AS COTAS DE TELEVISÃO DO CAMPEONATO BRASILEIRO E O “APARTHEID FUTEBOLÍSTICO”

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AS COTAS DE TELEVISO DO CAMPEONATO BRASILEIRO E O APARTHEID FUTEBOLSTICO

Emanuel Ferreira Leite Jnior

INTRODUOO presente trabalho visa a analisar um controvertido assunto: a distribuio dos recursos advindos dos contratos de direito de transmisso do campeonato brasileiro de futebol. O esporte hoje responsvel por 1,5% do PIB brasileiro, e tem no futebol o seu carro chefe. Cerca de 70% dos investimentos publicitrios nas transmisses esportivas se concentram no futebol. Em termos globais, o futebol j responde por 1,25% do PIB mundial. , indubitavelmente, um grande negcio. No Brasil, o negcio do campeonato brasileiro de futebol da Srie A (principal competio de mbito nacional) se encontra sob o poder de uma associao privada (Clube dos Treze), que domina as negociaes e concentra os recursos, criando um pequeno e restrito grupo de elite, privilegiado, em detrimento de todos os outros, gerando uma brutal desigualdade. Fazendo surgir, assim, o que se pode denominar de apartheid futebolstico. O valor prtico do estudo est em fomentar a discusso a respeito de um assunto pouco debatido: o grave problema que ocorre na gesto de recursos do futebol brasileiro, considerado o esporte nacional, a paixo de um povo. DEMOCRACIA E IGUALDADE Etimologicamente, a palavra democracia tem origem no termo grego dmokrata, que significa o governo do povo; a soberania popular. Demos = povo e kratos = fora, poder. Democracia, em seu primeiro significado o poder que emana do povo; h democracia no Estado em que o povo detiver o poder. Como regime poltico, de acordo com Abraham Lincoln, a democracia o governo do povo, pelo povo, para o povo. O artigo 1 da Constituio Federal de 1988 consagra o Estado Democrtico de Direito em seu texto: Art. 1 A Repblica Federativa do Brasil, formada pela unio indissolvel dos Estados e Municpios e doDistrito Federal, constitui-se em Estado Democrtico de Direito e tem como fundamentos [...] (grifo nosso).

O artigo 5, caput, da Constituio Federal de 1988, ao afirmar que todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza, no nivela apenas os cidados ante a norma legal positivada, submete o legislador e, conseqentemente, a legislao ao princpio da igualdade, vez que nenhuma lei deve ser editada em contrariedade isonomia, sendo vedada, portanto, qualquer forma de diferenciao ou discriminao. Tratar eqitativamente todos os cidados que se encontram em situaes idnticas, pois no se pode olvidar da mxima de Aristteles: a igualdade consiste em tratar os iguais igualmente e os desiguais na medida de sua desigualdade. Todavia, Celso Antnio Bandeira de Mello alerta para o questionamento essencial: quem so os iguais e quem so os desiguais?. A resposta a esta questo elucida a dvida a respeito de quais discriminaes so juridicamente intolerveis. imprescindvel a existncia de critrios distintivos razoveis os quais justifiquem os tratamentos

jurdicos diversos. A lei precisa de levar em conta as diferenas que h entre os vrios grupos que compem a sociedade. O princpio da igualdade no busca um igualitarismo absoluto e muito menos permite que ocorram diferenciaes e discriminaes absurdas e arbitrrias. A isonomia visa a garantir o respeito aos semelhantes e suas peculiaridades, enfim, o respeito sociedade plural e democrtica. PEC-10/2007, CLUBE DOS TREZE E A DIVISO DESIGUAL De autoria do Deputado Federal Andr de Paula (DEM/PE), a Proposta de Emenda Constituio10/2007 pretende alterar a Constituio Federal, acrescentando um novo pargrafo, o 4, ao seu art. 217, o qual trata do Desporto. A PEC-10/2007 promove a necessidade de uma regulamentao que vise a acabar com as discrepncias existentes na forma como conduzida a distribuio dos recursos decorrentes, principalmente, dos contratos de direitos de transmisso do campeonato brasileiro de futebol da Srie A (primeira diviso). O responsvel pelas negociaes dos direitos de transmisso do campeonato em tela o Clube dos Treze. Bem como o Clube dos Treze que divide e distribui os recursos provenientes dessas negociaes. Autodenominado Unio dos Grandes Clubes do Futebol Brasileiro (art. 1 do seu estatuto), o Clube dos Treze uma pessoa jurdica de direito privado, constituda como associao de administrao do esporte, modalidade futebol profissional, nos termos da Constituio Federal (artigos 5, XVII e XXI, e 217, I) e dos artigos 44, I e 54 a 61 do Cdigo Civil Brasileiro. Trata-se de uma associao civil composta por vinte (20) clubes de futebol. Ao repartir os recursos entre os clubes participantes do campeonato brasileiro, o Clube dos Treze age sem critrios de eqidade, priorizando os seus associados em desproveito das demais associaes esportivas as quais no fazem parte de seu seleto grupo. O Clube dos Treze criou divises dentre os seus prprios membros, as quais separam clubes por hierarquias, os superiores recebem valores mais elevados do que os inferiores. Atualmente as chamadas cotas de televiso esto assim distribudas: Grupo 1: R$21 milhes So Paulo, Flamengo, Corinthians*, Palmeiras e Vasco; Grupo 1A: R$18 milhes Santos; Grupo 2: R$15 milhes Atltico-MG, Cruzeiro, Internacional, Grmio, Botafogo e Fluminense; Grupo 3: R$11,5 milhes Bahia*; Grupo 4: R$11 milhes Portuguesa, Gois, Sport, Vitria, Atltico-PR, Coritiba e Guarani.** Clubes que no fazem parte do Clube dos Treze: Nutico R$5 milhes; Figueirense R$4,7 milhes; Ipatinga R$3,4 milhes. *Corinthians e Bahia, por estarem na Srie B em 2008, recebem 50% do valor. Ou seja, o Corinthians recebeu R$10,5 milhes e o Bahia R$5,75 milhes. **Guarani, por estar na Srie C em 2008, recebe 25% do valor. Portanto, o Guarani recebeu R$2,25

milhes. justo um clube da Srie B ser contemplado com recursos referentes aos direitos de transmisso do campeonato da Srie A? Como pode o Corinthians, por exemplo, que est na Srie B receber recursos que dizem respeito ao campeonato da Srie A? E, ainda mais insensato: qual a justificativa para um clube que no disputa a Srie A do campeonato brasileiro perceber valor superior a clubes que dele participam? O que justifica tamanho absurdo? Esta inaceitvel distoro fere a democracia em seu mago. Assemelha-se muito mais a uma oligarquia, sistema de governo que contraria diametralmente a democracia. Oligarquia, na viso de Aristteles, um governo mau de poucos, como explica Bobbio[1]:Do mesmo modo, oligarquia, que significa propriamente governo de poucos, corresponde a governo mau de poucos () O termo oligarquia conservou de fato, nos sculos seguintes, seu significado pejorativo original; ainda hoje se costuma falar de oligarquias, no sentido negativo, para designar grupos de poder restritos que governam sem o apoio popular (contrapondo-se assim democracia).

Gera-se uma segregao, uma apartao que divide clubes grandes dos pequenos, contribuindo para o engessamento da mobilidade entre os clubes. Se a frica do Sul viveu por longos anos um apartheid racial, sistema deplorvel e repugnante; e o Brasil se encontra hoje em uma situao de apartheid social, como bem alerta Cristovam Buarque, possvel, sem qualquer exagero, fazer uma analogia entre esta apartao social e a concentrao dos recursos no futebol brasileiro e, conseqentemente, dizer que, lastimavelmente, no futebol essa apartao tambm se verifica nas relaes entre os clubes e entidades desportivas, gerando o que se pode denominar de apartheid futebolstico. Esta distino, ao concentrar o poder nas mos de poucos clubes, criando o apartheid futebolstico, aumenta o fosso da desigualdade social e regional, grande problema que assola o Brasil, ferindo, por conseguinte, um princpio fundamental do Estado brasileiro: reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3, III, CF/88) [2]. Sobre a concentrao de poder disse Noam Chomsky[3]:O poder concentrado sob qualquer forma no se quer sujeitar ao controle democrtico e popular [] Por isso, os setores mais poderosos, inclusive empresariais, se opem naturalmente a uma democracia que funcione, assim como se opem a um mercado que funcione A no ser que seja em seu benefcio. Isto natural: no querem que haja restries externas sua capacidade de decidir e agir livremente.

Agride-se diretamente o princpio da igualdade, pois cria distines e discriminaes absurdas, sem fundamento ou justificativas. E, como proclamou Montesquieu, o amor pela repblica, numa

democracia, o amor pela democracia; o amor pela democracia o amor pela igualdade[4]. Em conseqncia agresso ao princpio da igualdade, macula-se o prprio esprito esportivo, o elemento essencial de uma competio esportiva: a competitividade entre os adversrios. Com isto, fere-se o Estatuto do Torcedor (Lei 10671/2003), o qual, em defesa e proteo do torcedor, busca a competitividade, atravs da imposio de critrios tcnicos, como, por exemplo, previsto no art. 10, 1. Nas trs maiores ligas nacionais da Europa (em faturamento), Inglaterra, Itlia e Alemanha, existem critrios mais equnimes e democrticos. Na Inglaterra, a Premier League, terceira maior liga de esportes no mundo e maior liga de futebol, por exemplo, o dinheiro dividido em trs partes[5]: 1. 2. 50%: so divididos igualitariamente entre todos os clubes. 25%: baseados na classificao final da temporada anterior, ou seja, premia o mrito desportivo. 3. 25%: variveis de acordo com o nmero de partidas transmitidas pela TV.

Esses valores so referentes aos direitos domsticos, pois os valores dos direitos internacionais so divididos por igual entre os 20 clubes que participam da competio (na ltima temporada foram mais de 3 bilhes de telespectadores, espalhados por cerca de 203 pases). Com a aprovao da PEC-10/2007, tornar-se- necessria a elaborao de uma lei que regulamente a distribuio das cotas de televiso, oriundas da venda dos direitos de transmisso do campeonato brasileiro de futebol. possvel se chegar a termos razoveis e se elaborar uma lei que venha a definir critrios tcnicos e desportivos, reverenciando a isonomia e consagrando a competitividade, valor perseguido pelo Estatuto do Torcedor.

CONCLUSO O presente estudo objetivou reunir elementos fomentadores de uma nova realidade para o futebol brasileiro. A forma como os recursos dos contratos de transmisso do campeonato brasileiro so administrados no Brasil tem acentuado as disparidades regionais, contrariando um princpio fundamental do Estado brasileiro: reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3, III, CF/88). Vive-se hoje uma situao que caminha para o inevitvel e lastimoso apartheid futebolstico, reproduo na esfera desportiva do apartheid social, o fosso intransponvel que separa os includos dos excludos na atual conjuntura mundial, que tem no Brasil o seu maior espelho[6]. Como conseqncia, h um frontal agravo ao direito fundamental do Princpio da Igualdade. Disse Descartes na abertura do clssico Discurso do Mtodo: inexiste no mundo coisa mais bem distribuda que o bom senso [7]. Se no h bom senso por parte de quem comanda o futebol

brasileiro, a aprovao e entrada em vigor da PEC-10/2007 de suma importncia para o equilbrio e a persecuo da igualdade no futebol brasileiro. Uma lei que busque fundamento em critrios tcnicos, trazendo consigo um tratamento justo e equnime, respeitando a isonomia e a competitividade entre os clubes participantes de um campeonato, a soluo ideal para que se caminhe a passos firmes na direo da moralidade e do fortalecimento da democracia no s no futebol, como em toda a sociedade brasileira. REFERNCIAS BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. Traduo de Srgio Bath, 4. ed. Braslia: Universidade de Braslia, 1985. BUARQUE, Cristovam. A segunda abolio. 1. ed. So Paulo: Paz e Terra, 1999. BULOS, Uadi Lammgo. Constituio federal anotada. 5. ed. So Paulo: Saraiva, 2003. CHOMSKY, Noam. Segredos, mentiras e democracia. Traduo de Alberigo Loutron, 1. ed. Braslia: UNB, 1999. DESCARTES, Ren. Discurso do mtodo. Coleo Os Pensadores. So Paulo: Nova Cultural, 2000. KELSEN, Hans. A democracia. Traduo de Ivone Castilho Benedetti e outros, 2. ed. So Paulo: Martins Fontes, 2000. MELLO, Celso Antnio Bandeira. Contedo jurdico do princpio da igualdade. 3. ed. 16 tiragem. So Paulo: Malheiros, 2008. MONTESQUIEU. Do esprito das leis. Coleo Os Pensadores. So Paulo: Nova Cultural, 2000. MORAES, Alexandre. Direito constitucional. 12. ed. So Paulo: Atlas, 2002. SILVA, Jos Afonso. Comentrio contextual constituio. 3. ed. So Paulo: Malheiros, 2007. ______. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. So Paulo: Malheiros, 2005. Monografia: LEITE JR., Emanuel Ferreira. A diviso das cotas de televiso do campeonato brasileiro de futebol luz do princpio da igualdade. Recife: 2008.

Revista: BERTOZZI, Priscila. A capital do futebol. Revista Mquina do Esporte. So Paulo, ano 1, n. 6, ago. 2008. Meio Eletrnico: PARKES, Rich et. al., Football Money League, feb. 2008. Disponvel em: . Acesso em 24 set. 2008 PAULA, Andr. Proposta de Emenda Constituio n10/2007, fev. 2007. Disponvel em . Acesso em: 24 set. 2008. SMANIOTO, Luciano. Figueira mais prximo do Clube dos 13, 2008. Disponvel em: . Acesso em: 23 set. 2008.

[1] BOBBIO, Norberto. A Teoria das Formas de Governo. Trad. de Srgio Bath, 4. ed. Braslia: Universidade de Braslia, 1985. p. 56. [2] PAULA, Andr. Proposta de Emenda Constituio n10/2007, fev. 2007. Disponvel em . Acesso em: 24 set. 2008. [3] CHOMSKY, Noam. Segredos, Mentiras e Democracia. Trad. de Alberigo Loutron, 1. ed. Braslia: UNB, 1999. p. 16. [4] MONTESQUIEU. Do Esprito das Leis. Coleo Os Pensadores. So Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 84. [5] BERTOZZI, Priscila. A capital do futebol. Revista Mquina do Esporte. So Paulo, n. 6, p. 3235, ago. 2008. [6] BUARQUE, Cristovam. A segunda abolio. 1. ed. So Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 33 e 34. [7] DESCARTES, Ren. Discurso do Mtodo. Coleo Os Pensadores. So Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 35.