AS IMPLICAÇÕES PRÁTICAS DO CONCEITO DE DOENÇA...

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AS IMPLICAÇÕES PRÁTICAS DO CONCEITO DE DOENÇA MENTAL ILMA APARECIDA GOULART DE SOUZA BRITTO Resumo: o conceito de doença mental não nos reme- te a uma descoberta da medicina, mas a uma realidade constituída de inúmeros fatores. O problema da transfor- mação de loucura em doença mental se impõe incisiva- mente para aquele que não se exime em compreender os diversos aspectos dessa construção. Considerando-se práticas de exclusão e confinamento, buscou-se acom- panhar a forma como essa temática se evidencia nas obras de Foucault e Szasz. Palavras-chave: doença mental, exclusão social, his- tória de loucura D esde o Renascimento, o comportamento humano tem se tornado matéria especulativa das religiões, das filosofias e das ciências. Os comportamen- tos-problema foram explicados de diferentes maneiras, em diferentes momentos. O modo como as pessoas reagem ao que estabelecem como anormalidade depende de seus valores e suas suposições sobre o comportamento huma- no. A falta de conhecimento sobre os determinantes do comportamento produz soluções inadequadas até porque o comportamento não é matéria de simples compreensão. 15

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AS IMPLICAÇÕES

PRÁTICAS DO CONCEITO

DE DOENÇA MENTAL

ILMA APARECIDA GOULART DE SOUZA BRITTO

Resumo: o conceito de doença mental não nos reme-te a uma descoberta da medicina, mas a uma realidade constituída de inúmeros fatores. O problema da transfor-mação de loucura em doença mental se impõe incisiva-mente para aquele que não se exime em compreender os diversos aspectos dessa construção. Considerando-se práticas de exclusão e confinamento, buscou-se acom-panhar a forma como essa temática se evidencia nas obras de Foucault e Szasz.

Palavras-chave: doença mental, exclusão social, his-tória de loucura

D esde o Renascimento, o comportamento humano tem se tornado matéria especulativa das religiões, das filosofias e das ciências. Os comportamen-

tos-problema foram explicados de diferentes maneiras, em diferentes momentos. O modo como as pessoas reagem ao que estabelecem como anormalidade depende de seus valores e suas suposições sobre o comportamento huma-no. A falta de conhecimento sobre os determinantes do comportamento produz soluções inadequadas até porque o comportamento não é matéria de simples compreensão. 15

Nada seria mais central para o homem que o conhecimento de suas próprias ações.

Coleman (1950) relata que nos primeiros escritos dos chine-ses, egípcios, hebreus e gregos já havia a demonstração de que eles atribuíam aos comportamentos-problemas ações de demônios que tomavam posse do indivíduo. Eram comuns crenças em bru-xaria, magia e feitiçaria. Essa posição deu origem a um grande espaço para as concepções místicas sobre a complexidade do comportamento humano e abertura para o enquadramento, nes-ta categoria, de um grande número de atividades de caráter ritual ou curativo pré-cristão.

Tais concepções dos determinantes do comportamento huma-no também ditavam o tipo de tratamento aplicado. O tratamento mais usual era o exorcismo dos espíritos e demônios, preconizado pelo Malleus Maleficarum (O martelo das bruxas), que era o ma-nual de caça às bruxas, utilizado pelos religiosos como guia técni-co de exorcismo. Assim, o manual igualava comportamento-pro-blema com possessão demoníaca e supunha-se que as pessoas com tais comportamentos fossem agentes do demônio — não meramente suas vítimas —, chamadas de bruxas. Essa posição era dominante. Aquele que a contrariasse correria o risco de ser queimado vivo, tal como acontecia com as pessoas rotuladas de bruxas.

MICHEL FOUCAULT E A HISTÓRIA DA LOUCURA

O filósofo historiador Michel Foucault descreveu as práti-cas médicas, judiciárias e a sexualidade. Foi também teórico do confinamento, da normalização, da polftica, do controle social e da moral. Em suas obras evidenciam-se duas transformações na cultura ocidental. Uma dá-se em meados do século XVII e deter-mina o Renascimento e início do período Idade Clássica, que vai até o final do século XVIII. No final deste e início do século XIX, dá-se uma nova transformação, que determina o fim da Ida-de Clássica e inicia a Modernidade. Fazendo uso do método ar-queológico, a questão para Foucault (1961, 1978a, 1987) era, com base em um problema, perguntar se não seria possível fazer de outro modo. Assim, Foucault analisou as estruturas de poder que

158 regulam certas práticas, fazendo disso uma genealogia.

Nessa perspectiva, a questão era saber como e por que a lou-cura em um dado momento foi problematizada por meio de uma certa prática institucional, e como é que um saber pode ser cons-tituído por práticas discursivas e não-discursivas, em que o enun-ciado era: o que a loucura colocava aos outros? No livro A história da loucura, pode-se observar que a loucura foi descrita, nos tra-balhos de Foucault (1961, 1978a), não como um dado, mas como uma percepção. Foram as práticas em relação aos problemas comportamentais que construíram a loucura, e esta, por sua vez, tomou possível a construção de um novo saber e de uma nova prática. Este é um tema pertinente na medida em que a loucura foi colocada, segundo os termos da complexidade das atividades humanas, em sua constituição. Foucault (1961, 1978a) descre-veu as contingências históricas que possibilitaram as regras e as práticas sociais que dizem respeito ao louco, transformado em doente mental no interior da instituição psiquiátrica.

No Renascimento, o espaço dos problemas humanos era a nau dos loucos, um barco que navegava ao longo dos rios e leva-va a loucura de uma cidade para outra. Conseqüentemente, a nau dos loucos já assinalava a exclusão da loucura, confiada aos ma-rinheiros para, com certeza, evitar que eles ficassem vagando,

7,3 indefinidamente, entre os muros da cidade. Para ser considerado ri louco era suficiente ser abandonado, miserável, pobre, não dese- D.

fado pelos pais ou pela sociedade. Em meados do século XVII, Foucault (1961, 1978) mostra

N uma nova forma de perceber a loucura, que passou a ser adminis- trada por uma instituição criada por decreto de Luiz XIV, em Paris, a 27 de abril de 1656, intitulada Hospital Geral. É o mo- mento da grande internação. Pode-se entender esse evento da nova

Lr) maneira de tratar os problemas humanos, na descrição da dúvida

/ - cartesiana: porque eu que penso, não posso estar louco, tendo em Z.7) Descartes o grande marco filosófico; o momento em que a loucu- .d ra vai ser excluída da razão, por ser a condição de impossibilida-

de do pensamento, ou seja, a desrazão. Foucault (1961, 1978a) aponta para uma população hetero- i

gênea, com base nos registros das casas de internamento, perce- bidas pela Idade Clássica como possuidoras da desrazão: era o

21 vagabundo, o debochado, o enfermo, o espírito arruinado, o im- ffil becil, o pródigo, o libertino, o filho ingrato, o mágico, o insano, o 159

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herege, o criminoso, o blasfemador, a prostituta, o pai dissipador, o suicida, o devasso, o homossexual, o ilusionista ou tudo isso numa única palavra: louco. Com essa percepção social, houve a divisão entre razão e desrazão, normal e anormal, sadio e mórbi-do, que foram reduzidos à simples fórmula: serem internados.

Examinando o interior do Hospital Geral, Foucault (1961, 1978a) mostra que nele encontrava-se a forma de como se estabe-lecia o exercício do poder naquela época. Em seu funcionamento, o Hospital Geral era uma estrutura semi-jurídica, uma espécie de entidade administrativa que, ao lado dos poderes já constituídos, e além dos tribunais, decidia, julgava e executava, tornando-se um estranho poder entre a política e a justiça nos limites da lei. A ordem era a repressão. E ali eram internados todos aqueles que apresentavam problemas para a sociedade. Alguns anos depois de sua fundação, só o Hospital Geral de Paris tinha seiscentas pessoas e abrigava, aproximadamente, um por cento da popula-ção parisiense. A construção de hospitais gerais foi uma prática adotada na cultura ocidental.

No final do século XVIII, o internamento ganha o status de instituição curativa, uma vez que se propõe a conduzir a loucura à razão, ou seja, quando se passa a perceber a loucura como alie-nação. Assim, dar-se-á a ruptura definitiva com o modelo do Hospital Geral e o passo essencial para o surgimento do Asilo, fazendo surgir o advento de uma nova modalidade da medicina. A função médica nos asilos foi introduzida no dia 25 de agosto de 1793, com a entrada do médico francês Philippe Pinel para as enfermarias do Bicêtre, em Paris, onde começava a ser percebido que o comportamento-problema deveria ser tratado pela medici-na: assim, nasceu a psiquiatria e, com ela, o conceito de doença mental. Esse fato passou .a ser considerado pela história como a Primeira Revolução Psiquiátrica.

O asilo, em sua estrutura e seus procedimentos, aparece como uma instituição integrante da ordem social. Assim como o gran- de internamento foi um fato da Idade Clássica, o asilo é um fato do final do século XVIII, fazendo parte da nova forma com que a sociedade agora se expressa. A vida asilar permite o nascimento daquela estrutura como um espaço onde se busca a origem da loucura nas causas orgânicas ou nas disposições hereditárias, fato

160 que ainda continua sendo registrado nos dias atuais. Desse modo,

Foucault (1961, 1978a) demonstra que a psiquiatria é uma ciên-cia recente e que o conceito de doença mental tem mais ou menos duzentos anos, como também a intervenção da medicina com re-lação ao comportamento humano complexo, em vez de ser atemporal, é historicamente datada.

Comentando o trabalho de Foucault, Machado (1981) afir ma que as condições de possibilidade histórica da psiquiatria, antes de serem teóricas, são institucionais, pois a prática asilar foi essencial para o seu surgimento. Desse modo, a produção teó-rica sobre a loucura pode ser considerada como o contrário de um conhecimento:

O curioso e paradoxal, é que todo esse processo histórico se realiza com o objetivo de subordinar a loucura justamente à razão e à verdade. Paradoxal porque é como se fosse preci-so uma suposta ciência para possibilitar o maior domínio da razão sobre a loucura. De todo modo, o que demonstra Foucault é que o saber sobre a loucura não é o itinerário da razão para a verdade, como é a ciência para a epistemolo-gia, mas a progressiva descaracterização e dominação da loucura para sua, cada vez maior, integração à ordem da razão. Eis o que é a história da loucura: a história da fabri-cação de uma grande mentira (MACHADO, 1981, p. 95).

Foucault (1987, p.104) afirma que "faz a história do pre- 0 ("1 sente". A história da loucura apresenta inúmeras ilustrações .8 das práticas locais e regionais, com análises dos problemas no

presente que possibilitaram encontrar fatos arqueológicos em A relação à loucura desde a Renascença até à Modernidade.

A arma foi à crítica; a matéria foi à história. Foucault trabalhou - criticamente sobre o material histórico a ponto de perguntar se

a única coisa a fazer, em face de loucura, seria excluí-la como forma de desrazão, dar-lhe o rótulo de alienação e, logo depois,

E transformá-la em doença mental.

Foucault (1978b) demonstrou que essas práticas, instaura-.8 das no começo do século XIX, definiram as condições de uma

nova experiência da loucura, cujo estilo e postura foram inéditos effil) diante das experiências anteriores. Pois, com esse novo estatuto fie da loucura, adquirido pelas transformações, tanto no nível do co-

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nhecimento quanto da percepção, preparou o caminho para o de-senvolvimento da psiquiatria. A loucura percebida como doença mental legitimou, posteriormente, um sistema de práticas organi-zadas teoricamente em torno dela própria: organização da rede médica, sistemas de profilaxia e detecção, forma de assistência, distribuição dos cuidados, critérios de cura, definição da incapa-cidade civil do doente e de sua irresponsabilidade penal.

THOMAS SZASZ E O MITO DA DOENÇA MENTAL

Szasz (1960; 1980) põe em dúvida a psiquiatria e o conceito de doença mental criado por ela. Psiquiatra e professor de psiquia-tria da Universidade de Nova Iorque, Szasz é contra o corpo conceituai dessa ciência, esclarecendo que não há nem pode haver doença mental. Os médicos, afirma ele, são treinados para tratar de doenças corporais e não de comportamentos-problemas. Mais do que isso, Szasz (1960; 1980) faz uma análise demolidora dos con-ceitos tradicionais da psicopatologia e não deixa dúvidas de que o próprio conceito de doença mental é, simplesmente, um mito.

O que significa, hoje, rotular alguém de doente mental? Signi-fica dizer que essa pessoa apresenta comportamentos complexos, estranhos ou que ferem alguma norma social estabelecida. Assim, é necessário compreender as práticas psiquiátricas atuais, conhe-cer como e o porquê do surgimento do conceito de doença mental e a maneira que ele funciona nos dias de hoje. Szasz (1980) reco-nhece a utilidade do sentido histórico originado na identidade his-tórica da medicina com a psiquiatria no século XIX. Porém, hoje, na sua opinião, as classificações e rotulações da psiquiatria são cientificamente inúteis e socialmente prejudiciais, uma vez que os diagnósticos médicos dão nomes às doenças genuínas e os diag= nósticos psiquiátricos estão estigmatizando rótulos:

É importante compreender claramente que a moderna psi-quiatria — e a identificação das novas doenças psiquiátricas —não começou pela identificação de tais doenças através dos métodos estabelecidos pela patologia, mas pela criação de um novo critério sobre o que constitui a doença: ao critério

162 estabelecido de alteração detectável da estrutura corpórea

foi acrescentado o recente critério da função corpórea; da mesma forma que a primeira era detectada através da obser-vação do corpo do paciente, a última era detectada pela ob-servação de seu comportamento. Portanto, se na medicina moderna nova doenças foram descobertas, na psiquiatria moderna elas foram inventadas (SZASZ, 1980, p. 234).

Szasz (1980) mostra-se insatisfeito com os fundamentos médicos e com as descrições conceituais da psiquiatria. Esclare-ce que, embora tais fundamentos não tenham origem recente, pouco se fez para esclarecer o problema. Ao contrário, no con-texto psiquiátrico, é quase indelicado perguntar o que é uma do-ença mental. Em outros contextos, a doença mental é, com freqüência, considerada o que quer que os psiquiatras digam que ela seja. Desse modo, a resposta à pergunta quem é mentalmente doente responde-se que são aqueles que estão internados em hos-pitais psiquiátricos ou que consultam psiquiatras.

Embora diferentes entre si, os estudos de Foucault e Szasz inauguram a reflexão crítica das práticas psiquiátricas contem-porâneas, nas quais adjetivos como louco, alienado, doente men-tal são usados nas verbalizações das pessoas para designar aqueles que se comportam desadaptativamente. Assim, os comportamen-tos fóbicos, os estados de ansiedade, o estado emocional negati-vo, as dificuldades de adaptação, a delinqüência, a ação suicida, entre outros problemas humanos, foram classificados como do-enças mentais Isso é problemático, pois a ciência do comporta-mento, ao se apresentar, já encontra seu lugar ocupado não com critérios epistemológicos, e, mais grave que isso, com o compor-tamento humano rotulado, estigmatizado, condenando pessoas com comportamentos-problemas, não considerando tais compor-tamentos um mal biológico.

Temos em Foucault e Szasz a crítica atual do conceito de doen-ça mental. Esses autores procuram avançar teorizações quanto à prá-tica da psiquiatria em relação à doença mental por uma perspectiva histórica: na ciência, quanto ao método; na política, quanto às for-mas de, dominação, repressão e controle; e, na própria história, quan-to à forma de interpretá-la pela reflexão filosófica e crítica.

Contra a continuidade do conceito de doença mental, vimos que Foucault pergunta e narra o que era antes; mostra as transfor- 1

mações das práticas em relação à loucura, numa divisão histórica em três períodos: no Renascimento a loucura era exilada; na Época Clássica era enclausurada e na Modernidade é medicalizada. Szasz pergunta e explica como a doença mental existe e é agora. Fou-cault narra o passado, Szasz explica o presente. Foucault des-mascara o gesto libertador de Pinel e destrói a postura ufanista dos historiadores da psiquiatria. Szasz, porém, reconhece a utili-dade histórica dessa postura. Foucault mostra as contradições e irracionalidades produzidas pela família, pelos poderes jurídicos e religiosos para justificar a dominação da loucura pela psiquia-tria. Szasz, por outro lado, é contra qualquer tipo de intervenção involuntária às pessoas e ao suposto doente mental. Declara-se favorável à psiquiatria como uma ciência à qual as pessoas po-dem recorrer, voluntariamente, para receberem uma ajuda que viabilize a resolução de seus problemas existenciais, por meio da psicoterapia, com o consentimento declarado da pessoa.

É evidente que teoricamente Foucault e Szasz são muito dife-rentes. Ambos trabalham com conceitos, perspectivas e pressupos-tos diferentes. Entretanto, ambos procuram avançar teorizações quanto à prática psiquiátrica em relação ao doente mental median-te perspectivas igualmente críticas. Diante disso, uma questão emer-ge: feita a crítica teórica e política do conceito de doença mental, qual é o resultado? Foucault fala como filósofo; Szasz fala como psiquiatra. Seus objetivos são os mesmos? Será possível pensar numa prática nova com base em autores tão diferentes?

O problema etiológico das doenças mentais denota que se quisermos compreender bem as razões e o alcance das afirma-ções psiquiátricas encontradas nos atuais compêndios de psiquia-tria, não poderemos nos esquecer, como afirma Pessoti (1996, p.9), que o "manicômio foi o núcleo gerador da psiquiatria como especialidade médica", isto é, o esquema gerador do desenvolvi-mento da psiquiatria foi a construção de lugares para internar e lidar com a loucura.

Ainda assim, mesmo com o 'resultado de seu complexo desen- volvimento histórico, a psiquiatria tornou-se um ramo da medicina. Esse domínio foi sustentado pelos pressupostos orgânicos e, por meio dele, a medicina psiquiátrica penetrava na área do comportamento humano, procurando construir seu próprio saber, no qual delimitaria

164 suas práticas, tornando-as consistentes com a perspectiva médica.

Quem poderia se opor, por exemplo, à possibilidade da hipótese or-gânica como justificativa para a esquizofrenia, após a descoberta da origem sifilítica da paresia, como orgânica, durante as décadas formativas da psiquiatria? Szasz (1978) afirma que com a neuro-sífilis como paradigma, a psiquiatria passou a fornecer o diagnósti-co, estudar e tratar as doençaS mentais, isto é, a crença de processos biológicos dentro da cabeça dos pacientes, manifestados em seus comportamentos-problemas.

A ciência busca relações ordenadas entre eventos r; tarais. Des-se modo, as propostas científicas a respeito da esquizofrenia não são sustentadas por provas, pois a proposta de que a paralisia geral é uma infecção sifilítica é corroborada com a presença da bactéria Treponema pallidum no cérebro. Na esquizofrenia a fisiopatologia é substituída por linguagem e história de vida. Assim, foi provado que a paresia é a manifestação de uma doença e declarado que a esquizofrenia é uma doença. O problema para a psiquiatria permane-ce, isto é, a falta de comprovação empírica da hipótese orgânica. Se a esquizofrenia afetasse o cérebro, não estaríamos diante de uma doença cerebral? E se descreve delírios, alucinações, compor-tamento ou discurso desorganizado e dificuldades emocionais, estamos nos referindo, então, a comportamentos humanos com-plexos e não a disfunções orgânicas.

QKraepelin (1979), um dos predecessores do sistema de diag-

nóstico nosológico na psiquiatria, afirmou, no início do século XX, que, nos termos mais estritos, não se pode falar da mente

N adoecendo, afirmando serem os distúrbios nas bases físicas da f, vida mental que deveriam ocupar a maior atenção dos estudos a

serem desenvolvidos. Afirmou ainda que as lições para entender

Z tal patologia deviam ser retiradas desse novo departamento da — medicina, já que a insanidade, em suas fôrmas mais brandas, acar- a retava o maior sofrimento que os médicos teriam que encontrar. '07) • Alertou que o número de loucos, naquele momento, na Alema- ro era de duzentos mil e que, aparentemente, aumentava com a go mais infortunada rapidez. Tal fato, supunha, era uma conseqüên- o

cia da crescente degeneração da raça humana, ao lado do abuso no do álcool e da infecção sifilítica. Intimidou, ao declarar que to-

dos os insanos são perigosos, a seus vizinhos e, mais ainda, a eles • mesmos. Desse modo, os comportamentos complexos foram ro-

tulados de psicóticos, paranóicos. E como as pessoas que assim

se comportavam eram jovens, ele diagnosticou-as como portado-ras da dementia praecox (demência precoce).

Em 1911, Bleuler propõe o termo esquizofrenia para descrever classes de comportamentos as quais acreditava possuir uma base física. Acreditava que os mecanismos psíquicos eram uma certa pre-disposição do cérebro, e que a esquizofrenia era uma doença em processo, para a qual as explicações psicológicas eram insuficien-tes. Para as manifestações dos sinais de esquizofrenia, os sintomas pareciam indicar lesões fisiológicas. Em seu texto A fisiogênese e a psicogênese na esquizofrenia, Bleuler (1979) declara:

Muitos delírios de grandeza decorrem quando o processo de pensamento tornou-se tão desintegrado ou, em geral, tão ilógico que o paciente não nota mais as flagrantes contradi-ções com a realidade. Isso ocorre freqüentemente após anos de delírios de perseguição. Então ele é o imperador, Papa, Cristo, ou mesmo o próprio Deus; ele não apenas está indo fazer invenções, mas realmente as fez. Aqui, podemos niti-damente perceber como o desenvolvimento psíquico dos de-lírios depende do avanço da lesão primária.

O fato é que até a presente data não foi provada a presença daquela lesão primária no cérebro das pessoas rotuladas de esquizofrênicas. Algumas questões atravessam, portanto, as afir-mações psiquiátricas sobre a natureza dessas definições, que não são mais do que duas faces de uma mesma interrogação, que po-dem ser aplicadas a uma ou a outra: o que é uma doença mental? Se esta se localiza no corpo, coloca-se de imediato a segunda interrogação: onde? Em algum órgão, numa parte escura e secre-ta do cérebro, ou, então, disseminada por todo o organismo? Como pode a medicina, uma ciência empírica que realiza diagnósticos com base em fatos laboratoriais, aceitar, em seus domínios, 'uma ciência que diagnostica doenças mentais, fatos não-físicos? Como uma droga, uma substância física, pode melhorar a mente, agên-cia não-física?

As tentativas de ajustar as práticas institucionais da doença mental ao modelo médico parecem deixar perplexos tanto os cri- ticos da psiquiatria quanto outros pesquisadores sociais interes-

, 166 sados, mais especificamente, em acompanhar as implicações dos

vários critérios diagnósticos para determinar a etiologia das doenças mentais.

Rosenhan (1973) conseguiu internar oito pseudopacientes (quatro psicólogos, um psiquiatra, um pediatra, um pintor e uma dona de casa) em diferentes hospitais psiquiátricos com a quei-xa de "ouvir vozes". Ao serem indagados sobre tais vozes, res-pondiam que elas não eram claras, mas pareciam algumas coisas como vazio, oco e pancada. Além disso, todas as outras infor-mações dadas aos psiquiatras eram absolutamente verdadeiras. Todos eles foram admitidos como pacientes e diagnosticados como portadores de esquizofrenia. Uma vez admitidos, os pseudopacientes cessaram de simular quaisquer sintomas e com-portaram-se normalmente. Mesmo assim permaneceram na ins-tituição pelo período de sete a cinqüenta e dois dias e receberam, ao todo, duas mil e cem pílulas de medicamentos.

O paradoxal, no entanto, foi que os outros pacientes logo reconheceram os falsos pacientes, embora a equipe do hospital não os visse assim. Ao contrário, quando um dos pseudopacien-tes — será que só estes seriam pseudopacientes? — sentou-se do lado de fora da sala de refeições meia hora antes do almoço, esse comportamento foi interpretado como a natureza aquisiti-

T, va oral da síndrome.

(2.

(.) Além de tudo isso, Rosenhan (1973) revelou a um dos hos- pitais o que fizera e disse que repetiria a experiência nos próxi-

g mos três meses. Assim, sendo avisada quanto aos falsos pacientes, N nunca enviada, a equipe daquele hospital rotulou cento e noventa

e três pessoas como prováveis pseudopacientes.

i. c‘r O trabalho conduzido pela psiquiatria, e que a sociedade re-

g. g. conhece como necessário, parece inadequado. Quando se obser- conhece va o que realmente acontece no interior de um hospital

ri • psiquiátrico, encontram-se verdadeiros absurdos. As tentativas • de tratar a doença mental vão desde as idéias bizarras, porque .aï não definem se elas seriam causadas por alguma anormalidade a

no cérebro dos pacientes, à prática de punições, eletrochoques, o psicocirurgias ou uso e abuso de medicamentos. Estudos siste-oi 4 máticos sobre as etiologias dos transtornos mentais não-somente

têm falhado em dar as respostas para o problema, como há uma expectativa considerável de que o problema em si mesmo talvez ainda não tenha sido formulado corretamente.

Quando nos voltamos para os achados laboratoriais associa-dos apresentados no manual da última edição da Associação Amé-rica de Psiquiatria, o DSM-IV-TR (2002), deparamo-nos, de fato, com uma estranha situação: a psiquiatria é o tratamento das doen-ças mentais sem etiologias comprovadas. No entanto, após du-zentos anos da formulação de seus princípios fundamentais, os debates ainda permanecem igualmente intensos e uma sensação de mal-estar é compartilhada por seus especialistas. Szasz (1978, p. 31) afirma que

a psiquiatria veio substituir o que antes era conhecido como medicina de loucos, controlando não doenças, mas desvios; e nesta transformação pseudocientífica do médico alienista em psiquiatra, a psiquiatria passou a ser — e é hoje aceita em toda parte — o estudo 'cientifico' do mau comportamento e sua administração médica.

Esse fato é, no mínimo, estranho na história das ciências. Alguns elementos permitirãó melhor compreendê-lo. Por volta da comemoração dos cem anos da psiquiatria, Kraepelin (apud SZASZ, 1978, p. 54), no início do século XX, sustentava:

A maioria das doenças mentais é hoje obscura. Mas nin-guém negará que novas pesquisas desvendarão novos fatos numa ciência tão jovem quanto a nossa; a esse respeito, as doenças produzidas pelas sífilis constituem uma lição con-creta. É lógico supor que teremos êxito na descoberta de muitos outros tipos de insanidade mental que podem ser evi-tados — talvez até curados — embora não disponhamos, atu-almente, da mais tênue pista.

A hipótese fundamental da psiquiatria, no início deste sécu-lo, foi que o trabalho científico empírico descobriria um diagnós-tico laboratorial para a maioria das doenças mentais Todavia, a atribuição de uma fisiopatologia orgânica como etiologia para a esquizofrenia não se sustenta até a presente data. Para

compreendermos esse problema, consideramos, por exemplo, o que hoje se investiga sobre as anormalidades no ,cérebro das pessoas

168 diagnosticadas como esquizofrênicas.

Embora a hipótese dopamínica da esquizofrenia tenha estimu-lado as pesquisas sobre a esquizofrenia por mais de duas décadas e continue sendo a hipótese neuroquímica principal, ela apresenta dois problemas. Em primeiro lugar, os antagonistas da dopamina são efe-tivos para o tratamento de virtualmente qualquer paciente psicótico e severamente agitado, não importando o diagnóstico. Não é possí-vel, portanto, concluir que a hiperatividade dopaminérgica seja ex-clusividade da esquizofrenia. Em segundo lugar, os dados eletrofisiológicos sugerem que os neurônios dopaminérgicos podem aumentar sua taxa em resposta à exposição em longo prazo a drogas antipsicóticas (KAPLAN; SADOCK; GREBB, 1997).

Anormalidades estruturais demonstradas através da tomografia computadorizada no diagnóstico da esquizofrenia são limitadas, isto é, os resultados — aumento dos ventrículos laterais e do tercei-ro ventrículo, algum grau de redução do volume cortical — não são específicos dos processos patológicos da esquizofrenia. Os ventrículos estão mais aumentados em pacientes que foram ex-postos aos neurolépticos ou à sua retirada (KAPLAN et a1., 1997). Também com o uso da imagem por ressonância magnética e com a espectroscopia por ressonância magnética, entre outros, a situ-ação não é muito diferente, pois

a inclusão de achados laboratoriais anormais encontrados em grupos de indivíduos com esquizofrenia podem ser nar-rados como uma complicação da esquizofrenia ou de seu I tratamento (DSM -IV-TR, 2002, p. 310).

Em 1991, o Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA dedicou um número especial à esquizofrenia, a uma questão for-mulada pelo próprio instituto, ou seja, se a esquizofrenia é causa-da por um defeito químico. Em relação a isso, encontramos a seguinte resposta:

Apesar de não estar estabelecida ainda com certeza nenhu-ma causa neuroquímica para a esquizofrenia, o conhecimento básico sobre a química cerebral e sua relação com esta do-ença está progredindo rapidamente. Há muito tempo se pensa que os neurotransmissores — substâncias que possibilitam a comunicação entre as células nervosas — intervem no desen-

volvimento da esquizofrenia. É possível que esta doença es-teja associada a algum desequilíbrio dos complexos inter-relacionados do cérebro. embora não tenhamos respostas definitivas, esta área de pesquisa da esquizofrenia é muito ativa e promissora (INSM, 1991, p. 9).

Depois de quase um século, durante o qual a psiquiatria usou 'as terapias físicas — como o eletrochoque, o choque insulínico, a lobotomia e, desde década de 1950, os neurolépticos — baseada na crença de que a esquizofrenia se deve a uma falha neuro-química, ela é apresentada para a psiquiatria contemporânea como uma entidade médica cujos achados laboratoriais diagnósticos ainda não foram identificados (DSM-IV-TR, 2002).

Na história da psicologia, a tendência a falar em termos mentalistas sempre precedeu o falar em termos de relações. Pou-ca ênfase foi dada ao comportamento em si. Desse modo, o com-portamento foi relegado à posição de um simples modo de expressão da atividade mental ou a sintomas de uma perturbação subjacente (SKINNER, 1976). Todavia, pode-se questionar: sin-tomas do quê? Na medicina constata-se que uma pele ressequida é um sintoma de dieta, de ingestão insuficiente de água ou de secreção endócrina. Tais eventos são observáveis e mensuráveis, podem ser manipulados e seus efeitos sobre a pele podem ser observados. Não são construtor hipotéticos, inventados para ex-plicar a existência do sintoma (REESE, 1978).

O que se observa na esquizofrenia são classes de comporta-mentos-problemas que devem ser estudados por uma ciência natu-ral do comportamento. Skinner (1979) afirma que o comportamento do esquizofrênico é simplesmente parte e parcela do comporta-mento humano e, assim, deve permanecer firmemente ao lado da ciência do comportamento, desde que se considere como objeto de estudo a atividade do indivíduo como um todo em termos de even-tos externos e internos que agem sobre ele.

Referências

BLEULER, E. A fisiogênese e a psicogênese na esquizofrenia. In: MILLON, T. (Ed.). Teorias da psicopatologia e personalidade. Rio de Janeiro:

170 Interamericana, 1979.

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Abstract: the concept of mental illness doesn't lead us to any discovery of medicine, but to a reality which is formed by different factors. The issue of turning insanity into mental illness is addressed for that one who doesn't avoid to understand the diverse aspect of this process. Considering exclusion and confinement practices, it was aimed to understand the way this issue is recognized by Foucault and Szasz.

Key words: mental illness, social exclusion, historical issue of insanity

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ILMA APARECIDA GOULART DE SOUZA BRITTO Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia da Universidade Católica de Goiás.'E-mail: [email protected]

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