As Convenções de Desenvolvimento No Governo

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Revista de Economia Política 31 (1), 2011 31 As convenções de desenvolvimento no governo Lula: um ensaio de economia política FABIO S. ERBER* Development conventions in Lula’s mandates: an essay on political economy. This article analyses the different development proposals put forward during the two Lula Presidential mandates. It is argued that such proposals are structured as “development conventions”, which involve different priorities and different solu‑ tions to the problem of structural transformation. Their analytical frame is also different as are the interest groups which uphold them. Therefore their epistemology must be placed in the political economy context. It is argued that, notwithstanding the weight gained by a “developmental” convention over the second mandate, a “stability” convention is still hegemonic and commands macroeconomic policies. Keywords: political economy; economic development; lula government. JEL Classification: 010; 011; 020; 054. INTRODUÇÃO O objetivo deste ensaio é discutir as concepções de desenvolvimento que se encontram no Brasil contemporâneo. Parte do conhecido dito de Keynes de que, por detrás dos “homens práticos”, estão as ideias de economistas, fre‑ quentemente mortos há muito tempo. Ou seja, a teoria econômica é importan‑ Revista de Economia Política, vol 31, nº 1 (121), pp 31-55, janeiro-março/2011 * Professor do Instituto de Economia da UFRJ. E‑mail: [email protected]. Uma primeira versão deste artigo foi apresentada no 5 o Fórum de Economia da FGV‑SP em setembro de 2008 (Erber, 2009). Em outubro de 2009, o artigo foi substancialmente revisto para o IPEA, no âmbito de um Convênio CEPAL/IPEA. A presente versão introduz outras modificações. Agradeço os comentários recebidos no Fórum, notadamente, de Brasílio Sallum Jr., dos técnicos do IPEA, especialmente de André Modenesi, e de Luiz Carlos Bresser‑Pereira. O artigo faz parte de uma pesquisa sobre a economia política e a epistemologia da teoria do desenvolvimento, na qual o diálogo com Fabio Sá Earp, Luiz Carlos Prado, Ricardo Bielschowsky e os alunos da pós‑graduação em economia do IE são de fundamental importân‑ cia. No entanto, as opiniões expressas pelo autor são de sua inteira responsabilidade. Submetido: No‑ vem0bro 2009; Aprovado: Dezembro De 2009.

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Desenvolvimentismo no governo Lula

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  • Revista de Economia Poltica 31 (1), 2011 31

    as convenes de desenvolvimento no governo lula: um ensaio de economia poltica

    FaBio s. eRBeR*

    Development conventions in Lulas mandates: an essay on political economy. This article analyses the different development proposals put forward during the two Lula Presidential mandates. It is argued that such proposals are structured as development conventions, which involve different priorities and different solutions to the problem of structural transformation. Their analytical frame is also different as are the interest groups which uphold them. Therefore their epistemology must be placed in the political economy context. It is argued that, notwithstanding the weight gained by a developmental convention over the second mandate, a stability convention is still hegemonic and commands macroeconomic policies.

    Keywords: political economy; economic development; lula government.JEL Classification: 010; 011; 020; 054.

    INTRODUO

    O objetivo deste ensaio discutir as concepes de desenvolvimento que se encontram no Brasil contemporneo. Parte do conhecido dito de Keynes de que, por detrs dos homens prticos, esto as ideias de economistas, frequentemente mortos h muito tempo. Ou seja, a teoria econmica importan

    Revista de Economia Poltica, vol 31, n 1 (121), pp 31-55, janeiro-maro/2011

    * Professor do Instituto de Economia da UFRJ. Email: [email protected]. Uma primeira verso deste artigo foi apresentada no 5o Frum de Economia da FGVSP em setembro de 2008 (Erber, 2009). Em outubro de 2009, o artigo foi substancialmente revisto para o IPEA, no mbito de um Convnio CEPAL/IPEA. A presente verso introduz outras modificaes. Agradeo os comentrios recebidos no Frum, notadamente, de Braslio Sallum Jr., dos tcnicos do IPEA, especialmente de Andr Modenesi, e de Luiz Carlos BresserPereira. O artigo faz parte de uma pesquisa sobre a economia poltica e a epistemologia da teoria do desenvolvimento, na qual o dilogo com Fabio S Earp, Luiz Carlos Prado, Ricardo Bielschowsky e os alunos da psgraduao em economia do IE so de fundamental importncia. No entanto, as opinies expressas pelo autor so de sua inteira responsabilidade. Submetido: Novem0bro 2009; Aprovado: Dezembro De 2009.

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    te para a poltica econmica. No entanto, como advertia Schumpeter, h quase um sculo, devemos nos precaver contra o erro intelectualista as ideias dos economistas tm razes nos problemas prticos que tm que enfrentar, assim como na filosofia (Schumpeter 1954).1 Mesmo a economia pura, concebida como uma caixa de ferramentas, socialmente inserida o trabalho analtico principia com material extrado da nossa viso das coisas, e esta viso , por definio, ideolgica (Schumpeter, 1964, p. 70) e a profisso de economista desenvolve atitudes relativas s questes polticas e sociais que so similares tambm por outras razes alm das cientficas (ibid, p. 75, nfase do original). Na direo inversa, ele (ibid.) aponta para o papel que as teorias e o instrumental econmico desempenham na constituio dos sistemas de economia poltica, como o liberalismo e o socialismo.

    Em sntese, partese do princpio epistemolgico que a Economia ontolgicamente Poltica. Um dos seus propsitos contribuir para a discusso dos interesses econmicos que esto subjacentes s teorias sobre os objetivos e procedimentos recomendados para o desenvolvimento brasileiro. Ou seja, movese na contramo da viso que os conflitos so de ordem tcnica.

    O objeto do ensaio o processo de desenvolvimento brasileiro contemporneo. Pelas suas caractersticas, o processo de desenvolvimento traz aos atores sociais uma incerteza substantiva, que no pode ser eliminada pela busca de mais informaes e implica problemas de coordenao entre os atores.

    Para lidar com os problemas de incerteza e coordenao, as sociedades utilizam instituies as regras do jogo. Nos planos cognitivo e comportamental estas regras esto estruturadas por convenes. Formalmente, temos uma conveno se, dada uma populao P, observamos um comportamento C que tem as seguintes caractersticas: (i) C compartilhado por todos os membros de P; (ii) cada membro de P acredita que todos os demais seguiro C e (iii) tal crena d aos membros de P razes suficientes para adotar C (Orlan, 2004).

    Na prxima seo, discutese, sucintamente, o conceito de conveno, sua utilizao na seleo de problemas e solues e a disputa pela hegemonia entre convenes. O caso brasileiro tratado na terceira seo, em cinco partes. Na primeira, analisada a incerteza vigente posse do Presidente Lula e o reclamo por uma nova conveno de desenvolvimento. Nas duas partes seguintes, apresentamse as duas convenes que se formaram, apoiadas em foras polticas diferentes, denominadas, por razes explicadas no texto, de institucionalista restrita e neodesenvolvimentista. A quarta parte examina as relaes entre as duas convenes. A ltima parte discute brevemente convenes de desenvolvimento alternativas surgidas na sociedade civil. A seo final contentase em resumir as concluses do ensaio.

    1 O livro foi publicado originalmente em 1912.

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    O CONCEITO DE CONVENO DE DESENVOLVIMENTO

    Tomemos como ponto de partida uma distino tradicional entre crescimento e desenvolvimento: o primeiro consiste, essencialmente, em mais do mesmo, o segundo implica transformaes estruturais. Estas transformaes fazem com que os atores enfrentem uma incerteza substantiva, que no pode ser eliminada atravs da busca de mais informaes.

    Tal incerteza reduz a possibilidade de coordenao das aes dos atores, especialmente das suas estratgias. A sinergia e as externalidades que surgem atravs da ao conjunta so reduzidas, a mudana tornase mais lenta e errtica.

    Instituies provm a sociedade com meios para lidar com os problemas de incerteza e coordenao regras do jogo, na definio de North (1990), amplamente aceita. Tais regras sobre a problemtica social derivam de metforas que so de conhecimento e aceitao gerais e que geram outras metforas, complementares (Schn, 1968) ou, como argumentam Denzau e North (2004), de modelos mentais compartilhados.

    Tais metforas servem para definir os problemas, descrevendo o que est errado com a situao presente de tal forma a estabelecer a direo para sua transformao futura, Para cumprir adequadamente os seus papeis de reduo de incerteza e aumento de coordenao, tais regras especificam agendas positivas e negativas uma hierarquia de problemas que devem ser enfrentados (p.ex. controle da inflao, distribuio de renda), solues para esses problemas que so aceitveis (p.ex. metas de inflao) ou no (p.ex. controles administrativos de preos), organizaes encarregadas (o Banco Central), assim como regras e regulamentos (Regras de Basileia). Ou seja, estabelecem uma ordem para a transformao.

    O poder destas regras substancialmente aumentado se elas obtm coerncia atravs de uma metfora histrica uma histria, uma teoria que explica como o presente surgiu a partir do passado e, especialmente, como o futuro ser se as regras forem seguidas. Em sntese, uma teleologia.

    Este conjunto de regras, as agendas, positiva e negativa, que gera e a teleologia subjacente, constituem uma conveno uma representao coletiva (Jodelet, 1989) que estrutura as expectativas e o comportamento individual, tal como definido na Introduo.

    Uma conveno de desenvolvimento, seguindo a definio deste, acima dada, trata das transformaes estruturais que devem ser introduzidas na sociedade, estabelecendo o que h de errado no presente, fruto do passado, qual o futuro desejvel, quais estruturas devem ser mudadas e as agendas de mudana, positiva e negativa.

    Uma conveno surge da interao entre atores sociais, mas externa a esses atores e no pode ser reduzida sua cognio individual ou seja, um fenmeno emergente, em que o todo no redutvel s partes (De Wolf & Holvoet, 2005).

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    A fora de uma conveno proporcional ao tamanho de P e ao poder poltico e econmico dos seus membros. Tal fora proporciona benefcios aos que aderem conveno e sanciona os que dela se afastam. Em consequncia, P contem no apenas crentes, como oportunistas, movidos apenas por razes utilitrias (Choi, 1993).

    A legitimidade das convenes depende da f depositada por seus aderentes no seu contedo cognitivo e, acima de tudo, da adequao de seus resultados s expectativas dos membros da populao P.

    O contedo cognitivo de uma conveno de desenvolvimento2 composto de conhecimentos codificados e conhecimentos tcitos, estruturados por um ncleo duro, de natureza axiomtica, que organiza o conhecimento, e por um cinturo protetor, que operacionaliza este conhecimento e o adapta s condies especficas.

    Parte dos conhecimentos codificados tem origem na cincia, notadamente as cincias sociais teorias econmicas, sociais e polticas conhecimentos especializados, elaborados por profissionais no mbito da academia internacional. A partir desta verso erudita (S Earp, 2000), normalmente expressa por afirmativas contingentes (admitindo que os agentes econmicos tm expectativas racionais...), so elaboradas verses mais simplificadas e normativas, atravs de outras instituies, como as organizaes internacionais (vejase o papel do Banco Mundial e do FMI), a mdia e a prpria academia (atravs de manuais), que se expressam por indicadores empricos (por exemplo, os de boa governana do Banco Mundial) e receiturios de poltica, como o declogo do Consenso de Washington. A integrao internacional da academia e demais organizaes difunde este conhecimento codificado nas sociedades especficas. A retrica atualmente adotada nas verses eruditas, em que teoria tornouse sinnimo de modelos formais, sujeitos a um tratamento matemtico sofisticado, torna restrito o pblico que as entende e conferelhes um carter sagrado.

    Outra parte dos conhecimentos codificados tem origem religiosa e em procedimentos de socializao, a exemplo de mitos, fbulas e cerimnias de iniciao, que so compartilhados pelos membros da populao P. Estes conhecimentos, alm de estabelecer laos comunitrios, tm a funo de reduzir a incerteza, mostrando como, cumpridas certas condies, possvel sair de situaes ms (o pecado, a inflao, a pobreza) e chegar a situaes boas (a virtude, a estabilidade, a riqueza).

    O conhecimento tcito referese s percepes no codificadas sobre como a sociedade e como deveria ser, compartilhadas pelos membros da populao P, que resultam da experincia dos atores e que so transmitidas, dentro da mesma gerao e entre geraes, atravs de vrios mecanismos cul

    2 Uma discusso mais detalhada do contedo cognitivo das convenes de desenvolvimento encontrase em Erber (2008).

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    turais e educacionais por exemplo, provrbios como manda quem pode, obedece quem tem juzo.

    A viso das coisas a que se referia Schumpeter, que precede a codificao cientfica do conhecimento, constituda por conhecimentos tcitos e conhecimentos codificados no cientficos. Atravs de alguns destes conhecimentos, como os mitos, a viso das coisas ganha um componente teleolgico.3

    Os conhecimentos codificados tendem a se traduzir em regras formais de conduta, frequentemente dotadas de um poder coator externo o Estado, ao passo que os conhecimentos tcitos so normalmente expressos por regras em que a fora de coao reside na aprovao do grupo.

    Embora os conhecimentos codificados tenham, forosamente, que ser adaptados s condies locais para se transformarem em regras de conduta, nos conhecimentos tcitos, que refletem a vivncia dos atores quanto sociedade, e na interao entre os dois tipos de conhecimento, que a especificidade local mais se manifesta, at pela ineficcia das regras formais (as leis que no pegam).

    Os conhecimentos tcitos e as regras informais de conduta so importantes na concepo e implementao das convenes de desenvolvimento, mas, atemonos aqui, por razes de espao, aos conhecimentos codificados de base cientfica.

    Uma conveno de desenvolvimento no se limita a um dispositivo cognitivo para ser eficaz ela tende a se espraiar em outras instituies/regras, como leis e regulamentos e a inserirse em organizaes, como as burocracias pblicas e privadas e a academia. Por gerar outras organizaes e regras, uma instituio constitucional. Este processo de difuso cumulativa assume caractersticas de autoorganizao (De Wolf & Holvoet, 2005), formando um sistema adaptativo em que a estrutura mantida sem que seja necessrio um controle externo. Em consequncia, a conveno passa a ser vista como algo natural e externo aos seus aderentes.

    Conforme j apontado, a legitimidade de uma conveno depende da congruncia dos seus resultados com as expectativas da populao P. Se P um grupo relevante dentro da estrutura de poder da sociedade, a legitimidade da ordem social da qual a conveno de desenvolvimento faz parte reforada.

    No entanto, a natureza cumulativa do processo de constituio e difuso de uma conveno de desenvolvimento tornaa dependente em relao trajetria que vinha sendo seguida. Assim, se surgem problemas distintos daqueles que a conveno identificou como prioritrios e que demandam solues no compatveis com o ncleo duro da conveno, esta entra em crise e tende a ser substituda por outra conveno. Os episdios da dvida externa na Amrica Latina

    3 Furtado (1974) discute o mito do Progresso para destacar a especificidade da trajetria dos pases perifricos em comparao com os pases capitalistas centrais. Erber (2002) analisa o papel do mito da Terra Prometida na configurao da conveno neoliberal.

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    ou da derrocada do socialismo na Europa Oriental e a substituio do desenvolvimentismo e do socialismo pelo neoliberalismo ilustram bem este processo.

    As convenes de desenvolvimento constituem, pois, dispositivos de identificao e soluo de problemas. Embora sejam sempre apresentadas como projetos nacionais que levam ao bem comum, refletem, na verdade a distribuio de poder econmico e poltico prevalecente na sociedade, num determinado perodo. Como o processo de desenvolvimento envolve mudanas estruturais, uma conveno eficaz deve oferecer escopo a grupos emergentes, que no pertencem ao bloco de poder, especialmente quando o regime poltico democrtico. No entanto, em sociedades complexas, em que existem diversos interesses conflitantes, nenhuma conveno de desenvolvimento consegue acomodar a todos. Assim, existem sempre diversas convenes de desenvolvimento que competem pela hegemonia.

    Embora uma conveno que foi hegemnica durante um perodo possa deixar de sla, a perda de hegemonia no implica no seu desaparecimento os grupos sociais a que servia de representao continuam presentes e ela est inserida em mltiplas instituies, cuja mudana lenta. Assim, embora derrotada, ela segue competindo pela hegemonia, adequandose nova problemtica.

    A histria brasileira ilustra bem a competio entre convenes.4 Mesmo quando o nacionaldesenvolvimentismo foi hegemnico, os liberais no deixaram de apresentar uma conveno alternativa (Bielschowsky, 1982). Da mesma forma, so conhecidos os conflitos entre neodesenvolvimentistas e neoliberais, durante a hegemonia do liberalismo no perodo Cardoso, mesmo no seio do Governo (Sallum Jr. ,2000). Conforme detalhado a seguir, esta competio encontrase no governo Lula.

    AS CONVENES DE DESENVOLVIMENTO NO GOVERNO LULA

    a necessidade de uma nova conveno de desenvolvimento

    Todo comeo de governo incerto, mas, no incio do primeiro mandato do Presidente Lula, a incerteza era extraordinria. Embora durante a campanha eleitoral de 2002 o candidato Lula tivesse abandonado a retrica radical de ruptura com o modelo neoliberal em favor de uma transio lcida, assegurando, na Carta aos Brasileiros, o respeito aos contratos, pairavam sobre seu futuro governo as dvidas decorrentes do seu passado, onde figurava inclusive a profisso de f no socialismo (por mais indefinido que este fosse), o preconceito contra um exoperrio e a insistncia dos oponentes, secundada pela mdia, sobre sua falta de preparo intelectual para o exerccio da

    4 Ver Castro (1993) e Erber (2002) para anlises, respectivamente, da antiga conveno desenvolvimentista e da conveno neoliberal.

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    Presidncia. Somavase a estas dvidas a brusca deteriorao da economia no segundo semestre de 2002, quando a ao conjunta de vrios atores econmicos, temerosos quanto aos resultados das eleies e visando estabelecer condies de barganha vantajosas, produziu brusca elevao da taxa de inflao, desvalorizao da taxa de cmbio e reduo da taxa de crescimento. Para completar, as cores do quadro internacional eram sombrias: ainda se faziam sentir os efeitos das crises da Argentina e das empresas de energia e tecnologia de informao e uma nova guerra no Golfo era iminente.

    Respondendo incerteza, o discurso de posse de Lula no Congresso, reiterou sua convico de que o antigo modelo estava esgotado e que mudana era a palavrachave, mesmo que esta devesse ser gradual, perseguida com pacincia e perseverana. Para tanto, eram necessrios um projeto nacional de desenvolvimento, apoiado num planejamento estratgico.

    Tal projeto seria dirigido principalmente para as necessidades dos pobres empregos, educao, sade e, especialmente, alimentao. Para atingir estes objetivos, Lula enfatizou a necessidade de estabilidade macroeconmica, principalmente a administrao responsvel das finanas pblicas. O crescimento resultaria de um aumento das poupanas e investimentos, com foco no mercado interno, principalmente nas pequenas e mdias empresas, infraestrutura e capacidade tecnolgica. Uma ampla gama de reformas institucionais era prevista, nos campos fiscal, previdencirio, agrrio, da legislao trabalhista e poltico. Para realizar este ambicioso programa, seria necessrio um novo pacto social, unindo trabalho e capital produtivo, de forma a gerar uma energia solidria.

    Podese interpretar tal discurso como o reconhecimento da necessidade de uma nova conveno de desenvolvimento, ratificada pelo recuo da conveno neoliberal, tanto no plano internacional como no Brasil. O apelo a um pacto social amplo tambm era consistente com o presidencialismo de coalizo que caracteriza o sistema poltico brasileiro e que obriga o Presidente a realizar coalizes com foras que no sustentaram a sua candidatura e que tm objetivos programticos (quando os tm) distintos.

    Na verdade, a necessidade de uma nova conveno, de natureza mais inclusiva do ponto de vista econmico e social, foi interpretada, no mbito do Governo, de forma diferenciada, gerando duas convenes distintas, tratadas, a seguir, a partir de documentos programticos governamentais.

    Antes, porm, cabe registrar uma ironia da Histria. Ao governo Cardoso, que apostou todas as suas fichas no comportamento favorvel do mercado externo, coube um perodo de grande conturbao deste mercado da crise mexicana argentina, passando pela nossa. Ao contrrio, o governo Lula, que iniciou sob o consenso de restries externas, foi beneficiado, entre meados de 2003 e a crise de 2008, por uma enorme expanso do comrcio e da liquidez internacionais, concentrado o primeiro em commodities primrias e produtos semielaborados, o Brasil conta com inequvocas vantagens comparativas.

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    a conveno institucionalista restrita

    A conveno institucionalista, tal como apresentada pelo Ministrio da Fazenda e pelo Banco Central, tem uma viso de sociedade competitiva e meritocrtica, cuja eficincia garantida pelo funcionamento do mercado.

    Seu cerne analtico neoclssico, enriquecido pelos aportes da Nova Economia Institucional (North, 1990). Visa ao estabelecimento de normas e organizaes que garantam o correto funcionamento dos mercados, de forma que estes cumpram suas funes de alocar recursos do modo mais produtivo, gerando poupanas, investimento e, em consequncia, crescimento econmico. Quanto mais eficientes forem os mercados em termos presentes e futuros, maior ser a probabilidade de crescimento. Para tanto, so essenciais a garantia dos direitos de propriedade e a reduo dos custos de transao, que, por sua vez, demandam instituies estatais eficientes. Os mercados tm dimenso internacional e, portanto, a abertura da economia, em termos comerciais, financeiros e de investimento essencial para o desenvolvimento.

    A inovao, tecnolgica e institucional, vista como o motor do desenvolvimento e a abertura internacional desempenha um importante papel no seu estmulo atravs da importao de tecnologias mais produtivas, incorporadas em bens de capital e insumos.

    Como o mercado de conhecimentos inerentemente imperfeito, a interveno do Estado neste campo, necessria, assim como em atividades em que existem monoplios naturais.

    Dada a conhecida carncia brasileira em inovao e infraestrutura, o Estado deveria ter um papel ativo no seu fomento. Para esta ltima havia, no Ministrio da Fazenda, uma clara preferncia pelo modelo principalagente, no qual o Governo (o principal) fixa as diretrizes de poltica e a Agncia, apoiada em regras estveis e transparentes de gesto, executa tais diretrizes e presta contas ao principal por sua execuo. Este modelo, destinado a evitar as ineficincias do suprimento direto de servios por instituies estatais e, ao mesmo tempo, reduzir os riscos de captura das agencias pelos seus regulados, havia sido adotado no Brasil nos setores privatizados (com variados graus de sucesso) e, conforme discutido a seguir, para a execuo do regime de metas inflacionrias pelo Banco Central.

    A adeso do governo Lula a esse modelo organizacional foi muito parcial. As relaes governoagncias setoriais tm sido marcadas por fortes conflitos. A exceo corre pelo caso do Banco Central, visto a seguir.

    Reconhecida a prioridade a ser dada a uma distribuio de renda mais equitativa, inclusive para os objetivos de maior crescimento, recomendavase no s o investimento em capital humano atravs da educao, como polticas focalizadas nos pobres. A focalizao, que seguia o cnone estabelecido por instituies internacionais como o Banco Mundial, encontrava apoio no diagnstico de que os gastos sociais feitos pelo Estado brasileiro eram significativos o problema estava na sua ineficcia, posto que parte substancial

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    destes gastos estaria dirigida aos no pobres. A soluo, pois, era a focalizao nos pobres atravs de mecanismos institucionais eficientes e eficazes, mesmo que tal orientao estivesse em oposio ao universalismo defendido pelo PT. O Bolsa Famlia viria a concretizar a focalizao.

    A estabilidade de preos e a expectativa dos atores econmicos de que esta duradoura constituem parte indispensvel desta conveno, posto que afetam no apenas as transaes correntes como os contratos futuros e, portanto, a poupana e o investimento. Ao mesmo tempo, afeta positivamente a equidade, posto que os pobres tendem a ser mais afetados pela alta inflao.

    O cnone liberal condiciona a estabilidade ao estabelecimento de regras formais que disciplinem o comportamento do Governo e dos agentes privados. Tais regras se expressam atravs de metas, fiscais e de inflao, que permitem sociedade monitorar o desempenho do Governo. Implcita, est a crena na tendncia do Governo em incorrer num vis inflacionrio, mas os agentes privados tambm necessitam ser disciplinados, cabendo poltica monetria do Banco Central o papel central na ancoragem das expectativas, atravs de metas inflacionrias, e flexibilidade da taxa de cmbio a correta adequao da economia s condies internacionais.

    Ao iniciarse o primeiro mandato do Presidente Lula, o Ministrio da Fazenda (2003) anunciou que o novo governo tem como primeiro compromisso da poltica econmica a resoluo dos graves problemas fiscais que caracterizam nossa histria econmica, ou seja, a promoo de um ajuste definitivo das contas pblicas (p. 8, nfase original). No mesmo sentido de estabilizao, deveria ser dada prioridade reforma da Previdncia, conferida autonomia legal ao Banco Central e reforados os direitos de credores, o que, em tese, conduziria a uma reduo dos prmios de risco e, portanto, reduo da taxa de juros.

    Reforma fiscal um bordo de todo Ministro da Fazenda a partir da agonia do Estado desenvolvimentista nos anos 1980 e constitui um tema que, em termos gerais evoca consenso, mas que, quando buscase implementlo, esbarra em interesses incontornveis e irreconciliveis, semelhana das reformas administrativa e poltica. O governo Lula seguiu as linhas de menor resistncia, aumentando a carga tributria, sem deixar de enviar ao Congresso a ritual proposta de reforma, que se encontra em discusso. Para a Previdncia, feita uma pequena reforma, o tema foi abandonado.

    Quanto s reformas dirigidas ao sistema monetrio e financeiro, o Banco Central no ganhou sua independncia legal, mas seu Presidente foi alado ao status ministerial e a organizao reteve sua capacidade de estabelecer objetivos e sua forte autonomia operacional para implementlos (vejase a seguir). Os direitos dos credores foram reforados (p.ex. via Lei de Falncias), mas os efeitos da sua maior segurana sobre as taxas de juros so difceis de discernir.

    O silncio to eloquente como a fala. Embora privilegiasse a eficincia institucional, o documento da Fazenda omitiase quanto a mudanas institucionais de carter estrutural, como a reforma administrativa do Estado e a

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    reforma poltica, apesar dos inequvocos efeitos destas sobre a eficincia dos mercados e do prprio Estado. A trajetria histrica manifestava seu peso.

    Do ponto de vista cognitivo, as reformas institucionais propostas eram derivadas da conveno liberal e faziam parte da segunda gerao de reformas do Consenso de Washington, dando continuidade ao processo iniciado na dcada de 1990. No obstante, apontavam para problemas estruturais, como a reforma fiscal e o equacionamento financeiro da Previdncia. A soluo destes problemas no necessita ser feita segundo as propostas liberais solues alternativas podem ser encontradas, desde que a importncia dos problemas seja reconhecida e as alternativas resolvidas politicamente. A minimizao do debate e o adiamento das solues, apontam para uma preferncia pelo curto prazo e para as dificuldades inerentes governana no presidencialismo de coalizo. A mesma conjectura aplicase s reformas omitidas.

    Concebida de forma restrita e implementada parcialmente, a agenda institucionalista acabou por restringir sua prioridade estabilizao de preos, deixando o Banco Central no epicentro da poltica macroeconmica. Esta configurao no nova remonta aos anos 1980, em que o principal instrumento para impedir a ecloso da hiperinflao foi a alta taxa de juros paga por ttulos da dvida pblica, transformados em quase moeda. A centralidade do BACEN foi mantida no governo Collor e ampliada no primeiro mandato do Presidente Cardoso, quando o Banco estabeleceu a ancoragem cambial, a despeito da oposio de parte da equipe econmica. Apesar de ter conduzido o pas anunciada crise de 1999, o BACEN ressurgiu das cinzas sob o regime de metas de inflao, com poderes ampliados.

    No Brasil, as metas de inflao so definidas pelo Conselho Monetrio Nacional. As atas do Conselho, que poderiam indicar quais os critrios usados para sua definio, no so divulgadas, mas podese supor que, semelhana do Federal Reserve Board, envolvam cincia e arte (Bernanke, 2007). Dado o traumtico passado inflacionrio brasileiro e os efeitos deletrios da inflao sobre os rendimentos das camadas mais pobres da populao, que compem o grosso do eleitorado, h uma compreensvel relutncia poltica do Governo em mostrarse leniente com a inflao, o que torna a definio de metas dependente da sua evoluo anterior Na avaliao de executivos do Banco Central (Bevilaqua et al., 2007), a estabilidade de preos est associada a uma taxa de inflao inferior a 5% anuais.

    No regime de metas de inflao em que o Banco Central tem, nominalmente, apenas autonomia operacional, o Banco recebe as metas de uma autoridade e tem a incumbncia de executlas, seguindo normas de transparncia e de prestao de contas um arranjo institucional do tipo principalagente. No caso brasileiro, a separao entre fixao e execuo (principal e agente) de metas muito parcial, posto que o Presidente do Banco Central tem assento no Conselho Monetrio Nacional, ao lado dos Ministros da Fazenda e Planejamento, e sua opinio, l, pesa, e muito.

    Cabe, ainda, insistir sobre dois pontos. Primeiro, o centro da meta infla

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    cionria e a banda de variao so o resultado de uma deciso poltica. A dependncia em relao trajetria passada no impede que, face a mudanas bruscas de cenrio ou a objetivos eventualmente conflitantes com a manuteno do centro da banda, este ou os seus limites sejam alargados pelo CMN. Na verdade, o prprio BACEN pode fazlo, como j o fez em janeiro de 2003, quando ajustou o centro da meta em funo da crise do segundo semestre do ano anterior, e em setembro de 2004, a ttulo de acomodao inrcia inflacionria (Bevilaqua et al., 2007). Em segundo lugar, como testemunha o insuspeito Bernanke (2007), por mais sofisticados que sejam os modelos de previso, h uma necessria dose de discrio nessas previses.

    Conforme explicado por seus executivos, o BACEN guia suas decises de poltica [para atingir as metas] por suas prprias previses de inflao e dos respectivos balanos de riscos. As expectativas de inflao do mercado so insumos importantes nos modelos de previso do BACEN... e so influenciadas pelo comportamento passado da inflao, as metas de inflao, o desenvolvimento da taxa de cmbio e do preo das commodities, a atividade econmica e o posicionamento da poltica monetria (Bevilaqua et al., 2007, p. 5). Embora acreditem que o peso do passado na definio de expectativas tenha diminudo, atestando o sucesso da poltica de metas, constatam que, muitas vezes, as expectativas apresentaram reaes excessivas a eventos correntes, especialmente a surpresas inflacionrias... Neste sentido, o processo de desinflao tem sido, e ainda , um processo de domar as expectativas inflacionrias (ibid , p. 5) e os custos de curto prazo, em termos de atividade econmica perdida, devem ser vistos como um investimento em estabilidade (ibid , p. 13, nfase adicionada).

    Ao longo deste processo de disciplinar o mercado, o BACEN rpido na elevao das taxas de juros e lento na sua reduo (Modenesi, 2008) e pratica taxas de juros que, apesar de oscilarem, esto sempre entre as mais altas do mundo. Nesta operao, condiciona as outras duas pontas do trip de polticas macro.

    Do lado cambial, a entrada de capitais estrangeiros, atrada pelo diferencial de juros, valoriza o Real e contm o preo dos bens e servios comercializveis internacionalmente Instrumentos financeiros como swaps cambiais reversos adicionam importantes aliados poltica de manter a Selic elevada e a taxa de cmbio valorizada.

    Do lado fiscal, obriga a poltica a estabelecer suas metas em termos primrios, comprimindo gastos, notadamente de investimento, de forma a liberar recursos para o pagamento de juros sobre a dvida pblica (no includos no resultado primrio). A valorizao do real e a liquidez do mercado internacional permitiram a acumulao de reservas cambiais e que o Tesouro eliminasse a sua dvida externa. Estas reservas foram um importante instrumento de defesa da economia durante a crise de 2008. No entanto, dado o diferencial en

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    tre os juros internos e externos, as reservas tm um importante custo de carregamento, que contabilizado no dficit nominal do setor pblico.5

    Argumentase com frequncia que a estabilidade de preos tem a natureza de um bem pblico, no sentido de que ningum pode ser excludo de seus benefcios. No entanto, a poltica acima resumida tem distintos perdedores e ganhadores.

    Entre os perdedores, os devedores encimam a lista. Entre estes, destacase o Estado, que pagou, em mdia, cerca de 6% do PIB ao ano conta de juros no perodo 20032008, aproximadamente dez vezes o gasto no programa Bolsa Famlia. Dado que a tributao no Brasil notoriamente regressiva, resulta uma macia transferncia de renda dos pobres para os ricos.

    H tambm perdedores no setor privado todos os que necessitam utilizar mecanismos de crdito, dos consumidores que desejam adquirir ativos familiares a empresas que precisam financiar o seu capital de giro e investimentos.

    Em consequncia, a demanda final de bens de consumo contida, com reflexos sobre toda a cadeia produtiva e os investimentos. O curto prazo da poltica monetria e o poder discricionrio do BACEN aumentam a incerteza e o alto rendimento, grande liquidez e baixo risco das aplicaes financeiras elevam a taxa mnima de retorno (hurdle rate) dos investimentos produtivos. Assim, o portfolio de investimentos produtivos das empresas tende a se concentrar em projetos de curto prazo e baixo risco, exceto quando o mercado em expanso e a concorrncia obrigam as empresas a investir, como foi, no perodo 20032007, o caso das atividades exportadoras de produtos primrios e semielaborados.

    As aplicaes dos grandes gestores de recursos financeiros, como os fundos de penso sofrem o mesmo vis e o sistema financeiro encorajado a concentrar suas operaes em ttulos pblicos, em detrimento da concesso de crdito, que tende a priorizar operaes de curto prazo e baixo risco. Em consequncia, o sistema privado de financiamento tornase pouco funcional para as transformaes estruturais tpicas do desenvolvimento, deixando este papel a cargo dos bancos pblicos.

    Atividades cruciais para o desenvolvimento, como a inovao, notadamente projetos mais criativos, so desestimuladas, a taxa de crescimento do emprego diminui e o crescimento e a igualdade tambm. O investimento em estabilidade tem altos custos.

    Do outro lado da lista, entre os ganhadores, destacase, primum inter pa-res, o sistema financeiro. O balano consolidado dos bancos brasileiros mostra que o volume de lucros lquidos triplicou entre 2003 e 2007 e que a sua taxa de lucro passou de 14,8% em 2003 para 22,9% em 2007 (Valor Econmico, 2008). No entanto, o sistema financeiro no est s. Investidores institucionais

    5 Perdas ou ganhos com a variao cambial so contabilizados como ajuste patrimonial na dvida interna lquida (Safatle, 2009).

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    como fundos de penso, companhias de seguro, empresas com alta gerao de caixa (empresas industriais produtoras de bens intermedirios, produtores e vendedores de commodities agrcolas, atacadistas, cadeias de lojas de bens de consumo) tambm se beneficiam, assim como os domiclios mais ricos, notadamente os que pertencem ao 1% superior da pirmide de distribuio de renda e recebem cerca 13% da renda total do pas. Os dados de Bruno (2007) indicam que as empresas no financeiras e indivduos receberam, na mdia, cerca de 80% das rendas financeiras durante o perodo 19952005.

    A valorizao do cmbio irm siamesa dos altos juros. Os exportadores e os produtores locais de bens comercializveis so os principais prejudicados pela valorizao. No entanto, entre os primeiros, os que exportam commodi-ties, sejam produtos primrios ou semielaborados, foram, a partir de 2003, parcialmente compensados pelo aumento dos preos no mercado internacional e, sendo grandes geradores de caixa, pelos altos juros locais. Em contrapartida, os importadores de bens e servios beneficiamse muito com a valorizao do cmbio, de tal forma que, apesar das condies favorveis para as exportaes brasileiras, o saldo em transaes correntes, que havia chegado a quase 2% do PIB em 2004, foi praticamente nulo em 2007 e negativo a seguir. Vistas pelo ngulo da conta de capitais, as duas irms atuam no sentido de favorecer as empresas que tm condies de aceder ao crdito externo e a todos a quem convm remeter recursos para o exterior, seja para investimentos (principalmente os produtores de commodities), seja a ttulo de juros, lucros e dividendos, cujo montante mais do que dobrou entre 2003 e 2008.

    Existe, pois, uma ampla e poderosa constelao de interesses, estruturada ao longo do tempo em torno combinatria altos juroscmbio valorizado, que estabeleceu uma conveno que estes elementos so essenciais para o desenvolvimento do pas. A poltica do Banco Central atende estes interesses e minimiza os riscos de ocorrncia de episdios de turbulncia, como os ocorridos no segundo semestre de 2002.

    Argumentos como o pecado original da moratria de 1987, a incerteza jurdica dos credores e o crdito no livre ou o dficit pblico so oferecidos como justificativa. Fatos como as taxas de juros muito mais baixas que as brasileiras em pases que tambm entraram em moratria, como o Mxico, a concesso de grau de investimento por agncias internacionais de avaliao de risco, que deveria ter redimido o pecado, o reforo das garantias dos credores, acima mencionado, a falta de disposio do sistema financeiro privado para o crdito agrcola e de longo prazo e o bom desempenho fiscal do Governo so convenientemente omitidos.

    Esta coalizo de interesses tem poderosos instrumentos para consolidar e difundir sua conveno de desenvolvimento. O mais explcito est nas mos do sistema financeiro, como demonstrado na crise do segundo semestre de 2002, que to efetivamente domou as expectativas do governo entrante. Mas h outros instrumentos, mais sutis, como o financiamento de campanhas

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    polticas,6 as relaes com os membros do Congresso, os anis burocrticoempresariais de que, no passado, falava Cardoso, o socilogo, e as relaes com a mdia, que difunde a conveno de estabilidade.

    O Banco Central um membro necessrio desta coalizo a instituio que concebe e executa a poltica monetria, com os efeitos j apontados sobre a poltica cambial e fiscal e a distribuio de rendas. A autonomia do BACEN reflete a fora da coalizo e, ao mesmo tempo, dadas as caractersticas j apontadas da poltica que pratica, refora o peso econmico e poltico da coalizo, num processo cumulativo sem que isto implique, necessariamente, uma captura do Banco pelo sistema financeiro no sentido da escolha pblica. Para o estabelecimento da coalizo e da conveno que lhe serve de representao social, basta que o Banco Central e os membros privados derivem benefcios conjuntos da mesma poltica no caso, o prestgio de cumprir as metas e os lucros derivados dos altos juros e do cmbio valorizado.

    Alm de objetivos comuns, diversos mecanismos reforam a coeso desta coalizo e a fora da conveno a ela vinculada.

    A atual estrutura do sistema financeiro brasileiro foi muito influenciada pela crise bancria de 1995 e pela privatizao dos bancos estaduais, processos em que o Banco Central teve um papel decisivo, participando da gnese ou desenvolvimento dos grandes grupos privados que dominam o sistema. A mesma crise levou ao aprofundamento das atividades de superviso do sistema financeiro exercidas pelo Banco Central (p.ex. a aplicao das regras de Basileia), estreitando os laos entre as partes. Como toda agncia reguladora, o Banco Central tem que manter contato estreito e contnuo, formal e informal, com os atores regulados, formando uma percepo comum dos problemas e solues. A execuo da poltica monetria aumenta a integrao: as estimativas de inflao feitas pelo sistema financeiro (que tem implcito um vis favorvel ao aumento de juros) constituem um importante insumo para as estimativas do Banco Central e as reunies do COPOM onde a taxa de juros bsica definida tm periodicidade fixa e so precedidas de incontveis manifestaes de representantes do sistema financeiro sobre a deciso do Comit. Finalmente, o horizonte com que as metas so estabelecidas pelo Conselho Monetrio um ano e meio adiante facilita a convergncia entre o BACEN e o sistema financeiro.

    No plano cognitivo, a conveno se expressa na crena, partilhada pelos membros da coalizo que a sustenta, na eficcia e legitimidade do mercado como a principal instituio encarregada de organizar e conduzir a economia e a sociedade atravs de uma distribuio eficiente no uso de recursos. Tal crena valida o uso da fora da coalizo para ampliar a gama de relaes sociais regidas pelo mercado (a exemplo da sade, previdncia e educao) e

    6 Vejase Filgueiras & Gonalves (2007) para as contribuies do sistema financeiro s campanhas das eleies presidenciais de 2002 e 2006.

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    vetar projetos e polticas que possam reduzir o poder do mercado em favor de outras instituies. Implcita nestas duas agendas positiva e negativa est a tese neoliberal de que, mesmo que o mercado no se coadune ao ideal concorrencial, as falhas introduzidas no processo de alocao eficiente de recursos pela ao de outras instituies, notadamente o Estado, so ainda maiores. Neste sentido, a crise no resolvida do Estado desenvolvimentista, manifesta nos aspectos poltico, fiscal e administrativo, joga a favor da conveno.

    Um vis conservador une ainda mais o Banco Central e os interesses privados o primeiro quer manter a estabilidade de preos, os segundos o rentvel status quo, consolidado ao longo dos anos. Ambos se opem a mudanas estruturais que alterem a distribuio de riqueza e renda e preos relativos, aumentando o risco de inflao. Em consequncia, a coalizo usa seu poder no apenas para promover polticas que a beneficiem, mas tambm para obstar polticas que alterem o status quo

    Denominamos, inicialmente, a conveno acima descrita como sendo institucionalmente restrita. No entanto, conforme a anlise acima aponta, o adjetivo pode tambm ser aplicado gama de mudanas estruturais que tal conveno propugna. Se desenvolvimento mudana estrutural, tratase, na melhor das hipteses de um desenvolvimento restrito.

    a conveno neodesenvolvimentista

    Coexistindo com a conveno acima descrita, mas a ela subordinada, h outra, a que podemos chamar de neodesenvolvimentista. diferena da conveno institucionalista, esta tem uma viso de sociedade essencialmente cooperativa, expressa atravs do conceito de pacto social e das metforas usadas pelo Presidente da Repblica, que assemelham a sociedade a uma famlia ou a uma equipe esportiva, que se traduz, na prtica, na prioridade incluso social.

    Do ponto de vista econmico, seu ncleo duro de inspirao keynesiana o crescimento impulsionado pelo aumento autnomo da renda familiar dos grupos mais pobres, via salrio mnimo e transferncias fiscais, e de investimentos em infraestrutura e construo residencial, regidos pelo Estado. No entanto, distinguese da conveno novodesenvolvimentista, que tem a mesma matriz terica (ver quarta seo) , pela aceitao, mesmo que a contragosto, da poltica macroeconmica da conveno institucionalista restrita, que os novodesenvolvimentistas explicita e fortemente rejeitam.

    Proposta inicialmente no Plano Plurianual de Aplicaes (PPA) 20032007, ampliada pela Poltica Industrial, Tecnolgica e de Comrcio Exterior (PITCE) e pela tentativa de estabelecer parcerias pblicoprivadas, em 2003, a conveno neodesenvolvimentista foi reforada, a partir de 2006, pela mudana de equipe no Ministrio da Fazenda e pela reeleio do Presidente Lula. Encontra sua forma atual no Programa de Acelerao do Crescimento 20072010 (PAC) e na recente Poltica de Desenvolvimento Produtivo (PDP).

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    A conveno repousa sobre cinco pilares, que justificam a denominao dada:

    Investimento em infraestrutura (principalmente energia, logstica e saneamento), a ser feito majoritariamente por empresas estatais e privadas, com o financiamento do BNDES e, em menor grau, diretamente pelo Estado. Parte destes investimentos responde a carncias h muito identificadas e podem ser vistos como a recuperao do atraso. No entanto, a descoberta de grandes jazidas de petrleo em guas muito profundas (o prsal) abre a perspectiva de enormes investimentos nesta rea e, a seguir, da remoo da restrio de divisas pela exportao de petrleo e seus derivados. Para tanto, porm, ser necessrio equacionar adequadamente as condies institucionais que regero a explorao desta rea e o esquema de financiamento para os referidos investimentos, que, na sua maior parte, sero realizados aps a concluso do PAC atual.

    Investimento residencial incentivado pelo crdito, pblico e privado, amparado por maiores garantias dos credores. Buscavase aqui tambm reduzir o enorme dficit habitacional do pas (estimado em 6 milhes de residncias) e da baixa participao do crdito para este fim no PIB (menos de 2%).

    crculo virtuoso entre, de um lado, o aumento de consumo das famlias derivado dos aumentos do salrio mnimo, das transferncias do Bolsa Famlia, da expanso do emprego formal7 e do crdito8 e, do outro lado, o aumento do investimento em capital fixo e inovao, incentivado pela desonerao fiscal e pelo crdito dos bancos pblicos.

    Investimento em inovao, amparado por incentivos fiscais, crdito subsidiado e subvenes.

    Poltica externa independente, que privilegia as relaes com outros pases em desenvolvimento (seja da Amrica Latina, seja do grupo BRIC) e busca afirmar o papel do Brasil como protagonista do processo de mudanas na arquitetura institucional mundial.

    O Estado, nesta conveno, volta a assumir um papel de liderana no processo de desenvolvimento, recuperando, inclusive, o protagonismo das empresas estatais e dos bancos pblicos, perdido durante o perodo liberal.

    Nos dois primeiros pilares e no ltimo, clara uma atualizao da antiga proposta desenvolvimentista. Restabelecese a tradicional coalizo entre empreiteiras da construo pesada e leve, fornecedores de insumos e equipamentos e seus empregados com o governo.

    A capacidade local de inovao (o quarto pilar), buscada pelo desenvolvi

    7 Estimulado por medidas como o tratamento tributrio simplificado para pequenas empresas e maior fiscalizao.8 Ver quarta seo.

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    mentismo dos anos 1970, , hoje, objeto de um consenso que abarca todas as correntes de pensamento, contando com forte apoio do Banco Mundial. A PITCE de 2003 tinha um forte componente heterodoxo em sua agenda positiva, ao estabelecer claras prioridades setoriais e tecnolgicas9, em funo de encadeamentos tecnolgicos e dos dficits no comercio internacional. Esta heterodoxia foi atenuada em favor de polticas horizontais, possivelmente devido reduo da restrio externa. Tambm, diferena do perodo desenvolvimentista, na agenda atual no se distinguem os detentores da capacidade de inovao pela origem do seu capital, apesar dos efeitos desta diferena sobre a competitividade internacional e a soberania nacional.

    Cabe destacar que, diferena da antiga conveno desenvolvimentista e da conveno neoliberal, o governo Lula, colocou no topo de sua agenda, atravs dos mecanismos apontados no que descrito acima como o terceiro pilar neodesenvolvimentista, a reduo da pobreza, herdada do longo perodo em que as duas convenes foram hegemnicas. A agenda atual almeja o consumo de massas e seu investimento derivado, mas tambm sanar a restrita incluso econmica, h muito apontada como bice principal sustentabilidade do desenvolvimento (Furtado, 1961).

    Do ponto de vista poltico, a forma como a poltica de incluso foi implementada, de outorga de um benefcio pelo Estado, consistente com trajetria de um Estado paternalista que remonta ao varguismo10 e tem como efeito colateral a perda de importncia das organizaes da sociedade civil, notadamente as que representam os pobres e o aumento da importncia dos poderes locais, responsveis pela incluso dos pobres nos programas de assistncia. A reduo dos conflitos sociais, inerente poltica e sua forma de implementao, inclusive pelo baixo custo fiscal que envolve, de interesse tambm dos grupos de maior renda, estabelecendo uma ponte entre as duas convenes.

    A incluso se d via aumento de renda no contempla a redistribuio de riqueza. Os detentores desta ltima (notadamente a financeira), fortemente beneficiados pelas polticas da conveno de estabilizao, tm seus interesses preservados. Dada a regressividade da estrutura fiscal, na medida em que a incluso financiada via gastos fiscais so os pobres que arcam com parcela maior do seu custo. Neste sentido, os pobres so as vtimas principais dos impasses que cercam a reforma fiscal do Estado brasileiro.

    O principal ativo desenvolvido pela poltica de incluso o da educao,

    9 Bens de capital, componentes eletrnicos, software e frmacos constituam os setores prioritrios. A estes se adicionavam tecnologias novas, de uso difundido, portadoras de futuro biotecnologia, nanotecnologia e biocombustveis.10 A tradio varguista encontrase tambm na composio corporativa de instituies destinadas a formular polticas pblicas, como a industrial e tecnolgica, onde esto representados, alm do Estado, trabalhadores e empresrios.

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    atravs da condicionalidade das transferncias presena das crianas das famlias beneficiadas nas escolas um efeito intergeracional. Aos adultos, a poltica oferece poucas portas de sada, entre as quais destacase a expanso do emprego de baixa qualificao.

    Este efeito intergeracional , infelizmente, mitigado pela m qualidade do ensino pblico. A esta lacuna somamse outras deficincias no atendimento dos servios bsicos, de responsabilidade do Estado, como sade, transporte pblico, segurana pessoal e acesso proteo legal, que incidem principalmente sobre os pobres.

    O lento progresso nessas reas, historicamente carentes, enfrenta inmeros obstculos institucionais. Aumentar os gastos pblicos nestas reas esbarra, de um lado, na resistncia poltica ao aumento da carga tributria e, de outro, nas metas de supervit primrio, estipuladas pela conveno de estabilizao. Reformas dos sistemas de governana desses servios pblicos, incluindo as atribuies de responsabilidade, estabelecimento de metas e procedimentos de monitoramento e avaliao, esbarram em interesses particularistas fortemente constitudos (por exemplo, as empresas privadas de transporte pblico e sua projeo poltica nos governos municipais) e na representao dos pobres por polticos que privilegiam medidas de curto alcance, de natureza clientelstica.11 Desta forma, uma vez mais, so os pobres os principais perdedores da ausncia das reformas (fiscal e administrativa) do Estado brasileiro.

    Em sntese, a conveno desenvolvimentista do governo Lula tambm rene um conjunto de relevantes interesses, econmicos e polticos, embora sua dimenso inclusiva tambm seja restrita. No obstante, importante destacar que a prioridade dada aos pobres, manifesta na reduo dos ndices de pobreza e desigualdade, constitui uma modificao crucial na agenda positiva de desenvolvimento que, dado o seu impacto poltico, tende a se manter.

    a coexistncia entre as duas convenes

    Conforme apontado acima, as duas convenes tm vises das coisas e ncleos duros distintos e atendem interesses diferentes. Tais diferenas se traduzem nas prioridades de modificao estrutural postuladas pelas duas convenes e em agendas de polticas distintas.

    As diferenas nas agendas se expressam de forma clara nas polticas atinentes aos investimentos e taxa de cmbio.

    11 O contraste entre as duas reas de atraso infraestrutura econmica e servios sociais ilustrativo da importncia de coalizes organizadas em torno a objetivos especficos. No primeiro caso, existem projetos, com objetivos e recursos definidos (construir uma hidroeltrica, pavimentar uma estrada), cujos beneficirios imediatos (os construtores) so poucos e dotados de recursos organizativos e polticos. No segundo caso, os objetivos so de longo prazo, com indicadores de sucesso limitados e seus beneficirios so dispersos e desprovidos de recursos eficazes.

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    primeira vista, ambas as convenes compartilham o desejo de ampliar os investimentos, notoriamente baixos no Brasil.

    Para a neodesenvolvimentista, esta a mola do crescimento e, para tanto, segue, para os investimentos privados, uma estratgia de pina: de um lado amplia o mercado, via consumo familiar e governamental e pelos encadeamentos do investimento pblico autnomo, e de outro, concede estmulos fiscais e de crdito, via bancos pblicos, que reduzem o custo do investimento. Ao mesmo tempo vem ampliando os investimentos pblicos, notadamente em infraestrutura e energia. Os diferentes prazos de maturao destas medidas implicam a forte probabilidade de ocorrerem descompassos temporrios entre oferta e demanda em mercados especficos, que, num regime de metas de inflao, podem ser acomodados na margem de variao em torno do centro da meta. A previsibilidade das taxas de juros e cmbio, baixa taxa de juros e taxa de cmbio que mantenha as atividades locais competitivas internacionalmente, constituem ingredientes bsicos de uma agenda de estmulo ao investimento.

    Para o BACEN, o aumento da capacidade de oferta essencial para um cenrio benigno para a inflao futura, evitando que a demanda exera presses sobre o nvel de preos. O Banco no divulga suas estimativas de hiato de produto, mas Barbosa (2009) argumenta que os estudos do BACEN sobre o hiato utilizam procedimentos que, num contexto de acelerao do investimento, tem um vis conservador.

    Dado o poder do BACEN de afetar o crescimento, a ampliao da taxa de investimento tornase essencial no apenas no plano real como no simblico, reduzindo a probabilidade de interrupes no processo de crescimento impostas pelo Banco, para o qual os custos de curto prazo, em termos de atividade econmica perdida, devem ser vistos como um investimento em estabilidade (Bevilaqua et al , 2007, p. 13). Ao investimento em estabilidade seguirseia, algum dia, o investimento em capacidade produtiva. Conforme apontado acima, ao contrair a demanda via aumento da taxa de juros, o BACEN afeta negativamente, de forma direta e indireta, o investimento produtivo.

    A hierarquia de prioridades , pois, distinta entre as duas convenes. A histria recente mostra claramente no apenas as preferncias como o poder do BACEN.

    Assim, o temor da presso de demanda foi um dos principais determinantes da elevao da taxa de juros em setembro de 2004 (alta que durou um ano), visando reduzir o crescimento do PIB, que vinha evoluindo a taxas de cerca de 6% nos trimestres anteriores (ibid ). Como resultado, a taxa de crescimento do PIB caiu de 5,7% em 2004 para 3,2% em 2005.

    Em 2008, o BACEN deu outras demonstraes de poder e conservadorismo. Embora o aumento da inflao no primeiro trimestre fosse atribuvel aos preos internacionais, o Banco a atribuiu presso da demanda interna sobre a capacidade produtiva e, estimando que havia um forte risco da inflao ficar acima do centro da meta (embora dentro da margem de variao de 2%), deu incio, em abril, a um novo e forte ciclo de elevao da taxa bsica de

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    juros, que passou de 11,25% ao ano em maro para 13,75% em setembro. Em outubro, mais de um ms aps a crise internacional tornarse virulenta, o COPOM continuava preocupado com os riscos para um cenrio menos benigno de inflao, postos pelo descompasso entre os aumentos de demanda e oferta (Ata da Reunio 138). diferena dos seus pares no mundo, tanto de pases desenvolvidos como emergentes, o Banco Central manteve a taxa de juros no seu nvel elevado, quando a crise de liquidez e as condies fiscais sugeriam a convenincia de reduzila. Mais, o COPOM acenava claramente com a elevao da taxa de juros se as expectativas de inflao no convergissem para o centro da meta (ibid). Assim, incerteza para a produo e investimentos, decorrente da situao internacional, somavase a produzida pelo BACEN. Com a retrao do crescimento do PIB no ltimo trimestre do ano, o BACEN, alm de adotar medidas de ampliao da liquidez, cortou a Selic, chegando a 8,75% em agosto de 2009, quando deu fim s redues. Embora o investimento tenha apresentado forte contrao em 2009, h consenso que o BACEN voltar aumentar a taxa de juros em 2010.

    Assinalese que, durante as fases de reduo da Selic, h uma convergncia entre os interesses representados pelas duas convenes. A reduo da remunerao dos ttulos do Tesouro e as medidas institucionais que reduziram o risco do crdito pessoal e habitacional, estimulam o sistema financeiro a ampliar sua oferta de crdito. Como a remunerao destas operaes cai menos que a Selic, a expanso do crdito aumenta a rentabilidade do sistema financeiro. Associada ao aumento da massa salarial, a expanso do crdito possibilita forte aumento do consumo familiar e condies mais favorveis para a operao das empresas. Estabelecida entre 2005 e 2008, a convergncia rompeuse com a crise, quando o sistema privado contraiu sua oferta de crdito. Em resposta, sob a orientao do Ministrio da Fazenda, os bancos pblicos ampliaram substancialmente sua participao no mercado, reforando o peso poltico da conveno desenvolvimentista. A convergncia restabeleceuse no segundo semestre de 2009.

    A valorizao do cmbio, agravada recentemente, fornece evidncia adicional sobre as relaes entre as duas convenes. Denunciada como causa de doena holandesa, torna a indstria localizada no pas pouco competitiva no mercado externo e na competio contra importaes, e, no limite, ameaa a economia brasileira de desindustrializao (BresserPereira, 2008). A manterse a valorizao do cmbio, o estmulo a investimentos industriais no pas seria reduzido e haveria perda de densidade das cadeias produtivas, reduzindo os efeitos de encadeamento e sinergia e a capacidade de inovao associada s relaes prximas entre vendedores e produtores.

    A valorizao est associada a movimentos da conta de capitais, alimentados pela alta taxa de juros brasileira e pela busca de aplicaes rentveis por investidores externos. Conta com a inequvoca simpatia do BACEN, que vem tomando medidas para ampliar a liberalizao do cmbio, e dos atores no mercado de crdito e de capitais. Ambos atribuem a valorizao aos funda

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    mentos da economia brasileira. Em contrapartida, refletindo a conveno neodesenvolvimentista, o Ministrio da Fazenda manifestase contra a valorizao e estabeleceu em 2009 uma taxao sobre a entrada de capitais destinados a investimentos mobilirios, que, embora tenha valor simblico, de eficcia limitada.

    Mais eficaz do ponto de vista desenvolvimentista foi a poltica fiscal, especialmente no combate crise de 20089.12 A meta de supervit primrio foi reduzida para 2,5% do PIB e os investimentos da Petrobras excludos do clculo. O consumo das famlias foi fomentado pela antecipao do aumento do salrio mnimo, pelo aumento do valor e da cobertura da Bolsa Famlia e pela reduo de impostos sobre bens de consumo. O investimento foi estimulado pela ampliao de recursos do BNDES e pela reduo da TJLP, assim como por incentivos fiscais para bens de produo e pela manuteno dos investimentos do PAC, ampliados por um novo programa de habitao popular. No entanto, o Ministrio da Fazenda j anunciou a volta, em 2010, meta de supervit primrio de 3,3% do PIB, respondendo normalizao das condies econmicas.

    Existem, porm, pontes entre as duas convenes, que reduzem os conflitos entre elas e, ao mesmo tempo, consolidam a hegemonia da conveno de estabilidade. Entre estas, destacase a percepo de que os pobres tendem a ser os mais prejudicados em perodos de alta inflao e o sucesso poltico das polticas de incluso, que, obtido com baixo custo fiscal e taxas de crescimento relativamente restritas, reduz a importncia de altas taxas de crescimento como instrumento de legitimao poltica, tpica do desenvolvimentismo, seja em seu perodo democrtico (os 50 anos em 5), seja no perodo autoritrio (ningum segura este pas) e permite a conciliao entre as duas convenes.

    A interpretao dominante sobre a crise de 20089 refora esta correlao de foras. Argumentase que a crise foi causada exclusivamente por fatores exgenos, gerados nos pases mais desenvolvidos. No Brasil, inexistiriam fatores estruturais que o tornassem propenso a crises ao contrrio, os fundamentos da economia brasileira seriam mais slidos que os daqueles pases e o Estado brasileiro mostrouse extremamente eficaz na reao crise. A rpida recuperao da economia, a partir do segundo semestre de 2009 e a expectativa de uma volta aos patamares de crescimento e inflao prcrise seriam a demonstrao inequvoca de que a conveno de desenvolvimento existente a melhor possvel.

    Em sntese, a convivncia entre as duas convenes se estabelece sob a hegemonia da conveno institucional restrita, assegurada pelo controle do trip de polticas macroeconmicas e pelo fato das polticas neodesenvolvimentistas no ferirem os interesses representados pela conveno instituciona

    12 Uma descrio minuciosa das medidas tomadas, com as referncias aos atos jurdicos, encontrase em PAC (2009).

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    lista restrita, desde que as polticas em que esta ltima se materializa sejam mantidas. A combinao entre as duas convenes atende a uma ampla gama de interesses, que a torna muito forte, nos termos antes definidos.

    Convenes alternativas

    Conforme apontado acima, em toda sociedade complexa existem vrias convenes de desenvolvimento que disputam a hegemonia. No Brasil contemporneo destacamse duas vises crticas s convenes acima descritas.

    De um lado, h uma forte reao liberal ao desenvolvimentismo presente no governo Lula, notadamente ao aumento da participao do Estado na economia. Criticamse o protagonismo das empresas e bancos pblicos, a carga tributria e o aumento dos gastos correntes. Dados, porm, o colapso do modelo liberal no mundo e o seu desempenho no Brasil, a probabilidade que esta venha a se tornar uma conveno dominante parece remota.

    De outro lado, economistas, principalmente de origem pskeynesiana, crticos da conveno liberal, tm levado frente um conjunto de estudos e propostas de poltica econmica que tem a inteno de fundar uma nova conveno de desenvolvimento, aplicvel aos pases de renda mdia. Reunidos sob a expresso novodesenvolvimentismo, buscam a virtus in medio, situandose, no plano poltico, entre o liberalismo e o socialismo e, no plano econmico, entre o desenvolvimento endgeno e a integrao internacional (Sicsu, de Paula & Michel, 2005; Sicsu & Vidotto, 2008).

    Uma sistematizao recente dos aspectos macroeconmicos (BresserPereira e Gala, 2010) enfatiza sua especificidade, demarcando as diferenas com o tradicional pensamento estruturalista latinoamericano (por exemplo, em relao complacncia com a inflao e os dficits pblicos e centralidade da poltica industrial) e, notadamente, com o mainstream neoliberal. Contra este, argumenta que a nao o agente responsvel pela definio da principal instituio para o desenvolvimento uma estratgia nacional13 e que, portanto, as trajetrias de desenvolvimento tem especificidades nacionais. Ainda no plano institucional, defende o fortalecimento do Estado, notadamente, de sua capacidade de regular os mercados e executar polticas industriais estratgicas.

    Do estruturalismo, recupera a existncia, nestes pases, de tendncias valorizao da taxa de cmbio, causando os problemas da doena holandesa (BresserPereira, 2008) e ao crescimento dos salrios inferior aos aumentos de produtividade, que acarreta problemas de distribuio de renda e falta de demanda efetiva. Finalmente, contrapese fortemente ideia, compartilhada por neoliberais e antigos desenvolvimentistas, de que o desenvolvimento tenha que ser financiado por poupanas externas.

    13 A esse respeito, ver tambm Sics (2008).

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    Em consequncia, prope uma poltica macroeconmica distinta da atual, em que a taxa de cmbio seja administrada, inclusive atravs de controles de capitais, visando a uma taxa de equilbrio industrial, o padro fiscal seja mais rigoroso em termos de dficit pblico e que a poltica de rendas seja tal que os salrios cresam de acordo com os aumentos de produtividade.

    A recuperao da nao como agente econmico e de uma estratgia nacional de desenvolvimento como instituio traz ao primeiro plano a problemtica da economia poltica em termos da composio de interesses do agente nacional e da estratgia de desenvolvimento a ser seguida.

    CONCLUSES

    Argumentamos acima que o processo de desenvolvimento requer um dispositivo congnitivo coletivo, composto por conhecimentos codificados e tcitos, que permita hierarquizar problemas e solues e facilitar a coordenao entre os atores sociais uma conveno de desenvolvimento. Esta conveno reflete a distribuio de poder econmico e social na sociedade, constituindo, pois, um objeto de economia poltica.

    Atualmente, aps o fracasso da conveno neoliberal, no h, internacionalmente, uma conveno de desenvolvimento hegemnica. Embora a crise em curso tenha descartado alguns postulados como a capacidade de autorregulao dos mercados e tenha recolocado o Estado num papel central, a indefinio quanto a uma conveno de desenvolvimento foi provavelmente ampliada. A sada da crise nos pases desenvolvidos atua a favor das foras, notadamente o capital financeiro internacional, que tm interesse em retornar, tanto quanto possvel, ao status quo ante

    No governo Lula, havia, desde o incio, o reconhecimento da necessidade de uma nova conveno de desenvolvimento e que, no governo duas convenes disputavam a hegemonia, a que chamamos de institucionalista restrita e neodesenvolvimentista. As convenes apresentam vises de mundo e ncleos duros analticos distintos e so, portanto, ontolgicamente conflitivas. A convivncia entre elas se d atravs da hegemonia da primeira, que privilegia a estabilidade de preos ao custo de um desenvolvimento restrito.

    Sumariamente, a hegemonia explicada, de um lado, pela fora da coalizo conservadora que sustenta a primeira, somada percepo de que as polticas desenvolvimentistas e de incluso no prejudicam os interesses desta coalizo e, de outro, pela percepo de que taxas de crescimento restritas no obstam a incluso social e que os pobres so os mais prejudicados pela alta inflao.

    A convivncia das duas convenes atende a uma ampla gama de interesses, que conferelhe fora. Esta ampliada pela retomada da atividade econmica aps a crise, que enseja a interpretao de que a crise foi de natureza exgena e o desenvolvimento em curso satisfatrio. No entanto, a mdio pra

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    zo, a contradio entre investimentos produtivos e a poltica macro de juros altos e cmbio valorizado tende a exacerbar os conflitos.

    Conforme previsto pelo quadro analtico proposto, as duas convenes presentes no Governo no exaurem o debate. Na sociedade civil esto presentes pelo menos duas convenes que radicalizam o debate uma conveno mais liberal, que se ope ampliao dos papeis do Estado e outra conveno autodenominada novodesenvolvimentista, que prope uma sntese entre elementos de origem keynesiana e do antigo desenvolvimentismo que leva a polticas macro distintas das atualmente em vigor.

    Para concluir, chamamos a ateno para o fato de que nenhuma das duas convenes em disputa no Governo enfrenta os problemas da transformao do Estado, notadamente as reformas poltica, fiscal e administrativa, que, a nosso juzo, so essenciais para um processo de desenvolvimento alto, sustentvel e inclusivo. Possivelmente, a explicao para este silncio encontra suas razes na governana que caracteriza o presidencialismo de coalizo brasileiro e que acaba por induzir a dependncia em relao trajetria passada e tem, assim, um forte vis conservador.

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