AS DIVERSAS PERFORMATIVIDADES DA TESTOSTERONA …€¦ · como uma ferramenta de construção de...

12
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X AS DIVERSAS PERFORMATIVIDADES DA TESTOSTERONA RELACIONADAS À MATERIALIZAÇÃO DE MASCULINIDADES Flávia Luciana Magalhães Novais 1 Paula Sandrine Machado 2 Resumo: O presente trabalho integra uma pesquisa dissertativa mais ampla, que tem como objetivo principal compreender diferentes modulações da articulação entre testosterona e masculinidades, a partir dos múltiplos atores e redes que se formam no agenciamento de seus diversos tipos e processos de subjetivação articulados. Ou seja, pretende-se perceber as múltiplas maneiras pelas quais a testosterona é performada nessas articulações, de acordo com o modo de existência de sujeitos inscritos nas masculinidades que fazem uso da substância, seus efeitos na formação de suas subjetividades e na produção de seus corpos, considerando as diferenças de classe, escolaridade, raça e identidade de gênero que os atravessam. Parte-se da noção de Ontologias Múltiplas, de Annemarie Mol, bem como empreende-se uma análise sobre a utilização da testosterona para a materialização de corpos de sujeitos inscritos nas masculinidades, entendendo-se o uso de substâncias para produção de si, baseada em aprimoramentos que integram uma rede onde se articulam diferentes campos tais como médico/jurídico/mercadológico , como sendo uma característica das sociedades contemporâneas. Palavras-chave: Testosterona. Hormônio. Subjetividades. Performatividade. Introdução O seguinte paper tem como principal enfoque a discussão acerca da substância testosterona como um artefato de vida nas trajetórias de homens tanto cis como trans 33 . É fruto de uma pesquisa etnográfica, que se propõe a conhecer e analisar as múltiplas articulações da testosterona com o modo de existência desses sujeitos na formação de suas subjetividades. Encarar o hormônio 1 Mestranda do Programa de Pós Graduação em Psicologia Social e Institucional UFRGS. Possui graduação em Serviço Social pela Universidade Federal do Maranhão UFMA (2011) 2 Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2000), mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004) e doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2008). Porto Alegre RS, Brasil 3 Respectivamente: pessoas que estão de acordo com o sexo assignado a elas no momento de seu nascimento e as que discordam com o gênero ao qual foram resignadas

Transcript of AS DIVERSAS PERFORMATIVIDADES DA TESTOSTERONA …€¦ · como uma ferramenta de construção de...

Page 1: AS DIVERSAS PERFORMATIVIDADES DA TESTOSTERONA …€¦ · como uma ferramenta de construção de si, seja em prol do melhoramento físico ou construção de suas identidades a partir

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

AS DIVERSAS PERFORMATIVIDADES DA TESTOSTERONA

RELACIONADAS À MATERIALIZAÇÃO DE MASCULINIDADES

Flávia Luciana Magalhães Novais1

Paula Sandrine Machado2

Resumo: O presente trabalho integra uma pesquisa dissertativa mais ampla, que tem como objetivo

principal compreender diferentes modulações da articulação entre testosterona e masculinidades, a

partir dos múltiplos atores e redes que se formam no agenciamento de seus diversos tipos e

processos de subjetivação articulados. Ou seja, pretende-se perceber as múltiplas maneiras pelas

quais a testosterona é performada nessas articulações, de acordo com o modo de existência de

sujeitos inscritos nas masculinidades que fazem uso da substância, seus efeitos na formação de suas

subjetividades e na produção de seus corpos, considerando as diferenças de classe, escolaridade,

raça e identidade de gênero que os atravessam. Parte-se da noção de Ontologias Múltiplas, de

Annemarie Mol, bem como empreende-se uma análise sobre a utilização da testosterona para a

materialização de corpos de sujeitos inscritos nas masculinidades, entendendo-se o uso de

substâncias para produção de si, baseada em aprimoramentos que integram uma rede onde se

articulam diferentes campos – tais como médico/jurídico/mercadológico –, como sendo uma

característica das sociedades contemporâneas.

Palavras-chave: Testosterona. Hormônio. Subjetividades. Performatividade.

Introdução

O seguinte paper tem como principal enfoque a discussão acerca da substância testosterona

como um artefato de vida nas trajetórias de homens tanto cis como trans33. É fruto de uma pesquisa

etnográfica, que se propõe a conhecer e analisar as múltiplas articulações da testosterona com o

modo de existência desses sujeitos na formação de suas subjetividades. Encarar o hormônio

1 Mestranda do Programa de Pós Graduação em Psicologia Social e Institucional – UFRGS. Possui graduação

em Serviço Social pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA (2011)

2 Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. Possui graduação

em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2000), mestrado em Antropologia Social pela

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004) e doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal do

Rio Grande do Sul (2008). Porto Alegre – RS, Brasil

3 Respectivamente: pessoas que estão de acordo com o sexo assignado a elas no momento de seu nascimento e

as que discordam com o gênero ao qual foram resignadas

Page 2: AS DIVERSAS PERFORMATIVIDADES DA TESTOSTERONA …€¦ · como uma ferramenta de construção de si, seja em prol do melhoramento físico ou construção de suas identidades a partir

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

testosterona como um artefato a partir das discussões apresentadas por Bruno Latour sobre atores

não humanos é, antes de mais nada, evidenciar a ultrapassagem das fronteiras entre Natureza e

Cultura, já que hormônios sexuais são substâncias tanto produzidas pelo próprio corpo como

sintetizadas artificialmente e integram uma rede que articula diferentes campos como

médico/jurídico/mercadológico.

A emergência desses questionamentos remete-se, principalmente, à atuação da primeira

autora como coordenadora do Grupo de Vivências de Pessoas Trans no projeto de extensão Centro

de Referência de Direitos Humanos (CRDH) vinculado ao Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e

Relações de Gênero (NUPSEX) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É

comum que os homens trans participantes do grupo relatem sobre a utilização da testosterona:

dúvidas, comparações, medos, troca de contatos de profissionais. A demanda pela hormonioterapia,

com o intuito do resgate de um corpo idealizado, de sua identidade, é um dos muitos artifícios

utilizados para que esses sujeitos possam decodificar seu gênero no qual estes se identificam

(MARANHÃO; NERY, 2015). Inseridos em um processo tido como a construção hormonal do

conceito de corpo, estes homens buscam a partir da utilização da testosterona a construção de si

(NELLY OUDSHOORN, 1994).

Em nossa sociedade, as normas médicas e jurídicas têm por base um sistema de sexo/gênero

do tipo binário, cujas diferenças baseiam-se especialmente no formato dos genitais externos

(VENTURA, 2010). Esse sistema de sexo-gênero é adotado por práticas jurídicas e médicas que a

partir de uma relação intrínseca entre saber e poder, determinam os corpos “sexuados” que

correspondem a uma coerência entre sexo, gênero, desejos e prazeres, sendo assim inteligíveis tanto

para a sociedade, como para si mesmos (ARÁN, 2006).Transexualidades compreendidas como

discursos e práticas surgem a partir do século XIX, como resultado do desenvolvimento da Scienta

Sexualis que de maneira geral, preconizava que dentro de um contexto de medicalização do corpo

individual e social, era necessário determinar quais seriam corpos “inoportunos” para que estes

fossem catalogados e recolocados dentro da lógica binária considerada saudável (LIMA, 2014).

Perversões e anormalidades entraram no discurso médico, especialmente tratando-se de perversões

sexuais, que precisavam ser corrigidas e por isso foram colocadas como principais objetos de

conhecimento.

A patologização de identidades transexuais encontra-se nos dias de hoje, ainda relegada a

preceitos que possuem resquícios dessas determinações baseadas em corpos compreendidos como

naturais por se inscreverem na lógica binária. Determinações essas que colocam tais sujeitos em

Page 3: AS DIVERSAS PERFORMATIVIDADES DA TESTOSTERONA …€¦ · como uma ferramenta de construção de si, seja em prol do melhoramento físico ou construção de suas identidades a partir

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

situação de exclusão, marginalização e expostos à violência em diversos âmbitos, que culminam

inclusive na morte. É necessário que seja superado o ideal de um sistema de sexo-gênero

cisnormativo ao conceber a masculinidade e feminilibilidade não como algo imediatamente ligado a

corpos biologicamente machos ou fêmeas, mas como processos que são acionados através de

determinadas práticas, tecnologias, procedimentos, performances (KULLICK, 2008).

Pensa-se como objetivo deste trabalho dialogar acerca das mudanças contemporâneas na

forma como se constroem as subjetividades, na medida em que substâncias como a testosterona

atuam como artefatos para a construção de vidas, subjetividades e corpos, tentando compreender os

caminhos percorridos pelas diferentes demandas e processos nos quais ela se insere, a partir das

múltiplas realidades, performances e versões que seus efeitos materializam nos corpos dos sujeitos.

Este paper se constrói enfocando processos de constantes aprimoramentos físicos tão

característicos da contemporaneidade, pensados a partir da utilização da testosterona por homens

como uma ferramenta de construção de si, seja em prol do melhoramento físico ou construção de

suas identidades a partir da materialização dos efeitos dessa substância em seus corpos. A rede

descrita na pesquisa começou a ser tecida através do contato com as demandas relacionadas à

homens trans participantes do grupo coordenado pela primeira autora e estende-se através da

utilização dessa substância em contextos diferentes, a partir de entrevistas com personal trainers,

participantes de academias de ginástica, pesquisas na internet em diversos sites, blogs e vídeos, bem

como em artigos científicos.

A testosterona relacionada a produção de corpos sexuados

Inspirado em Ludwik Fleck, Nikolas Rose (2011) utiliza a categoria “estilos de pensamento”

para pensar nas maneiras pelas quais alguns fenômenos são percebidos como relevantes e são

inteligíveis dentro de um contexto social. Inserido numa complexa rede de disputas, significações e

discursos, o corpo humano pode ser pensado tanto como um conjunto de músculos e sistemas, como

também compreendido enquanto constantemente produzido cultural e historicamente. Assim, neste

trabalho, utilizamos o conceito de “cidadão biológico” (ROSE, 2011) através do qual articula-se a

construção contemporânea de uma cidadania que tem o corpo biológico como principal foco de

reivindicações de direitos e, inclusive, de existência.

Atualmente, valoriza-se para muito além do corpo físico e dos processos de adoecimento ou

morte das populações. O ideal de corpo sadio está inscrito nas subjetividades de todos os sujeitos e

Page 4: AS DIVERSAS PERFORMATIVIDADES DA TESTOSTERONA …€¦ · como uma ferramenta de construção de si, seja em prol do melhoramento físico ou construção de suas identidades a partir

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

é central para a autoadministração de indivíduos. Trata-se da emergência do ideal de “cidadão

ativo” e da responsabilização de todos os indivíduos pela manutenção de corpos sadios, bem como a

transformação de pacientes em consumidores de bens e serviços voltados a esses fins (ROSE,

2011).

Compreendemos a atuação médica contemporânea não mais como mero instrumento

utilizado para o controle e cura de doenças, mas sim como baseada na utilização de tecnologias da

vida para aprimoramento e otimização. O termo “tecnologia” é utilizado pelo autor para se referir a

uma série de agenciamentos entre relações sociais, humanas, áreas de conhecimento e instrumentos

que perpassam as vivências dos seres humanos. Ou seja, as tecnologias médicas não são mais

encaradas como mero conhecimento médico, mas requerem uma série de conjuntos de relações

sociais favoráveis à sua utilização. Essas tecnologias de vida possuem uma visão focada no

aperfeiçoamento do corpo, em prol de um futuro saudável (ROSE, 2011).

Latour (2004) define o corpo humano não como uma essência, mas como uma interface que

adquire sentido quando afetado por outros elementos. O corpo, segundo o autor, é o local onde

tornamos visíveis as dinâmicas pelas quais registramos o que é feito com e pelo mundo. Nesse

aspecto, no decorrer da vida, objetos, substâncias, materiais determinam e servem de plano de fundo

para ações humanas e além disso, são capazes de autorizar, permitir, estimular, interromper,

possibilitar comportamentos e ações. A estes objetos e materiais que são colocados em discurso que

põem em xeque as fronteiras delineadas entre o Cultural e o Natural, o autor classifica como atores

não humanos.

Logo, pensamos a construção da testosterona para além de uma mera substância, mas como

uma rede que possibilita uma interação de determinados sujeitos com o mundo a partir da

materialização de corpos masculinos nas vivências de homens cis e trans. Ao entendermos a

testosterona a partir da teoria Ator-Rede (LATOUR, 2005), pensaremos essa substância de uma

maneira mais plural e ampla, levamos em consideração os inúmeros caminhos que ela percorre de

acordo com a sua utilização pelos sujeitos. Assim, compreenderemos a testosterona não como uma

substância apenas, mas entendendo suas diversas formas de utilização e demandas, inscritas dentro

de um complexo jogo de interesses e motivações. Compreende-se a testosterona como um ator-rede,

por ser capaz de modificar uma situação, permitindo, influenciando, sugerindo determinadas ações

humanas, além de servir como um artefato para a produção de si onde as modificações

materializadas em determinados corpos são instrumentos de performance de gênero, construção de

suas subjetividades e fortalecimento de identidades para determinados sujeitos.

Page 5: AS DIVERSAS PERFORMATIVIDADES DA TESTOSTERONA …€¦ · como uma ferramenta de construção de si, seja em prol do melhoramento físico ou construção de suas identidades a partir

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Atualmente destaca-se uma dita valorização dos hormônios para a garantia do bem estar e a

saúde dos indivíduos, baseados na noção de um “corpo hormonal” produzidos pelas concepções

biomédicas (ROHDEN, 2008). Concepções estas que não escapam às normas binárias que

determinam que os indivíduos devam se encaixar num modelo específico de masculinidade e

feminilidade. Hormônios são substâncias que funcionam dentro de um jogo complexo onde

mecanismos compostos de discursos ou práticas, como afirmado na obra de Oudshoon (1994), bem

como revelam um mecanismo de controle de corpos e sexualidade na contemporaneidade, a partir

da compreensão destes como dispositivos de controle e disputas entre saber/poder (FOUCAULT,

2002). É essencial pensar nos processos de transformações físicas e subjetivas proporcionadas pela

utilização da testosterona, mas para além disso, pensar nas possíveis redes de articulação que essa

substância se insere.

Uma simples pesquisa na Internet sobre a testosterona demonstra que a disseminação de sua

utilização está inscrita num contexto onde os sujeitos inscrevem-se no que Nikolas Rose (2011)

denominou de estilos de pensamento que determinam maneiras particulares de pensar, agir e

perceber a realidade. Ou seja, o uso disseminado dessa substância por determinados indivíduos que

buscam um melhoramento corporal, responde a fenômenos que são percebidos como relevantes,

que determinam o que seria um corpo saudável, dentro de uma lógica calcada por esses estilos de

pensamento.

Testosterona e masculinidades

A testosterona ainda é pensada como um hormônio essencialmente masculino. A construção

de diagnósticos médicos sobre a disfunção erétil masculina demonstra a criação de um mercado

consumidor para tal substância (ROHDEN, 2011) pensando a sua utilização para a “correção”, por

assim dizer, de uma condição patológica masculina. Quando a testosterona é demandada por

sujeitos que não estão inseridos na cisnorma, muitos dos questionamentos que surgem estão direta

ou indiretamente ligados ao fato das transexualidades serem encaradas como patologias. A

dificuldade em conseguir um acompanhamento médico adequado para a prescrição de tal substância

é fator determinante para que muitos desses sujeitos busquem a automedicação ou ao mercado

ilegal, por vezes colocando em risco sua integridade física.

Em pesquisas nas bases de dados Scielo, LILACS e National Center for Biotechnology

Information (NCBI), percebe-se, na grande maioria dos trabalhos, uma visão de que a testosterona é

Page 6: AS DIVERSAS PERFORMATIVIDADES DA TESTOSTERONA …€¦ · como uma ferramenta de construção de si, seja em prol do melhoramento físico ou construção de suas identidades a partir

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

um hormônio de corpos compreendidos como masculinos, sob a justificativa de que são nesses

corpos que essa é produzida de forma predominante. Paulo César Ribeiro (2001) caracteriza a

testosterona como um esteroide androgênico proveniente do colesterol que, segundo o autor, tanto

ela como seus metabólitos (tais como a diidrotestosterona) agem em muitas partes do corpo,

produzindo as características secundárias sexuais compreendidas de maneira geral como

masculinas: calvície, pelos no rosto e corpo, voz grossa, maior massa muscular, pele mais grossa e

maturidade dos genitais. Segundo dados trazidos pelo autor, a produção normal no homem adulto é

de cerca de 4 a 9mg por dia, que pode ser aumentada pelo estímulo do exercício pesado e em

contrapartida afirma que mulheres produzem somente 0,5mg de testosterona/dia, de onde surge a

dificuldade em adquirir massa muscular.

Hilton Coltinho et al (2007) afirma que a principal função da testosterona é a promoção do

crescimento muscular e a quantidade dessa substância nos corpos é significativa para o

desenvolvimento de técnicas onde a força é valorizada e, segundo o estudo em questão, é

determinante para as diferenças sexuais em relação ao crescimento muscular. Ou seja, Coltinho et al

(2007) preconizam a partir de uma revisão baseada em testes de forças e das estruturas musculares

que a testosterona é um androgênio, uma substância que produz características masculinas.

A partir das constantes falas no grupo de vivência proposto pelo CRDH-UFRGS, acerca de

questões relacionadas ao uso da testosterona – seja a partir de dúvidas sobre os tipos disponíveis no

mercado, efeitos esperados, marcas, eficiência e formas de utilização, bem como trocas de contatos

de médicos de confiança, relatos sobre locais onde adquirir o produto – surgiu a necessidade de

aprofundamento em questões relacionadas a essa substância. Palavras como Deposteron, Nebido,

Durasteron44 começaram a fazer parte do vocabulário comum, pois sempre surgiam de alguma

forma nas conversas propostas no grupo. Esse foi o pontapé inicial para a construção da rede que

aqui se delineia: a busca na internet por maiores informações sobre essas substâncias. Essa busca

inicial por informações levou a uma primeira observação: apesar de se tratarem da testosterona, as

diferentes dosagens, ciclos de reutilização, e tipos acabam assumindo performances distintas em

cada uma delas, já que estas são materializadas de maneiras diferentes umas das outras nos corpos

dos sujeitos. E, mais que isso, demonstram os múltiplos modos de existência (MOL, 1999)

4 Cipionato (Deposteron), propionato, isocaproato e caproato (Durateston) e undecilato (Nebido) são esteróides

anabolizantes injetáveis utilizados para a reposição dos níveis de testosterona.

Page 7: AS DIVERSAS PERFORMATIVIDADES DA TESTOSTERONA …€¦ · como uma ferramenta de construção de si, seja em prol do melhoramento físico ou construção de suas identidades a partir

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

produzidos e performados por essa substância juntamente com inúmeros outros aparatos, tais como

uma dieta específica, exercícios, anabolizantes, rotinas de sono, dentre outros.

A terapia hormonal com a testosterona relacionada ao envelhecimento de homens

cissexuais, que vem ocupando papel de destaque tanto nos veículos de comunicação de massa

quanto nas publicações científicas, apresenta a substância sempre como ‘o hormônio masculino’,

relacionado não só ao prolongamento da juventude e ao bom desempenho sexual, bem como a

promessas de uma espécie de ferramenta para a manutenção da juventude e de uma vida saudável,

mas, também, como responsável pela recuperação da produtividade, da ‘qualidade’ de vida, do

bem-estar e da felicidade ‘perdidos’ pelo homem. Dessa forma, a terapia de reposição hormonal

com testosterona é incentivada, em muitos casos como uma forma de conservação do corpo

compreendido como masculino, cujo interesse final seria o de manter ou recuperar uma vida

saudável e produtiva (THIAGO et al., 2016).

O processo de medicalização da sexualidade teve o foco em corpos masculinos a partir de

descobertas e experimentos que tratavam acerca da disfunção erétil. Fabíola Rohden (2008)

argumenta que a capacidade erétil masculina passa a definir sua virilidade que deve manter-se

funcional até o fim de suas vidas, como uma essência masculina. O uso da testosterona se inscreve

nesse contexto a partir do pressuposto de que essa substância, quando utilizada para a manutenção

desse corpo essencialmente masculino dentro das normas hegemônicas inseridas no sistema sexo-

gênero, é não apenas autorizada, como incentivada. Ou seja, gradativamente em sociedades

contemporâneas, os processos de hormonização sob a perspectiva da biopolítica e do biocapitalismo

fazem parte de um emaranhado de relações políticas e econômicas, que entre muitos outros

aspectos, produzem um conjunto de discursos e práticas que determinam aos sujeitos variadas

possibilidades de formas de existência.

De acordo com Anne-Fausto Sterling (2000), as propriedades curativas de hormônios como

o estrógeno e a testosterona foram amplamente utilizados e se transformaram nos medicamentos

mais utilizados na história da medicina. Práticas de hormonização podem ser percebidas com um

duplo significado: se por um lado representam processos de assujeitamentos e controle, também

podem ser percebidos como uma prática subversiva e um exercício de resistência – como quando

demandada por sujeitos transexuais ou nos casos de um exercício autônomo dos mais variados

sujeitos com o intuito de melhoramento corporal. Dentro desse processo de “medicamentalização” e

“medicação” da vida fica claro que o cenário social, político e econômico demarca uma biopolítica

composta por dispositivos biotecnológicos que produzem constantemente novos modos de

Page 8: AS DIVERSAS PERFORMATIVIDADES DA TESTOSTERONA …€¦ · como uma ferramenta de construção de si, seja em prol do melhoramento físico ou construção de suas identidades a partir

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

subjetivação (LIMA, 2014). Ou seja, tais dispositivos biotecnológicos transformam o campo de

possibilidades de articulação de um ator-rede que é definido também por determinado campo de

possibilidades de articulação. Dessa forma, percebemos como as tecnologias de construção de si, a

partir destes estilos de pensamento do sistema sexo-gênero nos levam a transformações nas

articulações dos atores-rede.

A partir do trabalho de campo realizado foi surpreendente perceber a quantidade de sites

voltados a um público tido como masculino, onde a supervalorização de características

compreendidas como masculinas (como força, energia e vigor sexual) está conectada ao ideal de

corpo saudável, onde substâncias, exercícios, dietas, esteroides anabolizantes são também tidos

como ferramentas para a construção de corpos 'esculturais' e estão diretamente ligados a um

melhoramento no desempenho em esportes e melhoria da qualidade de vida. Ou seja, são

substâncias/rotinas/drogas que, somadas à testosterona, tem como principais funções o

melhoramento corporal, obtenção de massa muscular e melhor performance sexual.

Fica perceptível as múltiplas formas pelas quais a testosterona assume nas práticas desses

sujeitos em contextos diferentes. Pensando especificamente no termo enact utilizado por Mol

(2002), onde nenhum objeto existe sem estar articulado às práticas que o produzem e o fazem

existir, podemos pensar nas várias maneiras em que a testosterona é utilizada e materializada nos

corpos a partir de diferentes práticas. Seja assumindo o papel de uma das ferramentas para a

construção de identidades, ou como um medicamento para o retorno de um estado de “bem estar”,

no discurso de revistas científicas e na conversa entre médico e paciente dentro do consultório,

como um importante componente para o ganho de massa muscular e construção de um corpo

musculoso, se somado a dietas específicas, exercícios e outras substâncias e que são altamente

disseminadas entre atletas e em academias de ginástica.

Pensar nos gêneros como composições performativas, onde nem o sujeito nem o discurso se

antecedem e que esses tornam-se inteligíveis a partir de uma série de reiterações discursivas e

performáticas foi uma das teorizações mais importantes das últimas décadas. Os indivíduos, assim,

passam a ser compreendidos e recebem reconhecimento na gramática social por serem sujeitos de

gênero, que são produzidos através de una matriz de inteligibilidade cultural heteronormativa, já

que apenas podemos nos tornar inteligíveis a partir de atos performativos (BUTLER, 2010; LIMA,

2014). Judith Butler é um dos nomes mais fortes no feminismo pós-moderno e é inegável a

importância de seu trabalho especialmente para pensar gêneros, sexualidades e a própria Teoria

Queer. Porém, ao entrar em contato com os trabalhos da chamada virada material (ALAIMO e

Page 9: AS DIVERSAS PERFORMATIVIDADES DA TESTOSTERONA …€¦ · como uma ferramenta de construção de si, seja em prol do melhoramento físico ou construção de suas identidades a partir

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

HEKMANA, 2008) a partir do trabalho de autoras como Annemarrie Mol, Stacy Alaimo, Susan

Hekman, Amade M’Charek, dentre outras, percebe-se a importância no foco na materialidade, nos

corpos, nas práticas.

Ao pensar a testosterona de maneira múltipla, demonstra-se a aproximação desse trabalho

aos escritos feministas neomaterialistas onde a testosterona não é percebida como central ou como

um ponto de partida para diferentes interpretações e perspectivas. Segundo essa perspectiva teórico-

metodológica, os objetos devem ser entendidos como manipulados dentro das práticas, que são

dinâmicas. Assim, não nos interessa aqui a busca de uma verdade acerca dessa substância, mas sim,

como ela é pensada, materializada, na(s) prática(s).

Compreende-se assim, que a testosterona produz realidades diversas e que a sua utilização

é performada em corpos por indivíduos diferentes (MOL, 1999), que se inserem em múltiplas

possibilidades de vivência das masculinidades. Pensa-se como objetivo deste trabalho dialogar

acerca das mudanças contemporâneas na forma como se constroem as subjetividades, na medida em

que substâncias como a testosterona atuam como artefatos para a construção de vidas,

subjetividades e corpos, tentando compreender os caminhos percorridos pelas diferentes demandas

e processos nos quais ela se insere, a partir das múltiplas realidades e performances que seus efeitos

materializam nos corpos dos sujeitos.

Dessa forma, evidencia-se que alguns grupos de homens têm um acesso ligado aos domínios

biomédicos, a partir da percepção de reposição de uma produção compreendida como “natural” da

substância, sendo muitas vezes estimulados a tratamentos hormonais ou procedimentos que são

capazes de aumentar a produção dessa substância no corpo. Por outro lado, homens trans enfrentam

dificuldades dos mais variados tipos para o acesso ao tratamento hormonal, sob o discurso de

malefícios que podem ser resultantes da administração da testosterona. Além disso, percebe-se a

existência de um circuito alternativo ao biomédico (e muitas vezes clandestino) de consumo,

altamente disseminado em práticas esportivas, com o objetivo de ganho de massa muscular e

melhor aproveitamento físico em competições diversas.

Demonstra-se, assim, os diferentes percursos tanto discursivos quanto morais a respeito da

utilização da testosterona por diferentes sujeitos. Se, por um lado, a utilização da testosterona por

homens cissexuais com o intuito de reposição de uma essência masculina é incentivada, (a qual de

alguma forma reproduz uma norma cisnormativa) por outro, ao acessar os discursos de praticantes

de esporte e mesmo uma busca na internet, visualiza-se outros caminhos percorridos por essa

substância, que somada à dietas específicas, suplementos, outras drogas, rotinas de exercícios e

Page 10: AS DIVERSAS PERFORMATIVIDADES DA TESTOSTERONA …€¦ · como uma ferramenta de construção de si, seja em prol do melhoramento físico ou construção de suas identidades a partir

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

outras tecnologias, é compreendida como uma importante ferramenta para construção de corpos

tidos como saudáveis, esculturais e com melhor aproveitamento em esportes. Percebe-se também, a

utilização de testosterona enquanto reinvindicação da construção de identidades a partir da

materialização dos efeitos da testosterona no corpo, como no caso de homens trans.

Referências

ALAIMO, S., & HECKMAN, S. Introduction: Emerging modes of materiality in feminist theory. In

Alaimo, S., & Heckman, S. Eds., Material Feminisms pp. 1-19. Bloomington: Indiana University

Press, 2008.

BEAUD, Stéphane; WEBER, Florence. Guia para a pesquisa de campo: produzir e analisar dados

etnográficos. Petrópolis: Vozes, 2007.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato

Aguiar. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

CASTRO, Marcos Paulo P. de. Terapia de reposiçäo de testosterona e seus efeitos benéficos na

funçäo sexual masculina.

COLTINHO, Hilton; BRINCO, Raphael Arnaut; DINIZ, Sandro Henrique. Respostas Hormonais

da Testosterona e Cortisol depois de determinado Protocolo de Hipertrofia Muscular. Revista

Brasileira de Prescrição e Fisiologia do Exercício. São Paulo, v.1, n.3, p.72-77, Mai./Jun. 2007.

FAUSTO-STERLING, Anne. Sexing the body. New York: Perseus. 2000.

FOUCAULT, M. História da Sexualidade: a vontade de saber. 2. Ed. Paz e Terra. São Paulo, 2015.

______. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Trad. Maria Emartina

Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

_______. História da Sexualidade I: a vontade de saber. São Paulo: Graal Edições, 2007.

JENKINS, Lawrence C.; MULHALL, John P.. How Dangerous is Testosterone Supplementation?.

Int. braz j urol., Rio de Janeiro , v. 41, n. 2, p. 195-198, Apr. 2015.

JUNIOR, José de Felippe. Reposição Hormonal no Homem: Testosterona e DHEA. Associação

Brasileira de Medicina Biomolecular e Nutrigenômica. São Paulo, 2011.

KULLICK, D. Travesti: prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora

Fiocruz; 2008.

LATOUR, B. Technology is society made durable. In: John Law (ed.). A Sociology of Monsters?

Essays on Power, Technology and Domination. London:1991

___________.. Reassembling the social. Oxford: Oxford University Press. 2012.

LIMA, Fátima. Corpos, Gêneros, Sexualidades: Políticas de Subjetivação - Textos Reunidos. 2ª ed.

Porto Alegre: Rede UNIDA. 2014.

Page 11: AS DIVERSAS PERFORMATIVIDADES DA TESTOSTERONA …€¦ · como uma ferramenta de construção de si, seja em prol do melhoramento físico ou construção de suas identidades a partir

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

MARANHÃO, E; NERY, J. In: BRASIL, Ministério da Saúde. Transexualidade e travestilidade na

saúde. Brasília, 2015.

MOL, Annemarie. Ontological Politics: a Word and Some Questions in John Law and John

Hassard, Actor Network Theory and After, Oxford and Keele: Blackwell and the Sociological

Review, 1999.

___________. The body multiple: Ontology in medical practice. Duke University Press, 2002.

PRECIADO, P. Manifesto Contrassexual. São Paulo, 2014

RIBEIRO, Paulo César Pinho. O uso indevido de substâncias: esteróides anabolizantes e

energéticos. Adolescência Latinoamericana. Março, 2001.

ROHDEN, Fabíola. Uma Ciência da Diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. Ed. Fiocruz,

2001.

_________________. O império dos hormônios e a construção da diferença entre os sexos.Hist.

cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro , v. 15, supl. p. 133-152, 2008 .

_________________. "O homem é mesmo a sua testosterona": promoção da andropausa e

representações sobre sexualidade e envelhecimento no cenário brasileiro. Horiz. antropol., Porto

Alegre , v. 17, n. 35, p. 161-196, June 2011

OUDSHOORN, N. Beyond the Natural Body: an archeology of sex hormones. Londres: 1994.

ROSE, N. The Politics of Life Itself: Biomedicine, Power, and Subjectivity in the Twenty-First

Century. Princeton University Press, 2007.

___________. Biopolítica molecular, ética somática e o espírito do biocapital. In: SANTOS, Luis

Henrique Sacchi dos; RIBEIRO, Paula Regina Costa (Orgs.). Corpo, gênero e sexualidade:

instâncias e práticas de produção nas políticas da própria vida. Rio Grande: FURG, 2011.

SANTOS, Vanessa Flores. Gênero, Masculinidades, Violências. Revista Todavia, Ano 1, nº 1, jul.

2010.

SILVA, Francisco Vieira da; LEITE, Francisco de Freitas. A testosterona & a vida: a emergência

dos discursos sobre a saúde do homem na mídia. Revista Língua & Literatura, v. 16, n. 27, p. 71-93,

dez. 2014.

THIAGO, Cristiane da Costa; RUSSO, Jane Araujo; CAMARGO JUNIOR, Kenneth Rochel de.

Hormônios, sexualidade e envelhecimento masculino: um estudo de imagens em websites .Interface

(Botucatu), Botucatu, v. 20, n. 56, p. 37-50, Mar. 2016.

VASCONCELOS, R. Homens com T maiúsculo. Processos de identificação e construção do corpo

nas transmasculinidades e a transversalidade da internet. UFMG, 2014.

VENTURA, Miriam. A transexualidade no tribunal: Saúde e Cidadania. Rio de Janeiro: Eduerj,

2010. 164

The various performativity of testosterone related to the materialization of masculinities

Page 12: AS DIVERSAS PERFORMATIVIDADES DA TESTOSTERONA …€¦ · como uma ferramenta de construção de si, seja em prol do melhoramento físico ou construção de suas identidades a partir

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Abstract: The present work integrates a broader dissertation, still in progress, that has as main

objective to understand different modulations of the articulation between testosterone and

masculinities, from the multiple actors and networks that are formed in the agency of its diverse

types and articulated subjectivation processes . That is, we intend to understand the multiple ways

in which testosterone is performed in these joints, according to the mode of existence of subjects

enrolled in the masculinities that make use of the substance, its effects on the formation of their

subjectivities and the production of their bodies , Considering the differences of class, schooling,

race and gender identity that cross them. It is based on the notion of Multiple Ontologies from

Annemarie Mol, as well as an analysis on the use of testosterone for the materialization of bodies of

subjects enrolled in masculinities, being understood the use of substances for self-production based

on improvements that integrate a network where different fields are articulated - such as medical /

legal / marketing - as a characteristic of contemporary societies.

Keywords: Testosterone. Hormone. Subjectivities. Performativity.