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AS NARRATIVAS ANIMALISTAS DE KAFKA E AS REPRESENTAÇÕES DA EXCLUSÃO SOCIAL NO INÍCIO DO SÉCULO XX PAULA CHRISTINA CORRÊA DE ALMEIDA Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária). Orientador: Professor Doutor Eduardo de Faria Coutinho. Rio de Janeiro 2008

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AS NARRATIVAS ANIMALISTAS DE KAFKA E AS REPRESENTAÇÕES

DA EXCLUSÃO SOCIAL NO INÍCIO DO SÉCULO XX

PAULA CHRISTINA CORRÊA DE ALMEIDA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Faculdade de

Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como

parte dos requisitos necessários à obtenção do título de

Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária).

Orientador: Professor Doutor Eduardo de Faria

Coutinho.

Rio de Janeiro

2008

FICHA CATALOGRÁFICA

Almeida, Paula Christina Corrêa de.

As narrativas animalistas de Kafka e as representações da exclusão social no

início do Século XX/Paula Christina Corrêa de Almeida. Rio de Janeiro, 2008.

102 f.

Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura) –

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, 2008.

Orientador: Eduardo de Faria Coutinho

1. Franz Kafka. 2. A metamorfose, “Josefina, a cantora ou O povo dos

camundongos” e “A construção”. 3. Análise e Crítica. 4. Teoria

Literária.

I. COUTINHO, Eduardo de Faria. (Orient.).

II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras.

III. Título.

FOLHA DE APROVAÇÃO

ALMEIDA, Paula Christina Corrêa de. As narrativas animalistas de Kafka e as

representações da exclusão social no início do século XX. Dissertação de

Mestrado em Ciência da Literatura (Teoria Literária) - Faculdade de Letras,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008, 103 páginas.

Banca Examinadora:

__________________________________________________________________

Professor Doutor Eduardo de Faria Coutinho

Orientador

__________________________________________________________________

Professora Doutora Helena Parente Cunha

__________________________________________________________________

Professor Doutor Luiz Barros Montez

__________________________________________________________________

Professora Doutora Martha Alkimin

__________________________________________________________________

Professora Doutora Izabela Furtado Kestler

Rio de Janeiro

2008

AGRADECIMENTOS

Agradeço a conclusão desta dissertação:

ao espírito imortal de Franz Kafka, cuja inspiração, sob a forma de

literatura, respondeu aos meus vazios, dúvidas e questionamentos

existenciais;

ao meu pai Origenes Corrêa de Almeida, pela credibilidade, o ensino e o amor aos livros;

aos meus filhos, Daniel de Almeida Duque e Fernando de Almeida

Lisboa, pelo amor incondicional;

ao meu orientador, professor Dr. Eduardo de Faria Coutinho, pela confiança acadêmica;

ao meu esposo Carlos André da Costa Duque, pelo incentivo e apoio do

início até o fim desta jornada;

a minha irmã, Noely Lopes Raphael, pela palavra de fé em todas as horas claras e sombrias;

as minhas mães Noá Lopes Raphael e Maria Ivanida Pedrosa Franco

pelo carinho, conforto espiritual e lições de vida;

às amigas Rosinéia de Jesus Ferreira e Sâmara Rodrigues de Ataíde, pelo companheirismo nas

estradas tortuosas dos textos;

a todos os Mestres que ao longo da minha vida têm me ensinado o valor

das Letras.

Quando um judeu escreve

como um alemão está mentindo.

Goebbels

As raízes do que é desumano estão imbricadas

com as raízes da civilização desenvolvida?

Auschwitz não proveio da floresta, nem da estepe.

A barbárie tomou conta do homem de assalto

bem no centro da cultura, das artes, no centro da

formação universal do espírito e do milagre das

ciências naturais. A apenas alguns quilômetros

dos mais belos museus,bibliotecas e salas de concerto,

Dachau exalava seu ar pestilento. Homens que durante

o dia torturavam, enforcavam crianças, à noite liam Rilke,

ouviam Schubert. Eis aí um enigma ontológico.

George Steiner

Abençoado seja Deus que modifica os homens.

Mandamento do Halachá -

antigo código de leis judaico

O primeiro personagem que um escritor cria

é ele mesmo: é esse ectoplasma literário

quem diz Eu, e finge ser o autor.

Paulo Leminski

If animals did not exist, the nature of man

would be even more incromprehensible.

Georges-Louis Buffon

Não pude lê-lo (Kafka), o espírito humano

não é suficientemente complicado para

compreendê-lo.

Albert Eienstein

Donde se queman libros, no se tardará

en quemar seres humanos.

Heinrich Heine

RESUMO

AS NARRATIVAS ANIMALISTAS DE KAFKA COMO REPRESENTAÇÃO DA

EXCLUSÃO SOCIAL NO INÍCIO DO SÉCULO XX

PAULA CHRISTINA CORRÊA DE ALMEIDA

Orientador: Professor Doutor Eduardo de Faria Coutinho

Esta dissertação estuda a desumanização e a conseqüente animalização do homem na

literatura de Franz Kafka, resultantes da perseguição, da violência e da degradação impostas

ao ser humano nas décadas da crise social, política e econômica que resultaram nas duas

guerras mundiais. Os alvos principais da crítica de Kafka são o preconceito e a exclusão

social sofridos pelo povo judeu.

O autor tcheco desvela em sua ficção a ditadura do pátrio poder – seja ela advinda dos

pais ou do Estado – que, vivida em situações extremas pelo cidadão comum, provoca o seu

aniquilamento e o leva a ultrapassar a fronteira que distingue o homem do animal,

transformando-o num bicho ou num ser animalizado.

A saída dessa condição, segundo Kafka, está na denúncia dessa situação através da

escrita e de sua propagação pela literatura. Só assim é possível despertar sentimentos que

levem o indivíduo a enxergar o que existe de humanidade no homem.

Nosso objeto de análise são três narrativas, nas quais as personagens kafkianas são

protagonizadas por animais: A metamorfose, “Josefina, a cantora ou O povo dos

camundongos” e “A construção”. Na presente leitura, buscamos apoio em textos teóricos,

críticos, históricos, biográficos e documentais, de autores como Aristóteles, Theodor Adorno,

Walter Benjamin, Zygmunt Bauman, Michel Löwy, Giorgio Agamben, Enrique Mandelbaum,

Elias Canetti, Ernest Pawel, entre outros, e nos servimos de cartas de Kafka e de seu livro

Diários, além da obra Respiração artificial, do autor argentino Ricardo Piglia, em que este faz

diversas menções a Kafka.

Palavras-chave: animalização, exclusão social, produção literária, povo judeu e Franz Kafka.

ABSTRACT

KAFKA‟S ANIMALIST NARRATIVES AND THE REPRESENTATIONS OF SOCIAL

EXCLUSION IN THE BEGINNING OF THE XX CENTURY

PAULA CHRISTINA CORRÊA DE ALMEIDA

Counselor: Professor Doutor Eduardo de Faria Coutinho

This is a study of dehumanization and of its consequent reification of man in the

literature of Franz Kafka. Such process of dehumanization is a result of persecution, violence

and degradation which were imposed upon man in the decades of social, political and

economical crises that preceded the two World Wars. The main aim of Kafka‟s criticism is

the prejudice against the Jewish people and the social exclusion to which they were submitted.

The Czech author denounces in his fiction the dictatorship of paternal power – both in

the family and in the State level – which, when experienced in extreme situations by the

common citizen, provokes his annihilation and makes him transpose the barrier between man

and animal, thus transforming him into a kind of animalized being.

The way out of this condition lies, according to Kafka, in denouncing this situation by

means of writing and of its propagation through literature. By so doing, one may contribute to

awaken man‟s consciousness and therefore of make him able to see that which is human in

man.

The corpus used in this work is composed of three narratives in which the protagonists

are or become animals: Die Verwandlung, “Josephine, die Sängerin oder das Volk der Mäuse”

and “Der Bau”. In our analysis of these stories, we have used critical, theoretical, historical,

biographical and documentary texts from authors like Aristotle, Theodor Adorno, Walter

Benjamin, Zygmunt Bauman, Michel Löwy, Giorgio Agamben, Enrique Mandelbaum, Elias

Canetti, Ernest Pawel, among others, and have used also Kafka‟s letters and his book Diaries,

as well as the novel Respiración artificial, by the Argentine writer Ricardo Piglia, in which he

makes several references to Kafka.

Key words: animalization, social exclusion, literary production, Jewish people and Franz

Kafka.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 11

CAPÍTULO 1 – BREVE HISTÓRIA DA DESUMANIZAÇÃO DO POVO JUDEU ............ 16

1.1.A desumanização tem nome – Judensau ........................................................................... 16

1.2.A animalização e a doença como representação do anti-semitismo ................................... 19

1.2.1.O darwinismo social ........................................................................................................ 21

1.2.2.A Sociedade da Eugenia .................................................................................................. 22

1.2.3.Os animais estão olhando para você ................................................................................ 24

1.3.Amschel e K.: imagens de Kafka num caleidoscópio ........................................................ 25

1.4.Qual a saída ou Olhares premonitórios? ............................................................................. 29

CAPÍTULO 2 – A METAMORFOSE E O CORPO FAMILIAR ........................................... 36

2.1.Corpo físico, corpo do desejo e corpo social ...................................................................... 36

2.2.Das cartas de Kafka à sua irmã Elli sobre a educação das crianças ................................... 40

2.3.O corpo do animal e o corpo do pensamento ..................................................................... 44

2.3.1.O corpo que não fala, mas pensa......................................................................................47

2.4.Falas, vozes e ruídos – os sons dos conflitos ...................................................................... 49

2.5.O corpo da negatividade e o corpo do Nome ..................................................................... 53

2.6.Metamorfose, metábole, tragédia e catástrofe .................................................................... 55

CAPÍTULO 3 – A CANTORA JOSEFINA E A EXCLUSÃO SOCIAL DE UM POVO ...... 57

3.1.A porta-voz da liberdade .................................................................................................... 61

3.2.Duplos olhares – Tudo o que parece, pode ser ................................................................... 63

3.3.Convulsões políticas, novas fronteiras e desumanização ................................................... 67

CAPÍTULO 4 – A CONSTRUÇÃO E A ESCRITA ............................................................... 77

4.1.O judeu assimilado e o judeu não-assimilado .................................................................... 77

4.2.As fronteiras não-comunicantes ......................................................................................... 79

4.3.O silêncio dos excluídos ..................................................................................................... 93

4.4.Identificação e reificação .................................................................................................... 95

CAPÍTULO 5 – CONCLUSÃO SOBRE OS PAPÉIS DA ESCRITA .................................... 99

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 108

ANEXO .................................................................................................................................. 112

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INTRODUÇÃO

Por que ler e analisar as narrativas de Kafka quase um século depois de terem sido

escritas? Entre outros motivos válidos e pertinentes para a construção do saber dos estudos

literários, existe a inquietação com a qual o ser humano se depara na primeira década deste

século XXI e para a qual não encontra respostas, nem saída. Pois o estranho se tornou natural

e o absurdo, comum.

Em meio às catástrofes ecológicas e sociais que se estendem por todo o planeta - não

mais restritas somente aos países do terceiro mundo, às ditaduras militares e aos cartéis do

narcotráfico ou ao que restou das ex-colônias imperiais - as histórias de Franza Kafka escritas

nas primeiras décadas do século XX sobre a degradação humana, a impessoalidade das

relações, a impotência frente à burocracia, o tempo que se dilata ou se comprime sem lógica e

sem nexo em meio à rotina, a escravidão ao trabalho, a perda da razão ou da identidade, a

violência gratuita, a inoperância das leis, os abusos do poder, a insignificância da vida,

continuam a causar o estranhamento que a literatura de cunho universal proporciona ao leitor,

mas, a cada dia que passa, elas fazem mais sentido.

No entanto, as narrativas de Kafka em que as personagens protagonistas são animais,

tais como A metamorfose, “Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos” e “A

construção” permanecem enigmáticas, e, nós leitores, comprometidos com a literatura,

questionamos esses seres que são homens-animais e esses seres que são animais-homens e

buscamos através da interpretação as chaves para a abertura dos seus possíveis significados.

No capítulo 1, consultamos a história do povo judeu e verificamos que a animalização

é um estigma que acompanha a tribo de Israel em sua diáspora e tem um nome, chama-se

Judensau. Além disso, fazemos um breve recorte e, ou retrocedendo no tempo alguns séculos

antes de Cristo ou avançando alguns séculos depois de Cristo, sinalizamos a presença dos

animais na religião judaica, em acontecimentos políticos, econômicos e sociais, focando nossa

atenção na primeira metade do século XX, entre as duas guerras mundiais. Procedemos assim

por dois motivos: o primeiro está relacionado ao período em que Kafka produziu a maioria

dos seus textos, de 1912 a 1924; o segundo, se refere ao fato de que nas décadas que

antecedem o Holocausto, o estigma da Judensau volta a conquistar espaço na sociedade

européia, sobretudo na Alemanha de Hitler.

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A obstinação com a qual o ditador do nacional-socialismo alemão compara os judeus a

insetos, pragas, bacilos, animais peçonhentos, enfim, uma raça que deveria ser exterminada,

nos desperta a curiosidade investigativa e faz com que nossa leitura das narrativas de Kafka

seja menos inocente a esse respeito.

Mesmo sem evidências históricas, até o presente momento, de que Franz Kafka tenha

conhecido a pessoa de Adolf Hitler, sabemos por parte de seus biógrafos o quanto foram

significativos os meses em que o autor tcheco viveu em Berlim, em 1923, mesmo ano em que

Hitler realizava seus discursos partidários em cervejarias, reuniões sindicais e insuflava a

primeira rebelião popular, mais conhecida como Putsch da cervejaria, causadora de sua

prisão. Apresentamos, inclusive, o trecho de uma carta de Kafka a seu amigo Max Brod, dessa

época, onde ele revela a crise econômica que está vivendo e o reflexo dessa crise na sociedade

alemã.

Outro fato que nos chama a atenção, e que trazemos à tona, também nesse primeiro

capítulo, é um trecho da biografia de Kafka, escrita por Ernest Pawel, O Pesadelo da razão,

onde ele faz um paralelo entre a data do nascimento de uma das irmãs do escritor biografado e

a data do nascimento de Hitler. Seria esse relato comparativo um mero recurso textual ou uma

pista para ser seguida pelos estudiosos e pesquisadores da obra ou da vida de Franz Kafka?

Não foi por acaso que nos interessamos, ao longo da pesquisa teórica, literária e

documental para a realização desta dissertação, pela ficção de Ricardo Piglia, a saber, seu

livro Respiração artificial, onde este autor argentino, ensaísta e teórico da literatura, cria uma

personagem que descobre anotações de rodapé, em uma edição antiga de Mein Kampf, e

levanta a hipótese de que Kafka e Hitler teriam se conhecido, em 1910, em Praga, no Café

Arcos.

Abordamos também a duplicidade de nomes de Kafka, um nome judeu, Amschel, e

outro tcheco, Kafka, e o que eles podem representar na vida e na literatura deste autor. Por

exemplo, estabelecemos uma comparação entre o corpo metamorfoseado de Gregor Samsa e o

corpo de Amschel e consideramos a metamorfose como uma catástrofe que se abate sobre os

excluídos, os párias, sobretudo os judeus.

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No capítulo 2, fazemos uma leitura da narrativa A metamorfose e apresentamos as

características da animalização sofridas pela personagem, resultantes da metamorfose.

Tratamos da perda da sua capacidade de comunicação, da liberdade de pensamento que possui

o homem mesmo em condições desumanas, dos limites internos e externos impostos a um

corpo deformado, do corpo sadio como símbolo do equilíbrio social e familiar, do corpo como

ferramenta de trabalho, da violência que se exerce com naturalidade sobre um corpo

“estranho”, e do corpo do animal como uma representação do estigma que persegue o judeu

em sua condição de outsider.

Para ressaltar o isolamento, a incomunicabilidade, a degradação moral e física da

personagem Gregor Samsa advindas do processo de animalização, comparamos A

metamorfose de Kafka com o conto “O príncipe peru” do Rabi Nakhman de Bratzlav e

constatamos uma diferença significativa, ou seja, enquanto a capacidade de expressão e

comunicação social através da fala é mantida no conto judaico, ela é perdida no conto

kafkiano, e isso resulta no aniquilamento e morte do inseto.

No capítulo 3, através de um duplo olhar interpretativo da história “Josefina, a cantora

ou O povo dos camundongos”, comparamos o povo judeu a um bando de ratos. Isso porque

Kafka nos permite essa leitura ao escrever, de forma inédita em toda a sua obra, uma narrativa

que possui dois títulos. Além disso, o texto faz referências e alusões a questões de tradição,

raça, educação, cultura e saber passados de geração a geração, que são atributos condizentes a

seres humanos e não a ratos. E, à medida que o enredo avança, ocorre a personificação da

ratinha que demonstra sentimentos e ações humanas. Isso permite que o leitor envolvido pela

trama questione de quem é que o narrador está falando, se é de uma ratinha que se chama

Josefina e emite sons que se parecem com um canto ou se o narrador está-se referindo a uma

pessoa que é cantora e se chama Josefina.

Esse jogo entre ser e parecer, criado pela duplicidade de títulos e da humanização do

animal, personagem protagonista dessa narrativa kafkiana, nos faz levantar a hipótese de que

foi intenção de Kafka estabelecer uma associação de contigüidade entre ratos e judeus.

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Analisamos também a possibilidade desta história ser uma parábola sobre a liberdade e

a libertação do povo judeu do cativeiro à diáspora, pois como afirma Kafka no final da

narrativa, “Josefina, a cantora, redimida da canseira terrena – a seu ver preparada para os

eleitos – (...) estará esquecida, como todos os seus irmãos, na escalada da redenção”.1

Mais uma vez, nessa dissertação, não deixamos de contextualizar a narrativa, através

de uma breve leitura do momento histórico, político, social e pessoal pelo qual passava seu

criador, lembrando que ela foi escrita em 1924, poucos meses antes de Kafka morrer, quando

estava sofrendo da tuberculose que de forma progressiva atacou a sua laringe e lhe impediu,

nos últimos dias de vida, de falar, de comer e de ingerir líquidos.

O capítulo 4 é a leitura do terceiro conto animalista que analisamos nesse estudo, “A

construção”, onde o protagonista principal é uma personagem sem nome e identidade

definida, mas que, pela construção textual de Kafka, o leitor pode imaginar tratar-se de um

animal que vive em túneis construídos por ele mesmo no interior da terra. No caso, esse

hospedeiro tanto pode ser uma toupeira, um texugo, quanto uma ratazana do campo.

Através da linguagem, o autor tcheco constrói uma história claustrofóbica e labiríntica,

cuja descrição do espaço interior tanto pode ser de um buraco, cavado no interior da terra,

quanto de uma cela de prisão. Assim, podemos interpretar que a personagem pode ser um

homem que vive recluso em condições desumanas, ou numa situação caótica à beira da

animalização.

Um trecho do seu livro Diários revela a impressão que causou a Kafka a carta - cujo

trecho trazemos à tona nesse capítulo – escrita por um de seus cunhados que estava alistado

no front, ilustrando a crueza e a precariedade da vida dos soldados nas trincheiras, que mais se

assemelhavam a covas humanas ou a buracos de animais peçonhentos.

“A construção” foi escrita na época em que Kafka, pela primeira vez, deixa a casa

paterna e a cidade de Praga, licenciado do escritório de seguros onde trabalhava como

advogado, para viver sua independência, em Berlim, em 1923, com a única mulher com quem

compartilhou efetivamente sua vida: Dora Diamant. Segundo sua biógrafa, Dora e Kafka

fizeram de sua casa um lar, um refúgio, um espaço onde o autor tcheco sentiu a plenitude da

1 KAFKA, “Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos”. In: Um artista da fome e A construção. Trad.

Modesto Carone. São Paulo: Brasiliense, 1984, pp. 58, 59.

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vida, ao mesmo tempo que constatava que a sociedade moderna, pós Primeira Guerra

Mundial, beirava o caos.

Mais uma vez, fazemos a comparação do animal ao judeu e abordamos questões

relacionadas à condição humana do judeu assimilado e do judeu não assimilado, da perda da

identidade de quem é excluído da sociedade e das fronteiras que separam o homem que pode

se comunicar com liberdade daquele que não pode fazê-lo.

No capítulo 5 concluímos sobre os possíveis papéis da literatura, tomando como base

o conceito de Kafka – expresso num trecho de seu Diários, que trazemos como epígrafe deste

capítulo - sobre o poder de transformação que um livro pode provocar na vida do leitor.

Queremos salientar que nosso referencial teórico e material de pesquisa para a

realização dessa dissertação estão presentes nos textos de Aristóteles, Theodor Adorno,

Walter Benjamin, Zygmunt Bauman, Michel Löwy, Giorgio Agamben, Enrique Mandelbaum,

Elias Canetti, Ernest Pawel, Ciro Marcondes Filho, trechos dos Diários e correspondências do

próprio Kafka, a leitura da História dos Judeus de Paul Johnson, e de todos aqueles que, além

das referências que citamos, estão presentes na bibliografia.

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1.BREVE HISTÓRIA DA DESUMANIZAÇÃO DO POVO JUDEU

Que tenho eu em comum com os judeus?

Mal chego a ter algo em comum comigo mesmo,

e deveria meter-me num canto, em completo silêncio,

contente por poder respirar.

K.

1.1. A desumanização tem nome - Judensau

O espírito medieval reduzia todos os aspectos do universo a imagens. O conflito entre o

Cristianismo e o Judaísmo fazia parte do panorama da vida cotidiana, cujas figuras enchiam

as paredes das catedrais, sendo que os escultores o representavam em termos puramente

teológicos. O par de imagens favoritas, muitas vezes representado com uma graça

impressionante, era a Igreja em triunfo, contrapondo-se à enlutada Sinagoga.

O escultor medieval não tratava de temas anti-semíticos; nunca retratou o judeu como um

usurário, uma criatura diabólica que envenenava poços, assassinava jovens cristãos ou

torturava a hóstia. Havia, no entanto, outras imagens que representavam os judeus nas artes

gráficas: o bezerro de ouro, a coruja, o escorpião. Na Alemanha, no fim do período medieval,

começou a vir à tona uma nova imagem: a porca. Não se concebeu originalmente o motivo

como coisa polêmica, mas, gradualmente, este veio a simbolizar todas as pessoas impuras,

pecadores, heréticos, e, acima de tudo, judeus.

Essa iconografia repulsiva e insultuosa, a Judensau, parece ter-se limitado a áreas

influenciadas pela cultura alemã. Mas, além de tornar-se comum, tornou-se uma das mais

poderosas e duradouras, criando, assim, um estereótipo injurioso do povo judeu. E assumiu

uma infinita variedade de formas. Representavam-se os judeus venerando a porca, mamando

em suas tetas, beijando as suas partes traseiras, devorando-lhe o excremento.

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Essa iconografia proporcionava ricas oportunidades ao tipo mais grosseiro de artista

popular, a quem se apresentava um modelo (o judeu) a que não se aplicava qualquer das

regras usuais de gosto e de decoro, e cuja obscenidade mais crua não era apenas aceitável,

mas motivo de mérito artístico.

A Judensau mais antiga é de 1230 e está no capitel de um claustro da catedral de

Brandenburgo. Ela retrata uma forma híbrida, resultado da união de um porco e um homem

judeu. Sua mensagem, para além da humilhação pública, está centrada no objetivo de separar

os judeus da sociedade humana,2 e declará-los, também, como representantes ou pertencentes

ao reino animal.

A popularização deste tipo de apelo simbiótico, duplo, metamorfoseado, durou por

mais seiscentos anos e, com a invenção da imprensa, proliferou rapidamente tornando-se

presente em toda a parte da Alemanha. Em pouco tempo, apareceu em livros, em estamparias,

em desenhos, em óleos e aquarelas, no cabo de bengalas, em faianças e em porcelanas.3

Sua massificação contribuiu para um processo que se tornaria de grande e trágica

importância: a desumanização do judeu. E, se uma categoria particular de pessoa não era

humana, ela podia efetivamente ser excluída da sociedade. Era isso, efetivamente, o que

estava acontecendo. Muralhas estavam sendo construídas, e, à medida que eram erguidas, o

judeu era expulso do ambiente comum das cidades e confinado a um território demarcado,

uma verdadeira cidade-prisão, com horários determinados de entrada e saída, mais conhecida

como gueto.

2 SHACHAR. The Judensau. A Medieval Anti-Jewish Motif and its History. London, Warburg Institute, 1974, p.

54. 3 JOHNSON. A História dos Judeus. Trad. Henrique Mesquita e Jacob Volfzon Filho. Rio de Janeiro: Imago

Editora, 1995, p. 241.

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Este processo culminou em 1515-16, na cidade de Veneza, por exemplo, com uma

decisão tomada pelo estado de confinar toda a comunidade judaica numa área segregada da

cidade.

O ghetto nuovo original alojou judeus italianos, principalmente, de origem alemã. Em

1541, os judeus do Levante foram transferidos para a fundição próxima ou ghetto vecchio. Por

fim, em 1633, a área foi ampliada e acrescida do ghetto novissimo para alojar judeus

ocidentais, totalizando, nesse período, o número de 5.000 judeus no gueto, para uma

população veneziana de 98.244.4

Para viverem assim encerrados, os judeus pagavam não apenas impostos de origem e

direitos alfandegários, mas um imposto especial de 200.000 ducados por ano e contribuições

forçadas de pelo menos 60.000 ducados, totalizando não menos do que 260.000 ducados.5

Por que se submeteram os judeus com tanta paciência a essa espécie de opressão?

Num livro sobre os judeus de Veneza, Simhah Luzzato (1583-1663), que lhes serviu como

rabi durante cinqüenta e sete anos, argumentou que a passividade judaica era uma questão de

fé: “Pois acreditam que qualquer mudança reconhecível com eles relacionada (...) decorre de

uma causa mais alta e não de esforço humano”.6

Paul Johnson, em seu livro A História dos Judeus, apresenta uma teoria contrária,

prática e materialista. São suas as palavras:

A verdade consiste em que as comunidades judaicas aceitavam a opressão,

e um status de segunda classe, desde que tivessem regras definidas que não

eram, constante e arbitrariamente mudadas, sem advertência.

4 JOHNSON, op.cit., 1995, p. 245.

5 JOHNSON, op.cit., 1995, p. 245.

6 LUZZATO. “Essay on the Jews of Venice”, 1950, pp. 122, 123, apud, JOHNSON, 1995, p. 246.

19

1.2. A animalização e a doença como representações do anti-semitismo.

Os animais sempre estiveram presentes na história do povo judeu e de suas práticas

religiosas.

No Templo de Salomão havia os sacrifícios normais, nos quais, diariamente, dois

cordeiros eram sacrificados de madrugada, e mais dois ao crepúsculo, sendo necessários treze

sacerdotes para a execução de cada um destes rituais. Homens judeus comuns não podiam

entrar no santuário, mas as portas eram mantidas abertas durante o serviço religioso, para que

todos pudessem ver esse ritual sendo realizado.

Os rituais de sacrifício pareciam exóticos aos visitantes, e podemos dizer que eram

considerados bárbaros mesmo, pois os estrangeiros acorriam em tempos de festas, quando a

quantidade de sacrifícios era enorme. Em tais ocasiões, o Templo interior era um lugar

tremendo – os lamentos e mugidos do gado aterrorizado misturavam-se com os gritos e os

cantos rituais e havia sangue por toda parte.

O ato de matar, de sangrar e de trinchar as carcaças tinha de ser feito com rapidez devido

ao enorme número de animais, e para que as pessoas envolvidas na operação se livrassem das

quantidades de sangue que eram vertidas. A plataforma onde era realizado o serviço não era

sólida, era oca, e continha trinta e quatro cisternas, sendo que a maior comportava mais de

dois milhões de galões. Durante o inverno, armazenava-se a chuva e, no verão, vinham

suprimentos adicionais pelo aqueduto da Piscina de Siloan. Tubos inumeráveis levavam a

água até a superfície da plataforma e uma grande quantidade de drenos carregava as torrentes

de sangue.

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Em 15 a.C., por exemplo, o amigo de Herodes, Marcos Agripa, praticou o grande gesto de

oferecer uma hecatombe (100 animais para sacrifício).7

Estes espetáculos sacrificiais aguçavam o imaginário cultural e contribuíram para a

construção de crenças populares, segundo as quais os judeus eram autores de sacrifícios

humanos secretos dentro do Templo - por isso, não era permitido ao vulgo entrar nele - ou

adoravam burros e tinham uma cabeça de burro que ornamentava o Templo, ou, ainda,

evitavam comer carne de porco porque este animal era transmissor da lepra. Essas crenças

remontam ao segundo século a.C.

Mas também houve uma tendência entre escritores pagãos, a partir da segunda metade

do primeiro milênio a.C., de verem Moisés como uma figura sinistra, o criador de uma forma

de religião que era estranha, estreita, exclusiva e anti-social.

Manetho, um sacerdote egípcio que falava grego, escreveu uma história, por volta de

250 a.C., que virou uma lenda extraordinariamente resistente, a de que Moisés não era em

absoluto um judeu, mas um egípcio, um sacerdote renegado de Heliópolis, que ordenou aos

judeus matar todos os animais sagrados egípcios e estabelecer domínio estrangeiro. A idéia de

que um sacerdote egípcio rebelde comandou uma revolta de párias, incluindo leprosos e

negros, tornou-se a matriz fundamental do anti-semitismo.8

Também é curioso, segundo Paul Johnson, que Sigmund Freud - que certamente não

era um anti-semita - fundamentou sua última obra, Moisés e o Monoteísmo, na história de

7 JOHNSON. op.cit., 1995, p.126

8 JOHNSON. op.cit., 1995, p. 40

21

Manetho de que Moisés era um egípcio e um sacerdote, acrescentando a especulação de que

suas idéias religiosas originavam-se no culto solar monoteísta de Aquenaton.9

1.2.1. O darwinismo social

O sucesso das teses de Charles Darwin, em sua consagrada obra As origens das

espécies, de 1859, não se limitou às ciências sociais naturais. A teoria da evolução e da

seleção natural dos mais aptos tomou conta das ciências sociais e das concepções políticas e

ideológicas do seu tempo.

No final do século XIX e princípio do XX, pensadores de esquerda e direita diziam-se

inspirados no autor da seleção das espécies. Enquanto para os esquerdistas, as teses de Darwin

serviam para desmistificar a religião e a existência de uma ordem hierárquica preestabelecida

pelo poder divino, para os direitistas, as mesmas teses deram origem ao chamado social-

darwinismo, contrário à democracia liberal, que defendia o voto universal, igualando o lobo

ao cordeiro.10

O programa social-darwinista era amplo. Pregava a eliminação dos desajustados, o

internamento forçado e a esterilização dos elementos considerados inferiores. A antropometria

e a frenologia seriam as ciências auxiliares para estudar as dimensões do crânio, do lóbulo das

orelhas ou da dimensão do nariz, para uma verificação científica desses traços, como

indicadores da inferioridade ou da degeneração biológica.

Alfred Krupp patrocinou um concurso de ensaios no meio acadêmico alemão sobre a

aplicação do darwinismo social nas políticas de estado, tendo vencido os participantes que

9 JOHNSON. op.cit, 1995, p. 41

10 BRANNINGAN. A base social das descobertas científicas. Rio de Janeiro: Editora Zahar Ed.,1984, pp.73-74.

22

advogavam políticas severas, tais como enviar os judeus e outros tipos degenerados para a

guerra, especificamente para o front, como bucha para canhão.11

Paul de Lagarle rejeitava o Cristianismo, que segundo ele havia sido inventado por um

judeu, São Paulo, e desejava que ele fosse substituído por uma religião Volk alemã específica,

que iria conduzir uma cruzada para expulsar os judeus – autores de uma conspiração

internacional materialista – do sagrado solo germânico. Ele previu uma grande batalha final

entre alemães e judeus. A violência com a qual essas idéias eram apresentadas era

horripilante. Lagarle defendia uma campanha física contra a peste judaica. Segundo ele, “Com

triquinas e bacilos não se negocia, nem, tampouco, pode-se educar triquinas e bacilos. Eles

são exterminados tão rápida e completamente quanto possível”.12

1.2.2. A Sociedade da Eugenia

A origem dos preconceitos raciais se perde nos tempos. Porém no século XIX, o

racismo adquiriu relevância teórica com a obra de Jose Arthur, o Conde Gobineau, Ensaio

sobre a desigualdade da raça humana, de 1853-1855, considerada a bíblia do racismo

moderno.

Afirmava ele a superioridade geral da raça branca sobre as outras, e a dos arianos,

identificados como os louros de descendência germânica, sobre os demais brancos.

Gobineau interpretou a história pelo prisma do conflito de raças e acreditava, por

exemplo, que a Revolução Francesa de 1789 foi uma vitória da raça inferior, a de origem

celta-romana, que ainda sobrevivia na França e que, aproveitando-se da ocasião do assalto à

11

FEST. Hitler.Trad.: vários autores. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira,1973, p. 91. 12

FEST. op. cit., 1973, p. 110.

23

Bastilha, vingou-se dos francos-germanos, que desde o século V era a raça dominante no

país. Desde então para Gobineau a França decaíra.

O ensaio do Conde, e suas teorias sobre a desigualdade das raças, chamou a atenção de

forma positiva do círculo cultural e artístico de Richard Wagner, que também era

freqüentado por Nietzsche.

O mais conhecido seguidor e divulgador do ideário racista na Alemanha foi o inglês

Houston S. Chamberlain, membro da Sociedade Gobineau e genro de Wagner, que, apesar

de ser um gênio musical, tornara-se um anti-semita fóbico.

Chamberlain defendia a tese de que era inquestionável a superioridade do ser

teutônico, louro, alto e dolicocéfalo, sobre todos os demais.

O II Reich alemão, formado em torno da Prússia, depois da vitória de 1870 contra a

França, fez da antiga Germânia a maior potência industrial e militar do mundo de antes da

Primeira Guerra Mundial, fato que foi visto como a confirmação da superioridade da raça

defendida por Chamberlain.13

O mundo do futuro seria controlado pela nova raça de senhores (Herrenvolk) que

imporia sua vontade de poder (Wille zur Macht) sobre uma massa submissa, tornada um

rebanho (Herde). Dela exigiriam obediência de morte. Somente os fortes teriam direito à

vida e os demais deveriam ser eliminados.14

Em 1883, Francis Galton, com base na teoria de Darwin, cunhou a expressão Eugenia,

fruto de pesquisas e estudos já expostos e difundidos pelo seu livro A hereditariedade do

gênio. Em 1907, introduziu a cadeira de Eugenia na Universidade de Londres e fundou a 13

FEST. op.cit., 1973, p. 138 14

FEST. op.cit., 1973, p. 140

24

English Eugenics Society, que inspirou por sua vez o surgimento da American Eugenics

Society, surgida em 1926, que pregava a superioridade dos germânicos sobre os demais

integrantes da raça humana.15

Essa ciência desenvolveu-se com sucesso nos meios acadêmicos alemães e americanos

com o objetivo de estudar as possibilidades de apurar a espécie humana sob o ângulo

genético.

1.2.3. Os animais estão olhando para você

Os escritos de Wagner em Religião e Arte (1881) tiveram uma influência digna de

nota no aumento do anti-semitismo, particularmente entre as classes média e alta.

O ataque veio de todas as partes: da esquerda, da direita, dos aristocratas, dos

populistas, da indústria, dos agricultores, do meio acadêmico, da música, da literatura,

endossando e fortalecendo o pensamento do meio científico.16

Um judeu russo, Leon Pinsker, escreveu um livro chamado Auto-emancipação, no

qual a idéia de assimilação foi abandonada como sendo impossível de ser atingida, uma vez

que, sob todos os pontos de vista, o judeu poderia ser e era atacado:

Para os vivos, o judeu é um homem morto, para os naturais de uma

determinada região ou país ele é um estrangeiro e um corre-mundo; para os

que detêm propriedades, um pedinte; para os pobres, um explorador e um

milionário; para os patriotas, um homem sem pátria; para todas as classes, um

rival odiado.17

15

FEST. op. cit., 1984, p. 142 16

JOHNSON. op.cit., 1995, p. 407 17

JOHNSON. op.cit., 1995, p. 408

25

Do mesmo modo que os bandos de rua formados por comunistas (e também aqueles

formados por nazistas) trouxeram a violência, contribuindo, dessa forma, para a preparação de

uma convulsão nacional, uma grande quantidade de selvageria verbal partiu do lado liberal,

em grande parte vinda de judeus. A sátira era algo natural aos judeus e, na Alemanha, Heine

havia forjado uma matriz poderosa, e quase sempre maldosa, que serviu de inspiração, mais

tarde, para muitos escritores judeus.

Entre 1899 e 1936, o escritor vienense Karl Kraus, que se converteu ao

Protestantismo, assim como Heine, dirigia um jornal chamado Die Fackel (A Tocha), que

estabeleceu novos padrões para a sátira ofensiva, na maior parte dirigida a judeus como Freud

e Herzl. “A psicanálise”, segundo ele, “é a mais recente moléstia judaica e o inconsciente é

um gueto para o pensamento das pessoas”.18

1.3. Amschel e K.: imagens de Kafka num caleidoscópio

Os ancestrais de Jakob e Franziska (avós de Franz Kafka) viveram, durante pelo

menos um século, em enclaves judaicos, cercados por uma população de camponeses tchecos.

Diversamente da maioria dos seus correligionários, forçados por um decreto de 1787 a

adotarem sobrenomes alemães, haviam – supostamente por uma isenção especial – escolhido

nomes eslavos. Seja como for, os Kafkas sempre presumiram que seu nome de família

derivasse de Kavka, designativo tcheco de gralha, embora Jakovke, um diminutivo iídiche de

Jakob, seja outra derivação não improvável.

18

JOHNSON. op. cit., 1995, p. 410.

26

Os Kafkas falavam tcheco em casa, mas, como todos os judeus, mandavam seus filhos

para a escola judaica – as escolas eram sectárias, sendo obrigatória a freqüência dos meninos

durante seis anos – onde, pela lei, o alemão era a língua do ensino. Herrmann (pai de Franz

Kafka) tornou-se fluente em alemão falado, embora nunca chegasse propriamente a dominar as

complexidades da língua escrita e, até o fim da vida, ficasse visivelmente mais à vontade em

tcheco.19

A imagem refletida no espelho, por mais dissociada que seja do seu original, está

diretamente relacionada a este original. E apesar de ser reflexo da realidade, essa imagem está

associada a ela por questões de semelhança. Ou seja, o duplo, por mais espectral que seja, é

uma cópia virtual da imagem que se posiciona em frente ao espelho.

Já a imagem projetada no caleidoscópio é plural e está sempre em movimento,

mudando-se, metamorfoseando-se, de forma que sua identificação direta com o original não é

possível. Em cada lâmina espelhada que se movimenta, reflete-se uma imagem sempre nova

que não tem semelhança nem com a imagem anterior, nem com a original. Como afirma o

próprio Kafka em uma de suas notas:

Se nos olharmos com o olhar maculado deste mundo, encontramo-nos na situação dos

passageiros de um trem que sofreram um acidente dentro de um longo túnel; do local

do acidente não se pode mais ver a luz da entrada, e a luz da saída é tão ínfima, que o

olhar constantemente a procura e constantemente a perde, e até mesmo a entrada e a

saída já são incertas. (...) vemos apenas monstros e, dependendo do estado de espírito

ou dos ferimentos de cada um, acontece um espetáculo caleidoscópico fascinante ou

cansativo. O que devo fazer? Ou, para que fazê-lo? Essas perguntas não surgem

nessas regiões.20

Por isso, no caleidoscópio não temos o duplo da imagem original, e sim, múltiplos

fragmentos descontínuos de imagens, o que significa dizer que não temos no caleidoscópio a

19

PAWEL. O pesadelo da razão – uma biografia de Franz Kafka. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Imago

Editora, 1986. – (Coleção Logoteca), p. 6. 20

KAFKA, “Terceiro caderno de notas in-oitavo”, apud KUSCHEL, 1991, p. 60.

27

representação como cópia do real e, sim, recriações várias deste real. Daí sugerirmos a

possibilidade de que o caleidoscópio representa a metamorfose da imagem original. Ou

segundo as palavras de Arnold Hauser em seu texto sobre as obras de Kafka e Joyce:

A arte é atacada por uma verdadeira mania de totalidade. Parece ser possível

relacionar qualquer coisa com outra coisa, tudo parece incluir em si a lei do todo. A

aviltação do homem, a chamada “desumanização da arte” está relacionada com este

sentimento.(...) As obras de Kafka e Joyce já não são psicológicas no sentido em que

eram as grandes novelas do século XIX. (...) não só não há heróis, no sentido de um

centro psicológico , como também não há esfera psicológica particular na totalidade

do ser. (...) O que é posto em relevo é sempre a ininterrupção do movimento, o

“contínuo heterogêneo”, a figuração caleidoscópica de um mundo desintegrado. O

conceito bergsoniano de tempo recebe uma nova interpretação, uma intensificação e

uma deflexão. O que se acentua agora é a simultaneidade dos conteúdos

conscienciosos, a imanência do passado no presente (...). 21

Os animais das novelas A metamorfose, “Josefina, a cantora ou O povo dos

camundongos” e “A construção” seriam as imagens caleidoscópicas de um eu original

denominado K. – que também é a personagem de outras obras do autor, tais como O processo

e O castelo – e, independentemente de relacionarmos a personagem K. com seu autor, Franz

Kafka, o uso da abreviatura K., homônima da letra inicial do nome Kafka, é um monograma,

ou seja, uma logomarca de identificação que nos remete a uma das possíveis identidades do

autor, fazendo com que pensemos que narrador, autor e a personagem K. sejam a mesma

pessoa.

Sabemos que na fortuna crítica de Franz Kafka não encontramos esse posicionamento

teórico-crítico, ou seja, de que as personagens que o narrador denomina de K. estão

diretamente vinculadas à pessoa do autor Kafka. Nem mesmo em suas cartas ou nos textos

dos seus Diários Kafka revela essa possibilidade. Mas, considerando que não exista

arbitrariedade a priori nas relações de um signo, podemos estudar essa hipótese e tentar traçar

21

HAUSER. História social da Literatura e da Arte. Trad. Walter H. Geenen. São Paulo: Editora Mestre Jou,

1972, pp. 1127, 1128, grifo nosso

28

um paralelo entre Kafka e suas personagens, principalmente em relação àquelas que nos

surpreendem e são tema dessa dissertação pelo fato de serem animais.

Como interpretar a construção de personagens protagonistas que são animais

peçonhentos, que raramente vêem a luz do dia, pois vivem em buracos, tocas, esgotos, uns até

em grande quantidade, e que são classificados como uma peste ou uma praga que infesta

determinado local, sejam eles insetos ou roedores, e que precisam ser exterminados, pois

alguns – como o rato – transmitem doenças? Seriam esses animais a representação do judeu e

de sua condição humana, sobretudo no alvorecer do século XX?

Em seu livro Diários, Kafka releva seu outro nome, sua outra identidade, a judaica. E

esta é aquela com a qual ele parece não saber lidar, que o faz sentir-se deslocado na

sociedade, aquela que sofre de inúmeras doenças, desde a insônia e dores de cabeça até a

tuberculose que o mata, e cujo nome ele revela, em dado momento, ao leitor que se dispuser à

leitura atenta de seu diário: “Meu nome hebraico é Amschel, em homenagem ao avô de minha

mãe”. 22

E isso nos faz pensar que Kafka e Amschel (Kafka e K.) são duas pessoas em uma

só, um tcheco e um judeu vivendo num mesmo corpo, numa espécie de simbiose, um ser

híbrido, miscigenado, com ambivalências e ambigüidades que se revelam em seus textos.

No dia 30 de setembro de 1917, Kafka escreve sua última carta à Felice Bauer. Ele já

sabe que está tuberculoso e usa a doença para terminar seu noivado com ela. O início do texto

é importante para que tentemos entender a relação de Kafka e Amschel, e o uso que Kafka faz

do seu outro Eu - Amschel - para terminar o relacionamento amoroso com Felice. Ele diz a

ela:

22

KAFKA. Diários. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Livraria Exposição do Livro, s/data, p.164.

29

“Como sabes, há em mim dois eus que estão em guerra entre si”.23

Parece que o término do

noivado é resultado de uma luta travada entre seus dois Eus, à qual Kafka assiste impassível, e

cuja vitória de um dos contentores decidirá o seu futuro com Felice. Mas mesmo assim, com

essas palavras, Kakfa não revela em momento algum, nem a Felice, nem a nós leitores, de que

lado está cada um dos combatentes, ou seja, não sabemos se Kafka luta com Amschel para

manter o relacionamento com Felice, ou se Amschel luta com Kafka contra o relacionamento

com Felice, ou vice-versa. Kafka desmancha o noivado com Felice, jogando a

responsabilidade no seu problema de disputa de identidade e colocando-se no papel de uma

terceira pessoa que assiste a essa disputa sem ter qualquer responsabilidade sobre suas

conseqüências. Esse jogo que Kafka faz consigo mesmo e com as outras pessoas, é

considerado por Anatol Rosenfeld como sendo um teatro de marionetes, no qual o homem-

personagem está sujeito à vontade de um Eu (interno ou externo a si mesmo) a que ele se

sujeita ou se submete de livre e espontânea vontade para eximir-se durante a vida de

quaisquer responsabilidades pelos seus próprios atos.24

1.4. Qual a saída ou Olhares premonitórios?

A República de Weimar, em 1923, ano da chegada de Kafka com Dora Diamond, a

única mulher com quem compartilhou sua vida, em Berlim, parecia prestes a ruir sob a

investida de seus inimigos em casa e no exterior. Mas o incidente absurdo de Munique, a 9 de

novembro, quando um ex-cabo austríaco (Adolf Hitler) liderou um punhado de lunáticos ex-

oficiais e outros assassinos num golpe para derrubar o governo, era algo que Kafka, a

princípio, não teria vivenciado ou tido notícia? Segundo Ernest Pawel, um dos seus mais

conceituados biógrafos da atualidade, o casal raramente podia arcar com a despesa da compra

23

KAFKA, 1973, apud PAWEL, 1986, p. 350. 24

ROSENFELD, “Kafka e Kafkianos”. In: Texto/Contexto I, São Paulo: Perspectiva, 1978.

30

de um jornal. Pois, as pessoas nessa época levavam seus vencimentos do dia para casa em

carrinhos de mão. O velho marco estava morto, fora substituído pelo marco novo, concebido

por um vigarista genial, um certo Horace Greeley Hjalmar Schacht, e ocasionou uma

depressão de dez anos, que deu ao cabo austríaco sua segunda oportunidade .25

Apesar de estar afastado da vida cultural, social e política, em Berlim, Kafka comenta

em uma das cartas a Max Brod: “Ontem dei uma olhada num jornal local, coisa que tenho

evitado há dias. Mau, muito mau. Mas há uma certa justiça, em estarmos atados ao destino da

Alemanha, como eu e você”. 26

É difícil para nós interpretar o que Kafka quis dizer com “estarmos atados ao destino

da Alemanha, como eu e você”, referindo-se a si mesmo e a seu amigo Max Brod, mas

pressupor que Kafka desconhecia a crise política da época, as manifestações e a propaganda

nazi-fascista que circulava e empolgava os ânimos do povo alemão em seu desemprego e falta

de dinheiro, seria considerá-lo um literato desconectado com a realidade do seu próprio

tempo, coisa que Kafka nunca foi.

Sua capacidade de percepção dos fatos, sua compreensão do ser humano, de seus

sofrimentos, deficiências e necessidades transparecem em várias das conversas mantidas com

seu jovem amigo Gustav Janouch27

no ano de 1920, em Praga, quando ainda trabalhava no

Instituto.

Kafka escreveu sobre a alienação humana, perante as inúmeras formas de poder e

opressão vividas pelo homem comum, sobretudo o trabalhador, cuja realidade ele conhecia, já

25

PAWEL. op. cit. 1986, p. 420 26

KAFKA. “Carta” 02-10-1923, apud PAWEL, 1986, p. 420 27

JANOUCH. Conversas com Kafka. Trad. Celina Luz; introd. e notas de Bernard Lortholary. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira, 1983.

31

que era funcionário público de um instituto de seguro de acidentes de trabalho. Ali, como

advogado dessa seguradora estatal, Kafka teve a oportunidade de ouvir relatos e de redigir

petições, cuja excelência na descrição e agudeza na explicação dos fatos são o retrato de uma

sociedade industrial emergente e triunfante, onde o homem é explorado, humilhado e

atrofiado nas fábricas, sob regimes de trabalho exaustivos e insalubres. Vejamos como Kafka

revela isso nesse trecho:

Ontem na fábrica. As moças, com seus vestidos intoleravelmente sujos e desalinhados

(...) a expressão das caras imobilizada pelo estrépito incessante das correias de

transmissão e as diferentes máquinas, na verdade automáticas, mas que se decompõem

nos momentos mais imprevisíveis, não são seres humanos, não se cumprimenta a elas,

não se lhes pede desculpas quando são empurradas (...).28

Ao tomarmos conhecimento, através da biografia, escrita por Ernest Pawel, da

presença de Kafka no cenário e no período de tempo em que as idéias de Hitler para uma nova

Alemanha estavam sendo divulgadas, podemos supor, entre outros indícios - que serão vistos

e analisados em cada uma das três novelas, objetos deste estudo -, que suas personagens

fragmentadas, solitárias, claustrofóbicas, alienadas, enclausuradas, principalmente as

protagonizadas por animais, retratam a condição humana dos excluídos socialmente,

sobretudo do judeu assimilado, vivendo sob a glória e o apogeu dos regimes totalitários da

primeira metade do século XX.

A possibilidade de Kafka ter conhecido Adolf Hitler não foi abordada em sua fortuna

crítica, disponível em português e espanhol. E até a data dessa dissertação, não consta que

biógrafos, críticos ou teóricos da literatura tenham analisado ou estudado as personagens

kafkianas das novelas animalistas sob o viés dos conceitos morais, religiosos, políticos ou

sociais de Hitler.

28

KAFKA, Diários, s/data, p. 192 grifo nosso

32

No entanto, no bojo da ficção literária, esse fato é narrado por Ricardo Piglia, escritor

argentino, em seu livro Respiração artificial. Nele, uma das personagens revela ter descoberto

na Biblioteca do British Museum, numa edição crítica de Mein Kampf, prefaciada e anotada

por um historiador alemão, Joachim Kluge, anotações que o levaram a refletir sobre os anos

obscuros da vida de Hitler, entre outubro de 1909 e agosto de 1910, período em que ele

desapareceu de Viena. Leiamos o relato:

A verdade, como demonstram os documentos que anexo no Apêndice 3 desta edição,

(...) o que escrevera o historiador antifascista Joachim Kluge nas notas à sua edição

crítica de Mein Kampf, de Adolf Hitler, publicada em Londres em 1936, pela editora

Germanb Liberty, dos exilados alemães, é a seguinte: Hitler eludiu o dever de

alistamento militar, que caía entre 1909 e 1910. Sua desaparição foi uma fuga do

serviço militar. A pesquisa das autoridades austríacas provocou sua detenção

provisória e sua transferência para Salzburgo em setembro de 1910. Kluge

assinalava que Hitler passara aqueles meses refugiado em Praga. Na nota de pé de

página (...) acrescentava, de passagem para demonstrar como sua pesquisa fora

detalhada que um dos lugares freqüentados quase diariamente por Hitler era o Café

Arcos, na rua Meiselgasse, de Praga, ponto de encontro de certo setor da

intelectualidade tcheca de língua alemã, os “arconautas”, como Karl Kraus chamava

os artistas, escritores e boêmios que se reuniam naquele bar.29

A partir dessa descoberta, a personagem levanta a hipótese de que Hitler e Kafka

tenham se conhecido no Café Arcos, e sugere que Kafka revela esse encontro de forma

indireta e obscura em passagens de seu diário. É o que ocorre, em especial, no início do livro

Diários, nas anotações referentes ao dia 12 de maio de 1910, onde ele esboça o retrato de um

homem: “Sua gravidade me mata. Com a cabeça enfiada no colarinho da camisa, o cabelo

imóvel e penteado sobre o crânio, os músculos do maxilar tensos em seu lugar...”. 30

Relendo, eu mesma essa passagem, me surpreendo não só com este trecho, mas com a

continuação do texto que, escrito sob a forma de discurso indireto livre, faz com que nós,

29

PIGLIA. Respiração artificial. Trad. Heloisa Jahn. São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 191 30

KAFKA, op. cit., s/data, p. 9

33

leitores, fiquemos em dúvida sobre o sujeito do qual Kafka está falando. Ora parece que ele

fala desse homem de quem “Na obscuridade do bosque, sobre essa terra empapada de

umidade, apenas me guiava a brancura de seu pescoço”31

, ora parece que ele está falando de

uma bailarina famosa “Eduardowna que se apresentou no teatro alemão de Praga”, ora parece

que fala de si mesmo. Principalmente no trecho a seguir, não conseguimos determinar quem é

o sujeito do desespero descrito: Kafka ou o homem que ele não denomina? Leiamos:

Estás em desespero?

Sim? Estás desesperado?

Ocultas-te? Queres ocultar-te?

Os escritores falam imundícies.

As costureiras sob a chuva torrencial.32

A personagem de Ricardo Piglia – Tardewski - continua a explicar sua hipótese e toma

como argumento a palavra “ungeziefer” com que os nazistas iriam designar os detidos nos

campos de concentração. É a mesma palavra utilizada por Kafka em A metamorfose para

designar aquilo em que se transformou Gregor Samsa certa manhã ao despertar.

Segundo Tardewski, a personagem de Piglia, “o gênio de Kafka está no fato de ter

compreendido que se aquelas palavras podiam ser ditas, então é porque podiam ser

realizadas”33

. E Piglia reproduz a fala que segundo Tardewski é a de Kafka: “Conte-me tudo

do princípio ao fim. Porque o que o senhor planeja é tão atroz que ao ouvi-lo só posso

dissimular meu terror”.34

31

KAFKA, ibid. 32

KAFKA. ibid., p. 11 33

PIGLIA, op. cit., 2006, p. 197 34

PIGLIA, ibid.

34

Mas, o mais surpreendente na ficção de Piglia está na referência nominal que Kafka

faz desse homem que aterroriza seu imaginário com histórias que ele considera terríveis,

como podemos ler nesse trecho:

(...) há duas cartas de Kafka onde ele se refere a um exilado austríaco que freqüenta o

Arcos. Em uma delas, remetida no dia 24 de novembro de 1909 a seu amigo Rainer

Jauss, Kafka fala desse estranho homenzinho que diz ser pintor e que fugiu de Viena

por um motivo obscuro. Chama-se Adolf, e seu alemão tem um acento estranho,

embora ainda mais estranhas sejam as histórias que conta.(...) A segunda é uma carta

a Max Brod escrita no dia 9 de dezembro de 1909 (...).35

O fato de Kafka ter conhecido Hitler e, sobretudo, o seu modo de pensar é uma

hipótese lançada por Ricardo Piglia no âmbito da ficção. É uma hipótese não provada ainda,

mas cuja ocorrência possui verossimilhança se analisarmos os enredos da ficção de Kafka -

sobretudo os contos animalistas, cujos temas da perseguição, do sentimento de exclusão, da

desumanização, da solidão, da falta de comunicação e da perda da identidade, entre outros - a

partir da possibilidade de as idéias de Hitler terem influenciado a criação de suas histórias.

Tudo isso que relatamos é uma hipótese, mas o que dizer de um parágrafo incluso na

biografia de Franz Kafka, escrita por Ernest Pawel, onde ele se refere ao nascimento da irmã

mais velha de Kafka, Elli, e anuncia, encerrando esse capítulo, o nascimento de Hitler?

Independentemente do fato de a maioria dos parentes de Kafka ter sucumbido no Holocausto,

uns até mesmo em campos de concentração, o que os dois nascimentos têm em comum para

estarem sendo citados lado a lado em sua biografia ou que importância tem o nascimento de

Hitler para a história de vida do escritor tcheco? É um recurso retórico, histórico, ou uma

hipótese que Pawel lança de modo subliminar para que seus leitores mais atentos a percebam

e no futuro venham a questioná-la e pesquisá-la? Leiamos a passagem e reflitamos:

35

PIGLIA, op.cit., 2006, p. 193 grifo nosso

35

Foi a cozinheira da família que, na manhã de 15 de setembro de 1889, acompanhou o

pequeno Franz até o Mercado das Carnes; sua mãe estava no último mês de gestação

e, uma semana depois, em 22 de setembro, dava à luz a menina Elli, a mais velha das

irmãs de Franz.

Um pouco mais cedo, naquele ano, na cidade austríaca não muito distante de Braunau,

uma certa Clara, nascida Plözt, mulher do inspetor alfandegário Alois Hitler, dera à

luz outro súdito do imperador, um bebê doentio cuja sobrevivência parecia duvidosa.

Ele sobreviveu.36

36

PAWEL. op. cit., 1986, pp. 24, 25.

36

2. A METAMORFOSE E O CORPO FAMILIAR

Ao tato, o pavilhão de minha orelha parecia fresco, agreste,

frio e enrugado como uma folha. Escrevo isto com toda

certeza obrigado pelo desespero que me causam o meu corpo

e o porvir deste corpo. K.

2.1. Corpo físico, corpo social e corpo do desejo

Esta talvez seja uma das obras – excetuando os seus Diários e a Carta ao pai – que revela

as problemáticas kafkianas. Trata-se de um mergulho expressivo no universo familiar onde

viveu Kafka e onde sofreu mais profundamente sua condição de outsider, um corpo estranho,

cujo sentimento de pertença inexiste, contribuindo para a construção de identidades

ambivalentes em constante processo de metamorfose.

Quando Gregor Samsa, a principal personagem de A metamorfose, acorda de um sono

profundo e conturbado, e revela não tratar-se o relato de um pesadelo, mas, sim, da mais pura

e banal das realidades, sua transformação numa barata é uma premissa irreal – que, nós,

leitores, aceitamos – que nos levará ao mundo cotidiano e expressivo dos Samsa: um mundo

burguês hermético. Afora essa premissa, não há nenhum salto para fora da lógica do “senso

comum”, do bom senso do burguês acomodado em seu lar:

Certa manhã, quando Gregor Samsa abriu os olhos, após um sono inquieto, viu-se

transformado num monstruoso inseto. De costas ficou e ele as sentia duras como

couraças. Ergueu levemente a cabeça e viu que o seu ventre estava grande, curvo,

castanho e dividido por profundos sulcos. A colcha não se sustinha sobre o convexo

abdômen e escorregava para o chão. As pernas não eram duas, mas inúmeras,

lamentavelmente finas e agitavam-se sem que pudesse contê-las. Que diabo teria

acontecido? – perguntou-se. Pesadelo não seria.37

37

KAFKA. A metamorfose. Trad. Marques Rebêlo. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1971, p.13

37

Após a premissa, tudo é tão real, tão natural, que ao final, nós mesmos nos sentimos

algo aliviados com o desaparecimento do inseto asqueroso. Trata-se sem dúvida alguma, do

grande poder narrativo e expressivo de Kafka, que nos conduz a viver sua própria

problemática do ponto de vista dos olhos paternos, para que sintamos em nós mesmos seu

estado de espírito angustiado e estranho face ao cotidiano da vida.

O relato da metamorfose é uma tomada de consciência para o despertar da

autenticidade – voltaremos a falar desse devir, tornar-se autêntico da personagem, em

associação com seu nome próprio. No entanto, esse novo corpo, resultado da metamorfose, é

apresentado sob o ponto de vista de seus familiares como castigo, danação, estorvo.

Antes dessa manhã terrível, Gregor sustentava a todos com seu modesto emprego de

caixeiro-viajante: era a esperança da família, o primogênito, com papéis e obrigações sociais

que incluíam os deveres para com a família, em primeiro lugar – tal qual Franz Kafka

adolescente aos olhos do pai Herrmann.

Depois, Gregor transforma-se em empecilho, vergonha e insucesso – tal qual Franz,

cujo desejo de tornar-se escritor era visto pelo pai como insignificante.

Essa nova condição permite a Gregor Samsa não só libertar-se do emprego, mas,

sobretudo, sair da condição triangular da família, que lhe furtava o direito de assumir o seu

papel como quarto membro da família: o de um dos filhos – já que era obrigado a ocupar o

lugar do pai, como provedor, e a trabalhar no lugar dele para manter a todos. O papel de filho

que lhe era negado, encontrava na metamorfose o seu ponto de fuga, de desejo e de

reterritorialização. Ao ver-se metamorfoseado, Gregor tem a esperança de ocupar o espaço, o

lugar que ele julga ser seu por direito, ou seja, o de filho e de irmão.

38

O corpo de Kafka – como ele afirma em Carta ao pai – era escorregadio, frágil, causando

tanta vergonha a si mesmo que Kafka nos banhos públicos ao lado do seu pai, cujo corpo era

robusto, se recusava a tirar o roupão que o encobria.38

Segundo Elias Canetti, uma das referências mais comoventes sobre o sentimento de

Kafka a respeito do seu corpo físico encontra-se numa das primeiras cartas a Milena, escrita

no ano de 1920. Também, nesse caso, sucumbe Kafka à coação de apresentar-se a uma

mulher, em toda a sua magreza, esteja ele presente ou distante do campo de visão desta, como

podemos ler a seguir:

Alguns anos atrás, andei frequentemente de barco pelo Moldau. Remava rio acima, e

em seguida deixava me arrastar abaixo pela corrente, passando completamente

estendido sob as pontes. Por causa da minha magreza, isso deve ter oferecido um

aspecto bem divertido a quem me olhasse a partir de uma ponte. Um funcionário de

minha empresa, que certa vez me avistou assim, resumiu da seguinte forma o que vira,

não sem antes ter salientado suficientemente a comicidade: “o Dia do Juízo parecia

iminente. Tinha-se a impressão de presenciar aquele momento em que as tampas dos

caixões já estivessem retiradas, mas os mortos ainda jazessem imóveis”. 39

Parece-nos que Kafka passou a maior parte de sua vida sentindo-se mal em relação ao

seu corpo físico, e usou-o também como pretexto para afastar de si as mulheres com as quais

se envolvia, tal como podemos perceber num trecho da carta escrita a Felice em 1 de

novembro de 1912:

Que tal um balneário? Neste ponto preciso infelizmente reprimir uma observação

ligada à minha magreza e à aparência que eu teria num estabelecimento de banhos. Ali

me pareço como um menino órfão.40

38

KAFKA. Carta ao pai. Trad. Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM, 2004, p. 80 39

KAFKA, apud CANETTI. O outro processo – as cartas de Kafka a Felice. Trad. do alemão por Herbert Caro.

Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1984, p. 31 40

KAFKA, apud CANETTI, op. cit., 1984, p. 30

39

O corpo monstruoso de Gregor Samsa e a repulsa familiar que seu corpo causa

estariam relacionadas à dificuldade de exposição de Kafka com relação ao seu próprio corpo?

Ainda nas suas cartas percebemos essa possibilidade graças à semelhança da vergonha e da

rejeição que ele sente pelo seu corpo, pois Kafka revela isso, também, através da sua

taciturnidade no trato com as outras pessoas, na dificuldade que tem para falar, na referência

de sua pouca importância, esteja ele dormindo ou esteja acordado:

Passei mais uma noitada inútil em companhia de várias pessoas...Mordi os lábios, no

empenho de ater-me ao assunto, mas, por mais que me esforçasse, não estive presente,

sem que estivesse todavia em outro lugar. Talvez não existisse durante essas duas

horas. Deve ser assim, pois se tivesse dormido ali, na minha cadeira, minha presença

teria sido mais convincente. Creio realmente estar perdido para a convivência com

seres humanos.41

O tema do incesto e do desejo nas obras de Kafka geralmente estão presentes nas

análises feitas pelos críticos e estudiosos de literatura. Seja pelo viés da desterritorialização e

reterritorialização, em Deleuze & Guattari, seja pelo viés da teologia, em Robert Alter, o

desejo recalcado pela mãe e transferido para a irmã é um aspecto que não podemos deixar de

verificar, mais uma vez em A metamorfose. Mas nessa leitura, veremos o incesto como um

desvio ou uma deformidade presente nas famílias das comunidades agrícolas ou nas famílias

urbanas de pouco poder econômico.

A passagem geralmente citada para ilustrar o tema do incesto ressalta o momento em

que Gregor se gruda ao retrato de uma dama que está dependurado em uma das paredes do

seu quarto bem como a cena em que Gregor se dependura sobre os ombros da irmã enquanto

ela toca violino. Mas existem outros momentos no texto, onde podemos relacionar o desejo da

irmã pela música e o desejo de Gregor pela irmã com o dinheiro, e ver a consciência de

Gregor da possibilidade que este tem de satisfazer a ambos os desejos, ou seja, conquistar

41

KAFKA, apud CANETTI, op. cit., 1984, p. 39 grifo nosso

40

mais e mais o afeto da irmã ao pagar seus estudos, realizando o sonho dela de cursar o

Conservatório de Música. Vejamos, por exemplo, este trecho:

A irmã começou a tocar, enquanto o pai e a mãe, firmes em seus lugares,

acompanhavam todos os movimentos das suas mãos. Gregor foi se arrastando para a

frente e encompridou a cabeça para dentro da sala (...) Se era um bicho por que a

música o emocionava tanto? Parecia que aquelas sonoridades rasgavam para ele o

caminho que devia conduzi-lo até um alimento desconhecido, mas intensamente

desejado. Estava resolvido a chegar até a irmã, a puxá-la pela saia e assim fazê-la

compreender que deveria vir para o quarto (...) Dali por diante não, não a deixaria

mais sair do quarto, pelo menos enquanto vivesse. (...) Mas era preciso que a irmã

ficasse junto dele, não à força, mas espontaneamente; era preciso que se sentasse perto

dele no sofá, para ouvir ao pé do ouvido as confidências que tinha a fazer; saberia ela,

então, do firme propósito que tinha de matriculá-la no Conservatório (...) e ao ouvir

sua explicação, a irmã, comovida, naturalmente romperia em lágrimas; ele, então,

subindo-lhe pelos ombros a beijaria no pescoço, que ela trazia sem colar desde que

fora ser balconista. 42

2.2. Das cartas de Kafka à sua irmã Elli sobre a educação das crianças

Inúmeras vezes Kafka, seja em seu Diários, seja em suas cartas aos amigos e irmãs, expõe

sua opinião sobre a relação deletéria entre pais e filhos e a influência negativa que os

genitores exercem na formação do caráter infantil quando assumem a responsabilidade pela

sua formação moral, ética e social. Segundo seu ponto de vista, os pais exercem uma

educação claustrofóbica, viciosa e repetitiva. A educação familiar nada mais é do que um

círculo vicioso que reproduz os mesmos erros, os preconceitos, as divergências, os complexos

e as anomalias dos membros da família através de gerações.

Sua opinião está baseada na leitura da obra literária de Jonathan Swift, As Viagens de

Gulliver, e nos conceitos educacionais que esse autor apresenta através de suas personagens

de ficção, os lilliputianos, habitantes da cidade de Lilliput.

42

KAFKA, op. cit., 1971, pp. 87, 88, 89 grifo nosso

41

Numa de suas cartas, escrita à irmã Elli, em Praga, no outono de 1921, Kafka reproduz e

endossa o pensamento de Swift, a saber:

Ao descrever as viagens de Gulliver em Lilliput (cujas instituições ele elogia tão

altamente), Swift diz: “Suas noções em relação às obrigações entre pais e filhos

diferem extremamente das nossas. Pois, uma vez que a conjunção de macho e fêmea

está fundada na grande lei da natureza, a fim de propagar e continuar a espécie, os

lilliputianos afirmam que homens e mulheres se juntam, assim como outros animais

por motivo de concupiscência e que a sua ternura com relação aos menores procede de

um princípio natural igual. Por cuja razão eles jamais permitem que uma criança fique

sob qualquer obrigação para com seu pai por criá-la ou para com sua mãe por tê-la

trazido ao mundo, o que considerando as misérias da vida humana não foi nem um

benefício em si mesmo, nem assim considerado por seus pais, cujos pensamentos em

seus encontros amorosos foram empregados. Por esse raciocínio e outros semelhantes,

a opinião deles é que seus pais são os últimos a merecer confiança com respeito à

educação de seus filhos”. 43

É interessante notar a semelhança entre o endosso de Kafka aos conceitos expressos

por Swift, com relação à desobrigação dos filhos da raça lilliputiana em relação aos pais e a

desobrigação conquistada por Gregor Samsa em relação aos pais e à irmã após a metamorfose

sofrida por ele. Ou seja, tanto na carta à irmã Elli, quanto no texto de sua novela animalista A

metamorfose, Kafka defende sua opinião de que os filhos não têm obrigação de trabalhar, ou

sacrificar seus ideais, para prover a vida dos pais. Os laços de parentesco, segundo me parece,

na opinião de Kafka não devem ser correias sufocantes, que aprisionem os filhos à vida dos

pais. Ao contrário, a liberdade e o direito de ir e vir devem fazer parte do relacionamento

entre pais e filhos. E Kafka continua apresentando os pontos de vista de Swift e, de certa

forma, aconselhando a sua irmã Elli com relação à educação de seus sobrinhos:

Isto, pois, é o que pensa Swift: todas as famílias típicas a princípio representam uma

ligação animal, um único organismo, o mesmo sangue. Deixada a si mesma, não pode

ir além de si mesma. Por si só ela não pode criar um novo indivíduo e tentar fazê-lo

através da educação dentro da família é uma espécie de incesto intelectual. (...) Em

conseqüência, os pais se arrogam do direito, durante a infância dos filhos, de

43

KAFKA. Cartas aos meus amigos. Trad. Oswaldo da Purificação. São Paulo: Nova Época Editorial Ltda,

s/data, p. 121 grifo nosso

42

representar a família, não somente diante do mundo lá fora, mas também dentro da

organização intelectual íntima. Eles, portanto, passo a passo, privam os filhos do seu

direito à personalidade e daí por diante os tornam incapazes de jamais alcançarem esse

direito de maneira sadia, desgraça que mais tarde vai pesar, não menos para os pais

como para os filhos.44

“Essa desgraça que mais tarde vai pesar”, é bem exemplificada pelos relacionamentos

claustrofóbicos, egoístas, imediatistas e violentos em que vivem os pais e os filhos,

principalmente quando estes são adultos. Trata-se de uma guerra doméstica, em que a casa se

assemelha a um campo de batalha, com espaços-territórios e fronteiras que podem ser

representados pelos cômodos, sala e quarto, e portas, respectivamente. Veja-se isso na

seguinte passagem de A metamorfose:

A fuga (do gerente) parece que transtornou o pai, que até aquele momento se mostrara

relativamente calmo; em vez de sair em perseguição ao fugitivo, ou na pior das

hipóteses permitir que o filho fosse ao encalço dele, empunhou a bengala que o

gerente havia esquecido numa cadeira, juntamente com o chapéu e o sobretudo, e

armando ainda a outra mão de um jornal (...) começou, dando retumbantes patadas no

soalho, a brandi-los a modo de enxotar o filho para o quarto. De nada valeram as

súplicas de Gregor (,,,). Inexorável, o pai impelia o filho para o quarto, assobiando e

urrando como um selvagem (...) empurrava Gregor com um crescente barulho. E o

que Gregor ouvia atrás dele não lhe parecia a voz do pai, mas um tumultuoso coro.45

De maneira crítica, irônica, e até cômica, Kafka descreve a violência do pai para com

o filho, quando Gregor, o estrangeiro-estranho inseto ultrapassa os limites de seu quarto e

entra na sala para tentar falar com o gerente. Além da questão da defesa do território – a sala -

pelo pai, ilustrada pela maneira como ele reconduz o inseto/filho para o único território que

Gregor pode e deve ocupar – o quarto – existe a inversão dos papéis: bicho-homem e homem-

bicho.

Na condução do texto, o inseto kafkiano acaba sendo visto pelo leitor como um

menino assustado (bicho-homem) que está sendo enxotado da sala para o quarto a patadas,

44

KAFKA, ibid. p. 123 45

KAFKA. A metamorfose, 1971, pp. 40, 41, 42, 43 grifo nosso

43

gritos e vassouradas pelo pai opressor, cujo comportamento irracional e agressivo faz com

que ele se assemelhe a um animal (homem-bicho).

Esse menino assustado não deixa de ser Kafka, criado por amas e cozinheiras e outras

serviçais da casa, enquanto o pai administrava a loja aos gritos e a mãe, devotada ao pai,

ajudava-o também trabalhando na loja.

A insatisfação quanto a sua vida familiar, desde a infância até a vida adulta, morando

sempre na casa dos pais, seus medos e carências, suas culpas reais e imaginárias, o sentir-se

rejeitado pelo pai e esquecido pela mãe, o relato de sua amizade com as irmãs, principalmente

sua afinidade com Ottla, estão presentes nos textos de suas cartas a Felice, a Milena, a Dora

Diamant, aos amigos, nos diários e, sobretudo, na Carta ao pai, que ele nunca chegou a

remeter para Herrmann Kafka. Leia-se o seguinte trecho do seu livro Diários:

Durmo, desperto, torno a dormir, torno a despertar, miserável existência.

Quando reflito sobre isso, é-me preciso confessar que a minha educação foi-me

prejudicial em muitas coisas por diversos motivos. Entretanto, não fui educado em

qualquer retiro afastado, em qualquer ruína nas montanhas. (...) Essa queixa dirige-se

contra uma quantidade de pessoas, a saber: os meus pais, alguns membros de minha

família, alguns daqueles que freqüentavam a nossa casa, vários escritores, uma

determinada cozinheira que, por todo um ano, ia levar-me à escola (...).46

Outro aspecto que ressalta a animalização do homem em A metamorfose são os

atributos animalescos das outras personagens, principalmente quando elas estão vivendo uma

situação de conflito com Gregor Samsa, como é o caso do gerente, nessa passagem:

O gerente já estava na escada e, apoiando o queixo no corrimão, dirigia um derradeiro

olhar para aquele quadro. Congregando todas as suas energias, Gregor procurou

encaminhar-se para ele, com o fim de retê-lo; todavia, o gerente, como se adivinhasse

secretas intenções, num salto felino, desceu vários degraus e sumiu não antes de soltar

um grito que reboou por toda a escada.47

46

KAFKA. Diários, s/data, p. 13 47

KAFKA, A metamorfose, 1971, p. 40 grifo nosso

44

2.3. O corpo do animal e o corpo do pensamento

Na introdução do seu livro A linguagem e a morte, Agamben discorre sobre a relação

intrínseca entre morte e linguagem a partir do pensamento de Heidegger sobre a morte do ser

humano e a morte do animal. São mortes diferentes: “Os mortais são aqueles que podem ter a

experiência da morte como morte. O animal não o pode. Mas o animal tampouco pode

falar”.48

A morte do ser humano, assim concebida, não é simplesmente, um fato biológico. O ser

humano deixa de falar, deixa de pensar. E quando cessa a capacidade de pensar, através da

chamada morte cerebral, o que permanece, até findarem suas funções vitais, é o corpo

biológico. Por isso, o corpo nesse estado é denominado de corpo vegetativo.

À diferença do homem, o animal, é somente-vivente; por isso, não morre, apenas cessa de

viver.

Vamos ler o diálogo entre pai e filha que antecede a morte do inseto em A metamorfose:

Não quero dar o nome de meu irmão ao monstro que está aqui. Portanto, pura e

simplesmente, direi que precisamos encontrar um modo de ficarmos livre dele. Já

fizemos tudo quanto é humanamente possível para cuidar dele e enfrentar a

situação.(...) – Mas o que é que podemos fazer, minha filha? - perguntou o pai

compungido.(...) – Se ele ao menos nos compreendesse – disse o pai (...) – É preciso

ficarmos livres deste trambolho! - exclamou a irmã. – É a única saída para o caso,

papai. O senhor precisa tirar da cabeça a idéia de que esta coisa aí é o seu filho. (...)

Por que cargas d‟água este bicho pode ser Gregor? Se fosse ele, já há muito tempo

teria compreendido que não podia viver em comunhão com seres humanos e teria ido

embora voluntariamente.49

48

AGAMBEN, A linguagem e a morte – Um seminário sobre o lugar da negatividade. Trad. Henrique Burigo.

Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. 49

KAFKA, op. cit., 1971, pp. 92, 93, 94 grifo nosso

45

e, a seguir, a cena da morte propriamente dita do inseto, para que possamos iniciar uma

possível interpretação da morte do animal em Kafka, sob a luz do pensamento de Heidegger e

pelo viés de Agamben:

Acabava de entrar no quarto (...) – E agora? - pensou Gregor, olhando em torno, em

plena escuridão. (...) Achou que devia sumir e a sua opinião a esse respeito era mais

firme do que a da irmã, como se tal fosse possível.

E naquele estado de serena meditação e vaga insensibilidade permaneceu até que o

relógio da igreja bateu três horas da manhã. Ainda pôde através dos vidros da janela,

ver a madrugada ir clareando, pouco a pouco. Depois, contra a vontade, a cabeça

tombou no chão e, pelas suas narinas, filtrou-se um derradeiro e fraco suspiro.50

A descrição kafkiana da morte do inseto em A metamorfose parece ilustrar esse

conceito de deixar-de-ser heideggeriano, um estado do ser em que ele cessa de viver.

O ponto crucial do texto Ser e tempo, de Heidegger, é o momento em que ele aborda o

conceito de Dasein.51

Da-Sein é uma palavra-chave do meu pensamento (ein Schlüssel Wort meines

Denkens) e, por essa razão, ela dá ensejo a graves equívocos. Da-Sein não significa

tanto, para mim, me voilà, quanto, se posso exprimir-me num francês talvez

impossível, être-le-là. E le-là é precisamente visível, desvendamento, abertura.52

A partir desse conceito de Dasein (o Ser-aí), Agamben faz a seguinte reflexão: se ser o

próprio Da (o próprio aí) é o que caracteriza o Dasein (o-Ser-aí), isto significa que

justamente no ponto em que a possibilidade de ser o Da, de estar em casa no próprio lugar, é

assumida através da experiência da morte, o Da revela-se como o lugar a partir do qual

50

KAFKA, op. cit. 1971, pp. 97, 98 grifo nosso 51

Dasein significa ser-o-Da, cuja tradução, hoje, pode ser aceita como “Ser-aí”, que deve ser entendida como

“ser-o-aí”. 52

HEIDEGGER, apud, AGAMBEN, 2006, p. 17

46

infiltra-se uma negatividade radical. Ou seja, existe algo na palavra Da que nulifica, que

introduz a negação no ser humano. 53

O inseto kafkiano sofreu uma metamorfose: fisicamente, biologicamente, tornou-se

um animal; nesse devir animal perdeu o poder da linguagem humana, mas conservou a

capacidade de pensar. Sendo assim, esse personagem-inseto é um ser híbrido. É um homem

pelo pensamento e é um animal pelo corpo físico e pela perda da fala. Queremos dizer com

isso que a metamorfose proporcionou a Gregor Samsa uma morte física e a morte da

linguagem, mas não a morte do pensamento. O Dasein foi preservado graças à capacidade de

pensar que não foi alterada em Gregor.

Mas como o Dasein carrega dentro de sua significação o conceito de negatividade, de

anulação, foi essa nulidade que, abatendo-se sobre o pensamento de Gregor-inseto, causou a

sua morte. A morte do pensamento é a morte de Gregor. Ou seja, o tornar-se animal de

Gregor Samsa não foi apenas um deixar-de-ser humano, foi uma linha de fuga das obrigações

sociais e cotidianas próprias do trabalhador assalariado, no auge da era industrial, cujo

trabalho rotineiro e escravizante, sem prazer intelectual, faz com que esse ser humano mais se

pareça com um animal de carga do que com um homem trabalhador.

Em seu devenir animal, Gregor conquistou uma liberdade que antes como empregado,

caixeiro-viajante, ele não tinha. Principalmente, a liberdade de pensar. Pois, podia fazê-lo sem

as interrupções das outras pessoas e sem os atropelos diários e condicionantes da vida

humana.

53

AGAMBEN, op. cit., 2006, grifo nosso

47

Quando o inseto se recolhe no seu quarto, pela última vez, ele o faz com o desejo de

sumir. Acredito que esse sumir é o momento de negação, de negatividade, de explosão do

Dasein, de anulação de Gregor Samsa. O momento em que, considerando os sentimentos que

seus familiares nutrem por ele, o seu desejo é deixar-de-ser totalmente, deixar de Ser-o-aí, e

para isso ele cessa o pensamento. Vejamos o trecho de novo:

E naquele estado de serena meditação e vaga insensibilidade permaneceu até que o

relógio da igreja bateu três horas da manhã. Ainda pôde através dos vidros da janela,

ver a madrugada ir clareando, pouco a pouco. Depois, contra a vontade, a cabeça

tombou no chão e, pelas suas narinas, filtrou-se um derradeiro e fraco suspiro.54

2.3.1. O corpo que não fala, mas pensa

Para Ciro Marcondes Filho, teórico brasileiro da comunicação, com pesquisas na área de

filosofia da linguagem, Gregor Samsa morreu não porque se transformou em barata, mas

porque perdeu a possibilidade de comunicação com os componentes da sua família humana

(o pai, a mãe e a irmã). Afinal, o termo comunicação mantém relacionamento direto com

“comum” e “comunhão”. E “comum” tem a ver com a idéia de pertencer ao mesmo tempo a

vários sujeitos. Em Platão, por sua vez, toda semelhança deriva de uma participação efetiva de

uma idéia que seria comum. Já “comunhão” diz respeito à semelhança dos sentimentos., das

idéias, das crenças, entre duas ou mais pessoas que têm cada uma consciência dessa

semelhança. Daí a comunicação designar a experiência imediata da consciência do outro.

Assim, Ciro Marcondes Filho argumenta que não basta existir, ser humano e ser pensante,

para estabelecer a comunicação com o outro. É preciso a experiência e a troca de alguns pré-

54

KAFKA, op. cit., 1971, pp. 97, 98 grifo nosso

48

requisitos para que ela possa se estabelecer a priori, a saber: verdade, justiça, autenticidade e

inteligibilidade. 55

Concordamos que a comunicação com os outros é importante para a vida do ser humano,

sobretudo quando as relações humanas são baseadas na verdade, na justiça, na autenticidade e

na inteligibilidade. Mas, no caso de Gregor Samsa, o que influenciou a sua morte foi algo

mais do que sua incomunicabilidade com a família, com suas mentiras, injustiças, falta de

autenticidade entre ele e seus parentes, e a ininteligibilidade que se agravou quando Gregor

perdeu a capacidade de falar. O que levou Gregor Samsa a morrer foi seu desejo de sumir, sua

vontade de deixar-de-ser, seu ato de deixar-de-pensar.

A força do pensamento da personagem Gregor Samsa metamorfoseado em inseto é tão

significativa que é através de seu pensamento narrativo que conhecemos sua história. Ou seja,

existem dois narradores em A metamorfose: o narrador onisciente e o narrador protagonista.

Ou seja, um narrador que conta a história usando a terceira pessoa (a voz do autor) e um outro

narrador que, através do discurso indireto livre (a voz de Gregor Samsa), interfere na ordem

do discurso, aproximando o leitor cada vez mais do texto e do protagonista da história de

modo que aquele começa a sentir e a viver as emoções deste.

Uma das mensagens de Kafka em A metamorfose passa pela idéia de que enquanto houver

pensamento, há esperança, há vida, de que pode-se tirar tudo de um homem, menos o seu

pensamento.

55

MARCONDES FILHO. O espelho e a máscara: o enigma da comunicação no caminho do meio. São Paulo:

Discurso Editorial; Ijuí: Editora Unijuí, 2002.

49

2.4. Falas, vozes e ruídos – os sons dos conflitos

Kafka raramente via o pai, embora ouvisse com muita freqüência a voz estrondosa

daquela divindade distante, própria dos exercícios militares, com sua ensurdecedora

vulgaridade e suas ameaças trovejantes.

Segundo Ernest Pawel, esse comportamento paterno ajudou a atiçar as fantasias do

menino, impedindo-o de ter uma visão prosaica, comum, do pai da vida real. E, também,

deixou Franz com uma sensibilidade mórbida e vitalícia ao ruído. Talvez, por isso, o quarto

para Kafka tenha sido o seu local de refúgio e isolamento, como podemos ler no trecho a

seguir:

A sensibilidade de Kafka a ruídos é como um alarme. Prediz desnecessários, ainda

inarticulados, perigos dos quais a gente se pode esquivar, evitando qualquer barulho,

como se fosse o diabo. (...) Seu quarto transforma-se em refúgio. Converte-se num

corpo externo, que poderíamos chamar pré-corpo. (...) Não suporta receber visitas em

seu quarto. A própria convivência com a família num e no mesmo apartamento

atormenta-o. 56

Em cartas a Felice, ele fala da necessidade de silêncio para escrever, da necessidade de

fechar-se em seu quarto até altas horas da noite, quando os barulhos comuns produzidos em

uma casa habitada por várias pessoas diminuíam até silenciar-se totalmente.

Após a metamorfose sofrida, Gregor Samsa vive enclausurado no espaço do seu quarto,

cuja descrição é minuciosa. Três portas comunicam esse aposento aos outros cômodos da

casa. E os atos de abrir, fechar ou trancar as portas são carregados de significado. Um deles

relacionado à violência do barulho produzido, chama a atenção, pois demonstra o tom jocoso

e desrespeitoso com que ele é tratado e de como isso o incomodava, à semelhança dos

desconfortos que os barulhos causavam a Kafka.Vejamos:

56

CANETTI, op. cit.,1984, pp. 32, 33 grifo nosso

50

Apesar das múltiplas proibições, a mulher da limpeza batia tanto com as portas que,

quando chegava, era impraticável dormir. Na manhã seguinte, muito cedo, vindo fazer

a Gregor a breve visita do costume e, como sempre, batendo violentamente com a

porta, não notou nada de anormal. (...) 57

Adorno, nos aforismos do seu livro Minima Moralia, critica a condição humana e o

comportamento das pessoas na era da tecnicidade. Para ele, muitos atos cotidianos do

indivíduo se transformaram em manifestações de agressão ao próximo. Um deles é a violência

sonora e física com que o homem trocou o bater à porta pelo bater com a porta. Leiamos:

Por enquanto, a tecnificação torna os gestos precisos e grosseiros e, com eles, os

homens. Desaloja dos gestos toda a hesitação, todo o cuidado, toda a urbanidade. (...)

Assim se desaprende, por exemplo, como fechar uma porta de forma suave, cuidadosa

e completa. A dos automóveis e dos frigoríficos devem atirar-se; outras tendem a

fechar-se por si mesmas, (...) Nos movimentos que as máquinas exigem daqueles que

as utilizam reside já o violento, o brutal e o constante atropelo dos maus tratos

fascistas.58

Kafka dá ênfase à questão dos ruídos nas novelas animalistas, conotando a violência, a

agressão, as torturas físicas e emocionais, o medo, a alienação e a revolta dos operários nas

fábricas, a repetição mecânica do trabalho realizado pelo homem com as máquinas, e a vida

rotineira e sem sonhos dos funcionários de escritórios, em meio a uma sociedade que vê surgir

e florescer o capitalismo selvagem e a opressão dos governos totalitários.

Kafka escreve e revisa as primeiras provas de A metamorfose nos anos de 1912 e

1914, respectivamente. É a época dos conflitos políticos, econômicos e sociais que levariam à

Primeira Guerra Mundial, conflito bélico sem precedentes, como afirma o historiador Cláudio

Vicentino nesse trecho, a seguir:

57

KAFKA, op. cit., 1971, p. 99 58

ADORNO, Minima Moralia. Trad. Artur Mourão. Lisboa: Edições 79, 2001, p. 35.

51

A Primeira Guerra Mundial foi um confronto bélico sem precedentes históricos, pois

envolveu todas as grandes potências do mundo, impondo o recrutamento obrigatório

em cada nação, não só para o exército como também para a produção, resultante numa

completa mobilização econômica e militar. No esforço de guerra cada Estado assumiu

a administração de sua própria economia e todos os cidadãos tornaram-se soldados.

Os tanques de guerra, os encouraçados, os submarinos, os obuses de grosso calibre e a

aviação demonstraram que o mundo possuía uma capacidade bélica até então

inimaginável.(...) A Primeira Guerra Mundial apresentou duas grandes fases: em 1914

houve a guerra de movimento e, de 1915 em diante, a guerra das trincheiras.(...)59

Perante esse poder bélico - formado pelas tropas de soldados e tanques que marcham

como uma onda maciça e uniforme, ocupando os espaços públicos e privados a sua frente -, o

ser humano sente-se tímido, indefeso e temeroso. A qualquer momento, as pessoas podem ser

pisadas, estraçalhadas e esmagadas como insetos, se estiverem no caminho dessas máquinas

de guerra, com seus apitos, sirenes e sons ensurdecedores.

Kafka não podia ficar impassível a toda essa situação e sua forma de alertar as pessoas

para os absurdos da guerra e a conseqüente desumanização do homem se encontra sobretudo

nas páginas de suas novelas animalistas.

Em A metamorfose, a incapacidade humana de falar da opressão familiar - que educa

pelo medo e pelo grito -, das injustiças sociais, dos aviltamentos morais e físicos causados aos

proletários pela exploração, das atrocidades da guerra, do matar e morrer em massa e da

animalização do homem nos campos de batalha é representada pelos sons ininteligíveis que o

inseto produz ao tentar se comunicar sem consegui-lo:

- Senhor gerente! - berrou Gregor inteiramente desatinado e olvidando-se de tudo. –

Eu abrirei a porta imediatamente. Não me demoro mais. (...) – Vocês entenderam uma

única palavra do que ele falou? – perguntou o gerente a seus pais. – Será que ele está

se fazendo de maluco? (...) – Você tem que ir chamar o médico com urgência. Gregor

está passando mal. Depressa, correndo! Você ouviu como ele falou? – Era uma voz de

bicho – acrescentou o gerente num tom extremamente baixo.60

59

VICENTINO, História Geral. São Paulo: Editora Scipione, 1997, p. 359, grifo nosso 60

KAFKA, op. cit., 1971 pp. 29, 31 grifo nosso

52

Walter Benjamin, em seu texto “Experiência e pobreza”, trata das conseqüências que

as experiências nocivas, destrutivas ou medíocres vividas pelo ser humano podem acarretar na

construção de sua história pessoal e, até mesmo, na reconstituição dessa história sob a forma

de narrativas:

(...) está claro que as ações da experiência estão em baixa, e isso numa geração que

entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da história.Talvez isso

não seja tão estranho como parece. Na época, já se podia notar que os combatentes

tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências

comunicáveis, e não mais ricos. Os livros de guerra que inundaram o mercado literário

nos dez anos seguintes não continham experiências transmissíveis de boca em boca.

Não, o fenômeno não é estranho. Porque nunca houve experiências mais radicalmente

desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência

do corpo pela fome (...) Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por

cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas

nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras,

estava o frágil e minúsculo corpo humano.61

A questão da fala e da voz, em A metamorfose, é abordada pela própria personagem

que tem consciência da fronteira que se estabeleceu entre ele - inseto - e os seres humanos.

Gregor percebe que sua fala não é a reprodução do seu pensamento. Mas não descobre isso

imediatamente, e sim, pouco a pouco, quando se comunica com seus familiares e eles nem

ligam para o que ele fala, demonstrando não terem entendido nada do que ele julgou dizer,

como fica claro nesse trecho:

Gregor ficou horrorizado ao ouvir a própria resposta. Que era a sua voz, era. Saía,

porém, misturada com um doloroso e incontido assobio, muito fino, fazendo com que

as palavras, a princípio claras, perdessem a clareza, tornassem-se confusas a ponto de

duvidar que pudessem ter sido entendidas. (...) Gregor, porém, sentia-se mais

tranqüilo. Verdade é que suas palavras eram ininteligíveis conquanto lhe parecessem

extremamente claras, mais claras do que antes, talvez porque seus ouvidos já

estivessem habituados àquela articulação. (...) pois como não se fazia entender por

ninguém, em contrapartida ninguém, inclusive a irmã, imaginou que ele pudesse

entender os outros.62

61

BENJAMIN, “Experiência e pobreza”. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história

da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994 (Obras escolhidas; v. 1), pp. 114, 115 grifo

nosso 62

KAFKA, op. cit., 1971, pp 18, 32 e 49 grifo nosso

53

2.4. O corpo da negatividade e o corpo do Nome

O primeiro livro de Kafka publicado por uma editora foi A metamorfose.

No entanto, ele já havia produzido outros textos, que ficaram restritos ao conhecimento dos

amigos mais íntimos ou publicados em cadernos literários da universidade ou de periódicos de

Praga. E, na maioria de suas histórias, as personagens protagonistas recebem como nome

apenas a letra K. ou ganham um nome que antecede o sobrenome, cuja letra é K., - por

exemplo, Joseph K. personagem de O processo - ou não recebem nome algum, como a

personagem da novela animalista “A construção”, como veremos em breve.

Por isso, o fato de Kafka iniciar uma de suas principais novelas animalistas revelando o

nome e o sobrenome da sua personagem protagonista, logo na primeira linha, da primeira

frase de A metamorfose - “Certa manhã, quando Gregor Samsa abriu os olhos (...)” -, e, após a

metamorfose, o nome não lhe ser tirado, nem o inseto passar a ser denominado por outro

nome, não é gratuito. Isso talvez expresse alguma intenção de Kafka.

Segundo Hegel, o primeiro ato com o qual Adão estabeleceu o seu domínio sobre os

animais foi o de dar-lhes um nome, negando-os, portanto, como seres independentes e

tornando-os ideais para si. Pois, segundo seu conceito, “no nome é suprimido o seu ser

empírico, ou seja, ele é um concreto, uma multiplicidade em si, um vivente e um ente, sendo

transformado em um ideal puramente simples em si”. 63

O nome é por si duradouro, mas a manifestação do nome não necessita para ser

manifesto da presença do sujeito ou do objeto do nome. Pois, o nome existe como linguagem

63

HEGEL, apud, AGAMBEN, op. cit., 2006, p.64

54

que, portanto, não se fixa, e igualmente cessa, de imediato, aquilo que é, ou como diz Hegel

“existe no elemento do ar”.64

Quando Kafka denomina sua personagem de Gregor Samsa e mantém esse nome após

a metamorfose, dá-se o contrário, tomando-se como base o conceito hegeliano de nome. Ou

seja, o nome fica fixado à personagem e, quando essa personagem se metamorfoseia, o novo

corpo continua com o antigo nome, com toda a carga de negatividade que esse nome carrega

em si. Ou seja, a liberdade que Gregor conquista - livrando-se das obrigações rotineiras de um

homem comum, um assalariado - quando metamorfoseado, a chamada linha de fuga

deleuziana65

, é uma ilusão. Veja-se o trecho em que o inseto é chamado pelo nome próprio:

- Viu o que você fez,Gregor? – berrou Grete, brandindo o punho fechado e fulminando

o irmão com olhar terrível.

Eram as primeiras palavras que lhe dirigia diretamente desde a metamorfose.66

Através do nome, Gregor, o seu antigo papel de provedor da família continua sendo

cobrado pelos parentes, justamente por ele deixar-de-ser esse provedor. Se alguma vez, ele foi

visto pelos pais e pela irmã como o arrimo da família, aquele que lhes garantia o sustento e a

paz doméstica, a partir da metamorfose, ele será visto como um monstro, um desertor das suas

obrigações. E essa carga de culpa lhe é jogada nas costas, literalmente, quando o pai atira

várias maças para enxotá-lo da sala, como podemos ler a seguir:

Nisto, uma coisa habilmente atirada passou rente a ele, caiu no chão e rolou para

longe - era uma maçã, a que imediatamente se seguiu outra. Amedrontado, Gregor não

fez um único movimento; era inútil continuar andando, agora que o pai decidira

bombardeá-lo. Na verdade havia esvaziado a fruteira, que se encontrava em cima do

aparador, enchera os bolsos de maçãs e atirava-as, uma atrás da outra, embora não

tivesse, até então, conseguido acertar nenhuma no alvo.67

64

HEGEL, apud, AGAMBEN, op. cit., 2006, p. 65 65

DELEUZE & GUATTARI, Kafka, por uma literatura menor. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de

Janeiro: Imago Editora Ltda., 1977. 66

KAFKA, op. cit., 1971, p. 67 grifo nosso 67

KAFKA, op. cit., 1971, p. 72 grifo nosso

55

2.5. Metamorfose, metábole, tragédia e catástrofe

O gosto pela literatura levou Georges Bataille a reunir em A Literatura e o Mal

diversos estudos onde analisa a obra de Emily Brontë, Baudelaire, Michelet, William Blake,

Sade, Proust, Kafka e Jean Genet, parcialmente publicados na revista Critique, nos anos que

se seguiram à Primeira Guerra Mundial, e discute o sentido que tinha a literatura para ele. Em

síntese, em sua visão, a literatura é comunicação que impõe uma lealdade e uma moral

rigorosa; por isso, ela não é inocente e não comporta meios termos. Segundo ele, “a literatura

é o essencial ou não é nada. E o mal - uma forma penetrante do Mal - que pode ser expresso

pela literatura tem para nós, creio eu, um valor soberano”.68

Diante deste Mal é necessário que façamos uma reflexão sobre a tensão entre

catástrofe e representação. E, para dimensionar o alcance da tensão, é importante retomar o

conceito de “catástrofe”. No âmbito da Teoria Literária, o conceito de “catástrofe” está

vinculado estreitamente à descrição da tragédia, uma vez que é tomado como “reviravolta”,

como “virar de cima para baixo”, apesar de essa palavra não aparecer na Poética de

Aristóteles, que pauta o estudo dessa forma. Ali, a descrição desse movimento do enredo é

feita com o termo metabolè (metábole), “transformação”. Mas “catástrofe”, com o sentido de

“reviravolta”, é amplamente usado para descrever a trajetória do herói trágico, cujo destino é

a ruína, que se presta a restabelecer a possibilidade de volta a um ponto de equilíbrio da

comunidade que o herói espelhava. Portanto, com esse sentido e nesse contexto, “catástrofe”

acena para um movimento de possível recomposição, de reconstrução. No entanto, desde

Ésquilo até Plutarco, a palavra é usada com o significado de “término” e “fim”; em Heródoto,

como verbo, significa “aniquilar”. Nessa medida ela aponta para um movimento de

68

BATAILLE, A Literatura e o Mal. Trad. Suely Bastos. Porto Alegre:L&PM Editores, 1989, p. 87.

56

desaparecimento, de extinção, de aniquilamento, pois já não se abre qualquer possibilidade de

recomposição, de ressurgimento.

É esta acepção da palavra “catástrofe” que se pode reconhecer de modo latente na

frase de Adorno: “A crítica cultural encontra-se diante do último estágio da dialética entre

cultura e barbárie e escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro(...)”69

, ou seja, o

aniquilamento do homem ecoa no aniquilamento da utopia humanista, corroendo o poder

explicativo da razão e a crença no conhecimento como força de civilização. Nela está exposta

a tensão entre catástrofe e representação, a quebra de confiança, da fluência na relação entre o

homem e as formas familiares de expressão.

A partir dessa possibilidade, A metamorfose de Kafka não é apenas o retrato de uma

transformação física; não é metábole, é uma catástrofe, uma grande crise que se abate sobre a

família de Gregor Samsa e que representa de forma microscópica a tragédia humana. Nesse

enredo, a transformação deixa de ser uma questão individual, metamorfose do corpo, para ser

uma questão universal, distorção da moral e da ética humanista.

Dessa forma, entendemos que no enredo kafkiano, a metamorfose não é nem uma

transformação física, nem é metáfora de um estado do ser. É a representação da situação de

limite que leva o corpo social à barbárie e sua conseqüente desumanização.

69

ADORNO, Prismas – crítica cultural e sociedade. Trad. Augustin Wernet e Jorge Mattos Brito de Almeida.

São Paulo: Editora Ática, 1998.

57

3. A CANTORA JOSEFINA E A EXLUSÃO SOCIAL DE UM POVO.

Estou desesperado como um rato, torturado por dores de

cabeça e insônia; a maneira como passo meus dias ultrapassa

qualquer descrição. K.

A novela “Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos” é um dos últimos

trabalhos literários de Kafka que chegou ao conhecimento do público. Escrita em março de

1924, durante sua passagem pelo sanatório de Wiener-Wad, onde foi detectada a tuberculose

em sua laringe, pela clínica Hajek, e, por fim, no sanatório de Kierling, onde ele vem a falecer

no dia 3 de junho, é considerado o texto do seu leito de morte, e, segundo um de seus

biógrafos, Ernest Pawel,

retrata a tensão efervescente na terra dos ratos, entre Josefina, pretensa mestra na arte

sem arte de assoviar, e seu povo sem raízes, condenado ao exílio eterno, toca com

grande sutileza e perspicácia na natureza da arte, dos artistas e da sociedade; o fato de

ter sido também uma alegoria profética e multifacetada do desterro e da redenção

judaicos já foi assinalado por Brod. 70

Na primeira frase, o narrador utiliza o mesmo recurso usado em A metamorfose, ou

seja, revela o nome da protagonista da novela, Josefina, mas nesse texto, através da primeira

pessoa do plural, “nós”, denomina sua profissão, “cantora”. A associação de idéia do povo

dos camundongos, da qual Josefina é a representante, com o povo judeu é uma possibilidade

apontada por Brod, sustentada por Pawel e que passamos a analisar. Vejamos o texto de

Kafka:

Nossa cantora se chama Josefina. Quem não a ouviu não conhece o poder do canto.

Não existe ninguém a quem seu canto não arrebate, o que deve ser mais valorizado

ainda, uma vez que nossa raça em geral não é amante de música. Para nós a música

mais amada é a paz do silêncio.71

70

PAWEL, op. cit., 1986, p. 427 grifo nosso 71

KAFKA, “Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos”. In: Um artista da fome e A construção. Trad.

Modesto Carone. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 37 grifo nosso

58

Após apresentar a protagonista, sua profissão e seu poder de arrebatar o povo com sua

voz, o narrador avisa ao leitor que este povo pertence a uma raça que não é amante da música

e questiona a realidade do canto de Josefina ao mostrar a vida e os costumes numa sociedade

de ratos, como descrito a seguir:

É realmente um canto? Embora não sejamos musicais temos tradições de canto; em

épocas antigas do nosso povo o canto existiu; as lendas falam a esse respeito e foram

conservadas inclusive canções, que naturalmente ninguém mais sabe cantar. Temos

portanto uma noção do que é o canto e a arte de Josefina não corresponde, na verdade,

a essa noção. É pois realmente um canto? Não é talvez apenas um assobio? E assobiar

todos nós sabemos, é a aptidão propriamente dita do nosso povo, ou melhor; não se

trata de uma aptidão, mas de uma manifestação vital bem característica.72

A rede semântica com a qual Kafka trabalha o texto, leva o leitor a um estranhamento.

Está Kafka realmente falando do povo dos camundongos ou ele está-se referindo ao povo

judeu, pois “tradições de canto que vêm de épocas antigas do nosso povo” ou “lendas que

falam a esse respeito e canções que foram conservadas, que naturalmente ninguém mais sabe

cantar” não são referências lógicas e naturais a animais como os ratos.

“Assobiar” é um verbo de ação freqüente tanto na novela A metamorfose, onde o

inseto emite sons que Kafka diz que são assobios, quanto nesta novela, “Josefina, a cantora ou

O povo dos camundongos”, sendo que aqui esse assobio pode ser um eufemismo utilizado por

Kafka, pois o som produzido por um rato, principalmente quando está sendo morto, é um

guincho, ou seja, um chiado que, dependendo da altura em que é emitido, pode ser confundido

com um grito por quem o ouça. Por outro lado, no âmbito da linguagem, o assobio pode

representar o código de comunicação de uma determinada comunidade que, por estar excluída

da sociedade na qual está inserida, utiliza-se deste meio para veicular mensagens para seus

integrantes, sem que os cidadãos da ordem social estabelecida e aceita possam reconhecê-las

como mensagens e interpretá-las.

72

KAFKA, op. cit., 1984, p. 38

59

Através da descrição da vida numa sociedade de ratos - animais peçonhentos, que

transmitem doença, que vivem em buracos, que só saem de seus esconderijos à noite e evitam

o contato com o homem -, Kafka poderia estar fazendo uma alusão à vida do povo judeu no

alvorecer do nazi-fascismo, que nessa novela pode estar representado pelo animal, o

contraponto do homem alemão, o ariano, pertencente à raça pura.

Um outro aspecto que chama a atenção, para a possibilidade de que Kafka nesta

narrativa esteja tratando de questões judaicas, é o título. À diferença de suas outras novelas,

romances e contos, esta apresenta uma duplicidade de título: “Josefina, a cantora ou O povo

dos camundongos”. A alternativa que Kafka oferece ao leitor parece ser uma forma de chamar

a atenção, de sublinhar uma intenção. Adorno em seu ensaio “Anotações sobre Kafka”

ressalta que cada palavra no texto kafkiano tem seu valor, um peso determinado, e, por isso,

em seu discurso literário nada é gratuito “cada frase é literal, e cada frase significa” e

continua:

A violência com que Kafka reclama interpretação encurta a distância estética. Ele

exige do observador pretensamente desinteressado um esforço desesperado,

agredindo-o e sugerindo que de sua correta compreensão depende muito mais que

apenas o equilíbrio espiritual: é uma questão de vida ou morte. Um dos pressupostos

mais importantes de Kafka é que a relação contemplativa entre o leitor e o texto é

radicalmente perturbada. 73

O ambiente familiar está presente tanto na novela A metamorfose, quanto na novela

“Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos” e, em ambas, Kafka pode estar

comunicando ao leitor fragmentos de sua experiência familiar. Em seu livro Diários, ele

retrata a dificuldade e o incômodo que lhe causa viver na casa paterna e ter que conviver com

a presença onipresente e onipotente do pai, que a todos tentava comandar, mas fora algumas

saídas temporárias da cidade de Praga - para tratar da saúde, em viagens a trabalho, de férias

73

ADORNO, op. cit., 1998, p. 241

60

ou recuperando-se no campo, na casa de sua irmã Ottla, ou vivendo em Berlim com Dora

Diamant, alguns meses, em 1923 -, Kafka sempre retornava à casa, para a convivência

familiar. Esse círculo que não se rompe, o vai-e-volta à casa paterna, a dificuldade de uma

saída efetiva, resulta na opressão e no aniquilamento protagonizado através de grande

sofrimento por Gregor Samsa, em A metamorfose, e na luta empreendida por Josefina, para

dele sair.

Vejamos como o narrador fala da família e descreve o comportamento do povo dos

camundongos com relação ao trato e à educação que as crianças recebem:

Ocorre, simplesmente, que nossa vida é de tal ordem que uma criança, mal aprende a

andar um pouco e consegue, numa certa medida, achar seu caminho no mundo, tem

que cuidar de si mesma tal como um adulto. Estamos, por motivos econômicos,

espalhados por uma área grande demais, nossos inimigos são numerosos demais, os

perigos que nos espreitam por toda parte são imprevisíveis demais - simplesmente não

podemos dar-nos ao luxo de proteger nossos filhos da luta pela existência: fazê-lo

seria condená-los a uma sepultura precoce. Mas há uma razão a ser citada, mais

esperançosa do que deprimente: a fertilidade de nossa tribo. (...) No entanto (...)

persiste o fato de não podermos dar a nossos filhos uma infância verdadeira. 74

Kafka parece descrever o ressentimento e a culpa de “um povo que não pode dar aos

filhos uma infância verdadeira”, infância verdadeira que ele, por sua vez, também não teve.

Trata-se de um mundo que ficava na fronteira entre o modo como seus ancestrais foram

criados e o modo com que Herrmann educou o filho e as filhas, um mundo onde o anti-

semitismo perseguia a todos, estivessem eles num enclave judaico, no meio de camponeses

tchecos, ou dispersos no anonimato da cidade.

Não só para Kafka, mas para o povo judeu, sempre haveria o mundo do gueto, um

ambiente de segregação e exclusão - desde a Idade Média -, demarcado por um portão e uma

muralha que isolava seus habitantes da convivência com os cidadãos.

74

KAFKA, op. cit., 1984, pp. 47, 48 grifo nosso

61

É um mundo de fronteiras físicas que, por suas características e conseqüências sociais,

éticas e morais, criava fronteiras imaginadas que Kafka desde cedo compreendeu, e cuja

experiência ele pretendeu nunca tomar como referência para viver a vida que o pai

considerava mais adequada para ele.

Até mesmo para um leitor que desconheça a história do povo judeu ou a biografia de

Kafka, as palavras desse trecho acima de “Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos”

pode ser motivo de estranhamento. A justificativa “de que por motivos econômicos, os ratos

estão espalhados por uma área grande demais” não é adequada a nenhuma espécie do reino

animal e chamar de “tribo” um bando de ratos é inaceitável, pelo viés da Antropologia. Este

argumento e esta denominação são apropriadas a seres humanos. Neste caso, também,

acreditamos que não haja inocência no texto kafkiano e que ele se refere ao povo judeu.

3.1. A porta-voz da liberdade

Os regimes totalitários, o nazi-fascismo emergente e o nacionalismo exacerbado do

povo alemão, após serem derrotados na Primeira Guerra Mundial, fazem com que a prática da

Judensau ressurja na Alemanha pela mão dos artistas anti-semitas. Nomes pejorativos, tais

como “porcos”, “ratos”, “praga”, “vermes” voltam a fazer parte do vocabulário cotidiano com

que eles adjetivavam os judeus. E, segundo Paul Johnson, na História dos Judeus, as

representações nas artes gráficas mais freqüentes durante o período nazista eram: o bezerro de

ouro, a coruja e o escorpião. 75

75

JOHNSON, op. cit., 1995.

62

Essa arte iconográfica pejorativa encontra uma contrapartida na arte literária de Kafka,

que se utiliza do recurso da desumanização para criar uma líder que protagoniza a luta pela

libertação.

Enquanto a perseguição e as manifestações de protesto contra o povo judeu tornam-se

comuns na década de vinte nos sindicatos dos trabalhadores, nas assembléias dos partidos que

disputam o poder, nos discursos das campanhas políticas e nos debates acalorados nas

cervejarias de Munique, Josefina, a cantora arrebata a multidão de ratos com seu canto-

discurso.

Sua forma de expressão é questionada pelo narrador, como já vimos. Mas ela

consegue reunir os camundongos com seu canto, e sua voz conquista a massa de ouvintes. No

entanto, como pontua o texto, apenas um espectador se manifesta em resposta ao que ela diz.

Porém, ele é imediatamente calado pela multidão, e, de maneira geral, Josefina acredita que

canta para ouvidos surdos, como podemos observar nesses trechos:

Sucedeu certa vez que uma coisinha tola começou a assobiar com a maior inocência

durante o canto de Josefina. Era exatamente a mesma coisa que ouvíamos de Josefina:

lá na frente, o assobio que continuava tímido apesar de toda a prática e aqui no público

a assobiação infantil e esquecida de si mesma; teria sido impossível marcar a

diferença; mas calamos imediatamente a perturbadora com guinchos e sibilos (...)

(...) de fato na sua opinião ela canta para ouvidos surdos; entusiasmo e aplausos não

lhe faltam, mas há muito tempo ela aprendeu a renunciar à compreensão real (...) 76

Apesar de não haver diálogo do povo dos camundongos com Josefina, sua líder, este

povo a segue para onde ela for cantar, como podemos ler a seguir:

E para reunir em torno de si esta multidão do nosso povo quase sempre em

movimento, correndo de lá para cá em função de objetivos nem sempre muito claros,

Josefina não precisa, na maior parte das vezes, fazer outra coisa senão, com a

cabecinha atirada para trás, a boca semi-aberta, os olhos voltados para o alto, assumir

a posição que indica a intenção de cantar. (...) A notícia de que vai cantar se espalha

depressa e logo desfilam as procissões. 77

76

KAFKA, op. cit., 1984, p. 41 grifo nosso 77

KAFKA, op. cit,. 1984, pp. 42, 43 grifo nosso

63

Vimos no capítulo 1 dessa dissertação, em passagens do livro A História dos Judeus,

que um dos motivos do judeu se sujeitar à discriminação imposta pela sociedade é o

sentimento de errância que ele alimenta como eterno estrangeiro e, por isso, as comunidades

judaicas radicadas nos estados ou territórios que os hospedam aceitam as regras que lhes são

impostas, julgando assim, com essa atitude, evitar a incerteza. Só que a intranqüilidade, a

insegurança, a dúvida, são temas marcantes nos enredos kafkianos, como se Kafka quisesse

com isso reafirmar que é impossível ao povo judeu conquistar a paz e a segurança aonde quer

que ele se encontre, como vemos, a seguir, nesse trecho:

Nossa vida é muito intranqüila, cada dia traz surpresas, temores, esperanças e sustos,

de tal forma que o indivíduo não poderia absolutamente suportar tudo se não tivesse

dia e noite o apoio dos companheiros; (...) às vezes tremem mil ombros sob o peso que

na verdade estava destinado a apenas um. 78

3.2. Duplos olhares - Tudo o que parece, pode ser.

Adorno se reporta a Walter Benjamin quando ele diz que a prosa de Kafka é uma arte de

parábolas, e vai mais além explicando que ela não se exprime pela expressão, mas pelo

repúdio à expressão, pelo rompimento: “é uma arte de parábolas para as quais a chave foi

roubada; e mesmo quem buscasse fazer justamente dessa perda a chave seria induzido ao erro

na medida em que confundiria a tese abstrata da obra de Kafka, a obscuridade da existência,

com o seu teor”. 79

Essa obscuridade pode ser vista como um jogo onde o leitor passa por várias fases, cada

qual contendo enigmas para serem desvendados e chaves para que ele possa entrar na fase

seguinte, até concluir a leitura com sucesso. São enigmas e chaves que nem sempre abrem o

texto para a interpretação, levando o espectador a uma encruzilhada que pode conduzi-lo a

78

KAFKA, op. cit., 1984, p. 41 grifo nosso 79

ADORNO, op. cit., 1998, p. 241

64

múltiplas possibilidades de leitura, ou a leitura nenhuma, pois o número de mensagens, umas

superpostas às outras, dificulta a interpretação. Sigamos com o ponto de vista de Adorno:

Um dos pressupostos mais importantes de Kafka é que a relação contemplativa entre o

leitor e o texto é radicalmente perturbada. Os seus textos são dispostos de maneira a

não manter uma distância constante com sua vítima (o leitor), mas sim excitar de tal

forma os seus sentimentos que ela deve temer que o narrado venha em sua direção,

(...) Como num conto de fadas, o destino dos que falharam em resolver o enigma, em

vez de assustar, serve de incentivo. Enquanto a palavra do enigma não for encontrada,

o leitor permanece preso. 80

Na biografia de Hitler, escrita por Joachim Fest, encontramos uma frase que revela o

ódio inato do ditador pelo povo judeu, que ele expressava já em seus primeiros discursos no

circo Krone: “Os judeus serão certamente uma raça, mas não são seres humanos. Não podem

ser humanos criados à imagem de Deus eterno. O judeu é a imagem do Diabo e o judaísmo é

a tuberculose racial dos povos”. 81

Pensar no fato de Kafka ter assistido a este discurso no circo Krone, durante sua

permanência em Berlim, é uma possibilidade, já que Kafka estava na cena dos

acontecimentos, no ano de 1923. Pensar nos efeitos que essas palavras de Hitler,

acompanhadas pelo seu gestual teatralizado e grotesco, produziram no emocional de Kafka

nos permite entender melhor esse trecho de “Josefina, a cantora ou O povo dos

camundongos”:

Para compreender a sua arte é necessário não só ouvi-la como também vê-la. (...) tão

rápido quanto Josefina deseja (...) ela se enfurece, bate com os pés no chão, xinga de

um modo totalmente impróprio para uma moça e chega até a morder. Mas mesmo um

comportamento como esse não prejudica sua fama; (...) são enviados mensageiros para

convocar ouvintes; (...) nos caminhos de todas as redondezas vêem-se sentinelas que

gesticulam, aos que se aproximam, para que se apressem; isso dura até que finalmente

esteja reunido um número razoável de espectadores.82

80

ADORNO, ibid. 81

FEST, op. cit., 1976, p. 259 82

KAFKA, op. cit., 1984, p. 43 grifo nosso

65

A princípio, a hipótese de Josefina, a cantora protagonizar tanto uma frágil líder do

povo judeu, quanto o estereótipo de Hitler pode ser um paradoxo. Mas, isso pode ser possível

se pensarmos na multiplicidade das mensagens contidas no texto kafkiano, passível de

inúmeras interpretações. Esse é o tipo de escrita invertida em que a heroína é o algoz e vice-

versa.

O comportamento de Josefina, autoritário, irracional, desrespeitoso para com seus

espectadores, ilustra o fato de que, muitas vezes, durante as etapas de sujeição ao

totalitarismo, este provoca uma duplicidade de comportamento por parte daqueles que o

sofrem. No cenário, em que a guerra mundial é normal, o anormal pode não ser o pior. Daí, o

temor de Kafka com relação a uma sociedade subjugada não se encontrar no comando e na

luta armada, e sim no abuso que podem advir daí.

Segundo Adorno, Klaus Mann insistiu na semelhança entre o reino de Kafka e o

Terceiro Reich:

O método de Kafka foi confirmado quando os obsoletos traços liberais da anarquia da

produção mercantil, que ele tanto acentua, retornaram sob a forma da organização

política da economia desregulada. E não foi apenas a profecia de Kafka sobre a tortura

e o terror que se confirmou. (...) Em O castelo, os funcionários vestem um uniforme

especial semelhante ao da SS, que qualquer pária pode costurar, se for necessário;

também as elites do nazismo nomearam a si mesmas. Detenção é assalto; tribunal de

justiça, um ato de violência. (...) A professora loura, cruel e amante de animais, de

nome Gisa, provavelmente é a única moça bonita deixada intacta pela descrição de

Kafka, (...) pertence à raça pré-adamítica das virgens de Hitler, que odeiam os judeus

muito antes deles existirem.83

Às ressonâncias individuais na obra juntam-se as da circunstância histórica. O absurdo

de uma violência cega, alienada e fatal faz os pesadelos mais insuportáveis de Kafka

empalidecerem perante os campos de concentração.

83

ADORNO, op. cit., 1998, p. 256

66

O bem e o mal, o bom e o mau, lendo Kafka, são fronteiras movediças, talvez como o

próprio solo que pisamos. Envolta pelo horizonte da realidade, que não é, incondicionalmente,

o mesmo do realismo, essa literatura convida à reflexão e ao desassossego, ao sentido de

responsabilidade que nele chega ao delírio dos pormenores.

A idolatria, a subserviência e a multidão de seguidores fazem de Josefina uma líder

ambígua que deseja comandar o povo dos camundongos em troca do privilégio de não

trabalhar e, para isso, usa da chantagem de diminuir o seu canto, deixando de utilizar o que

ela chama de floreios, e quando este artifício não dá a ela o resultado esperado, se faz de

doente. Mas o povo não cede ao capricho dela, pois faz parte da sua tradição que cada um

participe da comunidade com sua cota de trabalho, como podemos ler nesse trecho:

Desde há muito tempo, talvez desde o início de sua carreira artística, Josefina luta para

ser liberada de qualquer trabalho, em consideração ao seu canto; devia ser aliviada da

preocupação com o pão de cada dia e de tudo o mais que está ligado à nossa luta pela

existência, (...) entre nós não se conhece quem fuja ao trabalho. Assim por exemplo,

afirmou recentemente que, durante o trabalho, sofreu um ferimento no pé. Embora

manque e se faça apoiar pelos seus adeptos (...) somos um povo de trabalhadores e

Josefina também faz parte dele.84

Existe aqui nesse trecho uma tensão entre o desejo de Josefina e a realidade que lhe é

imposta pelo povo. De forma invertida, não é o líder quem exige que seus comandados

trabalhem para ele, e, sim, o povo que exige o trabalho do líder. É possível que nas narrativas

de Kafka esta seja a figura da revolução, pois segundo Adorno “Kafka não glorifica o mundo

submetendo-o a ele, mas resiste-lhe mediante a não violência. Perante esta, o poder tem de

confessar ser o que é.”85

. Vejamos essa passagem:

Mas existe ainda alguma outra coisa que é mais difícil de explicar nesta relação entre o

povo e Josefina. (...) Seu canto supostamente nos salva de uma situação política e

econômica difícil. (...) A cada má notícia – e em certos dias elas se atropelam,

inclusive as falsas e as semi verdadeiras – ela se levanta imediatamente, quando o seu

84

KAFKA, op. cit., 1984, p. 52 85

ADORNO, op. cit., 1998, p. 258

67

costume é ficar deitada no chão, cansada; levanta-se estica o pescoço e procura

abranger com o olhar o seu rebanho (...)86

3.3. Convulsões políticas, novas fronteiras e a desumanização.

As razões que contribuíram para o êxito nazista na Alemanha são similares às do

fascismo na Itália, agravadas pela desastrosa derrota da Alemanha na Primeira Guerra

Mundial e pela humilhação resultante do Tratado de Versalhes. Com o final da guerra, o

regime dos kaisers alemães foi substituído pela República de Weimar (1918 – 1933), que já

surgiu marcada pela derrota, pela humilhação e pela crise socioeconômica. Às progressivas

dificuldades após Versalhes foram acrescidas as indenizações financeiras exigidas pelos

vencedores.

Em 1923, a República de Weimar resolveu cancelar tais pagamentos, que resultou na

invasão francesa do vale do Ruhr. Em contrapartida, os trabalhadores alemães desta região

entraram em greve, negando-se a trabalhar para os franceses, o que obrigou o governo alemão

a não abandoná-los, ampliando a emissão monetária para custear e manter a posição

estratégica e pára-militar destes trabalhadores. O resultado foi uma espiral inflacionária, que

chegou a atingir o índice absurdo de 32.400% ao mês.87

Alguns anos antes, o Partido Nazista foi fundado na Baviera pelo ferroviário Anton

Drexler, com o nome de Partido Operário Alemão (Deutsche Arbeiter Partei). Adolf Hitler

compareceu a uma das suas primeiras reuniões como espião militar, e acabou aderindo ao

partido, desligando-se das Forças Armadas. Em fevereiro de 1920, Hitler já era o dirigente

responsável pela propaganda do partido e mudou-lhe o nome para Partido Operário Alemão

Nacional-Socialista (National-Sozialistiche Deutsche Arbeiter Partei). Como os socialistas

86

KAFKA, op. cit., p. 45 grifo nosso 87

VICENTINO, op. cit., 1997

68

(Sozialisten) eram popularmente chamados sozi, os nacional-socialistas passaram a ser

chamados de nazi (nazista).88

As convulsões sociais atingiam como uma onda toda a Europa central e oriental no

final do século XIX e no alvorecer do século XX. E todos os movimentos de protesto contra a

dominação de Viena eram acompanhados por manifestações anti-semitas. Por exemplo,

durante a sublevação de Praga, em 1897, na queda do governo de Baden, Kafka tinha

quatorze anos e as disputas nacionalistas faziam estragos entre os estudantes. Ele freqüentava

a escola judaica da Cidade Velha e, ao lado, havia uma escola alemã. Certamente, Kafka,

como tantos outros alunos, foi alvo de agressões físicas e morais. Numa carta à Milena,

comenta que nessa época conheceu o nome que classifica o povo judeu nas ruas de Praga:

“raça sarnenta”.89

O significado de sarna é bastante amplo: se encontra nos danos causados às oliveiras,

árvores típicas das regiões da Palestina, e numa doença que acomete os animais, sobretudo

aqueles que vivem nas ruas, e os homens, chamada escabiose*.

A comparação estabelecida por Kafka, na novela “Josefina, a cantora ou O povo dos

camundongos”, entre o povo dos camundongos e o povo judeu é notável, por vários aspectos.

Em primeiro lugar por destacar a capacidade de proliferação do rato, tão necessária a um povo

que vive disperso pelos quatro continentes, como o judeu, onde a maior quantidade de filhos é

bem-vinda, seja para assegurar a continuidade da família, seja para a melhor distribuição das

obrigações que cada um assume para o seu fortalecimento econômico e social. Em segundo

lugar pelo tema da salvação e da figura do salvador - um Messias que há de libertar seu povo

88

KONDER, Introdução ao fascismo. Rio de Janeiro: Graal, 1977 89

EISNER, Kafka. Buenos Aires: Editorial Futuro, 1959 (Coleção Eurindia).

*Escabiose [Do lat. scabie, „sarna‟, + -ose1.]

Substantivo feminino

1.Derm. Afecção cutânea contagiosa, parasitária, provocada no homem pelo Sarcoptes scabiei e nos animais, por

ácaros que variam com a espécie. [Sin.: sarna e (bras., pop.) coruba ou curuba, já-começa, jareré, jereba, jereré,

pereba, pira. Cf. escabiosa.]

69

do cativeiro, promover a sua glória na terra e conduzir a vida religiosa, política e social do

povo de Israel, desde a sua fuga do Egito:

(...) é fácil fazer-se passar por salvador deste povo acostumado ao sofrimento, que

não se poupa, que é rápido nas decisões, que conhece a morte, que só na aparência é

medroso na atmosfera de temeridade onde constantemente vive, e, além disso, tão

fecundo quanto audacioso – é fácil, digo eu, fazer-se passar por salvador a posteriori

deste povo, que de algum modo sempre salvou a si próprio, mesmo às custas de

vítimas, diante das quais o pesquisador histórico – em geral negligenciamos

totalmente a pesquisa histórica – fica gelado de pavor.90

O rato, por outro lado, é um animal peçonhento, de hábitos noturnos, que vive em

esgotos ou nas galerias subterrâneas e não costuma sair de sua toca à luz do dia, o que

dificulta sua exterminação, além de estar sujeito a uma doença infecciosa, a leptospirose, que

é transmitida ao homem, através do contato com sua urina. E, por tudo isso, é considerado

uma praga, combatida pelos agentes sanitários e da saúde pública em quaisquer cidades

desenvolvidas.

No entanto, no segundo título de “Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos”,

em vez da palavra “rato”, temos “camundongo” (tradução do original alemão “Josephine, die

Sängerin oder das Volk der Mäuse”, realizada por Modesto Carone, um dos mais tradicionais

tradutores de Kafka, no Brasil, cuja edição utilizamos para este trabalho). Ao usar a palavra

“camundongo”, acreditamos que Kafka esteja ampliando as possibilidades de seu significado.

Por um lado, denominando o rato através de uma expressão coloquial, afetiva e até infantil;

por outro, utilizando a palavra que classifica o tipo de animal que é utilizado em laboratórios

como cobaia em experiências genéticas, testes de remédios e vacinas, transplantes de órgãos

ou outros tipos de tratamentos médicos ou científicos para serem aprovados e posteriormente

utilizados em seres humanos.

90

KAFKA, op. cit., 1984, p. 45 grifo nosso

70

Vinte anos depois, médicos nazistas como o Dr. Mengele usariam os judeus e pessoas

de outras raças consideradas impuras, bem como pessoas com deficiências físicas, como

cobaias em suas experiências.

Mengele era particularmente fascinado pela genética de anormalidades dominantes, e

começou sua busca olhando-se no espelho. Tinha um problema de arcada dentária, e seus

estudos tratavam do véu palatino e dos maxilares. Em 1930, o estudante se inscreveu em

Antropologia e Medicina na Universidade de Munique, onde se interessou pelo campo da

hereditariedade e da eugenia. Em 1937, filiou-se ao partido nazista e, um ano depois, às SS,

ao mesmo tempo em que concluía seu segundo Doutorado no qual defendia que as

irregularidades nos casos de fissura palatino-labial-mandibular eram hereditárias, como a

idiotia e o nanismo. Alguns médicos acreditam ser essa a tese que prefigura sua pesquisa

genética em Auschwitz, onde o doutor Mengele pôde montar um dos maiores laboratórios de

pesquisa da época, pois dispunha de um diferencial que o tornava incomparável a quaisquer

outros do gênero, ou seja, um número incalculável de cobaias humanas podia ser usado nas

experiências e, se estas fracassassem, gerando aberrações, estes bichos humanos podiam ser

descartados.91

Art Spiegelman, artista plástico e desenhista judeu-polonês, radicado nos Estados

Unidos da América, é autor de um livro em HQ (história em quadrinhos) revelador. Primeiro

pelo próprio nome Maus, cuja tradução para o português é rato e, segundo, pela sua

mensagem anti-nazista. Maus é a história de um sobrevivente de uma família polonesa,

durante a invasão de Hitler à Polônia, que conta a prisão, os momentos infelizes vividos em

91

KOREN E NEGEV, Gigantes no coração. A emocionante história da Trupe Lilliput - uma família de anões

que sobreviveu ao Holocausto. Trad. José Gradel. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006.

71

Auschwitz, a fuga e sua peregrinação de volta ao lar, assistindo aos horrores da guerra e à

perseguição ao povo judeu.92

A maestria da mensagem de Spiegelman está na representação da condição de animal

em que os homens se transformaram, nas trincheiras, e, sobretudo, nos campos de

concentração, onde judeus, ciganos e mestiços eram tratados pior do que bichos.

Seus desenhos, onde o alemão é retratado como sendo o gato, o polonês como o porco

e o judeu como o rato, são uma interpretação do pensamento do ditador do Terceiro Reich,

com a qual Spiegelman abre seu livro, a saber: “Sem dúvida, os judeus são uma raça, mas não

são humanos” – Adolf Hitler.

Na biografia de Hitler, escrita por Joachim Fest, encontramos a continuação desta

frase, com a qual o ditador iniciou um dos seus inflamados discursos no circo Krone, em

Munique: “Os judeus são certamente uma raça, mas não são seres humanos. Não podem ser

humanos criados à imagem de Deus eterno. O judeu é a imagem do Diabo e o judaísmo é a

tuberculose racial dos povos”.93

Existe a possibilidade de Kafka ter assistido a este discurso no circo Krone, durante

sua estada em Berlim, em 1923, com Dora Diamant. Supor o efeito que essas palavras

produziram no seu emocional, ao mesmo tempo em que a tuberculose ganhava a guerra sobre

a sua saúde, conquistando novas regiões do seu organismo permite-nos fazer as leituras que

realizamos até agora sobre “Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos”.

Um ano depois, Kafka finda seus dias com a tuberculose que se instala na laringe,

impedindo-lhe de falar, de comer e, por fim, até de ingerir líquidos. Como Josefina, a cantora

92

SPIEGELMAN, Maus - a história de um sobrevivente. Trad. Antonio de Macedo Soares. São Paulo: Cia. das

Letras, 2006. 93

HITLER, 1923, apud FEST, 1976, p. 259

72

que não cantava, só emitia sons que se pareciam com assobios, Kafka perde a capacidade de

se comunicar com seus semelhantes através da linguagem oral: ele passa a sussurrar, depois a

emitir um ruído estranho e se expressa através de bilhetes que escreve na cama do sanatório.

Ernest Pawel tomou conhecimento de um fato ocorrido no hospital, relatado por

Robert Klopostock, médico e amigo do escritor tcheco e que o acompanhou em seus últimos

momentos, em que Kafka faz uma analogia do seu estado de saúde com as características da

ratinha Josefina, personagem principal da sua última novela, como podemos ler:

Mas, Josefina, a cantora, na verdade não cantava. O que produzia em vez disso, era

um som sibilante que apenas sua confiança em si mesma elevava à altura de uma arte.

E não foi, é claro, por mera coincidência que o próprio Kafka começou a perder a voz

e a emitir ruídos estranhos. “Uma noite”, relata Klopostock, “depois de ter terminado

a última página da estória, ele me disse: - „Acho que talvez tenha começado a

investigação dos guinchos dos animais na hora certa. Acabo de concluir uma estória

sobre isso‟. Não tive coragem de pedir-lhe que me deixasse lê-la. Naquela mesma

noite, ele me disse que ficava com uma sensação estranha de ardência na garganta

sempre que bebia certos líquidos, especialmente sucos de frutas, e expressou sua

preocupação sobre a possibilidade de a laringe ter sido afetada”.94

O judeu sempre foi alvo de suspeitas e culpas infundadas. Mais do que qualquer outra

pessoa, independentemente do poder econômico conquistado, precisava viver conforme as

regras ditadas para o seu povo, pela sociedade onde vivia. Pois, o fato de ter nascido num

determinado país não lhe garantia os mesmos direitos à cidadania que usufruíam seus

compatriotas. O sangue judeu por si só estabelecia a diferença entre ele e os outros. Aonde

quer que ele nascesse, já vinha ao mundo com o estigma do ser estrangeiro na terra do seu

nascimento.95

E, como ilustra Kafka, em sua obra O processo, da noite para o dia, um homem

poderia ser surpreendido ao acordar pela manhã, ser arrastado por policiais para um tribunal, e

acusado por crime que ele desconhece ter cometido. 96

94

PAWEL, op. cit., 1976, p. 427 95

JOHNSON, op.cit. 1995 96

KAFKA, O processo. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

73

Essa prática das milícias policiais ou de qualquer homem da lei de ir primeiro à casa

ou estabelecimento comercial de um judeu, sempre que um problema ocorria no distrito ou na

cidade, para aí iniciar uma investigação que envolvia a todos os moradores, era comum.

Antes de ser provada sua culpa, o judeu já era visto como culpado.

Nas épocas em que greves sindicais, insurreições populares, brigas de grupos

partidários eram mais acirradas, era freqüente o gueto ser invadido e dois ou três judeus

sumirem da comunidade, da noite para o dia, sem deixarem vestígios.97

E é assim que, sem quaisquer avisos prévios e sem deixar vestígios, Josefina, a cantora

some da sua comunidade: “Josefina sumiu. Não só seus partidários a procuram; muitos

também se apresentam para o trabalho de busca; tudo em vão; Josefina desapareceu”.98

Mas, existe uma continuação do relato que revela uma certa indignação ou o

desagrado do povo dos camundongos pelo seu desaparecimento, como se ela estivesse

escondida. E, além de cobrarem a sua ausência, eles predizem que seu fim será trágico.

Vejamos:

Josefina desapareceu, não quer cantar, não deixa nem mesmo ser requisitada; desta

vez ela nos abandonou completamente. É curioso como são equivocados os cálculos

desta esperta criatura - tão equivocados que se poderia pensar que ela nem calcula,

apenas continua a ser arrastada pelo seu destino, que no nosso mundo pode se tornar

triste (...) Ela se esconde e não canta, mas o povo, calmo, sem decepção visível,

imperioso (...) esse povo vai seguindo o seu caminho. O de Josefina, porém, ter que ir

ladeira abaixo. Chegará logo o tempo em que seu último assobio vai soar e

emudecer.99

Esse final de Josefina é ambíguo por vários motivos: ao desempenhar o papel de líder,

podemos supor que ela tenha sumido ou se escondido de algum tipo de perigo ou perseguição

97

JOHNSON, op. cit., 1995 98

KAFKA, op. cit., 1984, p. 58 99

KAFKA, ibid. grifo nosso

74

que ela sabia iminente. Mas podemos também imaginar que o último assobio de Josefina, que

vai soar e emudecer, diz respeito a sua morte ou ao fato de que ela vai se calar e deixar de ser

a porta-voz dessa comunidade, pois está cansada de falar em vão.

Mas o texto de Kafka continua a nos surpreender com esse final paradoxalmente

teológico, em que Josefina parece ser conduzida aos céus ou estar sendo conduzida para o

sacrifício como os animais que eram imolados no Templo judeu. No entanto, cabe também

perguntarmos desde quando um bicho peçonhento como o rato pode servir de oferenda a

Deus. Vejamos o trecho:

Possivelmente, portanto, não sentiremos muita falta, mas Josefina, redimida da

canseira terrestre – a seu ver preparada para os eleitos – se perderá alegremente na

incontável multidão dos heróis do nosso povo e em breve – uma vez que não

cultivamos a história – estará esquecida, como todos os seus irmãos, na escalada da

redenção.100

Segundo Elias Canetti um fenômeno tão enigmático quanto universal é o da massa que

repentinamente se forma onde, antes, nada havia. Umas poucas pessoas se juntam - cinco, dez

ou doze, no máximo. Nada foi anunciado; nada é aguardado. De repente, o local preteja de

gente. 101

E, nessa mancha escura, homogênea em sua heterogeneidade, há muitas coisas

envolvidas. Uma delas, que nos interessa na leitura de um trecho a seguir da novela “Josefina,

a cantora ou O povo dos camundongos”, é que o próprio indivíduo tem a sensação de que, na

massa, ele ultrapassa as fronteiras da sua pessoa. Sente-se aliviado pela eliminação de todas as

distâncias que o compeliam de volta a si próprio e o encerravam. Com a eliminação das

cargas da distância, ele se sente livre, e sua liberdade consiste nesse ultrapassar de fronteiras:

Logo mergulhamos, nós também, no sentimento da multidão que, cálida, um corpo

encostado ao outro, escuta com a respiração contida. (...) nenhum indivíduo isolado

poderia fazer o que, neste sentido, o povo como um todo consegue. Evidentemente a

100

KAFKA, op. cit., 1984, p. 59 101

CANETTI, Massa e poder. Trad. Sergio Tellaroli. São Paulo, Companhia das Letras, 2005, p. 14

75

diferença de forças entre o povo e o indivíduo é tão gigantesca, que basta atrair o

protegido ao calor da sua proximidade que ele fica suficientemente protegido.102

Kafka e Dora Diamant viveram em comum em Munique num dos períodos políticos e

econômicos mais críticos e efervescentes da sociedade alemã. Em uma de suas cartas a Max

Brod, datada de 2 de outubro de 1923, Kafka revela o clima de medo e insegurança que

envolve todos os cidadãos, sobretudo os estrangeiros e os judeus: “Ontem dei uma olhada

num jornal local, coisa que tenho evitado há dias. Mau, muito mau (...)” 103

Dezessete anos depois, as histórias animalistas de Kafka começaram a soar menos

absurdas, principalmente para um leitor judeu-alemão que vivesse no coração da Alemanha e

estivesse exposto à propaganda hitlerista nas rádios, nos cartazes de rua, nos desfiles militares

e no cinema.

A pedido de Hitler, e seguindo a história que o ditador desejava que fosse contada, foi

produzido um documentário intitulado Der ewige Jude, que foi veiculado no cinema em 1940,

e que teve pouca repercussão devido à crueza de suas cenas onde os judeus são comparados a

ratos, vivendo em massa nas cidades, sem trabalhar, e infestando as ruas dos grandes centros

com seu comércio imundo e grotesco, onde as mercadorias, inclusive animais de pequeno

porte, ficavam expostas à venda em tendas pouco higiênicas, a céu aberto. Vejamos o trecho

de referência:

Der ewige Jude (O Eterno Judeu) foi um dos muitos filmes produzidos pela

propaganda nazista para reforçar o preconceito contra os judeus. Por insistência de

Hitler e à revelia de Goebbels, a idéia de Der ewige Jude era mostrar judeus como

ratos, com cara de ratos, vivendo como ratos, invadindo, entrando em sacolas. Assim,

ficava reforçada a visão dos judeus como raça inferior. Inclusive uma segunda versão,

com cenas mais leves, foi feita para que as crianças também pudessem assistir.104

102

KAFKA, op. cit., 1984, p.44 103

PAWEL, op. cit., 1986, p. 420 104

PERALTA, Como ser um publicitário de agências como Africa, DM9, W/Brasil, Talent e Almap. São Paulo:

Jaboticaba, 2006, p.186.

76

Em fins de fevereiro de 1942, pouco depois da conferência de Weimar, durante a qual

adotou-se o que se chamou a Solução Final, Hitler declarou aos seus convidados: “A

descoberta do vírus judeu é uma das maiores revoluções jamais empreendidas no curso da

história do mundo. A luta que travamos é comparável à de Pasteur e Koch no século passado

(...) Só recuperaremos a saúde depois de ter eliminado o judeu.”105

Os seis milhões de judeus exterminados pelo regime nazista durante a Segunda Guerra

Mundial é sem dúvida uma hecatombe sem proporções iguais na história do século XX. A

maioria sumiu no anonimato, identificado pela SS nos campos de concentração apenas por

números com que cada qual era marcado, como gado, antes de entrar no matadouro das

câmaras de gás.

Kafka não fazia mais parte do cenário dos acontecimentos, mas vinte anos após sua

morte, após Auschwitz, a leitura de “Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos” parece

ser um libelo premonitório da condição humana, uma parábola para todos os excluídos da

sociedade pura e perfeita que Hitler sonhava construir.

105

FEST, op. cit., 1973, pp.259, 260

77

4. A CONSTRUÇÃO E A ESCRITA

Tínhamos cavado um buraco na areia, que nos parecia muito cômodo. De noite

entrávamos todos juntos dentro do buraco; nosso pai cobria-nos com alguns troncos, e

em cima atirava palha, o que nos protegia dentro do possível das tormentas dos

animais. “Pai!”, gritávamos, às vezes, atemorizados (...) K.

4.1. O judeu assimilado e o judeu não-assimilado

Na Europa central e oriental, a partir do século XVIII, os judeus que abandonaram o

gueto assimilaram a cultura, a vida política e social do povo do país que os hospedou, com

exceção dos da cidade de Praga.

Nas regiões tchecas, o josefismo*106

emancipou os judeus, ao mesmo tempo que os

germanizou, numa época em que o povo tcheco revivia sua cultura nacional e se recuperava

penosamente de seu atraso, a tal ponto que os promotores culturais do meio urbano eram

recrutados, em sua grande maioria, no meio rural, onde os valores tchecos ainda estavam

preservados. Os judeus praguenses, ao contrário, se uniram aos alemães, e um fenômeno que

acontecia lentamente, de forma subterrânea, tornou-se visível: do gueto propriamente dito não

restou nada mais do que um gueto no sentido figurado, porém, este era tão fechado como o

antigo gueto e suas paredes tão inacessíveis quanto as do outro; era um gueto dentro de outro

gueto, que exercia também um poder assimilador. Por exemplo, quando um judeu da

província - metade tcheco, ao menos pela língua e pela força do sentimento dos seus

antepassados -, vinha viver em Praga, sofria com a germanização. Foi o caso do pai de Kafka

que era originário de Osek, próximo à Strakonice.

106

*josefismo= sm (lat Josephus, np+ismo). Forma de governo imaginada por José II, imperador do Sacro

Império Romano-Germânico, 1765-1790, com o fim de submeter a Igreja ao Estado; o alemão torna-se língua

oficial e os judeus deixam de ser obrigados de trazer sinais distintivos nas roupas e podem freqüentar as

universidades.

78

As fronteiras sociais e culturais que separavam os judeus alemães de uma Praga tcheca

na qual eles habitavam eram fechadas e só eram rompidas pelos interesses econômicos, e, no

âmbito cultural, pela música.

Em Praga, a minoria alemã constituía um grupo distinto, que, assim como os judeus,

não firmava raízes na sociedade, mesmo sendo empresários, advogados, professores

universitários ou médicos. Podemos dizer que essas “raízes soltas” ou flutuantes resultavam

em uma insegurança epidérmica que afastava o indivíduo do convívio social cotidiano. Ou

seja, os círculos sociais eram distintos e impenetráveis, a ponto de um diretor de banco não

conhecer os seus funcionários fora do ambiente bancário, e vice-versa, provocando a criação

de novas células sociais que se multiplicavam: era o gueto invisível se dividindo e ampliando

em centenas de guetos menores.107

Na esfera cultural, o alemão médio do sudeste tinha um nível cultural inferior ao judeu

alemão de Praga, mas, julgando o contrário, desejava estabelecer essa diferença reivindicando

a transferência da Universidade Alemã de Praga para Liberec, por exemplo, muito antes da

Primeira Guerra Mundial.

As diferenças e as contradições eram tão evidentes que os estudiosos da literatura

estudavam nos países tchecos duas literaturas distintas: uma, a dos alemães do sudeste e,

outra, a de Praga que era produzida em sua maioria por judeus.

Devemos recordar, a propósito disso, que antes do extermínio nazista, os maiores

nomes da cultura e da ciência eram os de judeus tchecos: Gustav Mahler, E.E. Kish, Franz

Werfel, Sigmundo Freud, A. Kohn, Emil Orlik e Franz Kafka, estes dois últimos nas artes

plásticas e na literatura, respectivamente.108

107

EISNER, op. cit., 1959 108

EISNER, op. cit., 1959, p. 51

79

Nesse sentido, o gueto intelectual era absoluto, pois entre os alemães não judeus e os judeus

de Praga não havia comunicação. Vejamos o ponto de vista de Kafka a esse respeito, na

leitura deste trecho:

Judeus orientais e ocidentais; reunião*. O desprezo dos judeus orientais pelos daqui. A

justificação desse desprezo. Como os judeus orientais conhecem o motivo desse

desprezo e os ocidentais não. 109

4.2. As fronteiras não-comunicantes

A primeira teoria da comunicação, desenvolvida nos anos vinte na República de

Weimar (discussões sobre o rádio popular, o teatro, a imprensa ligada ao movimento social, a

estética e a literatura proletária) e parcialmente continuada na França antes da ocupação

nazista, rende seus frutos no exílio norte-americano, em que se encontram, além dos irmãos

Heinrich e Thomas Mann, as figuras de Hanns Eiler, Arnold Schonberg e Bertold Brecht,

Theodor Adorno, Hanns Horkheimer e Herbert Marcuse. Lá, eles iniciam uma nova fase de

seus estudos críticos, sempre vinculando a reflexão filosófica a uma prática social e a um

engajamento ideológico.

Após um balanço do fracasso do movimento operário alemão, do desenvolvimento do

Estado soviético, da burocratização e das aporias do progresso e da ciência, Adorno e

Horkheimer publicam a Dialética do esclarecimento, na qual sustentam que a Razão destrói-

se a si mesma, e dão como exemplo disso Auschwitz. Segundo eles “depois do Holocausto

tudo – até mesmo a cultura e a crítica – não passa de restos, coisa sem valor”. 110

O biofísico Heinz Von Foerter, da Universidade de Illinois, é de opinião que a

comunicação é impossível, já que duas pessoas são duas atividades nervosas distintas,

intransponíveis; logo, trata-se de um processo irrealizável.

*Os sionistas aproveitam a presença dos judeus orientais em Praga, refugiados de guerra, para tratar de

esclarecer e melhorar as relações entre os judeus orientais e os ocidentais, por meio de debates públicos. 109

KAFKA Diários, s/data, p. 368, grifo nosso 110

MARCONDES FILHO, op. cit., 2002, p. 157

80

De forma semelhante, o sociólogo alemão Niklas Luhmann não acredita na

comunicação. Para ele, as pessoas são “caixas-pretas” impenetráveis, uma em relação a outra,

sendo a comunicação, nesse caso, uma operação autopoiética (que cria a si mesma) de um

sistema autopoiético e que só se relacionaria consigo mesma.

O filósofo alemão Jugen Habermas, contrariamente, acredita na racionalidade dos atos

humanos e sua sobrevivência possível pela comunicação. Sua teoria argumentativa é de que

os indivíduos ainda se constituem como sujeitos da comunicação e conquistam um espaço de

relevância social. Mas, para isso, quatro seriam os requisitos básicos: inteligibilidade,

verdade, autenticidade e justiça. Ou seja, Habermas defende a recuperação da Razão, e isto se

daria pelo entendimento entre os homens graças ao bom senso.

O sociólogo Manfred FaBler não reconhece paradoxos na comunicação: para ele,

“haveria efetivamente troca de informações, construção e organização de entendimento,

existindo assim a possibilidade social das pessoas se descreverem”. Porém, FaBler coloca

uma ressalva: “de que o entendimento não é garantido, mas idealmente pressuposto”. 111

As duas visões são admissíveis, considerando-se que ambas têm suas limitações.

Trata-se de conhecimentos parciais que procuram entender o paradoxo de uma sociedade de

comunicação ser uma sociedade sem comunicação, uma sociedade em que existem

comunicações que não comunicam e não-comunicações que comunicam.

Com base também nas teorias da comunicação social, alguns pontos em comum

devem ser lembrados, pois nos fazem pensar o que Kafka considerava como

incomunicabilidade. Para isso, nos reportamos a dois modelos: primeiro, ao modelo

funcionalista clássico, onde uma comunicação necessita de um emissor/fonte,

receptor/destino, uma mensagem/informação e um canal/meio; e, em seguida, à perspectiva

111

MARCONDES FILHO, ibid.

81

pragmatista, que necessita de semiose, ou seja, da soma do signo, do objeto e do interpretante.

Para esta última, o fato de um semáforo emitir informações das cores verde, amarela ou

vermelha só tem sentido porque o cidadão domina o código de decodificação da mensagem.

Entretanto, se o interpretante for cego não acontecerá a recepção visual e, por conseguinte, a

mensagem não será decodificada por ele.

Kafka era filho de um judeu assimilado. Seu pai, Herrmann Kafka, era um próspero

comerciante atacadista, preocupado com a aceitação social de sua família, através do trabalho

voltado para o acúmulo de capital. Segundo Pawel, eles não professavam o judaísmo de

maneira ortodoxa e freqüentavam a sinagoga em datas comemorativas, como mera

formalidade.

A aproximação de Kafka e seu interesse pelo judaísmo ocorreu quando já era adulto. E

talvez tenha sido nessa ocasião que a incomunicabilidade entre ele e seus familiares tenha

aumentado. Nesse processo de aquisição do conhecimento da cultura hebraica e das tradições

judaicas, duas pessoas foram marcantes na vida de Kafka: primeiramente, Löwy, o artista

iídiche, quando o escritor estava com vinte e poucos anos e, depois, Dora Diamant, o último

amor de sua vida.

Enrique Mandelbaum, em seu livro Franz Kafka: um judaísmo na ponte do impossível,

realiza um estudo minucioso dos textos curtos e de passagens das cartas pessoais e do diário

de Kafka que possibilita ao intérprete discernir, na produção deste narrador, fabulações que

problematizam a relação entre literatura e vida por meio do conteúdo filosófico e religioso da

tradição judaica. Para isso, Mandelbaum estabelece um diálogo comparativo e interpretativo

entre textos de Kafka e textos do Rabi Nakhman de Bratzlav (1772-1810), representante

espiritual do hassidismo e clássico contador de histórias.

82

O que nos desperta a atenção é o conto do Rabi intitulado “O príncipe peru”. Nele

ocorre uma transformação: o príncipe enlouquece, pensa que é um peru e comporta-se como

se fosse um. Só que, ao contrário do que ocorre com o protagonista da novela A metamorfose,

de Kafka, o príncipe peru continua mantendo o poder da fala e encontra um sábio que se

dispõe a se comunicar com ele e, através do diálogo, traz o príncipe de volta à vida normal de

um ser humano.

Podemos perceber que esse conto é rico em mensagens edificantes e enobrecedoras,

estruturadas de forma a educar e moralizar os possíveis leitores. Para nós, uma dessas lições é

muito importante, pois reafirma a importância da comunicação na vida das pessoas e da sua

necessidade para que a sanidade entre os seres humanos seja mantida. Nesse conto, o poder da

comunicação se compara ao poder da cura. À diferença de Gregor Samsa, o príncipe

enlouqueceu e passou a acreditar que era um peru. Não houve uma metamorfose física: a

transformação se manteve no nível do psiquismo do príncipe protagonista. Mas

independentemente de se tratar de uma manifestação psíquica, no caso do príncipe, e de uma

transformação física, no caso de Gregor Samsa, a solução está na comunicação, no diálogo, na

possibilidade que o príncipe tem de compartilhar seu pensamento com outro ser humano, que

não se intimidou com sua “metamorfose” e passou a conversar e a questioná-lo, até que este

se conscientizou de que poderia voltar a se sentir e comportar como um ser humano. Gregor

não teve essa mesma oportunidade. Essa saída não foi dada por Kafka a sua personagem em A

metamorfose. Nenhum dos membros da família Samsa manifestou o interesse real de

conversar com Gregor. Nem a irmã que freqüentava o quarto de Gregor para levar comida

para ele e, no início, limpar também o aposento, se dispôs a tentar estabelecer um diálogo com

ele.

83

No conto do Rabi, existe o que nas fábulas se conhece como moral da estória, ao

contrário do que ocorre nos contos de Kafka em que não há moral alguma. Ou melhor, talvez

exista a pior moral: aquela que transmite a mensagem de que “não há saída”, não há solução

para os problemas humanos, e de que o homem em quaisquer situações se encontra sozinho.

Por isso, Gregor chega à conclusão de que é melhor deixar-de-ser. Ou seja, apesar do

interesse de Kafka pela tradição judaica, sua obra não se deixou envolver pela sua moral e sua

mensagem de salvação através da fé. Pelo contrário, parece que Kafka deseja colocar em

xeque os valores da sociedade, mostrando a inutilidade dos preceitos morais e éticos para a

garantia da dignidade humana, no início do século XX.

Segundo Ciro Marcondes, o ruído na comunicação é uma incerteza sobre o conteúdo

da mensagem devido à inclusão de elementos exteriores ou estranhos a ela e que podem ser de

vários tipos, desde o barulho do apito de um trem, das máquinas em operação em uma fábrica,

até uma música tocando em playback, o choro de uma criança no quarto ao lado, um idioma

desconhecido ou os tiros de uma metralhadora.

A literatura de Kafka é rica em sons, ruídos e barulhos, produzidos pelo mundo físico

e pela imaginação. No mundo da fantasia esses sons também têm dupla aparição: eles podem

ser físicos ou psicológicos. Afinal, a guerra, o anti-semitismo, são circunstâncias

perturbadoras, capazes de produzir angústia e medo, e essas realidades exteriores podem

influenciar e afetar a realidade interior do ser humano. Quando acontece essa interferência,

podemos dizer que houve um ruído, capaz de alterar a capacidade normal do ser humano de se

comunicar consigo mesmo como indivíduo e com os seus semelhantes, gerando desvios e

enganos.

A maior parte da obra de Kafka é uma reação ao poder ilimitado. Walter Benjamin

chamou este poder, característico de patriarcas raivosos, de “parasitário”; é um poder que se

84

nutre da vida de suas vítimas. Mas, o estado do ser parasitário é deslocado de modo singular.

Por exemplo, quem se metamorfoseia é Gregor Samsa, e não o seu pai que detém o poder

patriarcal. Quem parece supérfluo não são os poderosos, mas os protagonistas das novelas

animalistas, cuja impotência os paralisa até a morte ou a desaparição.

Com exceção de “Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos”, cuja história

parece não transcorrer num local de confinamento, A metamorfose e “A construção” são

enredos que se passam dentro de um espaço limitado e delimitado; em uma, Gregor está

aprisionado nas quatro paredes de um quarto; em outra, o ser – animal ou humano – está

entrincheirado em túneis claustrofóbicos. Suas personagens principais rastejam confinadas em

um ambiente interno, sem comunicação possível com o exterior e sem possibilidade de

qualquer diálogo humanamente interpretável. Como afirma Adorno:

O deslocamento é moldado segundo o costume ideológico que glorifica a reprodução

da vida como um ato de graça dos “empregadores”, que dispõem sobre ela. Ele

descreve um todo no qual aqueles que a sociedade aprisiona, e que a sustentam,

tornam-se supérfluos. Mas o sórdido, em Kafka, não se esgota nisso. Ele é o

criptograma da fase final e resplandecente do capitalismo, que Kafka exclui para

determiná-lo em sua negatividade.112

O homem comum - policiais, operários das fábricas, funcionários de bancos,

balconistas das lojas comerciais, faxineiras - compõe a maior parte do universo das

personagens kafkianas. O trabalhador que precisa prestar contas de seu serviço ao seu

superior, apesar de ser supérfluo e descartável, é o foco dos acontecimentos, conduzindo a

trama ou enredando os protagonistas das histórias de tal maneira que sua presença, apesar de

secundária, é imprescindível.

Na vida de Kafka, bem como da maioria dos filhos da burguesia - com seu universo de

babás, amas de leite, cozinheiras, governantas da casa - o papel dos empregados sempre foi

112

ADORNO, op. cit., 1998, p. 252

85

importante, pois, geralmente, tanto o pai, quanto a sua mãe dedicavam a maior parte do dia ao

trabalho na loja comercial de sua propriedade.

Em uma de suas cartas a Milena, Kafka faz um relato extremamente minucioso da

cozinheira que o acompanha no seu caminho para a escola e insinua a opressão e os medos

que ele sentia quando menino. Reais ou imaginárias, as descrições do autor tcheco que são

colocadas no papel expressam o poder da serviçal sobre a criança e demonstram o quanto elas

continuam vivas na sua memória trinta anos depois de terem sido vividas. Vejamos o texto

nas palavras de Kafka:

Nossa cozinheira, miúda, seca, magra, com seu nariz pontiagudo, suas faces cavadas,

amarelenta, mas firme, decidida e superior, levava-me para a escola todas as manhãs.

Morávamos na casa que separa a Praça da Cidade Velha da Praça Pequena. (...) E

todas as manhãs, por cerca de um ano, a mesma cena se repetia: ao sairmos de casa, a

cozinheira ameaçava contar ao professor como eu fora mal comportado em casa. (...)

Em algum ponto próximo da Avenida do Mercado das Carnes, o medo finalmente

assumia o controle... (...) Eu começava a implorar e ela sacudia a cabeça; quanto mais

eu suplicava, mais vital se figurava o objeto de minhas súplicas e maior o perigo.113

Os empregados na sociedade capitalista são importantes, mas se acabam no chão das

fábricas, morrem de exaustão nas minas e no pó das estradas de ferro recém abertas ou nas

trincheiras e valas humanas, como resíduos das indústrias e da máquina de guerra. Talvez por

isso, Adorno diga que “Kafka procura com a lupa os vestígios de sujeira deixados pelos dedos

do poder na edição suntuosa do livro da vida”.114

Os detalhes da descrição de um momento de lascívia entre o agrimensor K. e sua

amante, que acontece no chão da cervejaria, em O castelo, por exemplo, estão na sujeira que

os cerca e na qual eles rolam com a maior naturalidade. À medida que se faz a leitura da cena,

113

KAFKA, “Cartas a Milena”, apud PAWEL, op. cit., 1986, p. 28 114

ADORNO, op. cit. p. 252

86

é possível estabelecer mentalmente a comparação entre eles e dois porcos chafurdando em um

charco ou em uma pocilga.115

A cena traz à tona as palavras de Adorno a respeito da vida

privada no mundo moderno:

O modo como hoje está a situação na vida privada mostra-se no seu cenário. Em rigor,

já não é possível o que se chama habitar. (...) O homem moderno deseja dormir perto

do chão como um animal, decretava com profético masoquismo uma revista alemã

anterior a Hitler, e com a cama suprimia o limiar entre a vigília e o sono. Os que ali

pernoitam estão sempre disponíveis e prontos para tudo sem nenhuma resistência, ao

mesmo tempo despertos e aturdidos.116

“A construção” é a novela animalista que Kafka escreve em Berlim, no ano de 1923.

Na sua tradução para o português já recebeu outros títulos como “A toca” e “O esconderijo”.

No livro Dora Diamant, el último amor de Kafka, um capítulo recebe o título dessa

novela, e sua autora faz uma referência simbólica à habitação de Kafka e Dora Diamant como

sendo um refúgio, um local de abrigo, onde os dois vivem sua intimidade num ambiente de

sossego e de paz, de certa maneira distante das angústias do mundo. É um local no qual, pela

primeira vez, Kafka se sentiu pleno como ser humano e como homem, na companhia da única

mulher com quem ele mantinha constante diálogo e com quem compartilhou enriquecedores

momentos de uma vida a dois, a ponto de desejar não estar tuberculoso para continuar a viver

sem os sobressaltos da doença e sem a possibilidade da eminência da morte.117

“A construção” pode ser também a representação da doença em seu interior,

alastrando-se pelo seu corpo, a partir dos pulmões e que mina a sua saúde pouco a pouco.

Vejamos as palavras de Adorno:

Tudo o que Kafka narra pertence à mesma ordem. Todas as suas histórias desenrolam-

se no mesmo espaço sem espaço, e todos os buracos são tão perfeitamente tapados que

as pessoas levam um susto quando se menciona algo que não caberia ali (...)118

115

KAFKA, O castelo, 2002 116

ADORNO, op. cit., 2001, p. 33 grifo nosso 117

DIAMANT, Dora Diamant, el último amor de Kafka, Barcelona, CIRCE Ediciones, 2007 118

ADORNO, op. cit., 1998, p. 252

87

A tuberculose foi o mal do século XIX, a doença dos artistas, daqueles que se sentem

excluídos, alimentam sentimentos depressivos, apatias e neuroses congênitas; assim como o

câncer foi a do século XX e, hoje, a AIDS é a do século XXI. Em muitos casos, a doença é

uma manifestação física que resulta de uma mente doentia, de comportamentos desregrados e

descuidos para com a conservação da saúde.119

Kafka tinha uma vida regular, sem exageros e excentricidades no plano físico, pois não

bebia, não fumava, aderiu à alimentação vegetariana na idade adulta, praticava remo e fazia

longas caminhadas. Eram atividades e rotinas de vida que, a princípio, não o predispunham à

tuberculose, muito pelo contrário. No entanto, ele sofria de insônia e dores de cabeça com

freqüência, que o exauriam durante horas e minavam a sua saúde.

Kafka habituou-se a escrever durante a noite, a partir das vinte e duas horas, quando

todos os moradores da casa estavam começando a se recolher e o ambiente tornava-se

silencioso. Era comum, nessas ocasiões, que ele ficasse a noite toda acordado, escrevendo

cartas a seus amigos, rascunhando textos ou desenhando até o alvorecer. E sua inspiração para

a escrita literária vinha acompanhada por uma angústia e um desassossego indescritíveis.

Além disso, suas crises pela impossibilidade de escrever, seja por falta de tempo, seja por não

consegui-lo fazer mesmo quando dispunha de tempo livre, são descritos por ele como

momentos de desespero e de desesperança. Vejamos:

Não posso continuar escrevendo. Cheguei ao limite definitivo, onde ficarei

esperançado talvez durante anos, para depois tornar a iniciar talvez novo relato, que

também ficará por terminar. Este destino me persegue. Novamente me sinto frio e

insensível; apenas me resta esse amor senil pelo perfeito repouso. E como algum

animal absolutamente afastado do homem, agito outra vez o pescoço (...)120

119

SONTAG, Doença como metáfora, AIDS e suas metáforas. Trad. Rubens Figueiredo, Paulo Henrique Brito.

São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 120

KAFKA, Diários, s/data, p. 348 grifo nosso

88

Em sua novela “A construção”, Kafka relata momentos na vida de um animal – que

narra sua existência em primeira pessoa, sem identificar-se - que habita o subterrâneo em uma

região do campo. Sua toca ou buraco escavado na terra possui vários túneis interligados que

se comunicam e dão acesso a uma praça que fica no centro da construção. Uma entrada

principal, oculta por uma camada de musgo removível é a verdadeira entrada de acesso ao seu

mundo e ao contato que ele mantém com o exterior. Ardilosamente, ele deixou um buraco

aberto na proximidade que engana aqueles que porventura queiram entrar em sua morada e

que não leva a lugar algum. No interior de sua habitação, o bicho age como verdadeiro

estrategista, dispondo suas provisões em locais diferentes para suprir sua subsistência, caso

ocorra algum imprevisto. Por exemplo, se a terra despencar sob pressão e soterrar parte de sua

toca, ele não morrerá de fome, pois em algum local da parte que não foi soterrada ele

encontrará o alimento necessário enquanto reconstrói a parte danificada; se algum invasor

entrar em sua toca, ele poderá fugir por um dos túneis e destruir a passagem, pois numa das

galerias sempre haverá comida para provê-lo. A descrição de todas as possibilidades de perigo

e de assalto a sua casa é minuciosa e parece vir de uma mente que está tão preocupada com a

sobrevivência e com o ato de se esconder que o leitor, em determinado momento do texto, se

esquece que o protagonista é um animal e pensa que é um ser humano que provavelmente está

refugiado num subsolo. A dúvida se estende até quando se trata do tipo da comida deste

animal, pois ele se alimenta de carne crua, mas fresca, nunca de carne podre.

Interpretar essa novela animalista de Kafka é percorrer o texto lendo-o em suas várias

possibilidades de significação. Ora podemos analisá-lo tomando como base o contexto

político, econômico e social, ora podemos nos deter apenas no texto e no que é propriamente

dito. Em ambos os casos, temos uma situação claustrofóbica, de um ser que vive num buraco,

que mantém suas provisões em espaços diferentes para poder dispor de cada uma delas de

89

maneira diversa quando for necessário, que pensa, que sofre de medos e angústias reais ou

imaginárias, e narra sua história para um leitor ou possível ouvinte que parece estar próximo a

ele. Essa primeira característica nos permite levantar a hipótese de que o protagonista desta

narração é um ser humano. Talvez um soldado desertor, um judeu exilado ou perseguido, um

foragido da justiça, já que a questão da lei e da ordem, da exclusão social, estão presentes

direta ou indiretamente em vários textos da literatura kafkiana.

Se for um judeu, não nos surpreende esse hábito de manter provisões e de guardá-las

em locais distintos para poder usufruir delas nos momentos necessários. No livro de Joachim

Fest sobre a História dos Judeus tomamos conhecimento da estratégia milenar - durante as

diásporas, perseguições inquisitoriais e pogrons - do judeu de reunir capitais distintos em

locais diversos para em caso de perda de algum bem, não ficar na miséria. O povo judeu é por

natureza um investidor que aplica seu capital em vários bens ao mesmo tempo: imóveis

residenciais, lojas comerciais, papéis e ações de empresas e indústrias, poupanças bancárias,

propriedade de meios de comunicação e transporte, moedas estrangeiras, hipotecas e

penhores, compra e venda de ouro, prata, pedras preciosas e quaisquer atividades lucrativas, a

médio ou longo prazos, seja no seu local de habitação, seja em outros países. Vejamos o que

diz o trecho de “A construção”:

Nesta praça do castelo reúno minhas provisões, acumulo aqui tudo o que capturo

dentro da construção acima das necessidades do momento e tudo o que trago de

minhas caçadas fora de casa.(...) Parece-me então muitas vezes perigoso basear a

defesa inteiramente na praça do castelo, pois a multiplicidade da construção me

oferece múltiplas possibilidades e soa mais conforme à prudência distribuir um pouco

as provisões e abastecer com elas também certos lugares menores; (...) 121

A questão do exílio, que atravessa a história do povo judeu ao longo dos séculos, está

presente em “ A construção” quando a personagem trata da questão da segurança, de estar em

casa. Essa tranqüilidade não faz parte do universo judaico, pois o estigma do gueto e todas as

121

KAFKA, “A construção”, 1984, pp. 67, 68.

90

atrocidades cometidas em nome das diferenças de religião demonstram que este povo sem

nação - conceito esse discutível, assim como o de identidade, graças ao pensamento filosófico

e social de Edward Said, Homi Bhabha e Stuart Hall, entre outros estudiosos -, destituído de

território próprio e, que, por isso, está em todos os lugares, sem pertencer a lugar algum,

possui uma espécie de medo hereditário de ser expulso. Vejamos o trecho:

(...) E não são apenas os inimigos externos que me ameaçam. Existem também os que

vivem dentro do chão . Nunca os vi ainda, mas as lendas falam a seu respeito e eu

creio firmemente nelas.(...) Aqui não importa que se esteja na própria casa, pois o fato

é que se está na casa deles.122

Quando o protagonista fala dos inimigos externos e internos, parece que Kafka está se

referindo aos inimigos dos judeus, mas devido ao buraco e aos túneis escavados para a fuga e

proteção, pode ser que se trate de um soldado numa trincheira, no front ou em combate em

território inimigo, pois nesse caso a questão do território e de estar fora do seu território tem

outros sentidos. Sabemos que Kafka não serviu nem foi enviado para os campos de batalha,

mas no seu livro Diários, inúmeras vezes, ele relata fatos relativos à Primeira Guerra

Mundial, ao sofrimento do povo e às experiências conhecidas pelos relatos dos soldados.

Vejamos esse relato:

P. voltou*. Aos gritos, excitado além de todo o limite. Histórias da toupeira que

surgiu por baixo dele na trincheira, e que ele considerou com uma advertência divina

para que ele se afastasse dali. Mal se fora, o soldado que se arrastava atrás dele

recebeu um tiro, justamente quando passava por cima da toupeira. Seu capitão. Viram

claramente como o faziam prisioneiro. Mas no dia seguinte encontraram-no despido,

no bosque, atravessado pela baioneta.123

“A construção” é um corpo físico, uma casa. O corpo físico do homem é a morada de

sua alma na maioria das religiões ocidentais e orientais. Podemos ler esta novela de Kafka

122

KAFKA, op. cit., 1984, p. 65

*Um cunhado de Kafka, que volta do front de licença 123

KAFKA, Diários, s/data, p. 346 grifo nosso

91

tomando como ponto de partida o corpo do autor infectado pela tuberculose em 1917, aos

trinta e três anos de idade. Existe um pequeno trecho em “A construção” que nos permite essa

hipótese: “É como se não estivesse diante da minha casa, mas de mim mesmo dormindo e

tivesse a felicidade de poder ao mesmo tempo dormir profundamente e me vigiar com

brio”.124

Ao considerarmos que Kafka está retratando a si mesmo nesta novela, muitas coisas se

encaixam sob este ângulo de interpretação.

A toca é o quarto de Kafka, local de seu isolamento e oportunidade de vivenciar sua

literatura. A animalização do homem faz parte do contexto histórico. Estamos no auge da

industrialização européia, o capitalismo e a classe burguesa ganhando força e terreno, as

máquinas substituindo o homem nas fábricas e os homens lutando pela sobrevivência, como

animais, nos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial. Todos esses elementos fazem

parte da realidade do artista e sobressaltam a sua imaginação.

Os ruídos ouvidos pelo suposto animal dentro da construção podem ser reais ou não,

assim como o são os ruídos que perturbam o cotidiano de Kafka. Estes são produzidos ora

pelos seus familiares, na casa paterna, ora pelos seus vizinhos, quando ele aluga um quarto

nas proximidades, ora pelos ratos que o perturbam com seus guinchos e andanças noturnas no

quarto da casa de sua irmã Ottla, ora pela própria cidade grande, que é Praga, ora pela doença

- os guinchos da sua respiração ofegante, os chiados característicos dos pulmões perfurados.

Vejamos a passagem:

Perseguido pelo barulho. Um quarto mais formoso, muito mais cordial que o da

Bilekgasse. Dependo tanto da vista, que aqui é formosa: Teinkirche. Grande barulho

de carruagens na rua; (...) Mas parece-me impossível acostumar-me ao ruído da tarde.

De vez em quando, o barulho de algo que cai na cozinha ou no corredor. Ontem, em

124

KAFKA, op. cit., 1984, p, 74

92

cima, na água-furtada, constante rodar de uma bola, como se alguém estivesse

jogando; (...) depois, embaixo, o piano. 125

O som produzido pelo mundo ao seu redor e pelas outras pessoas tira a concentração

de Kafka, incomoda-o a ponto de ele não conseguir escrever e prejudicar sua saúde, pois os

ruídos são capazes de deixar seus nervos destroçados, como fica evidente neste trecho dos

Diários:

Ontem à noite, relativo silêncio (...); hoje, comecei muito bem, de súbito, ao lado ou

embaixo, as vozes de uma reunião, tão fortes e flutuantes como se eu flutuasse em

meio dela. Lutei um instante com o ruído; depois, com os nervos praticamente

destroçados, deitei-me no sofá; pelas dez horas, silêncio, mas já não pude trabalhar.126

O mesmo ocorre com a personagem de “A construção” que é vencida pelo barulho que

lhe causa medo, insegurança e cansaço por causa da vigília constante, imobilizando-a até uma

possível morte:

(...) não sou mais um pequeno aprendiz, mas um velho mestre-de-obras, e todas as

forças malogram quando chega a hora da decisão; por mais velho que eu seja,

entretanto, parece que gostaria de ser mais velho ainda do que sou – tão velho que não

pudesse mais me levantar do meu lugar de descanso debaixo do musgo. (...) Cheguei a

um ponto em que não quero absolutamente ter certeza. Na praça do castelo, escolho

um belo pedaço de carne vermelha sem pele e me escondo com ele debaixo de um dos

montes de terra (...)127

Podemos comparar os ruídos produzidos pelas “criaturinhas insignificantes” dentro da

toca, com os bacilos microscópicos causadores da tuberculose. Esses pequenos seres se

instalam no organismo, perfurando cada órgão, ocupando mais espaço e conquistando novos

territórios.

No caso de Kafka, durante sete anos consecutivos, a doença devastou o seu corpo,

tomou os pulmões até se infiltrar na laringe.

125

KAFKA, Diários, s/data, p. 370 126

KAFKA, ibid. 127

KAFKA, “A construção”, 1984, p. 103

93

Na novela “A construção”, a errância do suposto animal ocorre no espaço da

construção, e à medida que lemos sobre a rotina da personagem, parece que ela está confinada

numa jaula. Esse ir e vir, de um túnel para outro, torna-se um círculo vicioso que se estende

através do tempo, desde que “ele não é mais um pequeno aprendiz, mas um velho mestre-de-

obras”.128

4.3. O silêncio dos excluídos

Segundo Adorno, a linguagem proletária é ditada pela fome. O pobre mastiga as

palavras para com elas se saciar. Espera assim obter o alimento que a sociedade lhe nega;

enche a boca que nada tem para morder. Vinga-se, por isso, na linguagem, onde até o melhor

dos calões do norte berlinense soa mal. E se a linguagem escrita codifica a alienação do

indivíduo e promove a separação das classes sociais, é possível ao escritor uma saída. Pois, a

vantagem do escritor está na possibilidade de falar mesmo em completo silêncio, através de

sua escrita. Sobre a folha de papel em branco, a mensagem pode ser passada, algumas vezes

em código, que somente os iniciados conseguem decifrar, pois estes têm a palavra-chave para

abrir o texto à leitura e a uma posterior interpretação.129

Podemos dizer, que em situações de perigo e sob qualquer ameaça, o silêncio é a força

dos excluídos, o território impenetrável no qual a palavra secreta é mantida até mesmo sob

tortura para garantir a sobrevivência do grupo. Segundo Adorno:

o escritor organiza-se no seu texto como em sua casa. Comporta-se nos seus

pensamentos como faz com os seus papéis, livros, lápis, tapetes, que leva de um

quarto para o outro, produzindo uma certa desordem.(...) Quem já não tem nenhuma

pátria, encontra no escrever a sua habitação.130

128

KAFKA, op. cit., 1984, p. 103 129

ADORNO, op. cit., 2001 130

ADORNO, op. cit., 2001, p. 84 grifo nosso

94

Segundo Adorno, os jardins zoológicos são produtos do imperialismo colonial do

século XIX. Nele, o tigre, que sem parar vai de um lado para o outro na sua jaula, reflete com

a sua errância algo de humanidade, e, no momento em que o olho de um animal mortalmente

ferido encara diretamente o olhar do homem, este desvia daquele o seu olhar, dizendo para si

mesmo “é apenas um animal”, repetindo-se então, sem exceção, as crueldades infligidas aos

homens, em que os executores têm continuamente de se persuadir de “que é só um animal”.

Pois em uma sociedade repressiva, o próprio conceito de homem é a paródia da sua

humanidade.131

Kafka revela essa sensação de confinamento e de estar em condição pior do que a de

um animal neste trecho de seu livro Diários:

Acordei-me fechado em um recinto de forma quadrangular, que não permitia dar

senão um passo de comprido e outro de largura. Costumam encerrar de noite as

ovelhas em cercados semelhantes, mas não tão estreitos. O sol batia-me diretamente e

para proteger a minha cabeça, apertei-a contra meu peito e sentei-me no solo com as

costas curvadas. Que és? Sou miserável. Tenho duas tabuinhas apertadas, como um

torno, contra as fontes.132

É relevante a descrição quase cinematográfica do local, cujo espaço se assemelha a

uma cela de prisão, onde o detento mal consegue se mexer e não pode se deitar para dormir,

além de parecer que ele tem uma forquilha nas laterais da testa que lhe impede de olhar para

os lados - estratégia muito usada pelo trabalhador rural quando leva sua montaria (burros,

cavalos ou mulas) para a cidade.

Nas novelas animalistas, ao comparar a condição humana à condição do animal, Kafka

denuncia que o homem, em muitas ocasiões, recebe tratamento pior do que o destinado aos

animais.

131

ADORNO, op. cit., 2001 132

KAFKA, op. cit., s/data, p. 400 grifo nosso

95

Em Minima Moralia, Adorno acredita que “a tão ouvida afirmação de que os

selvagens, os negros ou os japoneses parecem animais, porventura macacos, contém a chave

do pogrom.” E o argumento habitual da tolerância, de que todos os homens e todas as raças

são iguais, é um bumerangue, pois considera as diferenças reais ou imaginárias como

estigmas.133

Mas, até que ponto a relação escrita, literatura, exclusão e contexto histórico podem

estar sendo representadas pelo silêncio ou a falta de voz dos animais protagonistas das três

novelas de Kafka?

4.4. Identidade e reificação

Sobre o espaço de Kafka pesa uma maldição: o sujeito fechado em si mesmo prende a

respiração, como se não pudesse tocar aquilo que não é como ele mesmo. A aproximação e a

interação são relativas e é necessário estabelecer um espaço que garanta a distância entre o si-

mesmo e o outro. Este si-mesmo vive unicamente na alienação, como resultado seguro do

sujeito que se fecha diante do estranho, tornando-se um cego resíduo do mundo. Quanto mais

o eu volta-se sobre si mesmo, tanto mais também se assemelha ao mundo de coisas que ele

exclui. A subjetividade alienada é transformada em coisa e levada a uma objetividade que se

exprime através da própria alienação. A fronteira entre o humano e o mundo das coisas torna-

se tênue. Segundo Adorno “esta é a razão de seu muito comentado parentesco com Paul Klee.

Kafka chamava sua maneira de escrever de rabisco”.134

O reificado torna-se signo gráfico, os

homens proscritos não agem por si mesmos, mas sim como se cada um tivesse caído em um

campo magnético que os atraísse para um comportamento idêntico, em escala, na qual o

homem não pode morrer, porque a morte é uma condição única do individuo, e por isso é

133

ADORNO, op. cit., 2001 134

ADORNO, op. cit., 1998, p 83

96

mais fácil apagar da memória, ou ser apagado da história, ou melhor, desaparecer como

aconteceu com Gregor Samsa e com Josefina, a cantora.

No seu texto mais popular sobre crítica cultural e sociedade, Adorno trata da

reificação, do totalitarismo e das conseqüências funestas de Auschwitz para o pensamento

humano:

Quanto mais totalitária for a sociedade, tanto mais reificado será também o espírito, e

tanto mais paradoxal será o seu intento de escapar por si mesmo da reificação (...) A

crítica cultural encontra-se diante do último estágio da dialética entre cultura e

barbárie: escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até

mesmo o conhecimento de porque hoje se tornou impossível escrever poemas.

Enquanto o espírito crítico permanecer em si mesmo, em uma contemplação auto-

suficiente, não será capaz de enfrentar a reificação absoluta, que pressupõe o

progresso do espírito como um de seus elementos, e que hoje se prepara para absorvê-

lo inteiramente. 135

Os responsáveis pelas câmaras de gás dos campos de concentração nazista não tinham

uma relação direta com a morte como o soldado da frente de batalha. Não havia a

possibilidade do olho no olho entre o executor e o executado. E as mãos do carrasco não

ficavam salpicadas de sangue. A perda desta relação humana, de proximidade da morte pelo

ato de matar, é mais uma característica da desumanização do homem. Porque permite a

matança ou as execuções em larga escala sem que haja contato humano. Envolta em total

higiene - os judeus eram levados aos quartos de banho onde se despiam inteiramente e eram

conduzidos em massa ao chuveiro -, a morte pelo gás era rápida e os corpos amontoados

desciam por uma plataforma que automaticamente os jogava no fosso para serem cremados –

situação semelhante à condução das carcaças dos animais sacrificados no Templo de

Salomão. Tudo era muito limpo, muito rápido e sem deixar vestígios aparentes.

Também dessa mesma maneira se extermina uma praga de insetos que infestam os

campos de plantação - aviões com inseticida despejam sua carga tóxica sobre a lavoura ou

135

ADORNO, op. cit., 1998, p. 26

97

carros-tanque espalham o fungicida nas ruas da cidade para acabar com os mosquitos, bem

como venenos são jogados nos bueiros e esgotos para matar as colônias de rato que infestam

os grandes centros urbanos.

No mundo reificado, homens e animais têm o mesmo valor para aqueles que detêm o

poder e podem ser exterminados de igual modo.

Se o castelo de um homem é o seu lar, então em “A construção”, ele deixa de ser.

Porque não há no mundo nenhum refúgio seguro contra os ataques e contra as investidas de

um poder desmedido, capaz de transformar o cotidiano de um ser humano em um pesadelo.

Mas, o tom da normalidade da escrita de Kafka, regida pela gramática e pela contenção, faz

contraste com o que é narrado de modo a tornar esse absurdo palpável e verossímil, além de

lhe acrescentar o horror através do understatement.

Em 1916, Oskar Walzel publica no Berliner Tagebucher, uma resenha sobre Der

Herizer (O foguista) e Die Verwandlung (A metamorfose) onde compara os procedimentos

literários de Kafka de conduzir o absurdo com os dos românticos alemães (Arnim, Chamisso e

Hoffmann). Diferentemente destes, que levam o leitor a se acostumar lentamente com o

absurdo, Kafka choca qualquer um que o lê com sua rapidez: por exemplo “na primeira frase

de A metamorfose, Kafka lança o leitor no assombroso”, como afirma Luiz Costa Lima.136

Em “A construção”, não é diferente. Só que nessa história Kafka cria um suspense

desesperador, e, quando parece que vai elucidá-lo, ele abandona o leitor - que se encontra tão

sozinho dentro do texto quanto a personagem protagonista da história dentro de sua toca -, e o

lança num abismo de possibilidades interpretativas graças a uma última frase que não leva a

conclusão alguma. Vejamos:

136

LIMA. Limites da voz (Montaigne, Schlegel, Kafka). Rio de Janeiro: Topbooks Editora, 2005.

98

(...) quando fiz as escavações experimentais, ele poderia ter-me escutado, embora

minha maneira de cavar produza pouco rumor; se ele, porém, me ouviu, eu deveria ter

notado alguma coisa – o animal precisaria enquanto trabalhava, parar de vez em

quando e prestar atenção. Mas tudo continuou inalterado. 137

Este tipo de narrativa não só rompe o compromisso com a verossimilhança, como

quebra o papel do autor de guia do seu leitor.

O absurdo abrupto nas histórias é tratado como sendo a mais natural das realidades. É

uma realidade para a qual o ser humano não está ainda consciente, uma realidade que pode

estar no interior de cada ser humano ou que no mundo exterior ainda está por vir.

137

KAKFA, op. cit., 1984, pp. 105, 106 grifo nosso

99

5. CONCLUSAO SOBRE OS PAPÉIS DA LITERATURA

(...) necessitamos de livros que sobre nós exerçam uma ação idêntica à de uma

desgraça que muito nos tenha afligido, tal como a morte de alguém que amássemos

mais do que a nós mesmos, como se fôssemos proscritos, condenados a viver nas

florestas, afastados de todos os nossos semelhantes, como um suicídio – um livro deve

ser o machado que quebre o mar congelado em nós. É assim que eu penso.

K.

Interpretar Kafka é um desafio. É um mergulho solitário num universo do qual

estamos distanciados no tempo e no espaço e, por mais que pesquisemos - buscando conhecer

os seus aspectos literários, lingüísticos, filosóficos, culturais, religiosos e políticos, entre

outros -, nossa leitura é mais uma dentre centenas das que já foram feitas. Mas fazê-lo é

buscar alguns sinais de que a literatura é capaz de despertar o pensamento e a reflexão do

leitor, e, quem sabe ainda, estabelecer com ele um diálogo, realizando o desejo expresso por

Kafka de que o texto literário “quebre o mar congelado em nós”,138

sobretudo em uma época

como a nossa, tomada pela globalização, onde os crimes, as aberrações e as atrocidades

fabricadas pela bestialidade do homem não passam de espetáculos banais para a maioria das

pessoas.

Talvez, mais do que nunca, ler Kafka seja reconhecer que os pesadelos da humanidade

se tornaram reais e comuns, e, na verdade, nunca a tirania das imagens e a submissão

alienante ao totalitarismo contribuíram tanto para a falsificação da vida comum, passando a

organizar de forma consciente e sistemática o império da passividade. Quem sabe, assim,

despertos por um texto concebido para libertar seus leitores, a golpes de machado, da apatia

da (a)normalidade, poderemos colaborar com as mudanças necessárias para a justiça social e a

vida verdadeiramente humana?

138

KAFKA, apud IZQUIERDO, s/data, p. 18

100

Em ensaios e conferências posteriores a 1933, Thomas Mann foi um dos porta-vozes

do debate sobre a contribuição que a arte, sob a forma da grande literatura, tinha a dar para a

discussão de uma ética mundial, deixando clara sua tomada de posição e reiterando sua

participação em favor de uma fórmula básica de humanidade e civilidade que, preservando

todas as diferenças culturais e políticas dos povos, unisse todos em igual medida e garantisse

a todos os que portassem uma face humana um mínimo de segurança legal, possibilidades de

ser feliz, reconhecimento da dignidade e inviolabilidade do indivíduo.139

Não é possível reproduzir aqui o caminho percorrido por Mann, mas um trecho do seu

discurso proferido em quinze cidades norte americanas, no ano de 1938, demonstra que, após

a Primeira Guerra Mundial e em meio às convulsões que anunciavam a Segunda Guerra,

escritores revoltados como ele com a crueza e os absurdos dos regimes totalitários, que

ganhavam terreno na Europa, começavam a dar voz a sua indignação e a destinar a seus textos

literários o papel de machado “capaz de romper o mar congelado que envolve o leitor”, como

Kafka tanto desejava. Para exemplificar a comoção e o envolvimento de alguns escritores,

leiamos um trecho do discurso proferido por Thomas Mann:

A dignidade do ser humano... não ficamos um pouco atordoados e ridículos diante

dessa expressão? Ela não cheira a um otimismo turvo e mofado, a uma retórica

comemorativa que pouco coincide com a verdade amarga e rude sobre o ser humano,

no dia-a-dia? – Nós a conhecemos, essa verdade. (...) Meu Deus, os homens... neles a

injustiça, a maldade, a crueldade, a tolice e a cegueira já estão suficientemente

comprovadas (...) Quem poderia deixar de apontar todos os vícios dessa estirpe

atrapalhada? (...)140

Em 1942, Thomas Mann engajou-se num projeto de propaganda política para escrever

com outros nove autores consagrados um texto para cinema sobre os Dez Mandamentos e sua

139

KUSCHEL, Os escritores e as escrituras. Trad. Paulo Astor Soethe et al. São Paulo: Edições Loyola, 1999. 140

THOMAS MANN, apud KUSCHEL, 1999, pp. 171, 172

101

profanação pelo fascismo hitlerista, cujo título é A lei. O filme não se realizou, mas um livro

foi editado em 1943, e sobre o seu trabalho, temos um trecho de seu próprio diário:

Escrevi a história em menos de dois meses, um prazo curto para meu tempo de

trabalho, e quase sem correções; com ela, nasceu um ritmo descompromissado e leve,

ao contrário do tédio quase científico de José. Durante o trabalho, ou mesmo antes,

dei-lhe o título A lei, com o qual não se deve indicar tanto o Decálogo - como a lei

moral por excelência - mas a própria civilização humana.141

A partir da leitura dos aforismos, cartas, diários, de alguns contos e textos curtos de

Kafka, alguns críticos literários como Enrique Mandelbaum, Robert Alter e Karl-Josef

Kuschel revelam um contexto em que se confrontam os anseios de Kafka por uma tradição

judaica perdida e a realidade pequeno-burguesa do judeu assimilado, que resulta por sua vez

numa cisão entre arte e vida e entre literatura e vida burguesa. Essa ruptura não era

desconhecida por Kafka, tanto no seu desespero existencial como na sua produtividade

literária. Em junho de 1921, escreve a Max Brod sobre os escritores judeus-alemães:

Afastar-me do judaísmo... é o que queriam quase todos os que começaram a escrever

em alemão; queriam sim, mas com as perninhas traseiras ficaram presos ao judaísmo

do pai e com as perninhas dianteiras não conseguiram encontrar solo novo. (...)

Viviam entre três impossibilidades (...) a impossibilidade de não escrever, a de

escrever em alemão, a de escrever de maneira diferente, e quase se poderia acrescentar

uma quarta impossibilidade, que é a de escrever (pois o desespero não podia ser

atenuado pela literatura, era inimigo da vida e da literatura, escrever era aí um ato

interino, como para alguém que escreve seu testamento pouco antes de se suicidar –

um ato interino que podia muito bem durar a vida inteira). Logo essa literatura era sob

todos os aspectos impossível, uma literatura cigana, que seqüestrara a criança alemã

de seu berço e a preparara de qualquer jeito, apressadamente, pois é preciso que

alguém dance na corda bamba.142

Essa quarta impossibilidade, a de escrever, foi a que Kafka vivenciou. Suas crises

devido à impossibilidade da escrita eram constantes. Nas páginas do seu Diários, ele reclama

141

THOMAS MANN, apud KUSCHEL, 1999, p. 175 142

KAFKA, apud KUSCHEL, 1999, p. 51

102

freqüentemente da falta de inspiração, da insônia e das dores de cabeça que lhe dificultam a

escrita, da falta de privacidade e de tempo para escrever. Várias vezes, pede o afastamento do

emprego, alegando problemas de saúde, para dedicar-se inteiramente à escrita, e descreve seu

desespero quando vê sua licença expirar sem ter conseguido produzir uma página sequer.

Segundo Luiz Costa Lima, apesar de ser contemporâneo da fase heróica das

vanguardas, Kafka tem da literatura uma visão bem diversa da que as vanguardas favoreciam.

Desde o dadaísmo, a disposição básica das vanguardas consistia em romper com a

territorialidade assegurada às artes e à literatura. E independentemente das posições políticas

que viriam a assumir, para os vanguardistas se tratava de reinvestir de liberdade o traço, o

som e a palavra, de romper diques e comportas que diferenciavam e limitavam o produto de

arte, de trazê-lo de volta à praça pública e ao cotidiano. Para Kafka, a literatura não se afasta

da busca de fixar a imagem interior e, por isso, se for encarada do ponto de vista das

vanguardas, o seu proceder é uma atitude tímida e provinciana, 143

como podemos verificar

pela leitura de suas próprias palavras:

O sentido para a apresentação de minha vida interior, que tem algo de onírico

(traumhaft), faz tudo mais retroceder ao acessório, se atrofiou de maneira terrível e

não cessa de se atrofiar. Nada diverso poderá jamais me satisfazer. 144

Tomando a própria individualidade como matéria-prima essencial para a escrita, Kafka

se enraíza no circuito de si mesmo, onde nada é visto sem que passe para sua inscrição

interna.

Esse fazer da literatura o seu próprio corpo, território onde planta suas verdadeiras

raízes é compreensível se considerarmos tudo o que foi dito até agora, nos capítulos

anteriores, de que Kafka é uma pessoa em choque constante com suas origens étnicas,

143

LIMA, op. cit., 2005 144

KAFKA, “Cartas a Felice”, apud LIMA, 2005, p. 256

103

educativas e religiosas, lingüisticamente desenraizado, em permanente estado de não

pertencimento social, familiar e afetivo, além de sofrer as conseqüências da exclusão social

pela qual passa o povo judeu, sob os regimes totalitários que dominam a Europa, no alvorecer

do século XX. Esse é o ponto de vista de Luiz Costa Lima sobre essa questão em Kafka:

A seu propósito, poder-se-ia mesmo falar em um extremo egoísmo “neurótico”: nada é

visto sem que passe para sua inscrição interna. Mas dizê-lo é demasiado pouco; a

qualidade própria desta internalização consiste na metamorfose que opera; por ela, o

obsessivo olhar para dentro se transformara em objeto, o idioleto do eu em linguagem

para o outro.(...)145

As composições de Kafka demonstram que aquele que se ocupa com os textos

kafkianos não é confrontado com a problemática religiosa direta, mas com a questão da

própria realidade que é obstada por numerosas outras possibilidades ou cujo sentido é posto

radicalmente em dúvida. Ou seja, não é além dos textos, mas em sua própria estrutura que está

o enigma kafkiano da realidade.

O conto Na colônia penal é uma história que revela a importância da escrita para

Kafka, do até que ponto um texto pode estar relacionado à realidade e à vida de uma pessoa,

além de demonstrar o peso de cada palavra. Nele, um réu é condenado à pena máxima numa

máquina de tortura e morte, na qual o culpado é deitado e amarrado de bruços para que

agulhas sejam enfiadas na carne de suas costas e inscrevam/escrevam a sua sentença. A

violência da cena e a crueza do fato narrado são tantos que numa audição realizada por Kafka,

num teatro em Berlim em 1923, o grande público ali reunido, pouco a pouco, foi-se

levantando da platéia e se retirando da sala horrorizado com o que acabara de ouvir, como

descrito na biografia de Dora Diamant.

145

LIMA, op. cit., 2005, p. 256

104

Michael Löwy, em seu livro Franz Kafka, sonhador insubmisso, considera Na colônia

penal um dos contos mais impressionantes do autor, pela “violência sóbria e contida do

propósito”, onde a autoridade apresenta a sua pior face e o leitor estarrecido com o que lê não

tem para onde fugir. E considera que:

é difícil ler esse relato tenebroso após 1945 sem pensar nas “indústrias da morte” do

nazismo, no extermínio por meios técnicos aperfeiçoados de milhões de judeus e

ciganos. Vários pensadores, desde Adorno a George Steiner, sugeriram, à luz da

experiência do Shoah, que se trataria do escrito mais profético de Kafka.146

E Löwy acrescenta que, mais recentemente, Enzo Traverso ao fazer a leitura de Na

colônia penal parecia anunciar:

os massacres anônimos do século XX, nos quais a matança torna-se uma operação

técnica cada vez mais subtraída à intervenção direta dos homens(...) O “arado”

imaginado por Kafka*, que gravava sobre a pele da vítima sua sentença de morte,

remete de maneira impressionante à tatuagem dos Häftlinge (detentos) em Auschwitz,

esse número indelével que fazia sentir “a condenação escrita na própria carne”,

segundo Primo Levi.147

Segundo Sérgio Kokis, a literatura de Kafka é uma literatura de participação,

engajamento. Mas não se trata de uma participação por um distante convite descritivo, em que

o leitor toma conhecimento de histórias que o divertem e fazem-no conhecer novas facetas da

vida cotidiana. É, sim, como afirma Kokis “uma participação que não é convite, mas

exigência, pois a arte dialoga com o homem, não se dando gratuitamente, a simbolizar uma

realidade que é esforço humano”. 148

Sua literatura é uma literatura que tira o leitor do papel de espectador passivo do texto

literário, exigindo dele uma reflexão e uma ação posterior. Ou melhor dizendo, tira a

146

LÖWY, Franz Kafka, sonhador insubmisso. Trad. Gabriel Cohn. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2005, p.

82. 147

TRAVERSO, apud LÖWY, 2005, p. 82.

*Kafka não só imaginou essa máquina de tortura como a desenhou (podemos ver uma reprodução deste seu

desenho na página 102 da obra citada de Michael Löwy) 148

KOKIS, Franz Kafka e a expressão da realidade. Rio de Janeiro, Guanabara: Tempo Brasileiro, 1967

(Coleção Temas de Todo o Tempo, v. 7).

105

inocência do leitor e leva-o a uma postura crítica do mundo, da sociedade e da realidade em

que ele vive.

Michael Löwy, por sua vez, levanta a hipótese de que o autor tcheco possuía um ethos

libertário que o levava a estar na cena das manifestações de mudança política, social e

intelectual do seu tempo, deixando claro, porém, que esse engajamento de Kafka se

transformava em ação apenas no âmbito da literatura, através de sua escrita. Assíduo

freqüentador dos colóquios e debates realizados pelos intelectuais e pensadores da República

de Weimar, assinante de jornais e revistas que lançavam e disseminavam as idéias

revolucionárias da época, Kafka era um observador crítico, cujo raciocínio arguto muitas

vezes antecipou as convulsões sociais do mundo em que vivia.

Vários relatos de seus contemporâneos fazem referência à simpatia que Kafka

devotava aos socialistas libertários tchecos, e Max Brod chega a afirmar, na biografia que

escreveu sobre o escritor tcheco, que ele freqüentava com assiduidade as reuniões do Klub

Mladych (Clube dos Moços), organização libertária, antimilitarista e anticlerical, freqüentada

por vários literatos tchecos, tais como Stanislas Neumann, Michal Mares, Jaroslav Hasek e

Frana Sramek, acrescentando que Kafka assistia com freqüência, em silêncio, às reuniões e

que Michal Kacha - um dos fundadores do movimento anarquista tcheco -, o achava simpático

e o chamava de “Klidas”, que se poderia traduzir por “taciturno”.149

Pois, apesar de ser um

homem sensível e aberto aos problemas sociais, Kafka não pertencia a nenhuma das

organizações anarquistas e jamais intervinha nas discussões, participando como ouvinte das

exposições.

Por isso, Löwy acredita que a palavra “política” seja muito pouco apropriada à Kafka,

salientando que o que interessava a ele estava muito além do que se costuma denominar

149

BROD, apud LÖWY, 2005, p. 25

106

habitualmente por esse termo - os partidos políticos, as eleições, as instituições, os regimes

constitucionais -, e que o termo “crítica” seja o mais adequado. E complementa seu ponto de

vista dizendo:

Kafka foi acusado com freqüência – por Georg Lukács, Günter Anders e outros – de

pregar, pelo seu pessimismo radical, o fatalismo e a resignação. Ora numa carta ao seu

amigo Oskar Pollak de 27 de janeiro de 1904, ele explicava assim a sua concepção do

papel da literatura: um livro somente tem interesse, escrevia ele, quando é “um soco

no crânio que nos desperta (...), uma machadinha que rompe em nós o mar de gelo”.

Isso não parece muito um apelo à resignação...150

A preocupação de Kafka com seus semelhantes, com o bem-estar das pessoas que o

cercavam (amigos, noivas, familiares, colegas de trabalho e conhecidos) e com a realidade

social, aparece de maneira destacada no texto da biografia de Dora Diamant, de um modo que

revela o caráter, os sentimentos e o jeito de ser demasiadamente humano do escritor, como

podemos ler a seguir:

Cuando Kafka regresaba a Steglitz trás pasar un dia en la ciudad se encontraba al

borde del desmayo. A menudo estaba más que deprimido, estaba sublevado. El viaje

de Kafka a la ciudad, afirmaba Dora, solía ser una especie de Gólgota para él. Y

comparar la empatía de Kafka con el sufrimiento de los demás con el monte al cuál

subió Jésus portando la cruz y en el cual fue crucificado no era ninguna exageración,

insistió Dora: “Con Kafka no había exageración posible”.151

Gustav Janouch escreveu um epílogo para a segunda edição de seu livro Conversas com

Kafka, um resumo da influência que Kafka exerceu em sua vida, que é muito semelhante às

experiências evocadas por Dora Diamant. Vejamos o texto:

El sonriente Franz Kafka, a quien ya rondaba la muerte en los años en que lo conocí,

me hizo sentir y pensar. En el plano espiritual, fue la figura más grande, y también de

mayor fuerza formativa, de mis años de juventud, un hombre que batalló de veras por

la verdad y por preservar la vida. 152

150

LÖWY, op. cit.,2005, p. 15 151

DIAMANT, op. cit., 2005, p. 89 152

JANOUCH, apud. DIAMANT, 2005, p. 69 grifo nosso

107

Acreditamos que ler Kafka não é fácil para muitos leitores porque a conclusão da

leitura de alguns de seus textos “obrigam-nos a pensar”, a sair da alienação a que a rotina

capitalista, globalizante nos acostuma cotidianamente. Ler Kafka não é entretenimento, nem

distração; muito pelo contrário, é um exercício de sobrevivência, em que muitos reconhecem

medos, conflitos, sentimentos de exclusão, frustração, culpas, insignificância, muito próprios

da condição humana de nossas épocas moderna e pós-moderna; enfim, é uma atitude de

enfrentamento das dificuldades da vida, imaginando que é possível vencê-las.

Na minha opinião, Kafka pensava que era possível vencer a opressão, o jugo do

totalitarismo, a repressão patriarcal, o poder político, a injustiça social, os absurdos da

burocracia, através da participação individual. Cada ser humano fazendo a sua parte, da

melhor maneira que sabia e podia fazê-lo, possibilitaria o surgimento de uma sociedade

consciente de seus valores humanos e menos sujeita à subjugação. Seria uma sociedade com

cidadãos capazes de lutar contra quaisquer tipos de humilhação, exclusão e, sobretudo, de

evitar a desumanização, que beira à animalização, que espreita cada homem ao abaixar sua

cabeça e se submeter de forma subserviente à imposição de outro homem.

É somente através da manifestação de cada ser humano, do diálogo e da comunicação

entre pessoas e povos, sejam de quaisquer raças, credos, idiomas e espaços geográficos, que é

possível garantir a qualidade da vida humana.

Kafka cumpriu o seu papel nesta luta, conquistando através da literatura uma

identidade inigualável, viva e tão atual que parece que o escritor tcheco está escrevendo, aqui

e agora, sobre os horrores do século XXI que estão levando as pessoas à perda de suas

características humanas.

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KOREN E NEGEV, Yehuda e Eilat. Gigantes no coração. A emocionante história da Trupe

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KOKIS, Sérgio. Franz Kafka e a expressão da realidade. Rio de Janeiro, Guanabara: Tempo

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KUSCHEL, Karl-Josef. Os escritores e as escrituras – retratos teológico-literários. Trad.

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LIMA, Luiz Costa. Limites da voz (Montaigne, Schlegel, Kafka). Rio de Janeiro: Topbooks

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LÖWY, Michael. Franz Kafka, sonhador insubmisso. Trad. Gabriel Cohn. Rio de Janeiro:

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PAWEL, Ernest. O pesadelo da razão – uma biografia de Franz Kafka. Trad.Vera Ribeiro.

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PASSETTI, Edson (org.). Kafka-Foucault, sem medos. Cotia, São Paulo: Ateliê Editorial,

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PERALTA, Alexandre. Comece em propaganda com uma idéia – como ser um publicitário

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POLIAKOV, Ieon. Do Anti-Sionismo ao Anti-Semitismo. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São

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VICENTINO, Cláudio. História Geral. São Paulo: Editora Scipione, 1997.

ANEXO

O PRÍNCIPE PERU

Autor: Rabi Nakhman de Bratzlav

Certa vez, um príncipe real enlouqueceu e pensou que era um peru. Ele se sentia

compelido a sentar-se nu, debaixo da mesa, bicando ossos e migalhas de pão, como um peru.

Todos os médicos da Corte desistiram de curá-lo dessa loucura, e o rei sentia um enorme

pesar.

Um sábio veio, então, e disse: “Eu vou me encarregar de curá-lo”.

O sábio despiu-se e sentou-se nu debaixo da mesa, próximo ao príncipe, bicando

migalhas e ossos.

“Quem é você?”- perguntou o príncipe. “O que está fazendo aqui?”

“E você?”- respondeu o sábio. “O que está fazendo aqui?”

“Eu sou um peru”- disse o príncipe.

“Eu também sou um peru”- respondeu o sábio.

Eles permaneceram sentados assim por algum tempo, até que se tornaram bons

amigos. Um dia, o sábio sinalizou aos servos do rei para que lhe trouxessem camisas. Ele

disse ao príncipe: “O que te faz pensar que um peru não possa vestir uma camisa? Você pode

vestir uma camisa e ainda assim continuar sendo um peru”. Com isso, os dois vestiram

camisas.

Depois de algum tempo, o sábio sinalizou-lhes novamente, e os servos atiraram-lhe

dois pares de calcas. Tal como antes, ele disse: “O que te faz pensar que você não possa ser

um peru se vestir calças?”.

O sábio prosseguiu dessa forma, até que ambos estavam completamente vestidos.

Então, ele sinalizou novamente aos servos, que lhes trouxeram da comida servida à mesa.

Novamente, o sábio disse: “O que te faz pensar que você deixaria de ser um peru se comesse

boa comida? Você pode comer o que quiser e continuar sendo um peru”. Ambos comeram a

refeição. Finalmente, o sábio disse: “O que te faz pensar que um peru precisa sentar debaixo

da mesa? Até mesmo um peru pode sentar-se à mesa”. O sábio prosseguiu dessa forma, até

que o príncipe ficou completamente curado.153

153

MANDELBAUM, op. cit., 2003, p. 61