Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
AS DIVERSAS PERFORMATIVIDADES DA TESTOSTERONA
RELACIONADAS À MATERIALIZAÇÃO DE MASCULINIDADES
Flávia Luciana Magalhães Novais1
Paula Sandrine Machado2
Resumo: O presente trabalho integra uma pesquisa dissertativa mais ampla, que tem como objetivo
principal compreender diferentes modulações da articulação entre testosterona e masculinidades, a
partir dos múltiplos atores e redes que se formam no agenciamento de seus diversos tipos e
processos de subjetivação articulados. Ou seja, pretende-se perceber as múltiplas maneiras pelas
quais a testosterona é performada nessas articulações, de acordo com o modo de existência de
sujeitos inscritos nas masculinidades que fazem uso da substância, seus efeitos na formação de suas
subjetividades e na produção de seus corpos, considerando as diferenças de classe, escolaridade,
raça e identidade de gênero que os atravessam. Parte-se da noção de Ontologias Múltiplas, de
Annemarie Mol, bem como empreende-se uma análise sobre a utilização da testosterona para a
materialização de corpos de sujeitos inscritos nas masculinidades, entendendo-se o uso de
substâncias para produção de si, baseada em aprimoramentos que integram uma rede onde se
articulam diferentes campos – tais como médico/jurídico/mercadológico –, como sendo uma
característica das sociedades contemporâneas.
Palavras-chave: Testosterona. Hormônio. Subjetividades. Performatividade.
Introdução
O seguinte paper tem como principal enfoque a discussão acerca da substância testosterona
como um artefato de vida nas trajetórias de homens tanto cis como trans33. É fruto de uma pesquisa
etnográfica, que se propõe a conhecer e analisar as múltiplas articulações da testosterona com o
modo de existência desses sujeitos na formação de suas subjetividades. Encarar o hormônio
1 Mestranda do Programa de Pós Graduação em Psicologia Social e Institucional – UFRGS. Possui graduação
em Serviço Social pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA (2011)
2 Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. Possui graduação
em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2000), mestrado em Antropologia Social pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004) e doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (2008). Porto Alegre – RS, Brasil
3 Respectivamente: pessoas que estão de acordo com o sexo assignado a elas no momento de seu nascimento e
as que discordam com o gênero ao qual foram resignadas
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
testosterona como um artefato a partir das discussões apresentadas por Bruno Latour sobre atores
não humanos é, antes de mais nada, evidenciar a ultrapassagem das fronteiras entre Natureza e
Cultura, já que hormônios sexuais são substâncias tanto produzidas pelo próprio corpo como
sintetizadas artificialmente e integram uma rede que articula diferentes campos como
médico/jurídico/mercadológico.
A emergência desses questionamentos remete-se, principalmente, à atuação da primeira
autora como coordenadora do Grupo de Vivências de Pessoas Trans no projeto de extensão Centro
de Referência de Direitos Humanos (CRDH) vinculado ao Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e
Relações de Gênero (NUPSEX) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É
comum que os homens trans participantes do grupo relatem sobre a utilização da testosterona:
dúvidas, comparações, medos, troca de contatos de profissionais. A demanda pela hormonioterapia,
com o intuito do resgate de um corpo idealizado, de sua identidade, é um dos muitos artifícios
utilizados para que esses sujeitos possam decodificar seu gênero no qual estes se identificam
(MARANHÃO; NERY, 2015). Inseridos em um processo tido como a construção hormonal do
conceito de corpo, estes homens buscam a partir da utilização da testosterona a construção de si
(NELLY OUDSHOORN, 1994).
Em nossa sociedade, as normas médicas e jurídicas têm por base um sistema de sexo/gênero
do tipo binário, cujas diferenças baseiam-se especialmente no formato dos genitais externos
(VENTURA, 2010). Esse sistema de sexo-gênero é adotado por práticas jurídicas e médicas que a
partir de uma relação intrínseca entre saber e poder, determinam os corpos “sexuados” que
correspondem a uma coerência entre sexo, gênero, desejos e prazeres, sendo assim inteligíveis tanto
para a sociedade, como para si mesmos (ARÁN, 2006).Transexualidades compreendidas como
discursos e práticas surgem a partir do século XIX, como resultado do desenvolvimento da Scienta
Sexualis que de maneira geral, preconizava que dentro de um contexto de medicalização do corpo
individual e social, era necessário determinar quais seriam corpos “inoportunos” para que estes
fossem catalogados e recolocados dentro da lógica binária considerada saudável (LIMA, 2014).
Perversões e anormalidades entraram no discurso médico, especialmente tratando-se de perversões
sexuais, que precisavam ser corrigidas e por isso foram colocadas como principais objetos de
conhecimento.
A patologização de identidades transexuais encontra-se nos dias de hoje, ainda relegada a
preceitos que possuem resquícios dessas determinações baseadas em corpos compreendidos como
naturais por se inscreverem na lógica binária. Determinações essas que colocam tais sujeitos em
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
situação de exclusão, marginalização e expostos à violência em diversos âmbitos, que culminam
inclusive na morte. É necessário que seja superado o ideal de um sistema de sexo-gênero
cisnormativo ao conceber a masculinidade e feminilibilidade não como algo imediatamente ligado a
corpos biologicamente machos ou fêmeas, mas como processos que são acionados através de
determinadas práticas, tecnologias, procedimentos, performances (KULLICK, 2008).
Pensa-se como objetivo deste trabalho dialogar acerca das mudanças contemporâneas na
forma como se constroem as subjetividades, na medida em que substâncias como a testosterona
atuam como artefatos para a construção de vidas, subjetividades e corpos, tentando compreender os
caminhos percorridos pelas diferentes demandas e processos nos quais ela se insere, a partir das
múltiplas realidades, performances e versões que seus efeitos materializam nos corpos dos sujeitos.
Este paper se constrói enfocando processos de constantes aprimoramentos físicos tão
característicos da contemporaneidade, pensados a partir da utilização da testosterona por homens
como uma ferramenta de construção de si, seja em prol do melhoramento físico ou construção de
suas identidades a partir da materialização dos efeitos dessa substância em seus corpos. A rede
descrita na pesquisa começou a ser tecida através do contato com as demandas relacionadas à
homens trans participantes do grupo coordenado pela primeira autora e estende-se através da
utilização dessa substância em contextos diferentes, a partir de entrevistas com personal trainers,
participantes de academias de ginástica, pesquisas na internet em diversos sites, blogs e vídeos, bem
como em artigos científicos.
A testosterona relacionada a produção de corpos sexuados
Inspirado em Ludwik Fleck, Nikolas Rose (2011) utiliza a categoria “estilos de pensamento”
para pensar nas maneiras pelas quais alguns fenômenos são percebidos como relevantes e são
inteligíveis dentro de um contexto social. Inserido numa complexa rede de disputas, significações e
discursos, o corpo humano pode ser pensado tanto como um conjunto de músculos e sistemas, como
também compreendido enquanto constantemente produzido cultural e historicamente. Assim, neste
trabalho, utilizamos o conceito de “cidadão biológico” (ROSE, 2011) através do qual articula-se a
construção contemporânea de uma cidadania que tem o corpo biológico como principal foco de
reivindicações de direitos e, inclusive, de existência.
Atualmente, valoriza-se para muito além do corpo físico e dos processos de adoecimento ou
morte das populações. O ideal de corpo sadio está inscrito nas subjetividades de todos os sujeitos e
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
é central para a autoadministração de indivíduos. Trata-se da emergência do ideal de “cidadão
ativo” e da responsabilização de todos os indivíduos pela manutenção de corpos sadios, bem como a
transformação de pacientes em consumidores de bens e serviços voltados a esses fins (ROSE,
2011).
Compreendemos a atuação médica contemporânea não mais como mero instrumento
utilizado para o controle e cura de doenças, mas sim como baseada na utilização de tecnologias da
vida para aprimoramento e otimização. O termo “tecnologia” é utilizado pelo autor para se referir a
uma série de agenciamentos entre relações sociais, humanas, áreas de conhecimento e instrumentos
que perpassam as vivências dos seres humanos. Ou seja, as tecnologias médicas não são mais
encaradas como mero conhecimento médico, mas requerem uma série de conjuntos de relações
sociais favoráveis à sua utilização. Essas tecnologias de vida possuem uma visão focada no
aperfeiçoamento do corpo, em prol de um futuro saudável (ROSE, 2011).
Latour (2004) define o corpo humano não como uma essência, mas como uma interface que
adquire sentido quando afetado por outros elementos. O corpo, segundo o autor, é o local onde
tornamos visíveis as dinâmicas pelas quais registramos o que é feito com e pelo mundo. Nesse
aspecto, no decorrer da vida, objetos, substâncias, materiais determinam e servem de plano de fundo
para ações humanas e além disso, são capazes de autorizar, permitir, estimular, interromper,
possibilitar comportamentos e ações. A estes objetos e materiais que são colocados em discurso que
põem em xeque as fronteiras delineadas entre o Cultural e o Natural, o autor classifica como atores
não humanos.
Logo, pensamos a construção da testosterona para além de uma mera substância, mas como
uma rede que possibilita uma interação de determinados sujeitos com o mundo a partir da
materialização de corpos masculinos nas vivências de homens cis e trans. Ao entendermos a
testosterona a partir da teoria Ator-Rede (LATOUR, 2005), pensaremos essa substância de uma
maneira mais plural e ampla, levamos em consideração os inúmeros caminhos que ela percorre de
acordo com a sua utilização pelos sujeitos. Assim, compreenderemos a testosterona não como uma
substância apenas, mas entendendo suas diversas formas de utilização e demandas, inscritas dentro
de um complexo jogo de interesses e motivações. Compreende-se a testosterona como um ator-rede,
por ser capaz de modificar uma situação, permitindo, influenciando, sugerindo determinadas ações
humanas, além de servir como um artefato para a produção de si onde as modificações
materializadas em determinados corpos são instrumentos de performance de gênero, construção de
suas subjetividades e fortalecimento de identidades para determinados sujeitos.
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Atualmente destaca-se uma dita valorização dos hormônios para a garantia do bem estar e a
saúde dos indivíduos, baseados na noção de um “corpo hormonal” produzidos pelas concepções
biomédicas (ROHDEN, 2008). Concepções estas que não escapam às normas binárias que
determinam que os indivíduos devam se encaixar num modelo específico de masculinidade e
feminilidade. Hormônios são substâncias que funcionam dentro de um jogo complexo onde
mecanismos compostos de discursos ou práticas, como afirmado na obra de Oudshoon (1994), bem
como revelam um mecanismo de controle de corpos e sexualidade na contemporaneidade, a partir
da compreensão destes como dispositivos de controle e disputas entre saber/poder (FOUCAULT,
2002). É essencial pensar nos processos de transformações físicas e subjetivas proporcionadas pela
utilização da testosterona, mas para além disso, pensar nas possíveis redes de articulação que essa
substância se insere.
Uma simples pesquisa na Internet sobre a testosterona demonstra que a disseminação de sua
utilização está inscrita num contexto onde os sujeitos inscrevem-se no que Nikolas Rose (2011)
denominou de estilos de pensamento que determinam maneiras particulares de pensar, agir e
perceber a realidade. Ou seja, o uso disseminado dessa substância por determinados indivíduos que
buscam um melhoramento corporal, responde a fenômenos que são percebidos como relevantes,
que determinam o que seria um corpo saudável, dentro de uma lógica calcada por esses estilos de
pensamento.
Testosterona e masculinidades
A testosterona ainda é pensada como um hormônio essencialmente masculino. A construção
de diagnósticos médicos sobre a disfunção erétil masculina demonstra a criação de um mercado
consumidor para tal substância (ROHDEN, 2011) pensando a sua utilização para a “correção”, por
assim dizer, de uma condição patológica masculina. Quando a testosterona é demandada por
sujeitos que não estão inseridos na cisnorma, muitos dos questionamentos que surgem estão direta
ou indiretamente ligados ao fato das transexualidades serem encaradas como patologias. A
dificuldade em conseguir um acompanhamento médico adequado para a prescrição de tal substância
é fator determinante para que muitos desses sujeitos busquem a automedicação ou ao mercado
ilegal, por vezes colocando em risco sua integridade física.
Em pesquisas nas bases de dados Scielo, LILACS e National Center for Biotechnology
Information (NCBI), percebe-se, na grande maioria dos trabalhos, uma visão de que a testosterona é
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
um hormônio de corpos compreendidos como masculinos, sob a justificativa de que são nesses
corpos que essa é produzida de forma predominante. Paulo César Ribeiro (2001) caracteriza a
testosterona como um esteroide androgênico proveniente do colesterol que, segundo o autor, tanto
ela como seus metabólitos (tais como a diidrotestosterona) agem em muitas partes do corpo,
produzindo as características secundárias sexuais compreendidas de maneira geral como
masculinas: calvície, pelos no rosto e corpo, voz grossa, maior massa muscular, pele mais grossa e
maturidade dos genitais. Segundo dados trazidos pelo autor, a produção normal no homem adulto é
de cerca de 4 a 9mg por dia, que pode ser aumentada pelo estímulo do exercício pesado e em
contrapartida afirma que mulheres produzem somente 0,5mg de testosterona/dia, de onde surge a
dificuldade em adquirir massa muscular.
Hilton Coltinho et al (2007) afirma que a principal função da testosterona é a promoção do
crescimento muscular e a quantidade dessa substância nos corpos é significativa para o
desenvolvimento de técnicas onde a força é valorizada e, segundo o estudo em questão, é
determinante para as diferenças sexuais em relação ao crescimento muscular. Ou seja, Coltinho et al
(2007) preconizam a partir de uma revisão baseada em testes de forças e das estruturas musculares
que a testosterona é um androgênio, uma substância que produz características masculinas.
A partir das constantes falas no grupo de vivência proposto pelo CRDH-UFRGS, acerca de
questões relacionadas ao uso da testosterona – seja a partir de dúvidas sobre os tipos disponíveis no
mercado, efeitos esperados, marcas, eficiência e formas de utilização, bem como trocas de contatos
de médicos de confiança, relatos sobre locais onde adquirir o produto – surgiu a necessidade de
aprofundamento em questões relacionadas a essa substância. Palavras como Deposteron, Nebido,
Durasteron44 começaram a fazer parte do vocabulário comum, pois sempre surgiam de alguma
forma nas conversas propostas no grupo. Esse foi o pontapé inicial para a construção da rede que
aqui se delineia: a busca na internet por maiores informações sobre essas substâncias. Essa busca
inicial por informações levou a uma primeira observação: apesar de se tratarem da testosterona, as
diferentes dosagens, ciclos de reutilização, e tipos acabam assumindo performances distintas em
cada uma delas, já que estas são materializadas de maneiras diferentes umas das outras nos corpos
dos sujeitos. E, mais que isso, demonstram os múltiplos modos de existência (MOL, 1999)
4 Cipionato (Deposteron), propionato, isocaproato e caproato (Durateston) e undecilato (Nebido) são esteróides
anabolizantes injetáveis utilizados para a reposição dos níveis de testosterona.
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
produzidos e performados por essa substância juntamente com inúmeros outros aparatos, tais como
uma dieta específica, exercícios, anabolizantes, rotinas de sono, dentre outros.
A terapia hormonal com a testosterona relacionada ao envelhecimento de homens
cissexuais, que vem ocupando papel de destaque tanto nos veículos de comunicação de massa
quanto nas publicações científicas, apresenta a substância sempre como ‘o hormônio masculino’,
relacionado não só ao prolongamento da juventude e ao bom desempenho sexual, bem como a
promessas de uma espécie de ferramenta para a manutenção da juventude e de uma vida saudável,
mas, também, como responsável pela recuperação da produtividade, da ‘qualidade’ de vida, do
bem-estar e da felicidade ‘perdidos’ pelo homem. Dessa forma, a terapia de reposição hormonal
com testosterona é incentivada, em muitos casos como uma forma de conservação do corpo
compreendido como masculino, cujo interesse final seria o de manter ou recuperar uma vida
saudável e produtiva (THIAGO et al., 2016).
O processo de medicalização da sexualidade teve o foco em corpos masculinos a partir de
descobertas e experimentos que tratavam acerca da disfunção erétil. Fabíola Rohden (2008)
argumenta que a capacidade erétil masculina passa a definir sua virilidade que deve manter-se
funcional até o fim de suas vidas, como uma essência masculina. O uso da testosterona se inscreve
nesse contexto a partir do pressuposto de que essa substância, quando utilizada para a manutenção
desse corpo essencialmente masculino dentro das normas hegemônicas inseridas no sistema sexo-
gênero, é não apenas autorizada, como incentivada. Ou seja, gradativamente em sociedades
contemporâneas, os processos de hormonização sob a perspectiva da biopolítica e do biocapitalismo
fazem parte de um emaranhado de relações políticas e econômicas, que entre muitos outros
aspectos, produzem um conjunto de discursos e práticas que determinam aos sujeitos variadas
possibilidades de formas de existência.
De acordo com Anne-Fausto Sterling (2000), as propriedades curativas de hormônios como
o estrógeno e a testosterona foram amplamente utilizados e se transformaram nos medicamentos
mais utilizados na história da medicina. Práticas de hormonização podem ser percebidas com um
duplo significado: se por um lado representam processos de assujeitamentos e controle, também
podem ser percebidos como uma prática subversiva e um exercício de resistência – como quando
demandada por sujeitos transexuais ou nos casos de um exercício autônomo dos mais variados
sujeitos com o intuito de melhoramento corporal. Dentro desse processo de “medicamentalização” e
“medicação” da vida fica claro que o cenário social, político e econômico demarca uma biopolítica
composta por dispositivos biotecnológicos que produzem constantemente novos modos de
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
subjetivação (LIMA, 2014). Ou seja, tais dispositivos biotecnológicos transformam o campo de
possibilidades de articulação de um ator-rede que é definido também por determinado campo de
possibilidades de articulação. Dessa forma, percebemos como as tecnologias de construção de si, a
partir destes estilos de pensamento do sistema sexo-gênero nos levam a transformações nas
articulações dos atores-rede.
A partir do trabalho de campo realizado foi surpreendente perceber a quantidade de sites
voltados a um público tido como masculino, onde a supervalorização de características
compreendidas como masculinas (como força, energia e vigor sexual) está conectada ao ideal de
corpo saudável, onde substâncias, exercícios, dietas, esteroides anabolizantes são também tidos
como ferramentas para a construção de corpos 'esculturais' e estão diretamente ligados a um
melhoramento no desempenho em esportes e melhoria da qualidade de vida. Ou seja, são
substâncias/rotinas/drogas que, somadas à testosterona, tem como principais funções o
melhoramento corporal, obtenção de massa muscular e melhor performance sexual.
Fica perceptível as múltiplas formas pelas quais a testosterona assume nas práticas desses
sujeitos em contextos diferentes. Pensando especificamente no termo enact utilizado por Mol
(2002), onde nenhum objeto existe sem estar articulado às práticas que o produzem e o fazem
existir, podemos pensar nas várias maneiras em que a testosterona é utilizada e materializada nos
corpos a partir de diferentes práticas. Seja assumindo o papel de uma das ferramentas para a
construção de identidades, ou como um medicamento para o retorno de um estado de “bem estar”,
no discurso de revistas científicas e na conversa entre médico e paciente dentro do consultório,
como um importante componente para o ganho de massa muscular e construção de um corpo
musculoso, se somado a dietas específicas, exercícios e outras substâncias e que são altamente
disseminadas entre atletas e em academias de ginástica.
Pensar nos gêneros como composições performativas, onde nem o sujeito nem o discurso se
antecedem e que esses tornam-se inteligíveis a partir de uma série de reiterações discursivas e
performáticas foi uma das teorizações mais importantes das últimas décadas. Os indivíduos, assim,
passam a ser compreendidos e recebem reconhecimento na gramática social por serem sujeitos de
gênero, que são produzidos através de una matriz de inteligibilidade cultural heteronormativa, já
que apenas podemos nos tornar inteligíveis a partir de atos performativos (BUTLER, 2010; LIMA,
2014). Judith Butler é um dos nomes mais fortes no feminismo pós-moderno e é inegável a
importância de seu trabalho especialmente para pensar gêneros, sexualidades e a própria Teoria
Queer. Porém, ao entrar em contato com os trabalhos da chamada virada material (ALAIMO e
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
HEKMANA, 2008) a partir do trabalho de autoras como Annemarrie Mol, Stacy Alaimo, Susan
Hekman, Amade M’Charek, dentre outras, percebe-se a importância no foco na materialidade, nos
corpos, nas práticas.
Ao pensar a testosterona de maneira múltipla, demonstra-se a aproximação desse trabalho
aos escritos feministas neomaterialistas onde a testosterona não é percebida como central ou como
um ponto de partida para diferentes interpretações e perspectivas. Segundo essa perspectiva teórico-
metodológica, os objetos devem ser entendidos como manipulados dentro das práticas, que são
dinâmicas. Assim, não nos interessa aqui a busca de uma verdade acerca dessa substância, mas sim,
como ela é pensada, materializada, na(s) prática(s).
Compreende-se assim, que a testosterona produz realidades diversas e que a sua utilização
é performada em corpos por indivíduos diferentes (MOL, 1999), que se inserem em múltiplas
possibilidades de vivência das masculinidades. Pensa-se como objetivo deste trabalho dialogar
acerca das mudanças contemporâneas na forma como se constroem as subjetividades, na medida em
que substâncias como a testosterona atuam como artefatos para a construção de vidas,
subjetividades e corpos, tentando compreender os caminhos percorridos pelas diferentes demandas
e processos nos quais ela se insere, a partir das múltiplas realidades e performances que seus efeitos
materializam nos corpos dos sujeitos.
Dessa forma, evidencia-se que alguns grupos de homens têm um acesso ligado aos domínios
biomédicos, a partir da percepção de reposição de uma produção compreendida como “natural” da
substância, sendo muitas vezes estimulados a tratamentos hormonais ou procedimentos que são
capazes de aumentar a produção dessa substância no corpo. Por outro lado, homens trans enfrentam
dificuldades dos mais variados tipos para o acesso ao tratamento hormonal, sob o discurso de
malefícios que podem ser resultantes da administração da testosterona. Além disso, percebe-se a
existência de um circuito alternativo ao biomédico (e muitas vezes clandestino) de consumo,
altamente disseminado em práticas esportivas, com o objetivo de ganho de massa muscular e
melhor aproveitamento físico em competições diversas.
Demonstra-se, assim, os diferentes percursos tanto discursivos quanto morais a respeito da
utilização da testosterona por diferentes sujeitos. Se, por um lado, a utilização da testosterona por
homens cissexuais com o intuito de reposição de uma essência masculina é incentivada, (a qual de
alguma forma reproduz uma norma cisnormativa) por outro, ao acessar os discursos de praticantes
de esporte e mesmo uma busca na internet, visualiza-se outros caminhos percorridos por essa
substância, que somada à dietas específicas, suplementos, outras drogas, rotinas de exercícios e
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
outras tecnologias, é compreendida como uma importante ferramenta para construção de corpos
tidos como saudáveis, esculturais e com melhor aproveitamento em esportes. Percebe-se também, a
utilização de testosterona enquanto reinvindicação da construção de identidades a partir da
materialização dos efeitos da testosterona no corpo, como no caso de homens trans.
Referências
ALAIMO, S., & HECKMAN, S. Introduction: Emerging modes of materiality in feminist theory. In
Alaimo, S., & Heckman, S. Eds., Material Feminisms pp. 1-19. Bloomington: Indiana University
Press, 2008.
BEAUD, Stéphane; WEBER, Florence. Guia para a pesquisa de campo: produzir e analisar dados
etnográficos. Petrópolis: Vozes, 2007.
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato
Aguiar. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
CASTRO, Marcos Paulo P. de. Terapia de reposiçäo de testosterona e seus efeitos benéficos na
funçäo sexual masculina.
COLTINHO, Hilton; BRINCO, Raphael Arnaut; DINIZ, Sandro Henrique. Respostas Hormonais
da Testosterona e Cortisol depois de determinado Protocolo de Hipertrofia Muscular. Revista
Brasileira de Prescrição e Fisiologia do Exercício. São Paulo, v.1, n.3, p.72-77, Mai./Jun. 2007.
FAUSTO-STERLING, Anne. Sexing the body. New York: Perseus. 2000.
FOUCAULT, M. História da Sexualidade: a vontade de saber. 2. Ed. Paz e Terra. São Paulo, 2015.
______. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Trad. Maria Emartina
Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
_______. História da Sexualidade I: a vontade de saber. São Paulo: Graal Edições, 2007.
JENKINS, Lawrence C.; MULHALL, John P.. How Dangerous is Testosterone Supplementation?.
Int. braz j urol., Rio de Janeiro , v. 41, n. 2, p. 195-198, Apr. 2015.
JUNIOR, José de Felippe. Reposição Hormonal no Homem: Testosterona e DHEA. Associação
Brasileira de Medicina Biomolecular e Nutrigenômica. São Paulo, 2011.
KULLICK, D. Travesti: prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora
Fiocruz; 2008.
LATOUR, B. Technology is society made durable. In: John Law (ed.). A Sociology of Monsters?
Essays on Power, Technology and Domination. London:1991
___________.. Reassembling the social. Oxford: Oxford University Press. 2012.
LIMA, Fátima. Corpos, Gêneros, Sexualidades: Políticas de Subjetivação - Textos Reunidos. 2ª ed.
Porto Alegre: Rede UNIDA. 2014.
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
MARANHÃO, E; NERY, J. In: BRASIL, Ministério da Saúde. Transexualidade e travestilidade na
saúde. Brasília, 2015.
MOL, Annemarie. Ontological Politics: a Word and Some Questions in John Law and John
Hassard, Actor Network Theory and After, Oxford and Keele: Blackwell and the Sociological
Review, 1999.
___________. The body multiple: Ontology in medical practice. Duke University Press, 2002.
PRECIADO, P. Manifesto Contrassexual. São Paulo, 2014
RIBEIRO, Paulo César Pinho. O uso indevido de substâncias: esteróides anabolizantes e
energéticos. Adolescência Latinoamericana. Março, 2001.
ROHDEN, Fabíola. Uma Ciência da Diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. Ed. Fiocruz,
2001.
_________________. O império dos hormônios e a construção da diferença entre os sexos.Hist.
cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro , v. 15, supl. p. 133-152, 2008 .
_________________. "O homem é mesmo a sua testosterona": promoção da andropausa e
representações sobre sexualidade e envelhecimento no cenário brasileiro. Horiz. antropol., Porto
Alegre , v. 17, n. 35, p. 161-196, June 2011
OUDSHOORN, N. Beyond the Natural Body: an archeology of sex hormones. Londres: 1994.
ROSE, N. The Politics of Life Itself: Biomedicine, Power, and Subjectivity in the Twenty-First
Century. Princeton University Press, 2007.
___________. Biopolítica molecular, ética somática e o espírito do biocapital. In: SANTOS, Luis
Henrique Sacchi dos; RIBEIRO, Paula Regina Costa (Orgs.). Corpo, gênero e sexualidade:
instâncias e práticas de produção nas políticas da própria vida. Rio Grande: FURG, 2011.
SANTOS, Vanessa Flores. Gênero, Masculinidades, Violências. Revista Todavia, Ano 1, nº 1, jul.
2010.
SILVA, Francisco Vieira da; LEITE, Francisco de Freitas. A testosterona & a vida: a emergência
dos discursos sobre a saúde do homem na mídia. Revista Língua & Literatura, v. 16, n. 27, p. 71-93,
dez. 2014.
THIAGO, Cristiane da Costa; RUSSO, Jane Araujo; CAMARGO JUNIOR, Kenneth Rochel de.
Hormônios, sexualidade e envelhecimento masculino: um estudo de imagens em websites .Interface
(Botucatu), Botucatu, v. 20, n. 56, p. 37-50, Mar. 2016.
VASCONCELOS, R. Homens com T maiúsculo. Processos de identificação e construção do corpo
nas transmasculinidades e a transversalidade da internet. UFMG, 2014.
VENTURA, Miriam. A transexualidade no tribunal: Saúde e Cidadania. Rio de Janeiro: Eduerj,
2010. 164
The various performativity of testosterone related to the materialization of masculinities
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Abstract: The present work integrates a broader dissertation, still in progress, that has as main
objective to understand different modulations of the articulation between testosterone and
masculinities, from the multiple actors and networks that are formed in the agency of its diverse
types and articulated subjectivation processes . That is, we intend to understand the multiple ways
in which testosterone is performed in these joints, according to the mode of existence of subjects
enrolled in the masculinities that make use of the substance, its effects on the formation of their
subjectivities and the production of their bodies , Considering the differences of class, schooling,
race and gender identity that cross them. It is based on the notion of Multiple Ontologies from
Annemarie Mol, as well as an analysis on the use of testosterone for the materialization of bodies of
subjects enrolled in masculinities, being understood the use of substances for self-production based
on improvements that integrate a network where different fields are articulated - such as medical /
legal / marketing - as a characteristic of contemporary societies.
Keywords: Testosterone. Hormone. Subjectivities. Performativity.
Top Related