibilidade de acessar o código-fonte). A neutralização e
a captura da potência de co-criação e de co-realização se fundam sobre a
propriedade intelectual, e não sobre a propriedade dos meios de produção,
como na cooperação da fábrica”. (LAZZARATO, 2006, p. 122)
A natureza da atividade dos pequenos cérebros que fazem parte de um
cérebro social, não se define apenas pela cognição e afetos, mas também pela
capacidade de começar algo novo, de elaborar problemas e colocar à prova as
soluções.
Pedro comenta como se dá o verdadeiro trabalho em equipe, e podemos
perceber como essa ideia se aproxima da cooperação entre cérebros:
“O conceito de equipe, time, entra em cena quando se tem uma meta comum,
existe um jogo, uma definição clara de quando vencer o jogo, aí começa a ter
time, o oposto disso é grupo de trabalho, quando as pessoas têm
individualmente seus objetivos, a empresa reforça isso com prêmios
individuais, porque é a forma mais fácil de gerir, estabelecer modelos de
motivação extrínseca para as pessoas, do que para grupo. Os esportes
coletivos mostram um caminho, ambientes altamente competitivos
estruturados para vencer o jogo. A questão individual é importante, mas um
craque não jogo em qualquer time. Se você tem um objetivo, ele se desdobra
em várias coisas que precisam ser feitas, como numa jogada para atingir a
meta a equipe precisa se planejar taticamente. Os times de software definem
um objetivo comum, engaja as pessoas para resolver os problemas, e não
em fazer suas tarefas somente, então você tem um momento de distribuição
das partes desse problema para o time, explode o problema em tarefas e
volta para convergir. É um processo de três etapas, você reúne para discutir
a melhor configuração das tarefas no time, quem está em melhor situação
para pegar determinadas tarefas. A generalização entra como fator
importante, tudo pode virar gargalo, com um peão do xadrez, se você é uma
202
peça que tem mais possibilidades de movimentos, você é mais útil. O
segundo momento é individual, você resolve aquilo que foi atribuído para
você, aqui as vezes cai bem o especialista. O terceiro momento é voltar a
prestar contas para o time, verificar se todos estão caminhando em direção à
meta. As pessoas criativas precisam de coisas novas, não conseguem ficar
muito tempo fazendo a mesma coisa. A empresa precisa criar um cenário
para mantê-lo ali, desafios, flexibilização para trabalhar em projetos diferentes.
O cara conservador precisa de ordem, estabilidade, previsibilidade”. (PEDRO,
2017)
Aqui Lucas ressalta a dificuldade e fazer conviver dois modelos de trabalho,
os dilemas que surgem pela imposição de uma ideologia gerencialista, focada no
individualismo e na meritocracia, fruto de uma ideia de trabalho já ultrapassada:
“Tenho pensado muito sobre o trabalho individual e em equipe, o melhor
modelo que chegamos na BlueSoft foi uma combinação de alguns fatores, se
você olha para o desempenho individual apenas, se você olha para as
métricas individuais, você quebra o incentivo que as pessoas têm para
colaborar com os outros, porque vou me preocupar a ajudar os outros se isso
não está na minha meta? Se você olha só o desempenho coletivo teremos
dificuldade de remunerar as pessoas que contribuem mais. Passamos a ter
disfunções no time, pessoas que não contribuem, são acomodadas, e deixam
o piano para as outras carregarem”. (LUCAS, 2017)
Lucas ainda levanta uma questão interessante sobre como a polivalência, a
multifuncionalidade da equipe pode ser interessante para fomentar a cooperação
entre cérebros, entretanto, como já analisado nessa pesquisa, é utilizado pela
empresa como um dispositivo para reduzir custo, intensificar o trabalho e aumentar a
rentabilidade:
“Precisamos cada vez mais de profissionais que vão se limitem a fazer
alguma coisa, e assume que o resto não é o trabalho dela, quando falamos
de time multifuncional, cross-functional, a gente precisa disso. Misturar
pessoas com diferentes skills em um time vai também permitir que pessoas
que não são especialistas em uma função possam contribuir com atividades
203
daquela função, um dev pode testar, um design pode escrever código, um
tester pode montar um ambiente. Gosto da ideia do T-shape profissional,
especialista em alguma coisa generalista nas outras”. (LUCAS, 2017)
Aqui parece haver mais uma aproximação com os métodos ágeis, quando
falam de PDCA, de testes de hipóteses, da importância do feedback, de auto-
organização, do valor dado à comunicação.
Cada um adiciona pequenas invenções à memória social. Uma empresa como
a Microsoft reivindica para si o direito de definir os problemas e guardar o segredo de
suas soluções, para favorecer sua clientela.
“A propriedade intelectual tem, assim, uma função política, já que determina
quem temo direito de criar e quem tem o dever de reproduzir. A propriedade
intelectual separa a multiplicidade de sua capacidade de criar problemas e
inventar soluções. A empresa e a relação capital/trabalho impedem que se
veja a dimensão social do acontecimento que caracteriza a produção da
riqueza contemporânea, determinando assim formas de exploração e
subordinação inéditas. ” (LAZZARATO, 2006, P. 126)
Talvez a resistência da empresa aos métodos ágeis esteja em uma relação
que pode se abrir para outras perspectivas além da apropriação, nesse sentido os
métodos ágeis são vistos com reservas, ainda que seu proposito seja tão somente
calibrar a relação de diferença (invenção) e repetição. O que poucos talvez tenham
percebido é que o manifesto ágil foi pensado como se fora uma balança, que
dependendo da ocasião pende para um lado ou para outro.
Quando uma mônada é capturada na execução de um trabalho reprodutivo, a
memória e a atenção não se voltam para o espaço virtual da invenção, torna-se um
hábito, a ação se transforma em automatismo, as forças psicológicas e todas as
potencias de vida e de invenção são capturadas e neutralizadas, e talvez isso explique
tantos problemas de ordem psicológica e psiquiátrica ocasionados pelas relações
laborais.
204
A dinâmica da cooperação entre cérebros é dada pelo acontecimento, as
ações representam novos começos, quando criam se abrem para um horizonte de
imprevisibilidade. Para fazer frente a fragilidade e ao risco presentes nessa ação, é
requerida a confiança, co-criação implica em empatia e compartilhamento. As
mônadas operam em estados de colaboração e rivalidade que se alternam, mas
sempre guiadas pela empatia, confiança propiciada pela criação. Estar em estado de
colaboração é uma afetação recíproca. Por isso a invenção não pode ocorrer por
comando e controle, confiança, empatia e colaboração possibilitam a co-criação de
mundos e de si mesmo, a diferença é o motor da colaboração. O espírito de
competitividade exacerbado e a contradição só encontram espaço quando se pensa
através das categorias da economia política e do marxismo, na mesma chave cada
qual em uma extremidade, a práxis e o liberalismo.
“Dois termos contrários não podem ultrapassar sua contradição, a não ser
pela vitória definitiva de um ou de outro, ao passo que dois termos diferentes
podem combinar sua heterogeneidade pela hibridação. A fecundidade da
lógica do acontecimento e da invenção resulta na capacidade desta de fazer
o encontro, de co-produzir e co-adaptar as forças heterogêneas que só se
opõe na lógica dos contrários. Ao estabelecer um novo plano de imanência,
as forças co-produzem uma nova modulação de suas relações, descobrem
“uma vida ainda não trilhada que lhes permitem utilizar-se reciprocamente”.
(LAZZARATO, 2006, p. 134)
A invenção e cooperação expressa uma alegria, que é distinguida da tristeza
que se expressa no trabalho de repetição padronizado, por uma subjetividade
envolvida em uma atividade qualquer. O fenômeno econômico não encontra
explicação bastante na sanha desmedida do lucro, sequer no binômio minimizar a dor
e maximizar o prazer, mas talvez no esforço constante de evitar a tristeza
proporcionada pela reprodução padronizada a ampliar a alegria proporcionada pela
invenção, reduzir a necessidade do trabalho e ampliar a liberdade da cooperação. Eis
a contradição do capitalismo atual, a empresa deve se render a essas condições sob
205
pena de desaparecer, mas sua lógica recusa a imanência e a colaboração que a
cooperação entre cérebros pressupõe, ou antes a modula para capturar sua produção.
Mais um indicio do rol de possíveis explicações para a dificuldade de implantar
métodos ágeis em grandes empresas e manter a iniciativa ágil.
Paulo realça na sua narrativa a contradição entre a necessidade da criação e
o excesso de controle, a falta de confiança e a cultura do medo:
“Como a empresa lida com a incerteza, com relação ao aprendizado, porque
a empresa se enche de planos, artefatos, processos. Por causa da falta de
confiança e do medo de perder dinheiro, e acha que se municiando de
detalhes, informação, de tudo muito bem documentado, aprovado, vai
conseguir se proteger. O principal empecilho é jogar na defensiva, de
imaginar problemas futuros, com o cliente, com o fornecedor, com o time, é
mãe de todos os empecilhos. Porque o medo? Porque quem tem cú tem
medo! Ou segundo Noam Chomsky, quem tem juízo obedece! Você tem uma
cultura nas empresas, na sociedade, de que você tem que ser um vencedor
a qualquer custo, de que não podemos errar, e se errar os culpados devem
ser caçados, é o manifesto pão na mesa: sobrevivência ”. (PAULO, 2017)
A cooperação entre cérebros produz bens comuns: linguagens, serviços,
conhecimentos, informação, ciências, entre outros. Não são bens consumíveis,
apropriáveis, permutáveis, tangíveis, bens produzidos a partir da cooperação de
subjetividades são gratuitos, não pode ser apropriado porque compartilhado. Além
disso o consumo desse tipo de bem pode entrar na composição, no processo de
criação de um novo conhecimento. A cooperação produtiva do capitalismo industrial,
os trabalhadores sendo comandados pelo capital não dão conta de explicar a criação,
circulação e consumo de bens comuns, mas são utilizados a bel prazer pelas
empresas reduzirem os bens comuns à bens privados, impondo uma condição de
escassez a cooperação entre cérebros cuja natureza é da abundância.
As grandes empresas têm uma obsessão por industrializar, cristalizar modelos,
por isso método nenhum estabelecido, formatado, definido, sacramentado,
documentado, funciona. As pessoas (mônadas) tomam o conhecimento, o modificam
206
na sua execução, conforme os problemas com os quais se deparam, e não atualizam
o monólito metodológico.
“A cooperação entre os cérebros se opõe à cooperação produtiva de Marx e
Smith, da mesma maneira que se opõem abundância e escassez,
incomensurável e mensurável, fora de medida e medida. Se a economia é a
ciência da otimização dos recursos escassos, e se hoje a escassez não é
mais uma condição natural, mas um produto do direito, parece-nos
necessário lançar as bases de reflexão para pensar a riqueza a partir da
lógica da abundância própria aos bens comuns”. (LAZZARATO, 2006, p. 137)
Essa ideia da escassez e da abundância, do que pode ser avaliado e medido
e o que não pode, aproxima-se bastante da apreciação feita a partir da crítica à
avaliação na problematização da melhoria continua. Podemos entender como essa
melhoria pode se dar naturalmente pela cooperação entre cérebros, subjetividade, e
como ela pode se transformar em uma ferramenta de pressão e controle. As
comunidades, a exemplo da comunidade do software livre que estimula mais a
liberdade que a gratuidade, têm esse potencial de estimular um certo devir ativo dos
integrantes, um protagonismo, em contraposição a passividade e a dependência. O
manifesto ágil e seus princípios preconizam o tempo todo a colaboração entre
cérebros, sejam clientes ou equipes. Portanto as narrativas dos evangelizadores
focados em denunciar a tendência das pessoas a ocupar uma zona de conforto,
referindo-se muitas vezes aos desenvolvedores, leva-nos a entender que se trata de
um ambiente construído pela própria empresa, que mina a potência de criar de todos.
O relato de Tiago deixa claro que criar uma escassez artificial é benéfica,
expressando uma forma de trabalho que entra em discordância com o que temos
exposto:
“No final das contas é se as pessoas enxergam se vai ser melhor ou pior,
quanto incentivo o cara tem, imagina que está acomodado em uma zona de
conforto, não tem ameaças para fazê-lo andar. Nessa transformação ágil
207
trabalho com a ideia de criar crises, cria-se uma demanda, uma tensão de
fora, uma data fixa, um sendo de urgência! No final é um jogo de prazer e dor,
se a dor da mudança for maior não rola. O que eu faço é um mapeamento de
pessoas visionárias, Early Adopters, Early Majority e late, esses dois últimos
grupos ficam para trás, trabalho com os dois primeiros grupos, e não chamo
os outros, porque são os caras que já acreditam, os early majority ficam
preocupados e batem na porta para saber quando serão incluídos. Tem que
passar a ideia de escassez, de que não é para todos, é exclusivo, e aí você
cria o desejo de ingressar. Primeiro você cria um sucesso, com qualidade,
deixa aqueles que criam objeções para depois. Se você envolve e escala
prematuramente, aí esses grupos mais descrentes vão puxar para baixo. Se
a iniciativa top down entender esse fenômeno, entende como transformação
social, e entende como criar o movimento, nesse caso o top down faz sentido.
Diferente do linear para o exponencial, você com qualidade cria essência e
esses caras vão se espalhar pela organização. A maior parte das
transformações não são assim, estão trabalhando com teoria de mudança
organizacional defasadas. Não levam em consideração sistemas adaptativos,
intervenções sistêmicas para alavancar mudanças. ” (TIAGO, 2017)
Sobre a questão da zona de conforto Pedro sugere que a resistência das
pessoas tem a ver com má vontade, e que a empresa não tem responsabilidades com
relação ao ambiente que cria, e que a melhor saída é a coerção mesmo:
“Pergunta difícil, tem muita psicologia ai, tem uma frase famosa que diz “as
pessoas resistem a serem mudadas”, tem muita literatura sobre como realizar
mudanças, mas eu acho que o primeiro fator é você estar junto com as
pessoas lidando com o problema, e cada um tem um problema diferente,
quando você chega para ajudar um time, você não consegue usar uma
linguagem que todo mundo cumpre, como consultor você tem uma prática de
tentar estabelecer uma narrativa que faça sentido para o máximo de pessoas
possíveis, se você cria uma narrativa que faça sentido para o seu gestor
imediato ou para quem te paga e não faz sentido para o time, você recebe
mas não entrega, se você fizer uma narrativa para o time que não for aderente
para o cara que te paga, você entrega mas não recebe. Você pode criar uma
narrativa que metade do time aceita e a outra não .... É difícil estabelecer uma
narrativa concreta para todo mundo aderir, porque existem interesses
particulares. Tem gente que o interesse é não mudar, não quero sair da minha
zona de conforto e para mim funciona. Chego às 8, faço o que tenho que
fazer e vou embora, e agora você vem aqui me dizer que eu tenho que
208
colaborar para ajudar os outros com os problemas deles ?! Uma pessoa que
tem esse tipo de pensamento, não tem narrativa nenhuma que o traga para
o time, se ela estiver isolada, vai sentir medo, insegurança correndo o risco
de sair, talvez ela comece a tentar. É difícil dar uma resposta genérica, são
muitas situações. ” (PEDRO, 2017)
Mateus enxerga de uma forma diferente, e que se aproxima da ideia presente
na cooperação entre cérebros, afirma que quem deve sair da zona de conforto é a
empresa:
“Não tem muita aderência, porque o papel do método ágil é fazer com que a
empresa mude, fazer com que a empresa saia da zona de conforto. Pode
parecer feio, mas a empresa tem que entender o jeito ágil de trabalhar
daquela forma para então se apropriar do método e adaptar a sua realidade.
Se a empresa não estiver aberta para fazer a mudança, não vai aprender com
o método. ” (MATEUS, 2017)
Perscrutar a natureza da riqueza, reconhecer que não está fundada somente
no trabalho subordinado que produz capital, mas também na ação livre, que todo o
processo que cria essa nova riqueza abrange a atividade e a não-atividade, o tempo
vazio, o ócio, os vacúolos de silêncio e solidão dos quais falava Deleuze, que para
além da subjetivação é necessário promover uma desubjetivação, esquivar-se de
papéis pré-determinados e impostos.
Na atual fase do capitalismo, o trabalho produtivo continua a ser explorado,
mas é o agenciamento, a articulação da diferença com a repetição, que assumiu a
hegemonia, a criação e efetuação de mundos possíveis passam a ser alvo da
apropriação capitalista. De saída temos o problema da categoria trabalho ser sempre
uma atividade subordinada, e a indistinção no interior da atividade, entre criação e
repetição. A atividade livre mobiliza as potências criadoras incorporadas das mônadas,
ultrapassam amplamente a esfera da empresa, Lazzarato afirma que:
209
“A cooperação entre cérebros não é uma coordenação de atividades
especializadas; não remete, a priori, ao cognitariado ou aos trabalhadores
imateriais. Expressa a potência de agir de todos e de cada um: a mobilização
da inteligência (crença), e do desejo (vontade) pela atenção”. (LAZZARATO,
2006, p. 145)
A cooperação dos cérebros não se reduz a grandes ideias e gênios, mas é
sobretudo resultado de uma infinidade de agentes sociais, com pequenas ideias em
geral anônimas. Todos possuímos uma originalidade, uma genialidade singular,
podemos inventar, aperfeiçoar.
O capitalismo na sua fase atual, produz modos de vida e captura a proliferação
de mundos possíveis, destruindo a cooperação entre cérebros.
4.4 Análise da adesão das empresas aos métodos ágeis
Das respostas dos evangelizadores sobre a questão da rejeição e adesão aos
métodos ágeis, a resposta orbitava entre os dois polos sempre com algumas
justificativas, porém em nenhuma delas podemos encontrar uma terceira situação que
seria a adesão de fachada. Os agentes diante da impossibilidade de realizar seus
objetivos pelo excesso de controles, procedimentos, exigências, criam mecanismos
para se libertarem das injunções contraditórias, para se defenderem dos paradoxos,
da ansiedade e da frustração que isso gera, a resistência mais comum é:
A clivagem entre um eu organizacional, o que parece responder às exigências
da empresa, e um outro eu, o eu verdadeiro, aquele que se revela fora, nos
lugares de expressão íntimos ou privados. (GAULEJAC, 2015, p. 108)
Tiago fala dos efeitos colaterais da gestão que chama de “tradicional”,
deixando entender que o problema é falta de empirismo, associa a essa ideia
preconizada pelos métodos ágeis, uma ideia de gestão pragmática criada por ele
210
como uma narrativa para vender transformação ágil, não vê a autonomia como uma
coisa desejável, porque privilegia os direitos em função das responsabilidades. Sua
narrativa desconsidera a assimetria existente entre empresa e trabalhadores,
desconsidera a força de coerção e imposição de intensidade de trabalho da empresa
e não leva em consideração o processo de criação de conhecimento comum e
cooperação entre cérebros tratados no item anterior deste capítulo, cuja pedra angular
é justamente a autonomia:
“A maneira tradicional de gestão gera efeitos colaterais indesejáveis, são
mais construções teóricas do que empíricas. A questão é como se cria
conhecimento que gera a menor quantidade possível de efeitos colaterais.
Com essa ideia de gestão pragmática crio um discurso, uma narrativa menor
possível que consiga ter um conjunto de conceitos e ferramentas mínimas
para orientar na direção correta, para mudar a percepção dos gestores. Crio
histórias para eles enxergarem o que eu estou enxergando. O ágil encontrou
no Brasil um grupo com inclinações marxistas, e esse foi o motivo pelo qual
me afastei do movimento, virou muito dogmático pendendo para o lado dos
direitos dos trabalhadores. O ágil se tornou um caminho para a autonomia,
sendo que o ágil deveria ser uma forma de otimizar o todo, e não só uma
parte. Uma narrativa de muitos direitos e poucas responsabilidades. É
verdade que existem dinâmicas de poder tirânicas, isso chama a atenção.
Acho que o trabalho se bem gerido ameniza o conflito entre capital e trabalho,
senão você acaba despertando o pior das pessoas. Por exemplo acho tão
legal desenvolver softwares que faria de graça! A metáfora de como a gestão
funciona polariza demais, poderia ser mais equilibrado, de um lado a empresa
entende as suas necessidades, de outro você entrega valor, estou
aprendendo e sendo remunerado para isso. O ágil começou a gerar lugares
péssimos para se trabalhar, onde as pessoas performavam um terço do que
poderiam. Temos um problema econômico aqui, não é só cultural”. (TIAGO,
2017)
Para João a adesão ou rejeição ao processo está relacionada com um
conjunto de crenças que se adota, em momento algum leva em consideração o fato
de que a empresa pode querer manter o “status quo”, e que sofrimento, problemas é
o preço que se paga pela busca impetuosa de eficiência e rentabilidade, e que os
211
males citados têm mais a ver com a intensificação do trabalho do que com crenças
limitantes ou evolutivas, admite que o processo por ser uma máquina de gestão
empírica, expõe as fragilidades e deficiências, mas tal exposição passa pelo crivo da
gestão que por questões de sobrevivência as ignora peremptoriamente:
“Trata-se de crenças limitantes ou crenças evolutivas. Meta programas é
como a mente das pessoas está estruturada e é orientada. Uma
metaprograma é o “afastar-se de ou ir em direção à’, afastar-se de custos, de
sofrimento, de problemas, o discurso é focado no estado presente, ir em
direção à é o empreendedor, não quero saber do estado presente, quero ir
para lá. Em estado de depressão o presente, o futuro gera ansiedade. Muitas
empresas adotam o ágil porque querem se afastar do sofrimento, se métodos
ágeis é uma solução para “afastar-se de”, aí você não consegue a
transformação, o problema é que você não tem lideres “em direção à”, só vai
mudar de problema, vai dizer que não está funcionando, que está ruim, que
não tem resultado, você muda de problemas e continua a querer “afastar-se
de”. Todos os problemas virão à tona, porque o ágil os evidencia. O ágil
começa a crescer com as lean startups porque elas vão “em direção à”. Essa
estratégia de mudança organizacional vai transformar sua equipe, a sua
empresa, o seu negócio em pessoas incríveis, negócios incríveis. Aí você
pergunta o que é incrível no contexto dessa empresa: “90% dos clientes
elogiando, equipes entregando no prazo”, eles começam a falar de todos os
drives de valor do negócio dele! O que impede você de conquistar isso hoje?
Ele vai manifestar crenças limitantes. ” (JOÃO, 2017)
Para Mateus a adesão ou rejeição ao processo está relacionada com o
sentimento que a pessoa tem com relação ao processo de trabalho atual, e o que ela
espera em relação aos métodos ágeis. A questão é o quanto essa insatisfação é
ocultada por um “eu organizacional”, e de que forma a empresa impõe o processo, de
forma que a adesão pode ser superficial e a rejeição nunca ser explicitada. De forma
que uma adesão transparente não implica necessariamente em mudança do processo
de trabalho:
“Tem a ver com sentimento da pessoa pelo jeito atual dela trabalhar, o quanto
ele conhece os processos, o sentimento de quão é melhor, faz sentido para
212
o ambiente de trabalho, toma decisão baseado nisso. Acho que acaba sendo
como qualquer movimento social, quando defende um partido ou político
qualquer, faz essa reflexão, relaciona com seu jeito de ser, trabalhar, o quanto
você conhece, o quanto está satisfeito com a situação atual. É uma questão
social, aderimos à algum movimento baseado em nossas crenças e Mindset,
o quanto conhecemos do novo, o quanto estamos satisfeitos ou insatisfeitos
com o velho ou atual. ” (MATEUS, 2017)
Lucas reflete sobre as motivações intrínsecas das pessoas para aderir ou
rejeitar os métodos ágeis. Como as motivações são muito diversas, o caminho em sua
opinião passa pelo estabelecimento de um objetivo comum, porém esse objetivo é
definido pela empresa, a forma como a empresa se estrutura para atingir tal objetivo
não passa pela auto-organização. Os conflitos que se gera acaba por afetar a
motivação intrínseca de todos, levando não raramente a uma espiral de intensificação
do trabalho, trata-se de um processo de mudança que não é visto da mesma forma
pelas pessoas, em função das rígidas estruturas de poder existentes na empresa:
“Pessoas diferentes terão interesses diferentes na organização. Tem dois
elementos: porque aquele cara gosta ou não de métodos ágeis, muda de acordo
com o papel que ele tem na organização, o cliente gosta porque vai reduzir time-
to-market, o time gosta por causa da colaboração e autonomia, e por aí vai. Isso
está relacionado com a motivação intrínseca das pessoas, tem pessoas que se
valorizam e se motivam mais pela liberdade, outras pela ordem, outras pelo
status, tem uma série de motivadores intrínsecos que a gente poderia citar, as
pessoas que vão perder status vão resistir por esse motivo, as pessoas que
valorizam a ordem, e agora não vão ter muita previsibilidade, não vão receber
todos aqueles artefatos, vão resistir e perceber que estão perdendo o controle.
Aquele desenvolvedor que gosta de trabalhar sozinho, vai resistir à colaboração,
as pessoas resistem por motivos pessoais. Muitas vezes em um processo de
mudança como esse é importante trazer um objetivo comum, aquele objetivo que
une todo mundo, seja a sobrevivência da organização ou o crescimento da
organização, tem que ter uma missão que fala no coração de todas as pessoas
envolvidas no processo de mudança, que as faça olhar mais para as vantagens
que eles terão com aquela mudança e que isso tem que ser maior que as
preferências pessoais, a chance de sucesso será maior, as pessoas com
interesses muito conflitantes com a mudança, elas vão resistir até o fim, e não
vão continuar a fazer parte da equipe, para que a coisa flua.” (LUCAS, 2017)
213
Outros diante das contradições mais agudas, farão aquilo que julgam correto,
desconsiderando sumariamente as formalidades. Uma outra forma de evidenciar as
contradições, sem poder se contrapor a elas, é a greve do zelo, aplicando os
procedimentos até levar o sistema à exaustão e consequente paralisação. Um eu é o
do tipo dócil, que deseja ser bem visto, o outro procura manter sua sanidade,
capacidade de reflexão, resistir à alienação, e preserva o sentido das ações. O ideário
da qualidade e dos processos ágeis falam de um mundo edênico, mítico, onde não
existe o erro, a imperfeição, onde não existe o conflito, os interesses, um mundo da
conciliação dos opostos, das relações simétricas, conquista dessa forma consenso e
adesão. Entretanto a máscara não adere à realidade quotidiana, diante dos conflitos
e do choque de interesses e desejos advém a frustração, a ansiedade. A prescrição
passa a servir de guia para a ação, um modelo que poderia servir para melhorar as
condições de trabalho passa a ser utilizado como instrumento de pressão para
reforçar a produtividade e a rentabilidade.
Se há tanto em comum entre ideologia gerencialista e métodos ágeis caberia
indagar porque implantar métodos ágeis e manter a iniciativa em grandes empresas
é tão penoso.
Mateus destaca que o sucesso tem a ver com o início da jornada, a motivação
inicial da empresa para a adoção de métodos ágeis, determinando o resultado. Se a
empresa adota os métodos ágeis para aumentar a produtividade, eficiência,
rentabilidade, se a empresa enxerga os métodos ágeis como um conjunto de práticas
para intensificar o trabalho e responsabilizar as pessoas, em troca do seu
protagonismo. Entretanto salienta que na sua opinião a motivação deveria ser a
sobrevivência, e mais uma vez estamos na chave da escassez e não da abundância:
“Aprendi ao longo do tempo que a pergunta “o que é uma empresa aplicar o
ágil corretamente” não é a pergunta certa, e sim o que motivou a empresa a
ir para o ágil isso é decisivo, se você observar, boa parte dessas empresas
que estão tendo comportamento nocivo com ágil, o que aproxima ela do
mundo ágil, o que faz ela querer uma transformação ágil, foi a motivação
214
errada, foco em produtividade, queremos fazer mais na metade do tempo,
queremos conseguir mais cliente, o ágil está na moda. A razão que leva uma
empresa a adotar o ágil é decisiva para manter a iniciativa. A principal
motivação deveria ser sobrevivência, as melhores empresas por onde passei,
que aplicavam o ágil da melhor forma possível, se olhavam no espelho e
diziam, se não fizermos esse movimento não vamos sobreviver ao mercado,
nosso modelo está falido, os clientes não param de reclamar, os concorrentes
sempre saem na frente, só assim para encarar o ágil com seriedade e dar
sequência, levar a iniciativa adiante”. (MATEUS, 2017)
Tiago evidencia que os métodos ágeis não são introduzidos como uma
questão estratégica pelas empresas e sim taticamente, como uma questão
operacional, e, portanto, de pouca adesão à cultura da empresa. Destaca a
necessidade da velocidade, entrando em contradição com o que os métodos ágeis
defendem em termos de ritmo sustentável, respeito a capacidade produtiva. Deixa
claro a necessidade de adaptação em função da visão dos executivos, salienta o
despreparo da comunidade ágil, afinal a “estratégia” das empresas talvez seja mesmo
de manter a aplicação no nível operacional:
“Tem uma minoria que entende o ágil como estratégico, faz parte do core
business, da cultura, tem empresas que entendem como diferencial tático, é
legal, mas não está no DNA, e aqui está a maioria hoje. Agora tem as
megacorporações entrando, estão apanhando, sentindo a dor de chegar
tarde com as ofertas, a velocidade virou gargalo. Existem várias formas de
implantar o ágil, top down é uma delas, mas o top down como apoio, para
criar um ambiente propício, dar apoio, não pode ser na base com comando-
controle, mas é o que acontece. Trata-se de transformação de cultura, toda
organização tem uma capacidade de adaptação, a maioria vende que mudou,
mas não mudou, é um verniz. A gestão não sabe gerir transformação cultural,
isso custa caro! Hoje os executivos dos bancos estão preocupados com as
Fintechs, os boards das empresas em 2017 estão começando a se preocupar
com a avalanche de disrupção, a velocidade é estratégica. A comunidade tem
uma resposta que se limita a questão tática, e não consegue falar a língua
dos executivos. Você não pode esperar que os executivos aprendam sobre
ágil, que eles se posicionem de forma diferente! (TIAGO, 2017)
215
Pedro observa que a adesão aos métodos ágeis é baixa, porque as empresas
insistem na adoção de melhores práticas, sem adaptação dos métodos à cultura da
empresa, recusando a criar um repertório de práticas. Mas as empresas buscando
rentabilidade e eficiência visam reduzir custos, pois a adaptação de processos de
trabalho requer alto investimento, dada a complexidade do contexto social, econômico
e cultural, mais do que uma mudança de processo, o conceito do que significa trabalho
e valor necessita de uma revisão profunda, critica que o capitalismo não parece
disposto a empreender:
“Acho que é pequena, já existe uma consciência de que os métodos ágeis
são o caminho para melhorar os ambientes da empresa, mas ainda não existe
uma aderência por causa dos contextos serem tão diversos, as empresas têm
uma cultura de comprar as coisas prontas e não de construir, não criam um
ambiente próprio de práticas, tenta puxar do mercado, porque esse foi
sempre o jeito que funcionou em outras industrias, melhores práticas que são
incorporadas, copiando. Quando falamos da área de software, por ser
trabalho do conhecimento e da era da informação, são complexos, não são
puramente complicados, e nesse caso você não consegue simplesmente
copiar as melhores práticas, você tem que usar o repertório de práticas para
construir aquilo que faz sentido para a empresa. O ambiente de negócios e
tecnológico está cada vez mais complexo, hoje você tem a mobilidade, a
internet de velocidade, plataformas de software bem sofisticadas, a
complexidade e a quantidade de problemas que se consegue resolver é maior,
um terreno mais complexo exige mais para lidar com a complexidade. Você
tem culturas diferentes dentro das empresas, as atividades do trabalho do
conhecimento no desenvolvimento são essencialmente sociais e humanas,
exige saber lidar com a interação entre as pessoas, isso contribui para a
complexidade. Existe também um choque de gerações, empresas que
mudam rapidamente tornam-se caóticas, você tem um mercado ativo,
acelerado e dinâmico. ” (PEDRO, 2017)
Lucas observa que a gestão de mudança requerida quando se introduz
métodos ágeis na empresa não deve ser colocada somente a cargo de um agile coach,
que zela pela adoção das práticas. Se não houver uma mudança cultural, os métodos
ágeis são descontinuados. O que acontece é que os métodos ágeis sofrem uma
216
mutilação em função das práticas gerencialistas, a gestão não parece incomodada
como a contradição e o desconforto gerados pelas duas práticas e procuram tirar
proveito disso para melhorar o desempenho da empresa buscando aumento de
eficiência e intensificação do trabalho, lembrando da metáfora do elástico proposta
por Zarifian, o trajeto parece claro: adesão voluntária, coerção e demissão.
“Acredito que aí entramos numa questão de gestão de mudança, qualquer
coisa, seja uma transição para a agilidade, seja a adoção de um novo
framework de trabalho, vai precisar de um processo de gestão de mudança,
para sair de onde está e ir para um novo modelo, é o famoso AS IS - TO BE.
Isso é muitas vezes subestimado, acaba acontecendo na figura de um agile
coach, trabalhando no quotidiano, quando ele vai embora as coisas voltam a
acontecer como antigamente. Temos um músculo, uma memória muscular de
hábitos, e voltamos a fazer as coisas do jeito que sempre fizemos. Gosto de
ver a mudança de uma forma sistêmica, observando como lidamos com a
mudança do ponto de vista do indivíduo, do ponto de vista do relacionamento,
para virilizar um processo de mudança, do ponto de vista do ambiente e do
sistema como um todo. Se não conseguimos trabalhar a mudança em todos
esses aspectos, ela não se sustenta, e provável que voltemos a fazer as
coisas como antes. Algumas pessoas serão céticas até o final, e não vão
adotar a nova forma de trabalho, temos que ter coragem de transferir essas
pessoas que não se adequam. ” (LUCAS, 2017)
Pedro afirma que o caminho para adoção dos métodos ágeis está na
adequação das práticas e valores ágeis aos objetivos da empresa. A despeito de sua
observação, nos últimos anos parece que as empresas encontraram uma boa razão
para adotar um novo processo de trabalho, a intensificação do trabalho, talvez as
pessoas não se envolvam com a resolução de problemas, porque a empresa controla
demasiadamente a forma como as pessoas se engajam e criam conhecimento:
“Porque não gera valor para ela, se você quer ser ágil porque acha que é
legal, ou porque é moda, tendência, se o objetivo está desconectado dos
objetivos reais da empresa, a empresa não vai topar, a empresa só muda se
aquilo resolver problemas concretos dela. O ágil pelo ágil não te leva a lugar
nenhum, e o que as empresas percebem é que adotaram ágil, mas não
217
resolveu o problema que elas tinham, [...]. Você pode dizer que as pessoas
não fizeram ágil direito e por isso a empresa não soube implementar, e não
obteve os resultados que esperava. Meu contra-argumento para isso é, talvez
as pessoas não tenham usado ágil direito, porque elas estavam tentando ser
ágeis e não tentando resolver problemas. Nesse caso haverá um
descompasso entre o que o ágil pode oferecer e aquilo que a empresa
necessita. O que você precisa alinhar constantemente é o que a empresa
precisa com o que o ágil pode oferecer. ” (PEDRO, 2017)
João relata a dificuldade de adoção dos métodos ágeis quando esta é
conduzida por gestores despreparados, como se essa condução não tivesse uma
anuência estratégica da alta gestão, ele parece desejar uma produção no sentido
colocado por Lazzarato, da coordenação de cérebros, frisando a importância da
incerteza, da experimentação, da aprendizagem, da colaboração, da autonomia, de
forma que a produção de conhecimento ganhe outra dimensão dentro da empresa e
depois fora dela, mas tudo isso pode ser facilmente trocado pelo controle exercido
pela gestão:
“Você dá a faca e o queijo na mão dos gestores fazerem o comando-controle,
todas as práticas são: Review, planning, daily, monitoramento de
impedimentos, riscos, a inspeção monitora continuamente, mas aqui é
controle que está na mão da equipe. Adaptação é planejamento,
monitoramento, controle constante, se você entrega isso na mão de gestores
malévolos, eles transformam isso em comando-controle. A inspeção e
adaptação é transformada em comando-controle, transforma a
experimentação e a aprendizagem, a inspeção significa experimento
contínuo, e você se adapta porque aprende gestão empírica! Transforma
experimentação e aprendizagem em determinismo, o ápice disso é quando
mandam fazer o “Manual de processo ágeis”, IBM implantando ágil é tão
natural quanto TANG de melancia. Não há transparência radical, a gestão à
vista é deturpada, as ferramentas digitais trazem acomodação, e as pessoas
param de fazer gestão à vista, as ferramentas digitais ocultam a realidade,
não promove senso de urgência. A adoção massiva de ferramenta de apoio
à gestão, fazem com que algumas empresas matem os radiadores de
informação, gestão de pensamento e gestão visual. Outra coisa, não há mais
nada para melhorar, as equipes voltam a se focar em eficiência e se
esquecem da eficácia, as reuniões diárias já não servem para nada, a
218
retrospectiva deixa de ser feita, aí você abandona os testes. O que aconteceu?
O processo ficou determinístico. Por fim a pressão por resultados, coloca o
foco na eficiência. Os caras não querem alta performance, querem
produtividade, encher as pessoas de coisas! 100% de ocupação. As
incapacidades gerenciais, dos gestores tradicionais diante desse cenário,
para não perder o cargo, a posição, o status, ele começa a fazer de tudo para
dar errado, começa a gerar conflito de interesses, aqui o príncipe do
Maquiavel vai bem, os caras sabotam o processo para não perder o poder, o
cara tem um discurso de que gostou, acredita na proposta, vira para o lado e
pega o chicote e pronto! ”. (JOÂO, 2017)
Mateus reconhece a adulteração sofrida pelos métodos ágeis ao serem
introduzidos nas empresas, a necessidade de adaptação de baixo custo, deixando
claro que a auto-organização não recebe a atenção que deveria, e que as evidências
de fragilidades são sumariamente descartadas:
“Ele sofre mudanças para se adequar ao mundo real daquelas empresas,
tentam fazer um de-para do jeito que o ágil trabalha para o jeito como a
organização trabalha, como o Mindset da organização é mais forte, acaba
fazendo as alterações no método, a parte da auto-organização é uma que
sofre bastante mudança, a questão de entrega contínua para acelerar
feedback é outra que sofre bastante mudança, se você introduz o método em
uma organização que é difícil coletar feedback, eles vão alterar o método para
não ter feedback tão rápido, porque dói na organização, essa rapidez de
feedback, a empresa, os processos são complexos, a cultura da empresa é
sempre mais forte que o processo, ao invés de consultar o cliente ao final de
cada time-box, vamos consultar o cliente a cada dois meses. Uma das
questões que é bem aceita, que tem um pacto rápido, é trabalhar com uma
lista de prioridades, as pessoas veem valor no backlog, quando há resistência
mais técnica que da gestão...” (MATEUS, 2017)
Mais uma vez João abusa do ferramental da PNL para explicar aquele que
seria na sua visão o maior empecilho para adoção de métodos ágeis, as crenças
limitantes associadas com problemas comportamentais, como se toda problemática
social, econômica e política se reduzisse a problemas de comunicação e
comportamentais, os problemas emocionais devem ser resolvidos por cada um, medo,
219
insegurança, ansiedade, como se tais problemas não fossem suscitados pelo
ambiente de trabalho:
“Crenças limitantes, associadas ao status quo comportamental, assim
aprendi na universidade, assim trabalho a anos, assim é o mundo. CHA -
conhecimento, habilidade e atitude, conhecimento as pessoas adquirem,
crenças e valores são mais inconscientes, o conhecimento é consciente,
crenças e valores podem ser conscientes e inconscientes. Crenças e valores
conscientes vão influenciar a formação de crenças e valores inconscientes.
Anos de prática fazendo do mesmo jeito, comando e controle, ganhar um
salário no final do mês, pagar as contas. Isso faz com que as regras do jogo
mudem, e mexem com o estado emocional. Por mais que você dê
conhecimento e o cara tenha habilidade para entender, praticar e executar a
atitude não aparece, tem o CH, mas não tem atitude, o estado emocional tem
a ver com isso, medo, apreensão, ansiedade, insegurança, faz com que o
inconsciente diga “isso é perigoso, não vá para lá”. Só consegue investir mais
se consegue mexer nas crenças e valores que origina estes estados
emocionais. O jeito mais efetivo de mexer com crenças e valores é mexer
com a identidade da pessoa, ou mais acima, no propósito, que está além da
produtividade, da eficiência, da eficácia, pastores fazem isso. A linguagem é
hipnótica, para fazer com que as pessoas se convertam. Melhor é fisgar as
pessoas, você dá o argumento alimentando-as e deixe-as decidir você é livre
para ser feliz ou infeliz, para ganhar dinheiro ou não, para fazer ágil ou não.
As pessoas que fazem a mudança na empresa estão mais preparadas para
trabalhar com processos e ferramentas do que com pessoas, você não muda
cultura fazendo cerimônias, artefatos e desempenhando papéis. ” (JOÃO,
2017)
Pedro insiste na tentativa de melhorar a organização sem rever o conceito de
trabalho e valor, sem levar em consideração as motivações que estão na base do
capitalismo atual, é sempre uma questão de adaptação, permanecendo nas contradições
geradas pelo confronto entre capital e trabalho, as empresas têm suas especificidades,
mas não fogem das determinações impostas pelo capital sobre o trabalho, conviver com
os distúrbios gerados pelas mudanças, que diga-se de passagem tem sua origem mais
fora do que dentro da empresa, parece ser o cotidiano da maioria dos gestores que
sentem-se muito à vontade nesse contexto, e o utilizam a seu favor:
220
“Se você já decidiu que quer ser ágil, você tomou a decisão do que quer ser
no futuro, independente do que a sua empresa precisa, a sua aposta é de
que se você for daquele jeito no futuro, tudo que a sua empresa precisa estará
resolvido, só que não é bem assim, como sua empresa vive em um contexto
muito específico e num cenário muito particular, ela tem necessidades muito
específicas de processo produtivo, se você aplicar o modelo do vamos deixar
de ser o que somos e vamos passar a ser outra coisa, a chance é de você
criar um distúrbio muito grande, porque o que você está pensando é que a
empresa tem muitos problemas e você quer ser ágil por isso, mas você não
está adequando, olhando o que empresa tem de bom, as coisas que
funcionam bem, que você está deixando de lado para ser ágil, e você não
está olhando quais são as coisas ruins do ágil que podem ser nocivas para o
contexto que a sua empresa vive. O empecilho é qualquer coisa que se
interponha no caminho, você pode culpar a cultura da empresa, a hierarquia,
o chefe que não entende, você tenta criar um mapa cognitivo que não se
encaixa no seu terreno, você vai tentar fazer aderir jogando coisas boas e
ruins fora, nem sempre a transformação ágil é a melhor para o seu contexto.
Agora se o objetivo final é ter um ambiente melhor, mais produtivo, mais
motivado, O empecilho pode ser o fato de não querer lidar com as questões
que você precisa lidar. Você tem que olhar com análise crítica para o ambiente,
descobrir os problemas, resolver um a um, e aos poucos ir na direção que
você quer. O que você quer tem que ser uma visão de baixa resolução, um
ideal que você persegue, senão você amarra o caminho todo. ” (PEDRO,
2017)
221
Considerações Finais
A presente pesquisa nasceu de uma inquietação em compreender as
contradições e conflitos que emergem da tentativa de estabelecimento de um novo
processo de trabalho, que por intermédio de suas práticas e valores preconizam
mudança cultural e organizacional radicais na empresa, caracterizado por uma
abordagem mais democrática, ritmos de trabalho sustentáveis, por exercício de
liberdade e autonomia, não obstante, encontra resistências em um ambiente
corporativo no qual vigora uma gestão gerencialista que de forma prescritiva busca,
por níveis cada vez maiores de eficiência e eficácia assentadas em uma racionalidade
neoliberal, promover uma intensificação do trabalho sem precedentes.
Tal embate, entre propostas de trabalho aparentemente dispares, se dá em
um território comum, qual seja, o da sociedade informacional e de controle, o confronto,
em movimento continuo de assimilações, adaptações e rejeições, favorece a
produção de subjetividades requeridas pelo atual contexto histórico neoliberal. A
pesquisa procurou elucidar também como as mediações operam em conjunto com a
ideia de adaptação dos métodos ágeis, para minimizar conflitos, privilegiar interesses
organizacionais que nos permite entrever as razões pelas quais um movimento que
na sua origem preconiza uma humanização do processo de trabalho, transfigura suas
práticas e valores em dispositivos de intensificação do trabalho
Na visão dos autores utilizados para balizar teoricamente a pesquisa, a
nova configuração laboral permite estabelecer resistências aos mecanismos de
opressão, ou linhas de fuga, valorizando assim a potência inventiva, possibilitando
uma afirmação do desejo a partir da singularidade dos sujeitos, reconfigurando um
modo de trabalhar que conduza os indivíduos para além da ideologia gerencialistas e
dos ditames do capital. A pesquisa ousou traçar em linhas gerais como se dá a
construção de um novo modelo produtivo a partir da percepção de profissionais
designados como evangelizadores, responsáveis por anunciar as “boas novas”,
222
entendidas por esses atores como a melhor forma de pensar e fazer software, atuando
a partir de comunidades que se articulam em torno de um novo paradigma conhecido
no mercado de tecnologia da informação como “processo ágil”, largamente
influenciado pelo espírito pós-fordista. Essa pesquisa indica uma abertura para
aprofundamento da compreensão dos mecanismos de controles e resistências a partir
da ótica dos evangelizados.
O argumento reflexivo que balizou a construção da pesquisa é o de que
atualmente a gestão gerencialista por meio de suas peculiaridades ideológicas, reitera
modos de viver e trabalhar. Para tanto foi necessário dissecar seu modus operandi e
entender como ocorre a incorporação de outros modos de trabalhar e subjetivar que
emergem no universo laboral.
Estabelecer um debate sobre a noção de sociedade de controle no contexto
neoliberal, implica, em diversos sentidos, uma análise do processo de trabalho no
intuito de entender a formação de laços sociais, permeados sempre por linhas de
modos de funcionamento do poder que operam em esfera microssociais e
macrossociais.
A análise das narrativas dos evangelizadores entrevistados à luz do
referencial teórico proposto parece revelar uma aporia no que diz respeito a uma
possível mudança da forma como a gestão é concebida atualmente. O diagnóstico
coloca em relevo indícios causados pela ideologia gerencialista: dificuldade de
encontrar sentido na atividade laboral, comunicação paradoxal, transformação do
humano em recurso, pressão por resultados sem limites.
A empresa como uma instituição social deveria primordialmente zelar pelo
laço social, considerando o humano não como um recurso como tantos outros
destinados a ampliar a rentabilidade, e cumprir tão somente uma finalidade econômica,
relegando o bem-estar coletivo e a vida psíquica a um plano de esquecimento da
dimensão humana, colocando em risco a própria existência social. A empresa pode
ser considerada um conjunto de processos que expressam um fato social total, com
223
reflexões e implicações em diversas esferas da vida e da sociedade, sejam elas
econômicas, políticas, ideológicas ou afetivas, tecendo um pano de fundo comum a
partir do qual subjetividades serão concebidas. Atualmente a empresa ocupa uma
posição de centralidade e tornou-se locus privilegiado de reprodução da ideologia
neoliberal. A gestão nesse contexto distanciou-se de seu objetivo de conferir sentido
às atividades laborais, tornou-se prescritiva na sua essência, aderiu a toda espécie de
avaliação quantitativa, recusando-se a entender o indivíduo mais do que recurso ou
custo.
É possível entender pelas narrativas dos evangelizadores que o propósito
dos métodos ágeis na sua essência consiste em valorizar o humano e sua capacidade
de reflexão e deliberação, de pensar o mundo e se articular com outros para produzir
conhecimento, estabelecendo importantes vínculos de confiança, reafirmando a
iniciativa para além da medida de resultados. Entretanto a convergência e o confronto
entre a ideologia gerencialista e o movimento ágil asseveram as contradições já
existentes nas prescrições gerencialistas, somente amenizadas por mediações e
adaptações de diversas ordens sem as quais inviabilizaria a convivência pacifica entre
indivíduos, em tal grau necessária, para a promoção dos objetivos e interesses
corporativos.
A noção de gestão foi inflacionada se disseminou por todos os domínios da
sociedade e da vida, deita suas raízes na própria cultura forjando uma interpretação
do mundo, guiando as ações dos sujeitos a partir de uma escala axiológica própria. A
vida torna-se meta absoluta do capital, transmutando-se ela mesma em capital.
Estrutura ideológica que funciona como uma teia, promovendo uma espécie de
bricolagem com influencias diversas, descartando o que contradiz e denega sua
essência, e se apropriando daquilo que fortalece sua iniciativa, que responsabiliza,
intensifica o trabalho, reduz custos, amplia o controle. Realiza essa operação de forma
a dissimular a dominação, sem imposição, por intermédio de um consentimento.
Dispositivos técnicos e sofisticados são utilizados para realizar essa acomodação de
224
visões dispares.
O paradigma da objetividade exclui tudo o que é subjetivo, os métodos
ágeis em muitos momentos salientam a importância do subjetivo, a saída é permitir
que as pessoas exponham a sua subjetividade, mas sem efetividades alguma, ou seja,
os instrumentos dotados da almejada objetividade se sobrepõem sobre as expressões
subjetivas. O paradigma do funcionalismo reforça o uso dos papéis sugeridos pelos
métodos ágeis, e qualquer ajuste ou adequação desses papéis pelas equipes ágeis
não será bem visto, o que leva uma estrutura rígida e burocrática a conviver com a
fluidez e a flexibilidade, matizando as iniciativas de autonomia e liberdade que
eventualmente surjam. O paradigma do utilitarismo, uma franca referência à utilidade
e otimização, transforma a empresa em uma máquina de produção. Os sujeitos
constroem uma experiência de si, sua subjetividade, a partir de um conjunto de noções
consideradas como verdade, em um dado momento histórico da sociedade onde vive,
a busca incessante por maior eficiência e eficácia do gerencialismo exacerba essas
noções.
Se a empresa é o lócus privilegiado para a realização de si mesmo, isso
somente é possível com a transformação da autonomia em autocontrole, a
disponibilidade e o engajamento total torna-se factível por intermédio das tecnologias
de informação e comunicação, dar conta de si mesmo passa a ser uma exigência
existencial, fixar objetivos, avaliar o desempenho e tornar seu tempo rentável. Se o
indivíduo mantém o foco em si mesmo, mal se dá conta do que acontece no âmbito
da empresa, maximizando os efeitos ideológicos do gerencialismo. Importante
salientar que apesar disso as práticas de gestão geram desconforto, desilusões e
resistências, em um primeiro momento quando os métodos ágeis são introduzidos nas
empresas, as pessoas encontram muito sentido na nova forma de trabalhar, mas aos
poucos o gerencialismo vai conduzindo uma adaptação de forma que a nova forma
de trabalho esteja restrita aos seus domínios ideológicos, os indivíduos percebem as
contradições, entretanto não conseguem se livrar do jugo da culpa e do mérito.
225
Essa situação suscita vários dilemas que derivam de relações ambíguas,
paradoxos mediados por formas ideológicas, forçando os sujeitos a escolher pontos
de vista, tomar decisões quotidianamente, fonte de ansiedade constante e sofrimento,
porque toda a responsabilidade por essas escolhas cabe a ele, ponderando sobre
uma realidade da organização que se lhe impõe e sua própria subjetividade,
verdadeiras injunções paradoxais, tem que optar por trabalho em equipe ou
desempenho individual, ritmo sustentável ou velocidade crescente, autonomia ou
responsabilização total por resultados, tecer uma realidade compartilhada ou
estabelecer controle sobre todos, engajar-se ou vigiar. Pela própria narrativa dos
evangelizadores percebemos a nota de ambiguidade e do paradoxo, como foi
necessário flexibilizar o discurso para que a cultura da empresa, imersa no discurso
gerencialista pudesse aceitar a introdução dos métodos ágeis e também se adaptar
às injunções paradoxais.
Culturalmente podemos dizer que a mídia e os processos educacionais em
geral prescrevem maneiras de ser no trabalho que só reforçam situação, usando a
figura dos Gurus, a inteligência emocional, os achados da neurologia, o coaching, as
técnicas de aprendizado, o empreendedorismo, teorias e técnicas de gestão das mais
diversas, formam um caldo cultural pavimentam o caminho do sucesso rápido, líquido
e certo. Verdadeiros balizadores dos jogos de verdade contemporâneos legitimam e
reproduzem novas formas de pensar, sentir, agir. Prescrições que invadem a
subjetividade dos indivíduos com vistas a torná-los aptos, adaptados e motivados para
ocuparem o seu espaço no mundo organizacional, responsabilizando-se e
rentabilizando-se cada vez mais como capital, enquanto a organização assume uma
posição de neutralidade.
O paradigma gestionário serve como orientação para um mundo que deve
ser sempre mais produtivo e rentável. Cada um se torna o empreendedor de sua
própria vida. A família se transforma em pequena empresa, encarregada de produzir
indivíduos autônomos, com bom desempenho e empregáveis. A educação se coloca
226
a serviço da economia para satisfazer as necessidades do mercado de emprego.
A sensação de escassez de tempo, também reproduzida pela mídia, produz
uma sensação de dívida, a sensação de que não é possível resolver todas as
demandas, ajuda a construir uma percepção de futuro no qual o indivíduo se vê
engolfado numa armadilha que ele mesmo ajudou a construir, um sentimento de culpa
inelutável, por não ter dado tudo de si.
Uma abordagem que se configura como possibilidade de escapar das
engrenagens do paradoxo, seria proceder a uma meta-análise, sair do contexto no
qual pensamos o problema e não procurar a solução nos elementos que são a sua
causa, é necessário compreender em profundidade causas e efeitos, pensar fora do
âmbito da gestão como ela se configura. É preciso fornecer aos indivíduos meios de
conectar o que acontece nas relações de trabalho e sua subjetividade, não é possível
encontrar uma solução para um problema naquilo que o produz, parece-me o caminho
trilhado pelos evangelizadores quando insistem na ideia de adaptação.
Quando a atividade faz sentido para o sujeito se produz a verdadeira
adesão, e ele colocará todas as capacidades reflexivas e criativas em movimento, a
discussão coletiva, o confronto dos pontos de vista, promovidos pelos métodos ágeis,
permitem dar novamente sentido à ação, avaliar sua pertinência, regular o mundo
ameaçado pelo caos. Entretanto os sujeitos são colocados a todo momento diante de
um paradoxo que os devora, transmutação realizada pela máquina gerencialista, a
adesão em alguns momentos consentida em outros momentos imposta, transforma
os indivíduos em protagonistas de sua própria dominação, ficam confinados na
armadilha do próprio desejo de poder. Esse processo permite extrair a energia
psíquica transformada em força de trabalho a serviço da rentabilização. É preciso
avaliar constantemente a fim de melhorar continuamente, intensificar as atividades a
fim de que se faça cada vez mais rápido, combatendo o desperdício e reduzindo
custos de forma a se utilizar cada vez menos meios. Sob esse ponto de vista os
métodos ágeis são bem aceitos pelo poder gerencialista.
227
A sucessão de crises recentes do capitalismo fragiliza a construção da
principal figura subjetiva sobre a qual se estabeleceu os mecanismos mais atuais de
exploração, o capital humano, o empreendedorismo de si, a gestão de si, não foi capaz
de articular como outrora, o mundo da produção e o universo subjetivo, as promessas
de emancipação não se cumpriram, embora sempre surjam formas libertárias de
trabalhar que são de alguma forma axiomatizadas, a exemplo dos métodos ágeis.
Todos os custos e riscos recaem sobre os indivíduos, em uma configuração política e
econômica neoliberal, tanto o Estado quanto a empresa se eximem de arcar tais riscos
e custos. A imposição da dívida como liame entre o sujeito e a sobrevivência, não
permite entrever outras possibilidades para além dos limites estabelecidos pelo capital,
que não consegue estabelecer um lastro real e concreto para as narrativas de
liberdade, autonomia, inovação e criatividade.
Deleuze sugeriu por inúmeras imagens a passagem da sociedade
disciplinar para a sociedade de controle, contudo uma figura sobressai por seu poder
imagético, a da estrada e sua presumível liberdade para transitar, desde que
permaneça na estrada e obedeça às sinalizações. Em uma sociedade ancorada na
inovação, as estradas proliferam, tornando indistinguíveis as fronteiras entre liberdade
e controle. O sujeito neoliberal percorre a estrada, ciente da responsabilidade que tem
sobre si e das regras que deve obedecer, um ser ambíguo, não se dá conta de que a
mesma matéria da qual são produzidas suas asas, também compõem seus grilhões.
Apesar de todo entusiasmo pela conquista de uma autonomia plena, nunca fomos tão
cativos.
229
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233
Anexos
A - Roteiro de perguntas para os evangelizadores e evangelizados
Identificação do Entrevistado
Nome
Idade
Formação
Função
Empresa
Tempo de trabalho na área de TI
Tempo de trabalho com métodos ágeis
Perguntas da Entrevista
1 - Como você aderiu ao processo ágil?
2 - Na sua opinião no que consiste o processo ágil?
3 - Na sua opinião há algo de novo nessa proposta?
4 - Na sua opinião o que mudou no processo desde quando chegou no Brasil?
5 - Na sua opinião qual o grau de aderência desse processo à realidade da empresa?
6 - Qual sua contribuição para o movimento ágil?
7 - Na sua opinião porque algumas empresas não conseguem manter a iniciativa ágil ao
longo do tempo?
8 - Na sua opinião o processo ágil aproxima o desenvolvimento de software de uma
abordagem artesanal?
9 - Na sua opinião qual o maior empecilho para utilização do processo?
10 - Na sua opinião qual o papel do agile coach nas empresas?
11 - Na sua opinião o que leva as pessoas a aderir ou rejeitar o processo?
12 - Qual a relação entre empreendedorismo, inovação e processos ágeis?
234
13 - Na sua opinião qual o impacto dos ciclos curtos de trabalho ou time-box sobre as
pessoas?
14 - Na sua opinião qual o impacto do regime de visibilidade (gestão visual) proposto pelos
métodos ágeis sobre as pessoas?
15 - Na sua opinião qual o impacto da melhoria continua (inspeção, feedback, adaptação)
sobre as pessoas?
16 - Como você vê o modelo de liderança empregado nas empresas hoje e a ideia de
autogerenciamento?
17 - Que mudanças esse processo sofre quando implantados em grandes empresas?
18 - Na sua opinião existem restrições para a proposta de liberdade e autonomia ensejada
pelo processo?