As Falas Cotidianas Sobre a Política a Produção Discursiva Sobre Bf

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    As falas cotidianas sobre a poltica: a produo discursiva sobre o bolsa-famlia em grupos de discusso*

    ngela Cristina Salgueiro Marques1 Simone Maria Rocha2

    Resumo: Este artigo tem como objetivo propor um percurso metodolgico que visa revelar como cidados comuns, freqentemente ignorados pelos processos polticos, acionam e articulam diferentes discursos quando compelidos a se posicionarem diante de questes que afetam seu cotidiano. Ao invs de buscarmos revelar o que pessoas, de forma geral, pensam da poltica (do ambiente poltico institucional), preocupa-nos saber como as pessoas comuns acionam diferentes discursos intersectando-os de modo a formular o prprio ponto de vista ou quadro de entendimento sobre uma questo poltica especfica. Para tanto, propomos a realizao de grupos de discusso e a leitura e interpretao de seus resultados atravs da construo de categorias de anlise que evidenciem o modo como sujeitos comuns elaboram sua concepo de poltica e so capazes e competentes para articular discurso poltico. De modo a evidenciar empiricamente nossos propsitos realizamos 8 grupos de discusso com mulheres pobres beneficiadas pelo Programa Bolsa-Famlia. Para a anlise das trocas comunicativas estabelecidas nos contextos dos grupos de discusso propomos as seguintes categorias: a) a produo de contra-narrativas que desafiem aquelas que possuem um maior grau de visibilidade; b) a explicitao de premissas e razes; c) o posicionamento dos participantes diante de questes sensveis; d) assumir o risco de expressar uma opinio dissonante; e) evitar os riscos impostos pelo debate. Palavras-chave: cidados comuns, poltica, cotidiano, grupos de discusso.

    La politique est dabord une intervention sur le visible et lnonable.

    Jacques Rancire (1998, p.241) Pensar e investigar empiricamente a poltica a partir de uma perspectiva ampliada

    o principal foco de nossos investimentos atuais. Adotamos uma idia de poltica que se concretiza quando os homens agem e comunicam coletivamente buscando entendimentos e o bem comum, o que requer um espao onde eles possam se encontrar e interagir atravs da ao e da palavra. A poltica, nesse sentido, torna-se possvel quando os homens so capazes de trocar experincias intersubjetivas. Sendo assim, poltica envolve uma significativa capacidade dialgica que possibilita aos homens estabelecerem acordos e negociarem seus posicionamentos, suas opinies visando o interesse pblico. Isso nos leva a entender a definio da poltica como um processo que no se restringe aos espaos formais de tomada de deciso localizados pela maioria dos autores no centro do sistema poltico (Habermas, 1997; Mansbridge, 1999) em oposio uma periferia composta * Trabalho apresentado no GT Comunicao e Democracia do I Congresso Anual da Associao Brasileira de Pesquisadores de Comunicao e Poltica, ocorrido na Universidade Federal da Bahia Salvador-BA, 2006. O presente trabalho foi realizado com o apoio da CAPES, entidade do Governo Brasileiro voltada para a formao de recursos humanos 1 Doutoranda em Comunicao Social pela UFMG e pesquisadora do Grupo de Pesquisa sobre Mdia e Esfera Pblica (EME) do Programa de Ps-Graduao em Comunicao Social da UFMG ([email protected]). 2 Professora Adjunta e pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Mdia e Espao Pblico do Programa de Ps-Graduao em Comunicao Social UFMG ([email protected]).

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    depblicos subalternos (Benhabib, 1996) ou de pblicos fracos (Fraser, 1992; Bohman, 1996) mas que toma forma atravs das lutas cotidianas pela sobrevivncia, contra opresses simblicas e materiais e a favor de novos quadros de entendimento produzidos via contestaes e questionamentos o que nos impele a investigar como pblicos marginalizados, como moradores de favela, grupos sexualmente estigmatizados e mulheres pobres produzem discursos e sentidos acerca de representaes, polticas pblicas, narrativas de ampla visibilidade social, etc. Tais grupos tm seus corpos, discursos e modos de fazer dispostos em uma estrutura social que estabelece, dentro de um mundo comum, partes e lugares especficos. A face cotidiana da poltica apresenta-se quando esses lugares pr-definidos e discursivamente marcados sofrem uma interveno. Intervir no significa necessariamente produzir uma ao de revolta, mas sim instaurar a dvida e o conflito.

    Nesse sentido, podemos nos indagar sobre que tipo de discursos as pessoas social e politicamente marginalizadas tecem em seu cotidiano de modo a fazer eclodir pontos de indagao e questionamento que demandam a reflexo, o acionamento de argumentos, razes, testemunhos, gestos, enfim, de uma situao comunicativa cooperativa e relacional cujo objetivo entender melhor sua localizao nesses lugares? E ainda, em que momento esses cidados comuns, fracamente organizados, invisveis e desacreditados se sentem compelidos a refletir sobre suas aes, suas prticas e seus anseios? Afinal, o funcionamento da rotina no e favorvel troca comunicativa reflexiva e pblica. Mais difcil ainda torna-se a coleta e o registro desses momentos nicos e fugazes.

    Pesquisas nas reas de Cincia Poltica, de Antropologia Social e de Comunicao Social vm se dedicando rdua tarefa de coleta e anlise do pensamento reflexivo de pessoas comuns voltado para questes de natureza poltica. Esse tipo de preocupao enfatiza a importncia da produo de um conhecimento acerca do modo como os cidados comuns elaboram quadros interpretativos de referncia acerca da poltica, acionando diferentes discursos, oriundos de contextos diversos, quando so solicitados a se posicionarem diante de questes de interesse coletivo. Contudo, esses trabalhos podem ser diferentemente classificados quanto ao enfoque conferido poltica e quanto ao mtodo empregado para captar as falas e discursos dos cidados comuns. Grande parte dos trabalhos deseja saber como as pessoas comuns produzem sentidos acerca do funcionamento da poltica institucional (eleies, marketing poltico, escndalos, etc.) (ver: Veiga e Gondim, 2001; Figueiredo, 1995, 2000; Ribeiro, 2005). Uma outra parte, tambm voltada para a poltica formal, busca perceber como a mdia, aqui entendida em sua dimenso textual e discursiva (telejornais, revistas, charges, jornais impressos, telenovelas, etc.), pode influenciar na interpretao dos jogos polticos ou de acontecimentos polticos de grande e pequena relevncia (ver: Porto, 2001; Gamson, 1992; Neuman, Just e Crigler, 1992; LaPastina, 1999; Ald, 2001; Silva, 1985). E, ainda que de forma incipiente, existem trabalhos preocupados em avaliar a produo cotidiana de discursos sobre questes que dizem no s da poltica institucional, mas tambm de questes ligadas produo de identidades, ao questionamento de esteretipos, luta contra discursos desvalorizantes, etc. (Jacks, 1999; Barker, 2003; Ronsini, 2004; Feltran, 2005, 2006; Lucas e Ferrari, 2004; Marques e Rocha, 2006).

    Entre os estudos acima referidos, so poucos os que utilizam o mtodo dos grupos de discusso3, mais conhecidos como grupos focais (focus groups) para explorar

    3 Para ver autores que utilizam o termo grupos de discusso, consultar: KITZINGER,1994; LETELIER, 1996; BERTRAND, BROWN e WARD, 1992; WARD, BERTRAND, BROWN, 1991; MORGAN, 1996;

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    qualitativamente no s as opinies e a formao de sentidos e quadros de entendimento surgidos e acionados no contexto do grupo (ver: Porto, 2001,2003; Barker, 2003; Silva, 1985; Ferraz, 2005; Veiga e Gondim, 2001; Gamson, 1992, Ribeiro, 2005; Lucas e Ferrari, 2004), mas, sobretudo a dinmica das interaes, da troca de pontos de vista, a indagao recproca, os riscos do debate, a explicitao de premissas, enfim, os momentos de politizao4 de falas que antes se encontravam dispersas e fluidas (Marques e Rocha, 2006).

    A nosso ver, o contexto dos grupos de discusso permite que os participantes articulem experincias e dramas privados a questes de natureza coletiva, ou seja, problemas relacionados a polticas sociais, a leis, aos direitos e prpria poltica institucional. Argumentamos que, nos contextos comunicativos dos grupos de discusso, muitos conflitos potenciais encontram-se dissolvidos no curso de uma conversao em que as frases e as idias se sucedem sem serem postas em conexo. Entretanto, possvel identificar nos grupos, momentos propcios para a expresso das controvrsias e desentendimentos. Tais momentos de politizao evidenciam como o processo informal de gerao da opinio, ou seja, as conversaes que se realizam nos contextos comunicativos mais prosaicos (Mansbridge, 1999), so capazes de gerar um poder comunicativo (Habermas, 1997) justamente porque os cidados passam no s a expressar publicamente suas opinies sobre um dado tema poltico, mas passam tambm por situaes em que devem defend-las e revis-las diante do questionamento alheio. Como mencionamos anteriormente, essa abordagem expressa uma concepo de poltica fundamentada nas formas plurais de comunicao que contribuem para a construo de preferncias, para a reflexo sobre o bem comum e para a formao da opinio e da vontade, sem deixar em segundo plano a importncia do Estado no processo de institucionalizao dessa vontade.

    Utilizando os grupos de discusso como mtodo capaz de revelar como cidados comuns marginalizados, especificamente mulheres pobres, constroem discursos prprios acerca de questes polticas que afetam seu cotidiano, este trabalho visa investigar as formas de interao e de trocas comunicativas presentes em grupos de discusso realizados com beneficirias5 Programa Bolsa-Famlia.6 A fim de captarmos e analisarmos os

    VEIGA e GONDIM, 2001. Para autores que utilizam o termo grupos de conversao, ver: SMITHSON, 2000; WARR, 2005. 4 Sophie Duchesne e Florence Haeger consideram raros os momentos de politizao em grupos de discusso. Segundo elas, esses momentos surgem quando os interlocutores reconhecem a existncia de pontos de vista divergentes acerca de uma questo de interesse coletivo (2004, p.883). Tal politizao implicaria tanto lgicas de especializao (conhecimento especfico sobre o tema em questo: partidos polticos, atores polticos, representaes, discursos especializados, etc.), quanto de conflitualizao (acentuar a expresso pblica e o contato entre posies antagnicas). 5 Utilizamos o termo no feminino, uma vez que alm de o carto do bolsa-famlia ser feito em nome das mulheres (mes, avs, etc.), so elas que administram a renda do programa e se encarregam de cumprir as contrapartidas (manter os filhos nas escola, leva-los ao posto de sade, fazer o acompanhamento pr-natal, etc.). Nas palavras de Lula: No que as mulheres sejam melhores do que os homens, eu acho que elas tm mais responsabilidade no trato da famlia (SCOLESE, Eduardo; LEITE, Pedro Dias. Vale a pena governar pas, diz presidente, in: Folha de S. Paulo, Brasil, A12, 21/10/05). Apesar disso, mencionaremos mais adiante que apenas um grupo focal por ns realizado contou com a presena de um homem. 6 Criado em outubro de 2003, o Bolsa-Famlia representa hoje o principal sustentculo do j quase inexistente Programa Fome Zero, destinando uma soma que varia entre R$15,00 e R$45,00 para famlias com renda per capita de at R$120,00. Para famlias em situao de extrema pobreza (renda per capita de at R$60,00), o benefcio varia de R$50,00 a R$95,00. A quantia do benefcio depende do nmero de crianas em idade escolar (de 0 a 16 anos), gestantes e mulheres em fase de amamentao presentes em cada famlia. Diferentemente dos programas sociais dos governos anteriores, o Bolsa-Famlia coloca em primeiro plano a

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    momentos de politizao entre os participantes dos grupos, ou seja, os momentos em que a conversao sobre temas rotineiros e dramas pessoais, d lugar a momentos em que posies so delineadas e conflitos assumidos ou silenciados, realizamos oito grupos de discusso em duas cidades da regio sudeste: quatro em Belo Horizonte (MG) e quatro em Campinas (SP).7

    Nosso interesse est menos na realizao de uma anlise do referido programa do que no entendimento coletivo e na dinmica da troca discursiva que as beneficirias, reunidas em grupos de discusso, podem construir acerca de uma poltica social de interesse coletivo. Portanto, nosso intuito fundamental o de evidenciar algumas seqncias dialgicas em que os participantes, em sua maioria mulheres8 com idades que variam entre 27 e 60 anos se vem, por exemplo, diante da necessidade de assumirem posies (conflitantes ou complementares); de assumir o risco de expressar uma opinio dissonante; de explicitar as premissas que sustentam seus pontos de vista; de conservar seus pontos de vista privadamente ou de exprimi-los publicamente mobilizando, para isso, um grande esforo de explicitao e justificao de suas premissas.

    Este artigo encontra-se estruturado em trs partes: na primeira parte, buscamos recuperar trabalhos de diferentes autores e reas de conhecimento acerca da produo de sentido sobre a poltica feita por cidados comuns. Procuramos tambm, evidenciar o motivo de escolhermos, entre esses cidados comuns, aqueles que so marginalizados e, portanto, politicamente empobrecidos. Tais pretenses so guiadas por um entendimento de poltica intimamente ligado s prticas cotidianas desses cidados. Na segunda parte, explicitamos a metodologia utilizada em nossa pesquisa e a organizao dos grupos de discusso. Por fim, na terceira parte, apresentamos fragmentos das conversaes e discusses obtidas nos grupos de modo a analisar os momentos de politizao construdos pelos participantes. O entendimento da poltica a partir das margens Antes de apresentarmos a dinmica discursiva cotidiana dos cidados marginalizados como nosso principal objeto de anlise, torna-se relevante elaborarmos um breve panorama dos trabalhos que se dedicam investigao dos modos como as pessoas comuns pensam e produzem discursos sobre a poltica. Segundo Alessandra Ald,

    a ateno que o homem comum presta ao mundo dada de maneira rotineira, habitual. O universo da poltica est inserido nessa perspectiva cotidiana; apreender

    independncia e a autonomia das beneficirias. Alm da transferncia de Renda, o Bolsa-Famlia insere-se no contexto mais amplo do que pretendia o Fome Zero: oferecer cursos profissionalizantes, de alfabetizao, manter as crianas na escola, freqentar os postos de sade, incentivar a agricultura familiar, etc. 7 Essas cidades apresentavam-se, no momento da realizao da pesquisa de campo, em estgios diferenciados de implantao do programa. Na capital mineira, tida como referncia do Programa, quase todas as famlias em situao de vulnerabilidade social j foram atendidas pelo programa. O atendimento descentralizado, ficando a cargo das nove administraes regionais da cidade. Por outro lado, a cidade de Campinas conta ainda com um grau incipiente de atendimento, o qual no foi totalmente descentralizado implicando, alm da precariedade dos dados cadastrais, em uma sobrecarga de trabalho para os Distritos de Assistncia Social. 8 Torna-se relevante observar que as mulheres, os idosos e os pobres so freqentemente apontados como indivduos que apresentam grandes dificuldades de se expressarem em pblico (Conover et al., 2002, West, 1995; Kingfisher, 1996).

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    as rotinas e hbitos dos indivduos, bem como a verso que oferecem para eventos pblicos e polticos tarefa poltica central (2001, p.22)

    Sob essa perspectiva, um primeiro conjunto de trabalhos interessados em coletar a

    opinio das pessoas sobre o ambiente poltico concebido tanto em sua dimenso formal quanto informal (Bourdieu, 1993; Ald, 2001; Lazarus, 2001; Tatagiba, 2006; Feltran, 2005, 2006; Lucas e Ferrari, 2004) pode ser identificado nas reas de Cincia Poltica e Antropologia Social. Entretanto, podemos encontrar trabalhos dessas reas que se preocupam em revelar a importncia das mensagens miditicas para a produo de sentidos e atitudes polticas (ver especialmente Ald, 2001). O mtodo de coleta de dados usualmente empregado por essas pesquisas a entrevista em profundidade. Algumas pesquisas da rea de Cincia Poltica voltam-se tambm para o mtodo etnogrfico, procurando pensar a poltica a partir das histrias de vida (ou narrativas biogrficas) de pessoas marginalizadas (ver especialmente Feltran, 2005, 2006).

    Um segundo conjunto de trabalhos, talvez o mais conhecido deles, se dedica a explorar o efeito persuasivo do marketing poltico na formao das atitudes e preferncias dos eleitores (Figueiredo, 1995, 2000; Veiga e Gondim, 2001; Magalhes e Veiga, 2000). As pesquisas sobre a opinio pblica, comumente exploradas em trabalhos desenvolvidos na rea da Cincia Poltica, centram seu foco sobre o processo eleitoral, o cenrio de representao poltica, a poltica de imagem (Gomes, 2004), entre outros. Os mtodos freqentemente utilizados so os surveys, as entrevistas em profundidade e os grupos de discusso. preciso registrar aqui o fato de que, com relao utilizao de grupos de discusso, as anlises realizadas por esses estudos focalizam-se no registro de expresses especficas ou padres de respostas, ao invs de elaborar uma anlise das dinmicas interativas, dos constrangimentos contextuais, e dos diferentes discursos acionados pelos participantes para a construo do prprio posicionamento (ver essa crtica tambm em Meyers, 1998; Morgan, 1997; Kitzinger, 1994).

    Um terceiro conjunto de pesquisas apresenta como prioridade a construo de estudos de recepo que visem explorar o contedo das mensagens miditicas (geralmente extradas de telejornais e da mdia impressa em geral) e sua influncia na interpretao do mundo da poltica institucional e de questes de relevncia poltica para os contextos cotidianos da experincia. Esses trabalhos, desenvolvidos na rea da Comunicao Social (Silva, 1985; Reis, 1999; Jacks, 1999; Porto, 2001; Ronsini, 2004; Ferraz, 2005; Ribeiro, 2005; Marques e Rocha, 2006) e, mais esporadicamente na rea de Cincia Poltica (Gamson, 1992; Neuman, Just e Crigler, 1992), freqentemente optam pelos mtodos de grupos de discusso, entrevistas individuais e observao participante. As pesquisas de recepo que optam pelas entrevistas em profundidade e/ou pelos grupos de discusso trazem para as pessoas trechos de mensagens da mdia impressa ou televisiva de modo a despertar o interesse e a implicao em debates sobre temas sugeridos. De modo geral, os pesquisadores apresentam anlises dos dados obtidos de modo a evidenciar como os indivduos produzem seus prprios discursos e sentidos e de onde provm os recursos discursivos que utilizam. No que diz respeito utilizao de grupos de discusso, acreditamos ser uma boa proposta de investigao emprica a diviso da discusso em duas etapas. Em um primeiro momento, os participantes seriam convidados a falar sobre os tpicos de interesse do pesquisador e s ento, em um segundo momento, textos da mdia impressa seriam acionados e incorporados aos pontos de vista dos participantes. Nesse caso, o funcionamento do grupo de discusso ou entrevista flui de modo a perceber quais

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    discursos so mobilizados pelos participantes e entrevistados para comporem suas respostas e pontos de vista.

    Podemos apontar ainda um quarto conjunto de pesquisas que, dentro da rea de Comunicao Social, se dedicam a perceber como a fico seriada televisiva influi no modo como as pessoas percebem a poltica. De maneira geral, esses estudos adotam uma concepo institucional de poltica (Sluyter-Beltro, 1993; Guazina, 1997; La Pastina, 1999; Porto, 2001, 2003), muito embora, alguns se dediquem a explorar aspectos mais informais e cotidianos do universo da poltica, como prticas ligadas s identidades, luta contra injustias simblicas e questionamento de representaes (Rocha, 2006; Barker, 2003). Esses quatro grandes conjuntos de pesquisas se revelam interessados em investigar, em seu conjunto, os modos como cidados comuns elaboram discursos a partir de insumos simblicos provenientes da mdia; das conversaes cotidianas entre amigos, vizinhos e parentes; do conhecimento compartilhado do senso comum; da sabedoria popular e das interaes sociais cotidianas em espaos os mais diversos. Gostaramos de deixar claro que no temos como preocupao mostrar como se desenha a poltica a partir da perspectiva das pessoas, ou mais especificamente, como as beneficirias do bolsa-famlia produzem sentido acerca do programa. Interessa-nos captar e analisar a dinmica discursiva dos grupos de modo a explorar os momentos de politizao das falas e discursos das participantes.

    Como acentua Habermas (1997, p.82), a populao oriunda da periferia da sociedade, profundamente marcada pela desvalorizao moral e pela distribuio desigual de recursos materiais, tambm possui um poder comunicativo. Tal poder originado e ganha substncia atravs da troca recproca, relacional e pblica de pontos de vista acerca de questes coletivas. Agir comunicativamente significa tambm ajudar a construir, re-construir e mesmo questionar uma dada situao ou contexto atravs de interpretaes negociadas cooperativamente (cf.1997, p.92). Sob essa perspectiva, concebemos a poltica como resultado dessas negociaes e interpretaes produzidas discursiva e relacionalmente e voltadas para que os parceiros dialgicos construam seus pontos de vista e sejam capazes de explic-los e defend-los diante de indagaes alheias (Habermas, 1997; Bohman, 1997). principalmente o conflito e as estratgias de sua explicitao, que marcam a construo e o entendimento da poltica a partir das margens.

    Partirmos do pressuposto de que o pblico composto pelas beneficirias de polticas sociais como o bolsa-famlia faz parte de uma esfera constituda nas margens invisveis do sistema poltico.9 Instiga-nos explorar como esse contra-pblico subalterno10, destitudo de recursos materiais e polticos elaboram seus prprios discursos de modo a tecer, no contexto dos grupos de discusso, relaes entre os discursos provenientes da esfera de

    9 Para Habermas, o sistema poltico seria composto pelo poder administrativo e pelo comunicativo, articulados atravs de uma poltica deliberativa que se caracteriza pelo debate pblico, controlado pela opinio pblica, entre especialistas e contra-especialistas(1997, p.84). 10 Esse termo utilizado por Nancy Fraser (1992) ao propor um modelo que substitui a esfera pblica burguesa unitria por uma rede heterognea e dispersa de muitos pblicos. Tal rede dispersa e ramificada de pblicos pode acomodar os desejos das mulheres e de outros grupos excludos originados em seus prprios espaos, e elaborados em seus prprios termos. Para esses contra-pblicos subalternos os limites entre o pblico e o privado, por exemplo, podem ser renegociados, repensados, desafiados e reformulados.

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    discusso poltica principal (mainstream political discussion) e os discursos em que elas se implicam nos espaos rotineiros e invisveis de suas relaes cotidianas11.

    Na prxima seo, buscamos caracterizar o grupo de discusso enquanto um contexto controlado de interao, que permite um trabalho de investigao capaz de evidenciar diferentes modos de implicao dos participantes em discusses polticas, ou seja, permite mapear como os participantes se expressam e se posicionam reciprocamente.

    A dinmica comunicativa no contexto de grupos de discusso

    A utilizao da tcnica dos grupos focais na rea da Comunicao Social teve sua

    origem associada s pesquisas desenvolvidas por Paul Lazarsfeld e Robert Merton em 1941. Ambos desenvolveram nesta poca uma pesquisa que testava a resposta da audincia a determinados programas radiofnicos. Os participantes dos grupos eram convidados a apertar um boto vermelho em suas cadeiras quando qualquer coisa que ouvissem evocasse uma resposta negativa (irritao, raiva, tdio, etc.) e apertar um boto verde para uma resposta positiva. Em seguida, um assistente da pesquisa questionava o grupo sobre suas razes para as respostas dadas (Merton,1987; Lunt e Livingstone, 1996). Robert Merton qualificava essa tcnica de entrevistas focadas em grupo, nas quais o objetivo era investigar o processo mecnico de estmulo ou difuso da mensagem como ponto principal do exame qualitativo e detalhado da resposta da audincia com um modo de elaborar processos de efeitos da mdia (cf.1987, p.563). O interesse das pesquisas empreendidas por Merton, Lazarsfeld e Carl Hovland (que projetou e controlou experimentos sobre as respostas dos soldados aos filmes de treinamento) era investigar o comportamento coletivo e os contextos sociais de persuaso de massa (Cf. Lunt e Livingstone, 1996, p.84).

    Nos anos 80, a pesquisa desenvolvida por David Morley12 utiliza a tcnica dos grupos focais desloca o foco do estudo dos efeitos para o modo ativo como as audincias contribuem para a negociao e construo de sentidos. Deixa-se, ento de conceber os grupos focais como um agregado de opinies atomizadas e passa-se a fomentar um interesse especfico pela produo de sentidos permitida pelas diferentes formas de interao adotadas pelos participantes.

    11 A escolha de privilegiar os discursos elaborados pelos pblicos marginalizados encontra-se afinada com aquelas que vm sendo feitas no mbito do Grupo de Pesquisa em Mdia e Esfera Pblica (PPGCom/UFMG). Esse Grupo tem procurado evidenciar que em contexto de forte desigualdade social, marcado pela violncia fsica e simblica, misria, preconceito, como o brasileiro, a luta tambm por rupturas simblicas por parte de grupos historicamente marginalizados e excludos. Cabe, ento, ressaltar a relevncia de se entender a voz dos subalternos quando questionam o prprio entendimento sobre as representaes que os media constroem acerca deles; quando empreendem lutas por reconhecimento e como percebem o lugar que ocupam no processo poltico. 12 Morley desenvolveu trs grandes estudos sobre o programa da TV britnica Nationwide: a) Everyday Television: Nationwide, no qual empreendeu uma alise semitica do programa; b) Nationwide Audience, no qual foram analisadas as condies de consumo dos textos e como grupos sociais distintos promovem leituras diversas dos programas - foram usados 27 grupos homogneos entre 3 e 13 participantes em um design comparativo que cobriu a variao de classe social, nvel de educao e filiao poltica (Lunt;Livingstone, 1996, p.84); c) Family television, de cunho etnogrfico buscava registrar como as pessoas vem tv em casa ( o uso familiar da TV). Essas pesquisas revelaram como audincias com diferentes backgrounds scio-econmicos produziam diferentes leituras de programas atuais.

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    Devido a essa origem da tcnica, associada tambm a pesquisas de marketing, alguns autores apresentam uma certa resistncia em empregar o termo grupo focal para caracterizar o mtodo empregado em suas investigaes. Percebemos na literatura corrente que quando o pesquisador deseja enfatizar a dinmica das interaes comunicativas construdas nos grupos a tendncia utilizarem os termos grupos de discusso (Kitzinger, 1994; Letelier, 1996; Bertrand et al, 1992; Ward et al, 1991) ou grupos de conversao (Smithson, 2000;Warr, 2005).

    Na verdade, a escolha dos termos que definem o mtodo empregado tem forte influncia sobre o modo como interpretamos os dados resultantes da pesquisa de campo. Assim, como buscamos investigar as interaes comunicativas entre os participantes e os modos atravs dos quais o sentido coletivamente criado, contestado e retrabalhado no grupo(War, 2005, p.203), optamos por utilizar a noo de grupos de discusso, entendendo-os como contextos discursivos controlados de conversaes e discusses capazes de abrigar e estimular trocas comunicativas que guardem semelhanas com as conversaes cotidianas e discusses acerca de temas sociais e polticos, as quais envolvem momentos de troca argumentativa e indagao mtua.13

    Nesse sentido, a realizao de grupos de discusso nos permite observar o modo como os participantes fazem perguntas uns aos outros e explicam suas posies de forma recproca (Morgan, 1996; Carey, 1994; Kitzinger, 1994; Bryman, 2001). Segundo Jenny Kitzinger, os grupos de discusso oferecem a oportunidade de criao de contextos interativos que podem ser entendidos como um frum atravs do qual idias podem ser esclarecidas estimulando as pessoas a se engajarem umas com as outras, a formularem verbalmente suas idias e exporem as estruturas cognitivas que estavam previamente desarticuladas(1994, p.106). Em um grupo de discusso, as pessoas so constrangidas a explicar as razes por trs de seu pensamento. Assim, o mtodo visa examinar como o conhecimento e, mais importante, as idias se desenvolvem e operam em um dado contexto cultural (Kitzinger, 1994, p.116).

    Se, por um lado, nosso propsito o de evidenciar a importncia da conversao cotidiana (quando engendra uma discusso poltica) para o processo de formao poltica e maior entendimento dos atores, por outro, preciso esclarecer o quo difcil a captao desses momentos. Justamente por se realizarem em situaes informais, em encontros fortuitos, efmeros, no tarefa simples para o pesquisador registrar o contedo de tais trocas comunicativas. Contudo, quando h oportunidade nas quais tais conversaes possam ser captadas, registradas e analisadas com amparo conceitual e rigor metodolgico, acreditamos ser de grande valia o que se retm desses momentos discursivos, ou seja, a descoberta do modo como as pessoas constroem suas opinies e vises de mundo, como elas contam umas com as outras nesse processo e como isso contribui para fortalecer aquilo que entendemos como exerccio cotidiano da poltica.

    13 Lunt e Livingstone (1996) apontam que o grupo focal capaz de constituir-se em um contexto propcio reproduo ou recriao da conversao cotidiana das pessoas. Contudo, devemos sempre ter em mente que um grupo de discusso um contexto de interao comunicativa artificialmente construdo. Portanto, no podemos criar a expectativa de que os participantes do grupo se comportem da mesma forma que em seus ambientes relacionais rotineiros, uma vez que existem inmeras variveis que podem criar constrangimentos aos participantes do grupo, sobretudo as relaes de poder que se estabelecem entre moderador/participantes e entre os prprios participantes. Cabe ao moderador propor os temas do debate, mas com a conscincia de que so os participantes que o conduzem, posicionando-se em relao aos tpicos propostos pelo pesquisador.

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    Considerando a abordagem acima explicitada, organizamos 8 grupos de discusso com as beneficirias do Bolsa-Famlia, quatro em Belo Horizonte e quatro em Campinas14. A cidade de Belo Horizonte, alm de contar com um alto grau de organizao dos dados cadastrais e conhecimento das beneficirias, apontada como a capital que possui a maior cobertura do programa, com 87% de famlias carentes atendidas.15 Por outro lado, a cidade de Campinas passava, na fase de realizao da pesquisa de campo (entre outubro de 2005 e agosto de 2006), pela etapa de implantao do Programa, sendo muito difcil o acesso aos dados sobre as famlias beneficiadas. Se em Belo Horizonte as aes vinculadas ao programa j se encontram descentralizas e sob a responsabilidade das nove Administraes Regionais da cidade, em Campinas todo o processo ainda monitorado pela Secretaria de Assistncia Social.16 Essa disparidade nos motivou a detectar nas duas cidades a relao que as beneficirias mantinham com o programa.

    Em Belo Horizonte, selecionamos beneficirias que moram em bairros localizados sob a administrao das regionais Norte, Leste, Pampulha e Venda Nova.17 Aps um contato inicial com os coordenadores do Bolsa-Famlia em cada uma dessas Regionais, contamos com o auxlio dos Ncleos de Apoio Famlia (NAFs) para selecionar as beneficirias. Em Campinas, das cinco regies que compem a cidade (Norte, Sul, Noroeste, Sudoeste e Leste), realizamos grupos focais com beneficirias que habitam em bairros pertencentes s regies Sul, Sudoeste, Norte e Leste.18 As beneficirias foram selecionadas com o auxlio dos CRAS correspondentes a cada regio. Os grupos foram compostos por 3 a 8 mulheres cadastradas no programa Bolsa-Famlia, independentemente de critrios como valor do benefcio recebido, idade, raa e classe social. Foram escolhidas as mulheres, porque o programa as concebe como as reais administradoras do lar, sendo que o carto do programa feito em nome da mulher.19 O contato com as beneficirias foi feito por telefone, obtido previamente junto s regionais e NAFs (BH) e aos CRAS (Campinas). O modo escolhido para o registro das falas durante a realizao dos grupos foi a gravao em fitas cassete. preciso ainda destacar a composio diferenciada dos oito grupos de discusso. Optamos por realizar, em cada cidade, grupos com mulheres que participam ativamente dos cursos e oficinas oferecidos pelos NAFs e pelos CRAS, e grupos compostos de mulheres 14 Os grupos realizados representam parte do corpus da tese de doutoramento que est sendo desenvolvida por ngela Marques, sob orientao da Profa. Dra. Rousiley Celi Moreira Maia, junto ao PPPGCom/UFMG. 15 Dado obtido no site da Prefeitura de Belo Horizonte . 16 Informao fornecida pela Coordenadora de Gesto e Integrao das Informaes Sociais da Secretaria de Assistncia Social de Campinas, Gisleide Abreu, em 31/01/06. Segundo ela, o incio da descentralizao do programa estava previsto para maro de 2006. A partir desse ms, os CRAS passariam a ser responsveis pelas aes ligadas ao programa. 17 O contato com as beneficirias no teria sido possvel sem o auxlio de Mrcia Teixeira (Gerente Geral do Bolsa-Famlia em BH), Mnica Figueiredo (Gerente de Transferncia de Renda e Gerao de Trabalho Pampulha), Ramon (Goordenador do NAF Pampulha), Mara Rbia (Coordenadora do NAF Leste), Soraia de Souza (Coordenadora do NAF Norte), Graa (Coordenadora do EJA Colgio Santa Dorotia). 18 Agradeo o auxlio inestimvel de Gisleide Abreu e Elton Pappa (Bolsa-Famlia de Campinas), Maria Jos Toffoli (Coordenadora do CRAS Norte), Letcia Lofiego Chrispi (Coordenadora do Centro Social Padre Ancheita/CRAS Norte), Marg Silva, Mrcia Pantaleo e Anglica Bossolani (CRAS Sul), Gilberto Ribeiro e Maria Lcia Teixeira (CRAS Leste), Maria de Ftima Costa (Coordenadora do CRAS Sudoeste) e Mnica Secco (CRAS Sudoeste Bairro Vida Nova). 19 preciso destacar que, entre todos os grupos realizados, s ocorreu uma exceo: no grupo realizado no CRAS Norte (Bairro Vila Padre Anchieta) apareceu um casal que afirmava que o marido era quem tomava a frente nas questes relativas ao benefcio.

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    que no se vincularam a nenhuma das atividades disponibilizadas por essas instituies. Em Belo Horizonte, o grupo realizado com beneficirias da Regio Norte (Bairro Conjunto Felicidade) era composto por mulheres que no participavam de associaes de bairro, movimentos sociais ou instituies cvicas. O grupo realizado com beneficirias da regio da Pampulha contou com a participao de trs mulheres que trabalham na COMARP (Comunidade Associada para Reciclagem de Materiais da Regio da Pampulha) essa associao funciona dentro do NAF/Pampulha. O grupo realizado com as mulheres do NAF Leste (Bairro Alto Vera Cruz) foi composto em sua maior parte, por mulheres que freqentam a Oficina de Mulheres (trabalhos artesanais). Finalmente, o grupo que reuniu as beneficirias da Regio de Venda Nova, contou com a participao das alunas do Educao para Jovens e Adultos (EJA), mantido pelo Colgio Santa Dorotia. Em Campinas, o grupo realizado com as beneficirias das Regies Sudoeste (Bairro Vida Nova), Norte (Bairro Vila Padre Anchieta) e Sul (Bairro Campo Belo) foram compostos por mulheres no-engajadas20, enquanto que os grupos realizados com o apoio do CRAS Leste (Bairro Nilpolis) e do CRAS Norte, contaram com mulheres que freqentam, respectivamente, as oficinas e cursos de artesanato propostos pelo Recanto da Alegria (Casa da Famlia), e os cursos profissionalizantes oferecidos pelo Espao Esperana (criado em 1995 pelo Programa Comunidade Solidria). Acreditvamos que essa diferenciao entre os grupos poderia revelar que a busca pelo caminho da profissionalizao e da associao em cooperativas reflete a procura das beneficirias por caminhos alternativos de enfrentamento da pobreza.

    O roteiro para a discusso nos grupos de discusso foi organizado em duas partes21: a) na primeira parte, as beneficirias respondiam a questes referentes sua prpria experincia com o programa22; b) na segunda parte, foram disponibilizados textos da mdia impressa e televisiva referentes ao programa bolsa-famlia de modo que elas manifestassem suas opinies e interpretaes acerca do que foi visto e lido.23 Com relao apresentao e ao tratamento dos dados por ns obtidos, optamos por tomar as seguintes medidas: i) o nome dos participantes foi substitudo por sua letra inicial;

    20 importante ressaltar que, mesmo assim, os grupos revelaram certa heterogeneidade com relao participao poltica. Alguns participantes de grupos realizados com pessoas que no participavam de cursos ou oficinas, revelaram ser membros ativos de Conselhos Comunitrios, reunies do Oramento Participativo, Associaes de Bairro, Associaes Religiosas, entre outros. 21 Cabe ressaltar que coube ngela Marques o papel de moderadora dos grupos de discusso. Para os grupos realizados na cidade de Belo Horizonte, o papel de observador foi desempenhado por Augusto Veloso Leo, aluno de Iniciao Cientfica do curso de Comunicao Social da UFMG e membro do Grupo de Pesquisa sobre Mdia e Esfera Pblica (EME) da UFMG. ele, meus sinceros agradecimentos pelo apoio logstico inestimvel e pela rdua tarefa de anotar e observar o comportamento dos grupos. 22 As questes referentes primeira parte da dinmica eram semi-estruturadas e foram agrupadas em torno de trs tpicos nucleadores: a) o entendimento que as beneficirias tm do programa: o objetivo desse tpico era investigar como elas definiam o programa; b) as alternativas disponveis para escapar da pobreza: esse tpico visava explorar as escolhas por elas elencadas para superar os obstculos que impedem a construo da autonomia. (Pretendamos investigar o valor que elas conferem ao trabalho, educao, participao em projetos coletivos, etc., e c) a luta por direitos, reconhecimento e cidadania: a finalidade das perguntas elaboradas nesse tpico era a de analisar como essas noes apareciam no discurso das beneficirias. O que vem a ser um direito para elas? Elas associam os direitos sua independncia e sua valorizao pelos outros? 23 Dada a durao de cada grupo de discusso (entre 1h e 2h30min), as matrias da mdia impressa foram reduzidas a pequenos trechos, os quais enfatizavam as falas de atores polticos, cvicos e miditicos.

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    ii) ao final de cada discusso aqui transcrita indicamos a regio, a data em que o grupo foi realizado e a respectiva cidade dos participantes. A discusso que segue tem como objetivo revelar como mulheres pobres e beneficirias de um programa de transferncia de renda especfico - condio que leva a um status de desvalorizao social (Paugam, 1993; Telles, 1999) constroem, quando reunidas em grupos de discusso, modos de interao em que posies so tomadas, os riscos do debate so assumidos ou no; premissas de fundo so melhor explicitadas, e contra-narrativas so elaboradas de modo a desafiar preconceitos e formas discursivas que possuem um maior grau de publicidade e visibilidade social. A construo coletiva do sentido acerca de questes polticas

    Acreditamos que o contexto interativo dos grupos de discusso permite que ocorram tanto conversaes mais fluidas sobre assuntos variados (inclusive polticos) quanto discusses voltadas para um melhor entendimento e/ou busca de solues para questes problemticas.24 A distino entre essas duas formas de interao depende de dois esclarecimentos essenciais: a) primeiro, o pesquisador deve definir a natureza da questo a ser tematizada no grupo. No nosso caso, consideramos o tema do Bolsa-Famlia como questo poltica de interesse pblico; b) segundo, o pesquisador precisa definir os tipos de interao que se processam nos grupos por ele realizados. Geralmente, podemos identificar nos grupos de discusso os seguintes tipos de interaes: a) complementares (voltadas para o acionamento de elementos do mundo social e da experincia subjetiva capazes de gerar um quadro comum de entendimento entre os participantes), b) argumentativas (diferenas de opinio permitem que os participantes revisem seus pontos de vista, refletindo sobre as razes que sustentam) (Ver Bryman, 2001; Kitzinger, 1994); c) contra-discursivas (articulao de experincias e pontos de vista de modo a desafiar clichs, esteretipos opressores e construes culturais dominantes). E, dentro dessas formas interativas, encontramos formas de comunicao como piadas, brincadeiras, contao de casos, gestos que influenciam na maneira como os participantes estabelecem vnculos uns com os outros e com o moderador.

    A nosso ver, os contextos de trocas comunicativas proporcionadas pelos grupos de discusso, do a ver um fluxo desconexo entre experincias pessoais, temas polticos, cdigos discursivos acessveis somente elas mesmas, etc. A conexo entre essas diferentes referncias discursivas, ocorre quando a maior parte do grupo assume uma posio diante de um tpico de discusso. Como revela o trecho transcrito abaixo, o sub-plot de uma novela, a conversa com uma vizinha ou amiga, a opinio sobre as aes de determinados polticos25 so acionados e articulados em um debate no qual os participantes buscam explicitar suas razes diante dos outros:

    24 Segundo Deborah Warr, a natureza da conversao gerada nos grupos focais uma mistura de crenas pessoais e narrativas coletivas disponveis e alimentadas pelas circunstncias locais das vidas dos participantes (2005, p.200). 25 A capacidade de lidar com um conhecimento especializado que envolve os atores da competio partidria e eleitoral (um saber que engendra um sentimento de proximidade esfera poltica formal) descrita por Duchesne e Haeger como competncia poltica. Alguns indicadores dessa competncia so a referncia nominal aos atores polticos institucionais e o domnio de cdigos do jogo poltico (Cf. 2004, p.879).

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    K: Eu, em vista dos outros presidentes que teve a, eu, por mais que tudo isso que houve: roubo daqui, roubo de l... s que esse roubo no veio s do Lula. Veio j de antigo... Se ns estivssemos com o Geraldo Alckimin hoje administrando, o nosso arroz ia t, no mnimo, 18, 20 reais, porque quando o Fernando Henrique saiu, o arroz tava 12 reais, h 4 anos atrs. E hoje a gente compra arroz por 5 reais... L: A nica coisa que eu acho que ele deveria melhora era no emprego, gente, ger mais empregos pras pessoas. (...) Esses dias eu tava conversando com uma amiga minha e verdade, porque a gente vitorioso. Pega um rico e coloca ele dentro da casa da gente com 300 reais pra ele se vir no ms... (...) A gente passa a po e ovo e tudo, mas a gente consegue. Eles no conseguem. K: Hoje tem uma novela da Record que ta mais ou menos nesse ritmo. O rapaz era burguesinho e o pai tirou tudo dele. Hoje ele ta vivendo na misria, numa casa simples e com um dinheiro misgalho... (...) I: o pobre se conforma... L: No que a gente se conforma, a gente faz um plano pra conseguir uma coisa melhor. [CRAS Norte, 12/04/06, Campinas]

    Nossas anlises revelam que a tematizao de questes polticas nos grupos de

    discusso no deveria ser considerada como uma atividade de menor importncia para o funcionamento e fortalecimento da poltica formal que opera no centro do poder administrativo.

    Observamos que a dinmica dos grupos de discusso realizados com as beneficirias do Bolsa Famlia, revelou-se uma prtica social arriscada. Primeiro por envolver momentos sensveis de politizao, ou seja, momentos em que os interlocutores reconhecem, a propsito de uma questo de interesse coletivo, a existncia de pontos de vista divergentes e aceitam o risco de entrar em desacordo explcito e assumido com seus interlocutores em nome de idias, interesses ou valores. (Duchesne e Haeger, 2004, p.883 e 884). E, segundo, por envolver questes sensveis, isto , questes que dizem respeito identidade dos participantes dos grupos, uma vez que despertam experincias de opresso e remetem s posies que ocupam na sociedade (Duchesne e Haeger, 2004; Warren, 2006, Conover et al., 2002).

    De modo a construir uma anlise capaz de apreender a dinmica das trocas comunicativas que se estabelecem no contexto dos grupos de discusso, e ancoradas na dimenso conceitual de poltica anteriormente explicitada, desenvolvemos as seguintes categorias analticas: a) a produo de contra-narrativas que desafiem aquelas que possuem um maior grau de visibilidade; b) a explicitao de premissas e razes; c) o posicionamento dos participantes diante de questes sensveis; d) assumir o risco de expressar uma opinio dissonante; e) evitar os riscos impostos pelo debate.

    A escolha e utilizao das categorias analticas se d em virtude dos objetivos de investigao propostos no trabalho de cada pesquisador. Na pesquisa em tela trata-se, entre outros, de saber sobre o entendimento da pobreza, o lugar das beneficirias segundo elas mesmas dentro do quadro da poltica social do bolsa-famlia etc. E acreditamos que esse seja um modo muito til no desvendamento e interpretao dos dados obtidos na realizao de grupos de discusso, voltados para investigao da poltica no cotidiano. A construo de categorias, previamente estabelecidas, conduzem o pesquisador em sua anlise segundo os propsitos de seu trabalho, sem, contudo, engess-la. O interessante que ao mesmo tempo em que elas guiam o trabalho, podem ou no ser contempladas nos momentos do dilogo entre os participantes.

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    A produo de contra-narrativas

    sabido que os contra-pblicos subalternos se constituem como vozes minoritrias, invisveis e algumas vezes opositoras. Tais pblicos expressam-se fora do fluxo discursivo principal das esferas de visibilidade ampliada e dos espaos polticos formais. As esferas privadas de conversao e encontro geralmente fornecem o contexto em que esses pblicos trocam impresses e produzem formas discursivas alternativas que desafiam os discursos pblicos.26 Os espaos cotidianos freqentados pelos contra-pblicos so descritos por Nancy Fraser como arenas discursivas paralelas onde os membros de grupos subordinados inventam e circulam contra-discursos (1992, p.123). A idia de que ao lado de um discurso h sempre um contra-discurso no nova. Contudo, torna-se relevante pensarmos a respeito das contribuies que a formulao de contra-narrativas apresentam para a formulao de quadros de entendimento e de referncia sobre o universo da poltica. Assim, fora do fluxo principal de discusso pblica e coletiva, um pblico comum e invisvel procura entender e produzir sentido acerca de diferentes discursos que lhes dizem respeito. Muitas vezes, as contra-narrativas no so elaboradas por esse pblico, mas j se encontram dispostas em mbitos de maior visibilidade discursiva. Todavia, os contra-pblicos renem fragmentos de discursos pblicos e, quando preciso, fazem os entrecruzamentos que julgam necessrios para a produo de um entendimento ampliado do contexto no qual se insere a questo discutida (West e Gastil, 2004). O trecho abaixo transcrito revela como as beneficirias do Bolsa-Famlia reagem a diferentes discursos sobre temas pejorativos elas relacionados:

    L: eles [os polticos] tm mania de fal que o povo brasileiro acomodado. No o povo brasileiro... os pobres, eles falam que so acomodados. No isso, mas que eles to cansados de tanta palhaada, porque lutam, lutam e no conseguem nada. Sai um benefcio, voc corre atrs e passa a maior humilhao pra peg... K: uma humilhao. Quando eu fui faz o cadastro, cheguei l 7 horas da manh e s fui atendida s 3 da tarde. Quer dizer, uma coisa assim, muito humilhante pra ganh 15 reais. L: se no precisasse ia pass por uma humilhao dessas? K: sem cont a briga que teve na porta. As pessoas querendo cort a fila (...) A sai aquela confuso, a sai na televiso como se as pessoas pobres fossem qualquer marginal, como um lixo, como qualquer Z ningum... E: A eles vai fal o qu? Olha l a favelada como que t l. S: ... gosta de faz barraco... L: Na verdade, eles no falam assim, a periferia, eles falam a favela. Eles no tm nem a capacidade de tratar as pessoas com dignidade... [CRAS Norte, 12/04/06, Campinas]

    Podemos perceber, ento, que as beneficirias identificam diferentes discursos, assim como seus principais porta-vozes, para questionar o fato de que os pobres seriam 26 Segundo Habermas, os ncleos privados do mundo da vida, caracterizados pela intimidade, portanto protegidos da publicidade, estruturam encontros entre parentes, amigos, conhecidos, etc., e entrelaam as biografias das pessoas conhecidas. A esfera pblica mantm uma relao complementar com essa esfera privada, a partir da qual recrutado o pblico titular da esfera pblica (1997, p.43).

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    acomodados e favelados. Em um primeiro momento, os atores polticos so atrelados ao discurso da acomodao. importante notar que a maior crtica que esses atores fazem ao programa bolsa-famlia que ele, ao dar dinheiro para a populao pobre, desestimularia a busca pelo emprego. Em um segundo momento, o grupo identifica o discurso da humilhao, produzido por elas mesmas de modo a enfrentar o estigma da acomodao. Na verdade, elas expressam que so ativas, que lutam para adquirir as coisas e que, ainda por cima, so humilhadas. Todavia, ao invs de desafiarem o lugar de vtima, elas questionam o discurso da acomodao reproduzindo o discurso vitimizador da humilhao. H, portanto, uma relao tnue e ambgua entre a aquiescncia e o dissenso, ou seja, a fala delas exprime, ao mesmo tempo, formas de acomodao e de resistncia. O terceiro discurso por elas acionado o discurso da mdia, recheado de esteretipos pejorativos como favelado e marginal e produzido por agentes que os enquadram como lixo. O grupo tenta estabelecer a diferena entre o que entendem por periferia (para elas, um termo positivo) e favela (termo ligado criminalidade), ao mesmo tempo em que acusam os porta-vozes desses discursos que podem ser tanto os atores miditicos quanto a sociedade em geral de no consider-las dignamente. Como ressaltam Mansbridge (1999) e Kingfisher (1996), as conversaes cotidianas que se processam s margens do fluxo principal de debate acerca de um tema poltico geram pontos de vista transformativos ao rejeitarem categorias impostas. Essa forma de resistncia tem a capacidade de gerar impulsos politizados de luta contra a desvalorizao. Nesse sentido, esse exerccio de contrapor discursos de ampla visibilidade a pontos de vista e experincias mais invisveis revela-se extremamente til ao processo de desenvolvimento de capacidades argumentativas, de justificao de pontos de vista e de contestao de formas de opresso simblica. Revelar premissas de fundo

    Em momentos de discordncia entre os participantes dos grupos de discusso, necessrio que os pressupostos que formam a base das razes acionadas sejam explicitados. Freqentemente, nesses momentos que os prprios participantes indagam-se e desafiam-se mutuamente, assumem o controle da discusso e elegem as questes que percebem como relevantes (Smithson, 2000). O engajamento coletivo no dilogo significa pensar e refletir sobre eventos cotidianos que se desenrolam em contextos de tradies sociais e morais. Assim, quando indagadas sobre a existncia de possibilidades de sarem da pobreza, as participantes de um grupo de discusso elegem a oposio trabalho X namoro para explicitarem suas posies:

    A: pr sair da pobreza eu tenho experincia pela minha famlia. Sabe como faz? Estud muito e faz curso. Consegue sair da pobreza, sim. (...) E depois, namor tambm... Minha famlia falava: no arruma qualquer namorado, no. Primeiro c estuda, c trabalha, c faz curso, c faz tudo. G: olha s proc v, igual oc falou, oportunidade. Se minha me tivesse condio de pag um curso pra mim, eu acredito que at meus irmos, eles iam pag, porque sabem da minha capacidade de chegar l. (...) A: Sabe porque? A gente no tem essa oportunidade, ento depois comea a pensar em namorado. isso que acontece.

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    [falam todas juntas, algumas discordam] AP: No! No e no. A: comea a pensar em namorado, depois que tem filho, a pronto, acabou! Acaba com a tranqilidade da gente. (...) Tem muita gente que sai da favela. Mas por que eles sai da favela? Porque eles s pensam no estudo e ne trabalho. Porque eu acho que depois que a gente s pensa em namorar, a gente s quer namorar... (...) G: Eu acho que, tipo assim, se voc tem uma meta na sua vida, (...) no um namorado que vai te atrapalhar, at porque se ele no for compreensivo... R: chute na bunda dele... G: A minha meta estudar e trabalhar? Concordo. (...) Muitos namorados que eu conheo ajuda a namorada a estud. No s isso, estudar e trabalhar...A vida no s isso. A: mas porque nem todo mundo pensa igual. As pessoas s vezes pensam em namorar...[Regional Venda Nova, 31/10/05, BH]

    O argumento de que namorar atrapalha o projeto de sair da pobreza foi

    questionado pela maioria das participantes, constrangendo a participante A. a mobilizar as premissas que fundamentavam suas razes. Neste caso possvel evidenciar como os debates que ocorrem nos grupos de discusso ganham um grau de organizao que as diferencia das conversaes cotidianas dispersas e desordenadas. No grupo de discusso, o potencial de contradio, de desacordo e de conflito no s revelado, como tambm explorado de forma reflexiva pelos participantes. A evocao de exemplos e histrias pessoais, passadas ou de destinos coletivos , segundo Duchesne e Haeger, o procedimento que observamos com mais freqncia no processo de implicao dos participantes na discusso, sendo que o acordo ou a contestao de sua dimenso exemplar constitui o essencial do trabalho de conflitualizao (2004, p.891). Para Robert Goodin (2006), as crenas e posies das pessoas so sustentadas por razes, sendo que a ao de desvelar as razes e premissas por trs dos argumentos a principal contribuio das conversaes e discusses para o processo poltico. Assim, a dinmica de explicitao de premissas e razes no deve visar o reconhecimento de um certo participante como aquele que tem razo, mas como aquele capaz de prover razes capazes de sustentar seus argumentos diante das indagaes colocadas pelos demais participantes.

    Questes sensveis

    Pesquisas desenvolvidas por Conover et. al. (2002), Gamson (1992), Bennett et al. (2000), Wyatt et. al. (2000) revelam que as pessoas preferem se engajar em discusses privadas. Os motivos dessa escolha variam. Um primeiro motivo refere-se ao fato de que os espaos privados oferecem um acesso mais fcil s questes em debate. Aliado a isso, h uma pequena probabilidade de que desigualdades de recursos e de capacidades comunicativas bsicas atrapalhem a participao das pessoas. Mas, como apontam Conover et al. (2002), o principal motivo que as discusses privadas so percebidas como mais seguras do que as pblicas, uma vez que so mais resistentes aos aspectos perigosos da contestao. (...) Optar pela discusso privada significa proteger a privacidade de preferncias e identidades (2002, p.57).

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    A desvalorizao de status aparece freqentemente como algo imposto por grupos ou pessoas com os quais as beneficirias tm contato cotidianamente. No trecho seguinte, podemos observar como o fato de ter pouco estudo prejudica no s o auto-entendimento das participantes, como tambm se coloca como obstculo para a obteno da estima social (Honneth, 1995; Anderson e Honneth, 2005):

    E: eu acho que se a gente arruma um servio, tem como sair da pobreza. Mas difcil, n, porque a gente tem que cuidar dos filhos e no tem com quem deix eles...O estudo tambm pouco... T: igual ela falou, a gente quer trabalhar, mas como? A gente tem que fic em casa e cuid dos filhos e muitas vezes, como ela, ela t parada, eu tambm t desempregada... quer dizer, voc quer ter um emprego, voc quer mudar de vida, voc quer fazer alguma coisa, mas no surge a oportunidade... E: . E, s vezes, a gente pensa assim ser que eu vou conseguir?, Ser que eu sou capaz? R: eu mesma acho que no sou, porque eu no sei ler. Quando eu ia ca emprego, eu chorava, porque eu gosto de trabalhar, mas porque eu no tenho leitura, ningum me dava. Eu me sinto assim, intil, sabe, de fic em casa...[CRAS Sul, 13/07/06, Campinas]

    importante notar que a oposio me x trabalhadora gera um espao discursivo

    atravs do qual elas podem desafiar discursos que as colocam como acomodadas e preguiosas. Elas afirmam que querem trabalhar, mas no conseguem se desvencilhar das obrigaes domsticas e nem da falta da capacitao para as atividades. Essa uma questo sensvel justamente porque a discusso sobre a possibilidade de escapar da pobreza atravs de um emprego expe as deficincias e as identidades dessas mes, pobres, desempregadas e sem estudo ao escrutnio pblico. Isso torna a discusso um empreendimento perigoso e ameaador. Muitas vezes, no a ausncia de reconhecimento que impede as pessoas de se implicarem em questes sensveis, mas o prprio medo de serem associadas a uma posio de sujeito degradante.

    A observao de como os participantes da discusso se comportam diante de questes que expem suas identidades de fundamental relevncia para a compreenso de processos polticos que envolvem indivduos e grupos profundamente marcados por opresses econmicas e simblicas. Afinal, o modo como cada participante lida com o prprio entendimento ao apresentar-se diante do outro tem se constitudo na principal marca das lutas dos movimentos sociais contemporneos. Assumir o risco do debate Os grupos de discusso do forma a um contexto de exposio pblica da individualidade.27 Assim, os participantes, ao dirigirem-se uns aos outros, partem geralmente de princpios bsicos como a confiana mtua, o senso comum na escolha das palavras e expresses, ou seja, procuram acionar um pano de fundo compartilhado sobre o

    27 Segundo Deborah Warr, em um grupo de discusso, os participantes so convidados a falar para uma audincia. Muitos no esto acostumados a esse cenrio, mesmo quando outros participantes so vistos como semelhantes ou como interlocutores confiveis (2005, p.202).

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    lugar a elas destinado socialmente (Wardhaugh, 1985; War, 2004). O esforo para descrever e explicar aspectos das prprias vivncias encontra muitos obstculos. Um deles, apresenta-se sob a forma do risco trazido pelo ato de expor um ponto de vista diante dos outros. Para Duchesne e Haeger (2004) correr um risco configura-se em uma aposta necessria, uma vez que os interlocutores no podem saber, a priori, quando seu ponto de vista no ser acolhido pelos outros, transformando-se na causa de um conflito. O trecho abaixo evidencia o exato momento em que uma participante do grupo de discusso assume o risco de expressar, ainda que de forma insegura, uma opinio sobre a qual no tem certeza sobre o posicionamento dos demais:

    Moderadora: Quem critica o Lula diz que a bolsa famlia uma esmola. N: Eu acho... pa, vou falar, quase uma esmola, n, o bolsa famlia? Ele [o Lula] acha que se tivesse um emprego a gente dependia do emprego e no era... no precisava de uma esmola, no verdade? Z: porque se voc sabe que tem um dinheiro pra receb, c no vai se esforar pra trabalhar... A: mas se a gente fala que o bolsa famlia esmola, fica parecendo que quem recebe esmolento... Moderadora: vocs se sentem assim? [todas negam] B: No, eu no se sinto assim, no. Pra mim, no esmola. Na minha opinio uma ajuda. N: uma ajuda boa. E mesmo que fosse esmola, uma esmola boa, porque tira muita gente do fundo do poo. G: . Mas no esmola, no. N: Que seja esmola ou no, no teve um governo que fez o que o Lula t fazendo. Eu no sei se vocs concordam comigo... [CRAS Sudoeste, 17/08/06, Campinas]

    A associao entre o Bolsa-Famlia e a esmola um tema que sempre suscita no

    contexto dos grupos uma maior implicao dos participantes. Neste caso, a participante N., ao tentar elaborar seu ponto de vista, hesita num primeiro instante. Aps uma pausa, ela diz: pa, vou falar. Nesse momento, ainda que de forma insegura, ela assume o risco de afirmar a associao entre o benefcio e uma esmola. Como N. lana seu posicionamento em forma de pergunta dirigida ao grupo, as demais participantes se sentem compelidas a se manifestarem. A participante Z. mobiliza o discurso da acomodao, enquanto que A. contesta a associao, por acarretar o ttulo de esmolento para aquele que recebe o benefcio. A partir de ento, cada participante procura resguardar o prprio ponto de vista o que pode ser evidenciado pelo uso de expresses como: na minha opinio evitando assim um confronto mais direto. O grupo oscila entre caracterizar o programa como esmola ou ajuda. Diante do impasse, a participante N. busca gerar um acordo em torno das boas aes de Lula para com a populao mais humilde. Esse ponto revelou-se previamente como consenso entre as participantes. Assim, quando N. o aciona e diz: no sei se vocs concordam comigo, ela j sabia da existncia de um background de concordncia.

    A tentativa empreendida por N. de buscar um consenso no grupo, expressa a dificuldade de desdobramento de um debate em contextos de grupos de discusso. Todavia, possvel ressaltar a importncia da produo coletiva do entendimento e dos argumentos dispostos diante do outro. Assumir o risco do debate, mesmo que o confronto no se desdobre, deve ser visto como um desafio necessrio politizao dos pontos de vista. O

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    fato de os participantes se perceberem em uma situao de risco e, mesmo assim, optar pela verbalizao de suas opinies acarreta um relevante ganho para o processo de formao de cidados politicamente mais capazes para o debate (Cooke.1999; Scherer-Warren, 2003; Maia, 2004; Kingfisher, 1996).

    No correr o risco

    Correr ou no o risco imposto pelo debate instaura momentos sensveis na discusso do grupo. Defender explicitamente uma posio diante dos interlocutores acarreta conseqncias que vo desde a ruptura de laos de amizade ou de solidariedade, at a presso de transformar as prprias preferncias e a natureza de sua identidade (Conover et al, 2002, Duchesne e Haeger, 2004). Por isso, os participantes evitam assumir posies alegando o carter privado de suas opinies. O risco de ter que defend-las ou justific-las publicamente parece ser confundido com uma invaso de privacidade (Conover et al., 2002). O trecho abaixo transcrito evidencia como a participante V. mantm-se cautelosa diante do argumento de que a bolsa famlia uma esmola, sustentado pela participante A. Era visvel o modo como V. evitou implicar-se na discusso, exigindo que a moderadora interferisse vrias vezes para tentar desdobrar o conflito instaurado:

    V: O governo t respeitando as pessoas quando ele fez isso a. Eu sei que pouco, mas ele t dando uma oportunidade. No t falando que o governo maravilhoso. Na minha opinio, ajuda , porque o pobre era um zero esquerda. Tudo bem, tem que d emprego, e dar tambm mais ajuda, porque com a ajuda voc vai caminhar para o emprego. Voc estudando ou fazendo um curso, a pessoa vai entrar na sociedade, porque ela teve uma ajuda. Moderadora: como entrar para a sociedade? V: quem mora na favela... l fora a gente qualquer pessoa... A: eles acham que a gente no pessoa de bem. V: mas quem mora aqui so pessoas honestas, trabalhadeiras. E isso que eu quero me sentir, uma pessoa esforada, cumpridora dos deveres. Moderadora: e o bolsa famlia faz vocs se sentirem assim, valorizadas? A: No, eu no acho, porque chega a ser uma humilhao, uma esmola. Eu acho que o governo deveria dar dignidade, porque se ns temos um emprego decente, ns temos dignidade. Moderadora: mas o que a V. falou que o bolsa famlia ajuda a caminhar para o emprego. Nesse sentido no ajuda? A: No. Seria uma oportunidade se oferecessem cursos sem a gente ter que escolher entre ns e os nossos filhos, porque se eu voltar a estudar, por exemplo, eu vou precisar de um caderno. Mas a, se eu comprar pra mim, eu v tirar dos meus filhos, e a? Eu concordo com a V. que a gente pode ter uma ajuda, um apoio para chegar na oportunidade. [as outras participantes ficam em silncio e algumas fazem expresses de reprovao] Moderadora: algum concorda com a V.? T: Olha, pra alguns o bolsa famlia pode ser esmola, mas pra outros no, porque tem umas famlias que ningum tem condio de trabalh, n? Uns tem criana pequena pra cuid, e no tem creche pra todos. Eu acho que uma ajuda. [NAF Leste, 22/03/06, BH]

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    Uma observao mais atenta revelou que todo o restante do grupo discordava do posicionamento de A. Mas essa discordncia implcita s pde ser identificada atravs de indicadores como: o silenciamento do grupo, os comentrios paralelos em tom de cochicho com a participante mais prxima, as expresses de desagrado e os olhares de reprovao. A discusso travada nesse grupo especificamente teve que ser retomada no dia seguinte devido a algumas falhas na gravao das fitas. Essa nova reunio do grupo forneceu uma oportunidade de investigar os motivos pelos quais a maioria das participantes, especialmente V., no assumiram o risco do conflito que polarizou a participante A. com o restante do grupo. importante mencionar que A. no pde comparecer a esse segundo encontro, sendo que a moderadora assumiu o papel de resgatar o ponto iniciador do conflito:

    Moderadora: Ontem a A. disse que a bolsa famlia uma esmola, uma humilhao... R: o que ela falou eu nem respondi... G: no esmola... V: Vamos supor, sua famlia t ganhando e o pai ta doente, a me ta doente... Ta sendo humilhado? No, ta sendo ajudado, porque as pessoas no agentam trabalhar. Ontem eu ia fal isso, mas eu pensei eu v fic calada, porque a polmica t demais, ento eu sei a hora de eu fal. Igual eu, por exemplo, sou aposentada por invalidez. Como eu posso sair procurando emprego? Ento, eu ia fala muitas coisas, mas eu no falei... Era muita coisa pra poder ser falada... mas agora eu solto tudo. [NAF Leste, 22/03/06, BH]

    A ausncia de A. pode ser percebida como o retorno de um contexto em que todas

    pensam de forma semelhante e, por isso, podem expor suas razes de modo menos defensivo. A participante V. comenta que evitou a polmica, porque aquela no era uma boa hora para ela falar. Contudo, diante de suas amigas (as mulheres que participaram no segundo dia freqentam a Oficina de Mulheres do NAF onde fazem artesanato, mas tambm desenvolvem vnculos de solidariedade), ela alega estar disposta a soltar tudo. A hora de falar pode ser traduzida como o momento propcio para nos expormos diante daqueles em quem confiamos. O argumento que ela iria acionar, no dia anterior, para contradizer a participante A., continha um exemplo intimamente ligado sua experincia prpria. Mas no era um exemplo qualquer, pois exigia o reconhecimento da invalidez e da inabilidade de V. para o trabalho. Nesse sentido, V. argumentava que o bolsa-famlia no era uma esmola, uma vez que o argumento contrrio implicaria que ela assumisse, na frente de todos, sua incapacidade de trabalhar.

    Como vimos, justificar um ponto de vista muitas vezes requer o acionamento de experincias pessoais ligadas prpria identidade. Assim, quando um momento sensvel de discordncia se delineia no grupo, os participantes podem tambm ver-se diante de questes sensveis. A necessidade de no ser ofendido, de reduzir os riscos de danos prpria identidade, de evitar julgamentos negativos leva os participantes a se absterem de manifestar suas opinies. Contudo as conseqentes estratgias de implicao e no-implicao dos participantes, constituem um espao discursivo relacional no qual possvel colocar em prtica a reciprocidade e o respeito mtuo com relao s preferncias e argumentos

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    sustentados por cada participante. A disputa entre enquadramentos de sentido que embasam as razes e argumentos constitui-se em uma prtica essencial ao processo poltico. Consideraes finais

    Esse trabalhou mostrou o quanto a dinmica produzida pelas conversaes

    construdas nos grupos de discusso cotidianas sobre temas politicamente relevantes importante elemento na constituio do poder comunicativo o qual no se origina somente de pblicos politicamente orientados e organizados, mas tambm dos cidados comuns, invisveis e pobres politicamente (Bohman, 1997).

    A interpretao dos dados coletados segundo as cinco categorias analticas propostas permitiu-nos entender como um grupo especfico de cidados comuns e marginalizados, as beneficirias do Programa Bolsa-Famlia, so capazes de explicitar premissas, entendimentos, engajar-se no debate e prover argumentos prprios para justificar-se reciprocamente, ou seja, atividades que, se no promovem mudanas imediatas no processo poltico, favorecem o aperfeioamento das qualidades morais, prticas e cognitivas; fortalecem vnculos de solidariedade; propiciam a produo de entendimentos e solues de forma cooperativa; contribuem na formao de cidados politicamente autnomos, capazes de desenvolver o respeito mtuo e a reciprocidade. Como salienta Ald (2001, p.22) os cidados comuns possuem uma orientao poltica interna, um sentimento de que esto qualificados para lidar com questes polticas, que os dota da auto-confiana necessria para dele tomar parte.

    No estamos negligenciando o fato de que a esfera pblica o locus privilegiado do debate e da troca argumentativa. O que enfatizamos, entretanto, que as falas cotidianas sobre a poltica so frequentemente iniciadas nos contextos mais rotineiros, nas trocas comunicativas mais cotidianas. Essas falas, em virtude de seu carter prosaico, fluido e descontnuo so, de antemo, descartadas enquanto discursos capazes de prover contribuies ao processo poltico. Contudo, argumentamos que elas, alm de oferecerem oportunidades prtica comunicativa entre os sujeitos, surgem como fonte geradora da opinio pblica e do entendimento de questes tanto ligadas ao cotidiano, representao quanto ao sistema poltico e administrativo.

    Podemos afirmar, portanto, que as trocas comunicativas estabelecidas nos contextos dos grupos de discusso possibilitam momentos de exposio e reflexo das prprias idias, reduzindo, assim, a inconsistncia cognitiva que marca nossas trocas comunicativas mais ordinrias, promovendo a qualidade das opinies, a troca recproca de argumentos e a construo conjunta de entendimentos sobre o universo ampliado da poltica.

    Referncias Bibliogrficas ALD, Alessandra. A Construo da Poltica: cidado comum, mdia e atitude poltica. Tese de Doutorado em Cincia Poltica, construda junto ao IUPERJ, 2001. ANDERSON, Joel; HONNETH, Axel. Autonomy, Vulnerability, Recognition, and Justice. In: CHRISTMAN, John; ANDERSON, Joel (eds.). Autonomy and the Challenges to Liberalism: New Essays. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, pp. 127-149. BARKER, Chris. Televisin, globalizacin e identidades culturales. Trad. Bernardo Moreno Carrillo. Barcelona: Paids, 2003.