As origens da Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga ... · o precoNceito” José sócrates...

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4 As origens da Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga: O think tank que conduziu ao melhor modelo do mundo “NEM SEMPRE VENCE O PRECONCEITO” JOSé SóCRATES Agradeço ao Sérgio Oliveira, diretor da revista Dependências, o simpático- e signifi- cativo- convite que me faz para escrever um texto a propósito da aprovação da Estraté- gia de Combate á Droga que foi aprovada há dezassete anos. Como todas as refor- mas essa estratégia teve uma história políti- ca. Quando decidi, ainda em 1988, consti- tuir uma comissão para a elaboração de uma estratégia nacional de luta contra a droga, tinha no espírito duas ideias centrais. A primeira era pragmática: aceitar a existên- cia das drogas , mas diminuir o seu impacto na sociedade- na saúde dos cidadãos, na violência que a sua utilização sempre acar- reta e no impacto que provoca no emprego. Este foi um ponto decisivo. A retórica da “guerra contra a droga” que tinha marcado as ultimas três décadas do século anterior, estava esgotada tendo falhado os seus ob- jetivos como mostravam todos os indicado- res. Era chegado o momento para uma vi- são mais realista baseada na” redução de danos”. A segunda era humanista: o consumi- dor devia ser visto como doente. O combate á droga devia concentrar-se no combate a doença não no combate ao doente. Daí re- sultavam duas consequências. Uma- retirar os consumidores da perseguição criminal e dos tribunais, poupando-os a esse estigma que nada resolvia mas que, pelo contrario, os afastava dos serviços de saúde públicos. A outra – desenvolver uma política publica mais incidente na procura como forma de tratar e não só de reprimir. É claro que estas intenções esbarra- vam em dois obstáculos. Por um lado os preconceitos sociais, criados por muitos anos de um discurso político que, deixan- do de atender á realidade, se mantinha apenas com base em fundamentos ideo- lógicos. Por outro as convenções interna- cionais, que Portugal tinha assinado, im- punham a ilegalidade do consumo. Ponto importante este, já que qualquer decisão quanto a liberalização do consumo se mostrava não só incompatível com os textos legais como também teria efeitos perversos se decidido apenas num Pais, á revelia do que se passava no resto do Mundo. Foi aqui que a Comissão prestou um serviço inestimável ao País ao fazer as suas propostas. Desde logo, mostrou como o saber científico estava distante da vulgar oratória política. Mas, porventura mais importante, com a fundamentação técnica que apresentou, deu, aos cida- dãos e aos responsáveis políticos, a segu- rança técnica necessária para avançar numa direção diferente e inovadora. Lem- bro, com agrado e simpatia os nomes dessa comissão aos quais fiquei ligado por laços de amizade. Ela foi presidida por Alexandre Quintanilha, e dela fizeram par- te Lourenço Martins ,Cândido Agra ,Daniel Sampaio, João Goulão, Joaquim Rodri- gues, Júlio Machado Vaz, Manuela Mar- ques e Nuno Miguel. O então coordenador do “projeto vida “ Alexandre Rosa teve uma participação importante no desenvol- vimento do trabalho. Todavia, passado todos estes anos, quero deixar uma nota de agradecimento aos que construíram a solução jurídica mais inovadora, que consistiu em deixar de cri- minalizar o consumo, passando a trata-lo não como crime, mas como um ilícito de mera contra-ordenação social. Essa solu- ção permitiu tirar os consumidores dos tribu- nais , aproximando-os dos serviços públicos de saúde e, ao mesmo tempo, cumprir os preceitos legais das convenções das Na- ções Unidas a que estávamos e estamos vinculados. O autor da formulação jurídica definitiva foi o Dr. Pedro Silva Pereira que na altura desempenhava funções no meu gabinete e que acompanhou a redação final do documento que se veio a chamar” Estra- tégia Nacional de Combate á Droga” . É, no entanto, justo dizer, que foi nos estudos jurí- dicos do dr. Rui Pereira, que há muitos anos dedicava atenção a este problema da dro- ga, que fomos buscar a inspiração para a solução que veio a ser adotada. O embaixa- dor Mendonça e Moura, desempenhou nes- te domínio um papel muito relevante que hoje recordo, com gosto. A política é, por natureza, ação. Ela lida com o contingente, com o risco, com a incerteza. É por isso que é inteiramente merecido lembrar a coragem que o então Primeiro Ministro , António Guterres , mos- trou quando decidiu, a poucos meses das eleições legislativas, fazer aprovar em Conselho de Ministros tão importante e significativa mudança política. Apesar dos receios, desconfianças e da muita oposi- ção que na altura enfrentámos, com as habituais previsões catastróficas de que nos transformaríamos rapidamente num “paraíso das drogas”, o “caso português” é hoje apontado como exemplo a seguir e alvo dos elogios unânimes por parte da- queles que há muitos anos acompanham as questões da droga. Os resultados são animadores e essa alteração produziu mudanças. Afinal, nem sempre a política é o “eterno convívio com a decepção”. A par das mudanças na lei da interrupção voluntária da gravidez, da reprodução me- dicamente assistida, do casamento entre pessoas do mesmo sexo e da mais recen- te lei da adoção, a estratégia de combate á droga aprovada em 1999, fica como símbolo de mudanças em que o ideal hu- manista é capaz de vencer o medo, o pre- conceito e a indiferença.

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4As origens da Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga:

O think tank que conduziu ao melhor modelo do mundo

“Nem sempre veNce

o precoNceito”

José sócrates

Agradeço ao Sérgio Oliveira, diretor da revista Dependências, o simpático- e signifi-cativo- convite que me faz para escrever um texto a propósito da aprovação da Estraté-gia de Combate á Droga que foi aprovada há dezassete anos. Como todas as refor-mas essa estratégia teve uma história políti-ca. Quando decidi, ainda em 1988, consti-tuir uma comissão para a elaboração de uma estratégia nacional de luta contra a droga, tinha no espírito duas ideias centrais. A primeira era pragmática: aceitar a existên-cia das drogas , mas diminuir o seu impacto na sociedade- na saúde dos cidadãos, na violência que a sua utilização sempre acar-reta e no impacto que provoca no emprego. Este foi um ponto decisivo. A retórica da “guerra contra a droga” que tinha marcado as ultimas três décadas do século anterior, estava esgotada tendo falhado os seus ob-jetivos como mostravam todos os indicado-res. Era chegado o momento para uma vi-são mais realista baseada na” redução de danos”.

A segunda era humanista: o consumi-dor devia ser visto como doente. O combate á droga devia concentrar-se no combate a doença não no combate ao doente. Daí re-sultavam duas consequências. Uma- retirar os consumidores da perseguição criminal e dos tribunais, poupando-os a esse estigma que nada resolvia mas que, pelo contrario, os afastava dos serviços de saúde públicos. A outra – desenvolver uma política publica mais incidente na procura como forma de tratar e não só de reprimir.

É claro que estas intenções esbarra-vam em dois obstáculos. Por um lado os preconceitos sociais, criados por muitos anos de um discurso político que, deixan-do de atender á realidade, se mantinha apenas com base em fundamentos ideo-lógicos. Por outro as convenções interna-cionais, que Portugal tinha assinado, im-punham a ilegalidade do consumo. Ponto importante este, já que qualquer decisão quanto a liberalização do consumo se mostrava não só incompatível com os textos legais como também teria efeitos perversos se decidido apenas num Pais, á revelia do que se passava no resto do Mundo. Foi aqui que a Comissão prestou um serviço inestimável ao País ao fazer as suas propostas. Desde logo, mostrou como o saber científico estava distante da vulgar oratória política. Mas, porventura mais importante, com a fundamentação técnica que apresentou, deu, aos cida-dãos e aos responsáveis políticos, a segu-rança técnica necessária para avançar numa direção diferente e inovadora. Lem-bro, com agrado e simpatia os nomes dessa comissão aos quais fiquei ligado por laços de amizade. Ela foi presidida por Alexandre Quintanilha, e dela fizeram par-te Lourenço Martins ,Cândido Agra ,Daniel Sampaio, João Goulão, Joaquim Rodri-gues, Júlio Machado Vaz, Manuela Mar-ques e Nuno Miguel. O então coordenador do “projeto vida “ Alexandre Rosa teve uma participação importante no desenvol-vimento do trabalho.

Todavia, passado todos estes anos, quero deixar uma nota de agradecimento aos que construíram a solução jurídica mais inovadora, que consistiu em deixar de cri-

minalizar o consumo, passando a trata-lo não como crime, mas como um ilícito de mera contra-ordenação social. Essa solu-ção permitiu tirar os consumidores dos tribu-nais , aproximando-os dos serviços públicos de saúde e, ao mesmo tempo, cumprir os preceitos legais das convenções das Na-ções Unidas a que estávamos e estamos vinculados. O autor da formulação jurídica definitiva foi o Dr. Pedro Silva Pereira que na altura desempenhava funções no meu gabinete e que acompanhou a redação final do documento que se veio a chamar” Estra-tégia Nacional de Combate á Droga” . É, no entanto, justo dizer, que foi nos estudos jurí-dicos do dr. Rui Pereira, que há muitos anos dedicava atenção a este problema da dro-ga, que fomos buscar a inspiração para a solução que veio a ser adotada. O embaixa-dor Mendonça e Moura, desempenhou nes-te domínio um papel muito relevante que hoje recordo, com gosto.

A política é, por natureza, ação. Ela lida com o contingente, com o risco, com a incerteza. É por isso que é inteiramente merecido lembrar a coragem que o então Primeiro Ministro , António Guterres , mos-trou quando decidiu, a poucos meses das eleições legislativas, fazer aprovar em Conselho de Ministros tão importante e significativa mudança política. Apesar dos receios, desconfianças e da muita oposi-ção que na altura enfrentámos, com as habituais previsões catastróficas de que nos transformaríamos rapidamente num “paraíso das drogas”, o “caso português” é hoje apontado como exemplo a seguir e alvo dos elogios unânimes por parte da-queles que há muitos anos acompanham as questões da droga. Os resultados são animadores e essa alteração produziu mudanças. Afinal, nem sempre a política é o “eterno convívio com a decepção”. A par das mudanças na lei da interrupção voluntária da gravidez, da reprodução me-dicamente assistida, do casamento entre pessoas do mesmo sexo e da mais recen-te lei da adoção, a estratégia de combate á droga aprovada em 1999, fica como símbolo de mudanças em que o ideal hu-manista é capaz de vencer o medo, o pre-conceito e a indiferença.

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LeoNor BeLeza

Em 1985, quando iniciei as funções de ministra da saúde, foi tomada a deci-são de passar para o departamento por que passei a ser responsável a área da toxicodependência, até aí situada no Mi-nistério da Justiça.

Esta passagem de responsabilida-des tinha e tem uma leitura óbvia: há um problema de saúde/doença, cuja abor-dagem cabe aos profissionais de saúde e às estruturas que dela se ocupam.

Na sequência da passagem, o Mi-nistério da Saúde dedicou esforços in-tensos, meios e estruturas ao tratamen-to na sua perspetiva daquilo que lhe passava a ser confiado. E foi buscar os melhores profissionais de que podia dis-por.

Data de então, nomeadamente, a criação e construção do Centro das Tai-pas e de estruturas compreensivas de abordagem de dependências que trans-formam as pessoas em doentes. Essas estruturas, então criadas, compreen-diam as várias fases necessárias para um processo de desintoxicação e de re-cuperação para uma vida de plena auto-nomia.

Recordo hoje, com satisfação, a qualidade inexcedível dos profissionais que agarraram esta luta contra a depen-dência como a sua missão mais impor-tante, bem como as capacidades que puderam ser montadas em pouco tempo para “ler” a realidade com olhos novos. Antes do mais, era preciso dar os instru-mentos necessários para que a doença fosse evitada e, uma vez instalada, para que fosse combatida.

Em suma, a obrigação, sem mais, de quem tinha responsabilidade pela saúde dos cidadãos.

carLos vascoNceLos

Que opinião lhe suscita o modelo português, assente na estratégia nacional contra a droga e as toxi-codependências?Carlos Vasconcelos (CV) – Penso

que o modelo está correcto. Está adap-tado às necessidades e à situação de dependência dos nossos utentes. O fac-to de, neste momento, o consumo das substâncias ilícitas não implicar prisão permite que nos concentremos mais no tratamento.

Considera que terá sido a humani-zação e o pragmatismo que mar-caram a diferença na construção da estratégia?CV – Exactamente. Aliás, essa ques-

tão de fundo acaba por ter como reflexo o que referi atrás: os utentes aparecem, vêm tratar-se e estamos mais à vontade para levar a cabo esses cuidados.

A partir da vigência da estratégia, a intervenção parece ter-se cen-trado cada vez mais na evidên-cia…CV – Diria que a descriminalização

dos consumos de drogas ilícitas foi um marco mas a estratégia não chegou ao tratamento…

Comunga, entendo, que terá havi-do quem pretendesse destruir um trabalho que tanto custou a cons-truir…CV – Penso exactamente assim…

De facto, o processo de destruição este-ve em curso. Refiro-me concretamente à falta de recursos humanos nos nossos serviços, designadamente a falta de mé-dicos e de enfermeiros e a dificuldade

que temos em repor elementos que vão saindo por reforma, doença ou até fale-cimento. Ainda por cima num contexto de contínuo alargamento da rede desde os anos 90, o número de técnicos tem vindo a ficar mais reduzido. De qualquer forma, falaria em desmantelamento or-ganizativo e em enfraquecimento de re-cursos. Do ponto de vista político, verifi-ca-se no momento actual alguma preo-cupação em relação às condições em que temos vindo a trabalhar nos últimos anos. Nasceu um movimento de pes-soas, de técnicos do ex-IDT que está preocupado com esses aspetos organi-zacionais, e que publicou um manifesto, “o Manifesto de Aveiro” de que sou sig-natário. Propomos uma alteração signifi-cativa em termos organizativos que per-mita melhorar a qualidade dos cuidados. A melhoria é um imperativo lógico, até porque há cada vez mais situações em carteira em que temos que intervir. Des-de logo, a questão do álcool, que foi um desafio enorme porque o número de al-coólicos no nosso serviço, tendo em conta sobretudo as primeiras admis-sões, cresceu exponencialmente. Exis-tem muito mais alcoólicos a querer tra-tar-se, e outros que provêm do clínico geral, dos tribunais e, nestes casos, es-tamos a falar de uma tipologia de uten-tes que obriga a mais recursos médicos, porque, geralmente, têm intercorrências físicas de gravidade. E se formos depois para as outras dependências, como os consumidores de haxixe enviados pelas comissões de dissuasão, o tabaco e por exemplo as dependências sem drogas como o jogo patológico, que também es-tão na ordem do dia, temos necessida-des acrescidas de formação de técni-cos… Temos um conjunto novo de va-lências e não temos gente suficiente para garantir a desejada qualidade e ca-pacidade de resposta. Finalmente não nos podemos esquecer que éramos um serviço especializado no tratamento de heroinómanos, pioneiro e modelar a ní-vel mundial e que também há muito a fa-zer no sentido de restaurar os níveis de qualidade que nos caraterizavam.

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6 “o proJecto viDa(Uma etapa Na LUta coNtra as DepeNDêNcias)”

feytor piNto

Foi por volta de 1983 que o fenómeno da droga começou a espalhar-se entre nós. Curiosamente atingiu mais pessoas, jovens ou mais velhos, das classes média e alta, do que os marginais de alguns lugares da peri-feria. A razão era simples: o produto era caro e muito poucos conseguiam adquiri-lo para um consumo habitual. Eu acabava de entrar na Pastoral da Saúde da Igreja Cató-lica. Tendo-se constituído um Conselho Na-cional para a luta contra a droga, foi pedido à Igreja um representante que pudesse dar a visão dos cristãos neste difícil problema que afligia a sociedade. Foi sugerido o meu nome e, desde esse tempo, comecei a estar envolvido na luta contra as dependências. Tive nessa altura dois mestres eminentes: a Dr.ª Ana Vicente consultora da ministra Dr.ª Leonor Beleza e o Juiz Armando Leandro com quem já trabalhava em programas de natureza social. Recordo inúmeras conver-sas que com eles travei acerca do consumo de produtos alucinogénios entre as novas gerações.

Em outubro de 1992 fui chamado à Pre-sidência do Conselho de Ministros. Era-me proposto continuar a obra do Dr. Armando Leandro. Não me foi fácil aceitar. Sentia-me sem a preparação suficiente e as minhas preocupações estavam mais centradas no processo educativo do que no tratamento destas dependências. Precisava também do “agreement” do Patriarca de Lisboa de quem hierarquicamente dependia. O sr. D. António Ribeiro concordou, dizendo-me que

a Igreja não podia estar à margem dos gran-des problemas que se colocavam na socie-dade, sobretudo com as jovens gerações. Por outro lado, como dizia o Dr. Armando Leandro é preciso cuidar dos problemas so-bretudo a montante, descendo apenas de-pois a jusante. Era o problema da educação dos mais novos. Finalmente a minha even-tual impreparação seria neutralizada com o estudo, as experiências, e o apoio de dois grandes médicos que recordo constante-mente, o Dr. Nuno Miguel e o Dr. Luís Patrí-cio, membros do Centro das Taipas. Com estes médicos, especialistas na área das to-xicodependências e com as equipas dos CAT’s que trabalhavam no terreno, aprendi a lidar com o problema da droga e da forma de o enfrentar, não apenas no tempo do tra-tamento, mas sobretudo no esforço de uma prevenção eficaz. Se, ao tempo, havia entre os jovens, 5% de consumidores e muito de-pendentes, os outros 95% não consumiam e tinham critérios de resistência ao consu-mo. Dar atenção a estes, foi uma opção prioritária. Ao ser criado o Alto Comissariado para o Projecto de Vida, desde logo se intro-duziram formas de organização e desafios de intervenção que deram ao Projecto uma relevante importância.

Na luta contra a droga, era necessário mobilizar toda a sociedade. Para fazê-lo in-tegraram-se na luta contra a droga, oito mi-nistérios: a Educação, a Saúde, a Seguran-ça Social e o Trabalho mas também a Defe-sa, a Marinha, a Justiça, a Administração In-terna e a Juventude ligada à Presidência do Conselho de Ministros. O Projecto de Vida queria prevenir os consumos, através de uma informação suficiente e sobretudo de uma sensibilidade que permitisse prevenir consequências graves. Tinha também a preocupação de “libertar quem se tivesse deixado apanhar”. A arte médica com espe-cialização assumida voltou-se definitiva-mente para a cura das adições, prestando formas de tratamento que recuperavam as pessoas. Para além disso, porém, havia que lidar com um conhecimento suficiente do tráfico, dos comportamentos desviantes, das influências sobre a população mais jo-vem. A coordenação destes oito ministérios, obrigou a uma reunião semanal, às terças-feiras, com todos os representantes destas áreas de intervenção. Esta coordenação constituiu a forma de intervenção que só no Projecto de Vida foi conseguida. Aqui esta-va, certamente, o ponto de arranque, para uma acção mais eficaz, na luta contra a dro-ga.

A grande prioridade foi dada à preven-ção. Houve consciência de que “prevenir” não é apenas dar notícia dos riscos que o consumo traz consigo. Era necessário uma educação para valores, para o bom uso da liberdade, para uma sã capacidade crítica perante as circunstâncias. Este trabalho foi iniciado de maneira extraordinária no “Viva a Escola”. Este programa liderado inicial-mente pela Dr.ª Catarina Pestana e logo de-pois, pela Profª Dr.ª Isabel Loureiro, consti-tuiu um avanço nacional na reeducação de consumos, nas camadas mais jovens da população escolar. Foram quase 200 esco-las que tiveram este programa e o realiza-ram com resultados extraordinários.

No entanto, o trabalho mais intenso e de urgência maior, deveria ser realizado pe-las equipas médicas. Assumia-se completa-mente que o toxicodependente não é um criminoso com comportamentos violentos, que não é um marginal com atitudes des-viantes, é simplesmente um doente que, na adição perdeu a liberdade suficiente para recusar um produto que o altera completa-mente nas suas atitudes pessoais ou em sociedade. Em Portugal, praticaram-se ex-periências terapêuticas várias, todas com alguns resultados nos métodos usados, mas muitas delas com aspectos que cientifi-camente eram discutíveis, sobretudo pela forma da relação humana com a pessoa doente. A representar o Ministério da Saúde estiveram, o Prof. Dr. José Luís Castanheira e depois, o Dr. João Goulão. Com uma equi-pa de médicos e outros profissionais de saúde notáveis foi possível construir o “Mo-delo Português” terapêutico, de grande rigor científico, de envolvimento humano dos téc-nicos e dos doentes, de eficácia notável e de resultados comprovados. Definitivamen-te, a sociedade compreendeu que o toxico-dependente não é uma pessoa com com-portamentos sociais errados, mas é sobre-tudo um doente que, acompanhado, pode ser curado, reintegrando-se logo depois na vida social. Mantiveram-se nos centros de atendimento terapêutico e nas comunida-des terapêuticas outros modelos, mas o “Modelo Português” radicou-se a partir do departamento da saúde do Projecto Vida. Hoje, é reconhecido internacionalmente pelo grande rigor científico e notável eficá-cia.

O trabalho desenvolvido, de maneira in-tegrada e nas suas várias valências, foi co-nhecido na Europa. Por isso, foi atribuído a Portugal o Observatório Europeu de Drogas e Toxicodependências. Esta agência de es-

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7tudo sistemático deste fenómeno está em Portugal desde 1994. Os 15 países que constituíam a União Europeia, escolheram o Alto Comissário do Projecto Vida para ser presidente, durante o primeiro mandato. Neste momento, o presidente é, de novo o responsável português da Comissão Nacio-nal da Luta Contra a Toxicodependência, o Dr. João Goulão, médico que tem o reco-nhecimento internacional, ao nível da Euro-pa. Para a recolha de dados ao serviço do OEDT, muito tem contribuído a investigação exaustiva que em Portugal se vai realizan-do. Como antigo presidente do OEDT, man-tenho laços de amizade com os responsá-veis europeus e com os profissionais do sector que em Portugal estão no terreno. Constata-se que, entre nós, o fenómeno está estabilizado e que, apesar da mudança de fármacos alucinogénios, não tem au-mentado o número de toxicodependentes. Hoje, o cuidado a ter com estes doentes tem também em atenção o problema do al-coolismo e de outras dependências.

Uma das grandes preocupações de to-dos os colaboradores do Projecto Vida, quer ao nível da coordenação geral e da acção nos vários ministérios, quer no âmbito do trabalho no terreno, foi sempre o problema da humanização de todas as iniciativas. É certo que a humanização dos cuidados, das relações, dos equipamentos e das estrutu-ras faz parte de todo o exercício de cuida-dos terapêuticos. A complexidade do fenó-meno da droga e a dificuldade profunda do acompanhamento de cada caso, exigiram no processo terapêutico um especial cuida-do pela humanização. Respeitar sempre o ser humano e proporcionar a cada um, se-gundo a sua capacidade, os elementos te-rapêuticos para superar as suas dificulda-des, foram sempre factores a privilegiar no âmbito da acção do Projecto Vida. Com uma atenção muito grande à dignidade e li-berdade de cada um, o Projecto Vida abriu-se à hipótese de descriminalização do con-sumo da droga. Faz-se a distinção clara en-tre o traficante e o consumidor. Se o primei-ro é passível de um processo crime, o segundo, isto é, o consumidor não pode ser criminalizado. Recordo-me de, ao tempo, o Ministro do Ambiente me ter pedido a opi-nião do Cardeal Patriarca. Depois de um en-contro com D. José Policarpo, este afirmou que a grande maioria dos toxicodependen-tes eram doentes e vítimas de situações que à partida não quereriam e por tudo isto não deveriam ser criminalizados. Por outro lado, jovens metidos numa prisão ainda que

por pouco tempo, sairiam sempre dali com um consumo e uma dependência maiores. Um doente não pode ser criminalizado. Re-cordo a reacção positiva de todos os secto-res da sociedade que viram, nesta descrimi-nalização, uma forma de salvar muitos jo-vens. Também no processo de prevenção, o facto de não ser considerado crime o consu-mo, permitiu uma reflexão mais aberta na vi-são dos familiares, no ambiente das esco-las, e na superação dos problemas que al-guns, na experimentação, tinham sofrido. O culto da dignidade da pessoa, a afirmação da liberdade responsável, a atitude saudá-vel perante experiências vividas, a sensibili-dade para preparar um futuro deixando para trás experiências de risco, tudo permitiu ao Projecto de Vida lançar as raízes de uma prevenção eficaz e de um tratamento que, com o “Modelo Português”, abriu caminho à estabilização, sem dúvida, na luta contra a toxicodependência.

A concluir, vale a pena ter em atenção a grande sensibilidade ética de todos quantos trabalharam no Projecto Vida. O personalis-mo ético supõe uma atenção prioritária à dignidade e à liberdade humana. Quer na prevenção dos consumos, quer no trata-mento dos doentes, quer na sensibilização da sociedade, tudo tem como referência constante o sentido ético. Através dele res-peitam-se e promovem-se os Direitos Hu-manos, aceitam-se os códigos deontológi-cos e cria-se uma relação fraterna entre pro-fissionais e doentes, relação esta indispen-sável a uma sociedade que liberta das adições e proporciona a todos uma vida mais feliz.

JULio machaDo vaz

Que memórias guarda desse momento em que se conce-beu uma ferramenta pioneira, centrada na humanização e na descriminalização? Júlio Machado Vaz (JMV) –

Guardo as melhoras memórias! Revi amigos, fiz outros e creio ter contri-buído para um trabalho honesto e adequado à problemática em ques-tão. Ficou-me a mágoa de, como prometido, não terem sido publica-das as respostas aos questionários enviados aos núcleos distritais do Projecto Vida que demonstravam a penúria de meios com que se depa-ravam.

Como se sente ao ver a inter-nacionalização deste modelo?JMV – Orgulhoso, seria hipócrita

negá-lo. Sob muitos aspectos Portu-gal tornou-se um exemplo a seguir e isso é reconfortante.

Foi um modelo que custou muito construir, enfrentando muitas batalhas políticas e que resultou mesmo em produção de evidência… Neste momen-to, esse modelo parece ter sido desmantelado…É assim?JMV – Não sei, terá de perguntar

ao SICAD. Pessoalmente penso que os governos de centro-direita opuse-ram, no mínimo..., resistência passi-va a diversas sugestões da Comis-são, sobretudo na área da redução de danos.

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8 “é recoNfortaNte o prestígio iNterNacioNaL graNJeaDo peLa experiêNcia portUgUesa De DescrimiNaLização Do coNsUmo”

armaNDo LeaNDro

As dependências de substâncias psi-coativas e outras manifestações de pato-logia aditiva constituem, como é geral-mente reconhecido, uma das problemáti-cas mais preocupantes do nosso tempo, bem expressiva da complexidade das so-ciedades atuais e da contradição entre aquisições civilizacionais muito relevan-tes, nomeadamente ao nível dos Direitos Humanos, fundados na indiscutível digni-dade de toda a pessoa, e fenómenos, como estes, que implicam enormes riscos e perigos para a efetivação dessa dignida-de, ao nível da vida individual e coletiva.

A qualidade e a adequação da sua abordagem, na procura incessante da sua compreensão e na busca das correspon-dentes diversificadas respostas preventi-vas e reparadoras, tendentes a evitar e a superar os imensos sofrimentos e prejuí-zos pessoais, familiares e comunitários que esta problemática implica, convocam vários saberes, experiências, atitudes e intervenções, numa postura de transdisci-plinaridade e de intervenção interinstitu-cional responsável e generosa, fundada em exigentes pressupostos éticos, cientí-ficos, culturais, sociais e políticos.

Para o maior êxito possível da conju-gação dos esforços que esses pressupos-tos postulam, é imprescindível uma per-manente comunicabilidade entre a ciência e a investigação, as normatividades, as políticas, os sistemas de intervenção e a ação concreta, holística e integrada, em correspondência com as éticas da discus-são, da responsabilidade, de serviço, da transdisciplinariedade, da interinstitucio-nalidade e do cuidado.

Todas estas éticas são fundamenta-das e potenciadas pela ética mínima co-mum que deriva dos Direitos Humanos, hoje já com força jurídica vinculativa para o Estado, a sociedade e os cidadãos. Fundando-se os Direitos Humanos na in-discutível dignidade da pessoa, parece efetivamente poder considerar-se como fonte de uma ética mínima comum, que liga crentes e não crentes e todos os que se reclamam do humanismo e da demo-cracia.

É certamente na base dessa conce-ção à luz dos Direitos Humanos que deve-mos perspetivar a evolução das proble-máticas respostas relativas aos comporta-mentos aditivos e dependências.

O que julgo implicar o entendimento implícito de que os Direitos Humanos constituem a «boa consciência» de todo o sistema de conceção e atuação em todas esta problemática. Penso que no essen-cial do sentir e do agir já assim o era há vários anos.

Quatro décadas de intervenção em Portugal nesta matéria revelaram uma ati-tude, também com esse sentido, de não desistência na procura incessante das melhores respostas possíveis aos varia-dos e complexos matizes dos problemas levantados, agindo-se de harmonia com a evolução das situações e das conceções sobre as suas determinantes e respostas legais e sociais possíveis.

Mas como os direitos humanos não são estáticos, mas dinâmicos na sua per-ceção e densificação, os princípios, no-meadamente os do humanismo e do prag-matismo, claramente afirmados na notá-vel Estratégia Nacional de luta contra a Droga, aprovada em Abril de 1999, pela Resolução n.º 46/99 do Conselho de Mi-nistros, permitiram um importante salto em frente, nomeadamente pela descrimi-nalização do consumo.

É principalmente sobre essa descrimi-nalização do consumo e correspondente resposta que vou centrar a minha breve

reflexão, correspondendo a convite que muito me honra e agradeço, por me pare-cer dos aspetos mais significativos das mudanças positivas entretanto verifica-das.

Como se sabe, o combate ao tráfico de substâncias psicoativas ilegais e a sua incriminação e forte penalização, no qua-dro de um sistema penal justo, conforme aos Direitos Humanos, reúne um assina-lável consenso universal, tal é a gravidade da ofensa dos valores e interesses indivi-duais e coletivos que atinge.

Já quanto ao consumo dessas subs-tâncias, que se pretende naturalmente evitar, pelos conhecidos sérios perigos e danos que pode envolver para o consumi-dor, as famílias, outros cidadãos e a so-ciedade em geral, as interrogações e re-postas estão longe de ser unânimes; an-tes revelam posições diversas, pelos co-nhecidos problemas filosóficos, éticos, científicos, culturais, políticos, jurídicos e sociais que a questão envolve.

A solução claramente predominante tem sido, com bem se conhece, a da cri-minalização e penalização, embora natu-ralmente mais benévola. Invocam-se, no-meadamente, a ofensa de muito importan-tes valores e interesses públicos de saúde e segurança, o desrespeito pela dignidade e liberdade do próprio consumidor, a dig-nidade, a liberdade e a segurança dos ou-tros cidadãos, e outros valores e interes-ses fundamentais da sociedade, afetada também, designadamente, pelo maior ris-co de frequente criminalidade conexa com o consumo, pela maior dificuldade de combate ao tráfico e pelas exigências de vultosos recursos, a vários níveis, para corresponder aos sérios problemas sani-tários e sociais que o consumo implica, em detrimento de outras necessidades essenciais ao desenvolvimento individual e comunitário de qualidade.

Foi esse o caminho também em Por-tugal até à entrada em vigor da Lei n.º 30/2000, de 29/11.

Entendia-se que o desvalor do consu-mo tinha suficiente dignidade penal, justifi-cando uma pena que, conforme a quanti-dade das substâncias detidas excedia ou não a necessária ao consumo médio indi-vidual durante o período de três dias, ti-nha como limites máximos, respetivamen-te, um ano de prisão ou multa até 120 dias, e três meses de prisão ou multa até 30 dias. O sistema previa significativas possibilidades de suspensão do processo,

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9mediante aplicação de injunções e de apli-cação de medidas alternativas à prisão, que raramente era imposta quando estava em causa o mero consumo, admitindo mesmo a dispensa de pena para o consu-midor ocasional. Confiava-se no valor simbólico da censura penal e no seu efei-to positivo para evitar a reincidência e fa-cilitar o tratamento, que preconizava.

Face à insatisfação pelos resultados globais até então obtidos, em Abril de 1999 foi aprovada a já referida Estratégia Nacional de luta contra a Droga, na se-quência do relatório de trabalho de uma Comissão de composição amplamente in-terdisciplinar, nomeada pelo Governo, tra-balho esse objeto de ampla discussão pú-blica, e bem assim de um relatório da Co-missão Eventual da Assembleia da Repú-blica para o Acompanhamento e Avaliação da Situação da Toxicodependência.

A Estratégia fixou:– Os princípios (da cooperação inter-

nacional; da prevenção; do huma-nismo, envolvendo a consideração, e suas implicações, da toxicodepen-dência como uma doença; do prag-matismo; da segurança; da coorde-nação e da racionalização de meios; da subsidiariedade; e da participa-ção);

– Os objetivos gerais, com relevo para os de reduzir o consumo, sobretudo entre os mais jovens, e garantir os meios necessários para o tratamen-to e a reinserção social dos toxico-dependentes;

– As opções estratégicas, de que se salientam: a descriminalização do consumo e a sua proibição como ilícito de mera ordenação social; a reorientação da prevenção univer-sal seletiva, indicada e ambiental; a melhoria do acesso ao tratamen-to e da sua qualidade; a extensão das políticas de redução de danos; o incentivo à implementação de iniciativas de apoio à reinserção social e profissional de toxicode-pendentes; o incremento da inves-tigação científica e da formação dos recursos humanos; o estabe-lecimento de metodologias e pro-cedimentos de avaliação; a ado-ção de um modelo simplificado de coordenação política interdeparta-mental; o reforço do combate ao tráfico; o aumento do investimento público.

A Lei n.º 30/2000, de 29/11, e diplo-mas posteriores procuraram dar expres-são legislativa aos princípios, objetivos e opções estratégicas por que se optara na formulação da referida Estratégia Nacio-nal.

No que respeita à opção pela descri-minalização do consumo, o novo regime jurídico estatuído pela referida Lei n.º 30/2000, aplicável ao consumo de estupe-facientes e substâncias psicotrópicas, bem como à proteção sanitária das pes-soas que consomem substâncias sem prescrição médica, é assim caracterizável nos seus aspetos essenciais:

a) O consumo, tal como a aquisição e a detenção para consumo próprio, de plantas, substâncias e produtos compreendidos nas tabelas como ilegais, em quantidade que não ex-ceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias, deixou de ser conside-rado crime e passou a constituir contra-ordenação, ou seja, ilícito de mera ordenação social, a apreciar por entidade administrativa.

São-lhes aplicáveis, como reação a esse ilícito, uma coima, sanção pecuniária de natureza não penal mas administrativa, ou, em alternativa, e obrigatoriamente para os consumidores não toxico-dependentes, sanções não pecu-niárias tipificadas na Lei, que vão desde a admoestação à imposi-ção de proibições, interdições e obrigações, orientadas, conforme a circunstância de cada caso, para as finalidades de interioriza-ção do desvalor que o consumo constitui, de incentivo ao trata-mento e de facilitação da reinser-ção social.

O consumo foi assim descrimi-nalizado, afastando o consumidor da intervenção dos tribunais e da aplicação de sanções de natureza penal, com os conhecidos possí-

veis efeitos de estigmatização, de diminuição de autoestima e de con-sequentes maiores dificuldades de reinserção social.

O consumo, embora não inte-grando crime, é contudo considera-do ilegal, censurável e sancionável pela forma referida, assim se afir-mando claramente o seu desvalor, também jurídico.

Considerou-se, e parece-nos que bem, tendo em conta essa afir-mação de desvalor e consequente proibição, que a solução de descri-minalização não contraria as Con-venções Internacionais sobre a ma-téria.

Por outro lado, também se en-tendeu, e bem, não encontrar obs-táculo na Constituição da República Portuguesa, antes poder ter apoio no regime dos direitos fundamen-tais nela estatuído, na medida em que, mostrando-se suficiente a me-nor limitação de direitos por que se optou, em substituição da reação penal, claramente caraterizada como ultima ratio, estão respeita-dos o princípio da proporcionalida-de (ou seja, o princípio da proibição do excesso) e os subprincípios em que este se desdobra, o princípio da exigibilidade (também chamado da necessidade ou da indispensabi-lidade), o princípio da adequação (ou seja, da idoneidade) e o princi-pio da proporcionalidade estrita, que significa que os meios legais de limitação dos direitos liberdades e garantias têm de ter a justa medida, não podendo ser excessivos em re-lação aos objetivos.

b) De salientar que a intervenção pre-vista no sistema instituído não tem lugar no caso de tratamento espon-taneamente pedido pelo consumi-dor, ou pelo representante legal no caso de ter menos de 18 anos de idade.

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c) Atribui-se competência para o pro-cessamento das contra-ordenações e aplicação das respetivas sanções, a executar por entidade administrati-va, a uma Comissão para dissuasão da toxicodependência, sediada a ní-vel distrital, constituída por um jurista, designado pelo Ministério da Justiça e os restantes pelo Ministro da Saúde e pelo Membro do Governo respon-sável pela política da droga e da toxi-codependência, escolhidos estes en-tre médicos, psicólogos, sociólogos, técnicos de serviço social ou outros com currículo adequado na área da toxicodependência. Para além dos procedimentos processuais, estas Comissões têm como atribuições: a prestação de apoio nas sanções a aplicar; o encaminhamento dos con-sumidores para as entidades de saú-de; o acompanhamento dos consu-midores em caso de suspensão pro-visória do processo; e a recolha de in-formação sobre a continuidade do tratamento.

A estas Comissões são apre-sentados os consumidores, num procedimento que, sem prejuízo dos direitos destes, permite um diá-logo e uma melhor compreensão da situação.

d) São previstos procedimentos de diagnóstico para fundamentar o juí-zo sobre a natureza e as circuns-tâncias do consumo.

e) O procedimento legal é flexível, dis-tingue a situação do consumidor to-xicodependente daquele que não se encontra nessa situação, admite a suspensão, quer do processo, quer da determinação da sanção

no caso de o consumidor aceitar sujeitar-se, voluntariamente, a tra-tamento, quer ainda da execução da sanção aplicada. Tudo orientado para a interiorização do desvalor do consumo, para o estímulo e o apoio ao tratamento, quando necessário, e para a reinserção.

A opção pela descriminalização do consumo tem-se mostrado muito positiva nas sucessivas avaliações anuais, não só quando considerada isoladamente, mas também quando perspetivada na globali-dade das medidas tomadas em conso-nância com a Estratégia Nacional, sobre-tudo no que respeita ao esforços de pre-venção, de tratamento, de diminuição de danos e de ajuda à reinserção.

A descriminalização não tem implica-do incentivo ao consumo, tem permitido ganhos significativos em matéria de saú-de, visto que a diluição do estigma do cri-me facilita a procura de ajuda e o encami-nhamento para o tratamento, com a con-sequente repercussão favorável no que respeita a doenças diretamente associa-das ao consumo. E nada revela que tenha prejudicado a luta contra o tráfico.

Assinale-se a relevante vantagem de contribuir para avanços na consideração do consumidor toxicodependente sobretu-do como doente, sem se prescindir da sua responsabilização emancipadora.

É reconfortante o prestígio internacio-nal granjeado pela experiência portugue-sa de descriminalização do consumo, que constitui, sem dúvida, um marco relevante na evolução da política e da prática nesta matéria tão delicada.

Sem prejuízo da constante necessida-de de progressos no pensamento e no

agir, a opção pela descriminalização do consumo afigura-se-nos promissora, tam-bém na potenciação que dela pode resul-tar para a continuidade do indispensável esforço de prevenção universal e de pre-venção seletiva ou indicada¸ na procura permanente de uma nova cultura que, po-tenciando os valores e o espírito crítico, rejeite os numerosos tipos de dependên-cias, como as do álcool, do jogo e da inter-net, que os atuais estilos de vida indivi-duais e comunitários tanto causam e forta-lecem.

A descriminalização do consumo apresenta ainda, como positivo, o aceno que nos faz de que vale a pena, contra-riando derivas securitárias, originadas em temores não fundados, procurar sempre as soluções mais compatíveis com o para-digma dos Direitos Humanos, que, supe-rando o paradigma autoritário e o assis-tencialista, constitui uma mais valia civili-zacional do nosso tempo que importa ten-tar solenizar e concretizar, com qualidade, na vida de cada cidadão e da comunidade em que se integra.

Nesta perspetiva, colocando sempre a pessoa no centro, será mais fácil encon-tramos em conjunto as melhores soluções possíveis, interiorizando que, se aceitar-mos postergar os Direitos Humanos, nada mais faremos do que agravar os proble-mas e a crise, concedendo a vitória ao medo.

O que é contrário à esperança, que não podemos negar nem a nós nem aos outros, sobretudo aos mais vulneráveis, que precisam da nossa solidariedade ati-va para dela não desistirem.

Essencial é que sejamos competen-tes, rigorosos e generosos na conceção e execução de políticas, estratégias e ações sistémicas, holísticas, devida-mente monitorizadas e avaliadas, de-senvolvidas de acordo com o conceito, os objetivos e as metodologias de uma governação integrada, essencial para respostas a problemas complexos, como é o das dependências.

O notável e justamente ambicioso Plano Nacional para a Redução dos Com-portamentos Aditivos e das Dependên-cias, para o período de 2013 a 2020, abrangendo, de forma integrada e articu-lada, a prevenção, a dissuasão, o trata-mento, a redução dos riscos, a minimiza-ção dos danos e a reinserção, constitui mais um importante desafio que se nos impõe vencer.

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11“o moDeLo portUgUês traNsporta coNsigo a Noção De coNtiNUiDaDe Na iNterveNção...”

DiNis cortes

Qual é a sua opinião sobre a estra-tégia nacional de luta contra a dro-ga e do tão propalado modelo por-tuguês?Dinis Cortes (DC) – Uma Estratégia

conceptualmente avançada e um Plano de Acção realista e exequível foram os grandes instrumentos do sucesso do cha-mado “Modelo Português”. O competente reenquadramento jurídico que postulou o regime contra-ordenacional para o Consu-mo de substâncias ilícitas foi o corolário de um pensamento avançado, criando es-truturas que passaram a abranger, embo-ra num contexto de “Dissuasão”, a “franja que faltava”, isto é, os consumidores não-dependentes. A integração de respostas desenvolvida num modelo vertical, coor-denado centralmente, permitiu também a flexibilidade na intervenção, destreza nas respostas e descomplexificação de proce-dimentos que permitiu em cerca de 10 anos tornar abordável aquilo que muitos rotulavam de “incontrolável” , isto é o con-sumo de substâncias psicoactivas ilícitas em Portugal. Os consumos mudam com os tempos...aparecem substâncias mais poderosas e mais atractivas, mudam os factores de vulnerabilidade e reinventam-se respostas para o problema...de igual forma mudam as políticas, nem sempre

para melhor ou seja, descentram-se do real problema e centram-se em outros , nomeadamente os de causa financeira...

Como se sente ao ver a internacio-nalização deste modelo?DC – É com muita satisfação que ve-

mos o trabalho de organização, desenho conceptual, intervenção e avaliação nesta matéria reconhecido e referenciado como de vanguarda na área dos comportamen-tos aditivos por insuspeitas organizações, estados e personalidades diversas. Mui-tos dos nossos Dirigentes Políticos ainda não se aperceberam de que este modelo é dos melhores, senão o melhor do mun-do e não fora a visão ainda de esguelha de alguns sectores mais conservadores da nossa sociedade, alguns de cariz clíni-co, movidos muitas vezes pelo preconcei-to e pela inveja, estaríamos ainda mais avançados na intervenção, nomeadamen-te na adequada resposta ás dependên-cias sem substância e a uma adequada e bem temporizada resposta, especialmen-te na componente “acessibilidade”.

Tudo o que se conseguiu nesta área foi num contexto de grande flexibilização, motivação de profissionais, carinho pelos Técnicos, Formação adequada e quantita-tiva e qualitativamente doseada e estimu-lada, espírito de Missão para a causa pú-blica...mas também de prevenção do “bur-nout”, disponibilidade para o contacto e supervisão, gestão de meios e coopera-ção intersectorial Público/Privado, etc. Os resultados traduzidos em evidência cientí-fica apontam hoje um caminho de inter-venção já estendido ao álcool e prefigura novos caminhos desenhados para outras dependências.

Foi um modelo que custou muito construir, enfrentando muitas bata-lhas políticas e que resultou mes-mo em produção de evidência… Mas, neste momento, esse modelo parece ter sido desmantelado…É assim?DC – Pode-se matar o corpo mas a

alma, neste caso o Modelo propriamente dito, sobrevive num lugar intemporal. Um Modelo só o é efectivamente, se vivido e partilhado pelos seus executores e assu-mido cientificamente pelos restantes “sta-keholders”. Qualquer doente toxicodepen-dente vê hoje o Terapeuta como o “pivot” de uma intervenção integrada que confi-gura um modelo que não “encaixa” na

clássica intervenção nos Cuidados de Saúde Primários. A abordagem das de-pendências é algo que não se compadece com dirigentes/pensadores demasiado centrados na gestão de resultados sem preocupação com as pessoas. Um verda-deiro técnico interventor nesta área demo-ra por vezes anos até perceber e interiori-zar o “modelo”, porque é necessário vivê-lo por dentro, partilhá-lo com os seus pa-res, executá-lo e avaliá-lo...ganhar confiança e ensiná-lo aos recém recruta-dos. O modelo português transporta con-sigo a noção de continuidade na interven-ção...de um terapeuta para muitos anos, de um acompanhamento sólido e estrutu-rado e não se compadece, como acontece na generalidade dos Centros de Saúde deste País (UCSP´S) com a mudança de “Médico de Família” de meio em meio ano ou a ausência dele por tempo indetermi-nado. Numa qualquer consulta de Clínica Geral do País a alternativa, no caso da ausência do Médico Assistente seria a Consulta de Recurso ou o Serviço de Ur-gência...em Toxicodependência a alterna-tiva é a recaída, é o regresso às práticas de consumo, à desorganização social e familiar, à criminalidade…à violência e à ilicitude...

Pode morrer o corpo, referi anterior-mente, mas a alma tem subsistido como orientadora de uma prática de saber feito executada ao longo dos últimos anos. Se houver geração seguinte nesta interven-ção e se houver realmente vontade políti-ca de intervir na problemática do consumo e dependência de substâncias em Portu-gal, os decisores ponderarão certamente no conceito de “investimento” em detri-mento do conceito de “despesa” que tanto aflige os menos preparados para dirigir.

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12 “ceNtrar toDa a ateNção No DoeNte para comBater a DoeNça”

João goULão

O Dr. João Goulão esteve presen-te em praticamente toda a história portuguesa de intervenção na área das dependências, desde o traba-lho no terreno à concepção estraté-gica. Que principais marcos assina-laria ao longo deste percurso?João Goulão (JG) – É fundamental

recordarmos que as primeiras respostas foram paradigmaticamente instaladas na dependência do ministério da justiça e, apesar de pretenderem ser já respostas de prevenção e de tratamento, a sua co-locação na justiça constitui um indício da forma como as coisas eram encaradas. Depois, há um período, diria que um cer-to deserto de intervenção estatatal, no qual florescem as respostas privadas, al-gumas de muito boa qualidade mas a maioria de muito má qualidade, e que re-presentaram de alguma forma uma outra vertente da exploração da população to-xicodependente. Posteriormente, há um marco fundamental, a criação do Centro das Taipas, enquadrado nas medidas do Projecto Vida como tentativa de resposta a um problema que assumia proporções significativas na sociedade portuguesa. O Centro das Taipas é profundamente marcante nesta realidade porque corres-ponde à instalação de um modelo que veio depois a ser replicado e que inspira tudo o que veio posteriormente a ser de-senvolvido.

Uma criação, na altura, do ministé-rio da saúde…JG – O Projecto Vida era um progra-

ma interministerial, competindo ao minis-tério da saúde a instalação de uma res-posta integrada, que tinha múltiplas valên-cias, desde um serviço de urgências dirigi-do a toda a população toxicodependente de Lisboa mas que acabava por servir todo o país, uma unidade de desabituação para tratamentos de curta duração, um ambulatório muito forte, bem dotado de recursos humanos e sólido em termos téc-nicos, um centro de dia… Em suma, um conjunto integrado de respostas que inspi-rou todo o desenvolvimento que culminou na criação da rede dos CAT em todo o país. É precisamente a seguir à criação do Centro das Taipas que eu entro e, a partir daí, estive envolvido no desenvolvi-mento da rede. Fui responsável pela cria-ção do SPAT, no Algarve num processo decorrido em simultâneo com vários cole-gas recrutados da mesma forma, identifi-cados pelo seu perfil, convidados a faze-rem estágio nas Taipas, com formação ombro a ombro, aprendendo a fazer as coisas e contribuindo para a criação de uma rede nacional. Do ponto de vista das organizações privadas de solidariedade social, a Associação Ares do Pinhal cons-titui um bom exemplo, inspirador das res-postas de qualidade que foram sendo de-senvolvidas, assumindo-se desde muito cedo como um modelo de complementari-dade entre o sector social e o público, contrariando qualquer tendência para a competição. O ambulatório ficou a cargo do sector público, ao passo que os inter-namentos em comunidades terapêuticas e unidades de desabituação ficaram es-sencialmente cometidos à iniciativa das IPSS (embora existam unidades de am-bos os tipos também no setor público). Mesmo no meio técnico, estávamos ainda longe do consenso em torno de algumas intervenções, nomeadamente sobre a uti-lização de programas de substituição opiácea. Havia um programa iniciado no Porto pelo Dr Eduino Lopes com a utiliza-ção de metadona, mas muito circunscrito e limitado e que enfrentava resistência ao alargamento a outros territórios. Penso que foi também importante assumir-se que estávamos perante um instrumento importante e que deveria ser difundido e, de alguma forma, quando assumi a direc-ção do SPTT, em 1997, não pretendendo impor a ninguém a utilização desse recur-

so terapêutico, o que defendi foi que de-veria estar disponível em todo o espaço nacional e que, dependendo dos critérios clínicos, as pessoas pudessem aceder a esse tipo de programas e não se vissem privadas por critérios geográficos. Sentia-se a necessidade de encontrar caminhos claros, de adoptar uma estratégia clara… E considero que foi também dominante a iniciativa do Governo de António Guterres, tomada pelo então ministro-adjunto José Sócrates, de convocar um grupo de pes-soas a quem encomendou recomenda-ções estratégicas. Foi uma acção impor-tantíssima e que revelou uma grande vi-são para que se afrontasse um problema que, na altura, assumia a centralidade das preocupações da população portuguesa.

Estamos a falar num grupo de pen-sadores de várias áreas do conhe-cimento…JG – Exactamente, desde um juíz a

psiquiatras, passando por psicólogos, as-sistentes sociais… Um grupo alargado, curiosamente dirigido por um cientista que nada tinha a ver com a área mas que pos-suía um enorme traquejo, experiência e habilidade na condução de grupos de tra-balho, o Professor Alexandre Quintanilha, e cujo resultado foi muitíssimo importante. A componente mais visível e conhecida in-ternacionalmente é a questão da descri-minalização, proposta que foi apresenta-da completando um pacote de medidas, e que, do meu ponto de vista, sendo impor-tante em termos práticos, foi sobretudo pertinente ao nível simbólico e da introdu-ção de coerência num todo baseado nos princípios do humanismo e do pragmatis-mo. A ideia de que a dependência é uma doença crónica recidivante, condição que deve ser tratada pelas estruturas da saú-de e da área social por contraponto com a abordagem criminalizante que antes pre-dominava, foi um momento determinante.

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JoaqUim roDrigUes

É um dos responsáveis pela pro-dução de recomendações, e ideias que viriam a marcar a humaniza-ção do fenómeno das drogas em Portugal. Como vê hoje o proble-ma no nosso País?Joaquim Rodrigues (JR) – Do que é

dado conhecer (não acompanho de perto a evolução da situação) embora a “droga” continue a ser notícia, desperta menos alarme; a toxicodependência passou a ser considerada uma doença... como outras e como tal a merecer mais atenção dos ser-viços de saúde e dos prestadores de cuida-dos; o toxicodependente menos marginali-zado e, uma vez concluído o processo de tratamento –mesmo que nem sempre à pri-meira tentativa – passou a ser aceite sem reservas perturbadoras por um número cada vez maior de empregadores e pela generalidade dos colegas de trabalho.

Há cerca de 17 anos foi publicada a estratégia Nacional de Luta Con-tra a Droga. Que memória guarda desta importante ferramenta de in-tervenção?

JR – Do processo de elaboração da proposta que esteve na origem da estra-tégia recordo

...O alívio que provocou na generali-dade dos membros da Comissão o pare-cer solicitado ao especialista de Direito Penal...quanto à compatibilização da despenalização do consumo de estupe-facientes com as disposições das con-venções internacionais;

- A atitude de reserva/apreensão de alguns deputados da oposição (à direita do então partido do governo/PS) quanto à proposta da Comissão a favor da des-penalização do consumo...

- A interpretação dada à proposta da Comissão pela Resolução do Conselho de Ministros que adotou a Estratégia Na-cional (e da lei nº 30/2000 de 29 de no-vembro)...que alarga a despenalização do consumo à posse e à aquisição!

Que avaliação faz do chamado Mo-delo Português?JR – O mérito fundamental... Ter

sido pioneiro no sentido inovador do ter-mo e ter tido reconhecimento generaliza-do!

Algumas limitações...as decorrentes duma implementação “nacional” (uma im-plementação progressiva, com uma fase de experiência piloto) teriam evitado al-guns acidentes do percurso.

Foi um modelo que custou mui-to construir, enfrentando muitas batalhas políticas e que resultou mesmo em produção de evidên-cia… Mas, neste momento, esse modelo parece ter sido desmante-lado…É assim?JR – Considero que a opção é irre-

versível...O que vejo por vezes “descura-da” é a implementação!

Depois, existem outros passos posterio-res que foram igualmente importantes, como o alargamento das competências do então IDT às questões do álcool e, mais tarde, a criação do SICAD e também o alargamento da abordagem ao mundo dos comportamentos aditivos e depen-dências, uma vez que os mecanismos neurobiológicos que lhes subjazem são semelhantes. Penso que estas seriam as etapas marcantes, todas elas dependen-tes do enorme empenho e competência de um grupo muito alargado de profissio-nais, que tem feito maravilhas nesta área em Portugal e que nos permitiu, não ob-viamente resolver o problema, mas reduzi-lo a uma dimensão equiparável a outros que afectam a sociedade portuguesa.

Apesar de também ter vivenciado a experiência da intervenção a par-tir do terreno, ao longo dos últimos anos assumiu competências fun-damentalmente de gestão de políti-cas. A título pessoal, o que significa para si ver este modelo que ajudou a construir reconhecido internacio-nalmente?JG – É um enorme orgulho… Estive

esta semana na CND em Viena e pudemos mais uma vez constatar como Portugal é hoje apontado como um exemplo de boas práticas. Sinto-me por vezes um pouco in-comodado quando sou apresentado como o obreiro… Longe disso! Fui uma pequena peça na reflexão que conduziu a esta reali-dade e nem sequer tive a iniciativa neste campo, até porque havia pessoas no grupo muito mais habilitadas para desenvolverem esta reflexão. Tenho sido, isso sim, a face vi-sível e há muitos anos a cara de todas estas políticas, tenho tido essa felicidade porque é realmente um enorme orgulho desempe-nhar este papel, gerador de visibilidade na-cional e internacional. Perguntam-me com muita frequência se me considero mais um técnico ou um político… No exercício destas sucessivas funções que tenho assumido, as duas componentes têm que estar presentes porque, por um lado, há a técnica, as neces-sidades identificadas pelos profissionais no terreno e que me são transmitidas e, por ou-tro lado, há o sopesar das circunstâncias e dos momentos em que podemos avançar num determinado sentido ou em que temos que ter alguma moderação. E penso que te-mos optado por um desenvolvimento de po-líticas realistas que têm em conta todos os factores presentes.

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14 “o hUmaNismo e o pragmatismo é Um eNorme factor De sUcesso Na Nossa poLítica”

maNUeL carDoso

O Dr. Manuel Cardoso é hoje um dos rostos mais visíveis do dispo-sitivo nacional de intervenção em comportamentos aditivos e depen-dências. Como se iniciou esse per-curso?Manuel Cardoso (MC) – Eu entro no

processo de forma intensa em 1995, quando quisemos regulamentar o interna-mento em comunidades terapêuticas, centros de dia, etc. Entro enquanto médi-co de saúde pública e, de certo modo, en-quanto autoridade de saúde no sentido de vistoriar essas unidades e garantir que apresentariam condições higio-sanitárias e técnico científicas bem como uma equi-pa técnica adequadas a um bom funciona-mento. Até 1998, este foi basicamente o meu trabalho nesta área, participar na equipa de vistorias e preparar os respeti-vos relatórios. Em simultâneo fiz parte do grupo de trabalho que preparou a legisla-ção sobre o licenciamento e o processo de convenção com estas unidades (viriam a ser publicados, já em 1999 os Decreto lei nº 16/99 e 72/99). As unidades, além de terem aumentado, elevaram a sua qua-lidade ao nível das instalações, em termos técnicos e de prestação de cuidados. E a facilidade de acesso a essas unidades que, inicialmente também não se verifica-va, passou da responsabilidade da Segu-

rança Social para a responsabilidade do SPTT a partir de 1998 (sucedendo-se o IDT e, actualmente, as ARS) e essa evolu-ção também se verificou muito por via da publicação daqueles diplomas. Por outro lado passou a haver uma harmonização de processos de internamento, nomeada-mente em articulação com os subsiste-mas de saúde, promovendo assim o finan-ciamento da intervenção terapêutica a quem realmente dela usufruía e evitando duplicações de faturação.

Em 1998, fui convidado para integrar o conselho de administração do SPTT e, desde então, tenho tido responsabilidades essencialmente ao nível da gestão das políticas. Lembro que, à data, porque con-sumir era crime, os doentes que procura-vam tratamento não eram identificados. Não se sabia quantos doentes estavam em tratamento. Não havia sequer uma fi-cha clinica harmonizada. Por outro lado as respostas terapêuticas não cobriam ainda todo o território nacional. A minha primeira tarefa foi perceber qual era a dimensão da “lista de espera” para tratamento. Numa primeira leitura tinha cerca de 2500 doen-tes em espera por uma consulta que viria não se sabia quando.

Todo o processo ficou muito facilitado quando, em 1998, foi criado aquele grupo de sábios que deu origem à estratégia na-cional. Essa estratégia foi realmente o pri-meiro marco e costumo dizer que o modelo português se baseia, mais do que tudo, nes-sa estratégia, no serviço vertical de resposta às necessidades identificadas e, depois, numa coordenação nacional. Daquela Es-tratégia emergem orientações e medidas absolutamente fundamentais para a imple-mentação daquilo que viria a ser o hoje de-signado “modelo português”. Permita-me que refira o que considero serem as medi-das e orientações mais estruturantes; desde logo a descriminalização e com ela o fim dos medos de procurar tratamento e fazer o respetivo registo, o fim do paradoxo entre a implementação de ações de redução de ris-cos e minimização de danos, sem que isso significasse estar a “ajudar” um criminoso a cometer o seu crime; em segundo lugar os princípios, nomeadamente os do humanis-mo e do pragmatismo, que levaram à inter-venção de RRMD, mais estruturada, e mes-mo apoiada em legislação específica, mas também ao alargamento da intervenção te-rapêutica à prescrição de agonistas opiá-ceos como a metadona; em terceiro lugar, a assunção de que a intervenção deveria ser

integrada e tendo em atenção os contextos, nomeadamente o contexto laboral. Na ver-dade a estratégia de 99 já previa a integra-ção dos vários tipos de intervenção. Por ou-tro lado, com o princípio da subsidiariedade, esta estratégia convoca toda a sociedade a participar na resolução dos problemas le-vantados com a toxicodependência. É com base neste princípio que surgem os primei-ros Planos Municipais de Prevenção. Hoje o envolvimento de quase toda a administra-ção pública, quer em termos de coordena-ção nacional, quer em termos de elabora-ção e de implementação dos planos, algo que fazemos pelo menos desde 2005, bem como a participação da sociedade civil, con-tribuem enormemente para a obtenção des-te sucesso da política portuguesa nesta área que é internacionalmente reconhecido. Fica pois claro que a definição das políticas e a sua implementação é facilitada pela des-criminalização por um lado e, por outro, a descriminalização e a criação das comis-sões de dissuasão para a toxicodependên-cia constituem um instrumento que facilita a aplicação de uma lei, mas também a aproxi-mação dos cidadãos à estrutura de saúde e aos serviços que, por sua vez, se sentiram capacitados e habilitados para promoverem a intervenção sem peias. Na minha pers-pectiva, os princípios do humanismo e do pragmatismo funcionaram realmente em pleno e esse é um enorme factor de suces-so na nossa política.

Um dos alicerces dessa estratégia assentou na criação de uma estru-tura vertical… mas deixou de as-sentar…MC – É verdade. O desenvolvimento

da política portuguesa nesta área alicer-çou-se numa estrutura vertical que primei-ro respondia apenas às questões de trata-mento e reinserção social, o Serviço de Prevenção e Tratamento da Toxicodepen-dência (SPTT) e que era tutelada pelo Mi-nistério da Saúde e uma outra, o Projeto Vida, tutelado pela Presidencia do Conse-lho de Ministros (PCM) e que era vocacio-nada para as questões primeiro da pre-venção e depois também para a RRMD. É com a criação do Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT) que se conse-gue criar uma estrutura vertical que verda-deiramente dá corpo a uma intervenção integrada. A criação das Unidades de In-tervenção Local e em especial dos Cen-tros de Respostas Integradas (CRI) são o seu máximo expoente.

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15Na verdade hoje essa estrutura não é

exatamente vertical, mas não deixa de existir uma estrutura específica de resposta. Não estamos no melhor dos mundos nessa maté-ria mas, apesar de ter referido que essa es-trutura vertical foi fundamental, não é menos verdade que, a partir de 1999, a prática da política portuguesa resulta na promoção de uma intervenção absolutamente integrada. Ainda temos os CRI. Apesar de a estrutura não ser neste momento tão vertical, tendo-se verificado essa quebra quando colocámos os centros nas ARS, a verdade é que mante-mos a resposta integrada. O grande desafio aquando da extinção do IDT foi precisamen-te conseguirmos garantir a manutenção des-sa resposta integrada. Esse sim é um pilar fundamental da intervenção em comporta-mentos aditivos e dependências. Apesar da autonomia técnico-científica que deve supor-tar cada um dos tipos de intervenção, a sua implementação no terreno tem que ser inte-grada. Fazemos intervenção preventiva uni-versal ou seletiva, mas atendemos indivi-dualmente os utentes com mais problemas ou promovemos o tratamento dos doentes. Fazemos intervenção de rua para aproximar os doentes das estruturas sanitárias e preve-nimos a desinserção ou promovemos a rein-serção consoante as necessidades de cada um. Aqui, hoje, assistimos à apresentação de um estudo sobre consumos em jovens inter-nados em Centros Educativos e ficou bem claro que as práticas de consumos entre es-tes jovens são bem superior à da população geral, nas mesmas idades. Se agirmos pre-cocemente no percurso destes jovens, se conseguirmos fazer uma intervenção inte-grada prévia, em termos de inserção, preve-nimos ou agimos em simultâneo com uma in-tervenção terapêutica. O mesmo se aplica à redução de riscos e minimização de danos e à reinserção. Com esse tipo de intervenção estamos a conseguir inverter ou parar per-cursos que, de outro modo, caminhariam para problemas muito mais graves.

Os ganhos económicos e financeiros ou a relação de proximidade com os cuidados de saúde primários, prometidos com a extin-ção do IDT e a integração das Unidades de Intervenção Local nas ARS, não se concreti-zaram. Houve, há mesmo ou parece existir, um desconforto quanto à capacidade de res-posta e harmonização da mesma em termos de todo o território nacional, que parecem contradizer aqueles prometidos ganhos. A verdade é que o consumo de álcool e de ta-baco são dois dos três principais fatores de risco de doença e morte na Europa e tam-

bém em Portugal. Temos que garantir que somos capazes de manter uma resposta adequada, em termos de saúde pública, a estes problemas. E essa resposta só pode ser dada intervindo precocemente de manei-ra harmonizada e articulada, globalmente em todo o território nacional. Há que garantir a verdadeira implementação da rede de Re-ferenciação/Articulação entre os CSP e este nível de intervenção intermédia, específica, mas de proximidade que é a intervenção das unidades pertencentes ao anterior IDT.

Foi um dos grandes condutores da integração do álcool nas competên-cias do então IDT e, hoje, depois da criação do Fórum Nacional Álcool e Saúde, temos também o país inserido em várias redes internacionais a este nível… Como classifica essa expe-riência de ter contribuído para a im-plementação de um novo paradigma ao nível da intervenção nos proble-mas relacionados com o álcool?MC – Foi uma experiência muito gira…

Uma vez mais, ou olhamos para os consu-mos de uma forma limitada à dependência e deixamos que tudo aconteça para tratarmos a doença ou olhamos para a componente de saúde pública. Se olharmos para a componente de saúde pública do uso noci-vo de álcool, verificamos que temos um número muito significativo de indivíduos com problemas de consumo nocivo, com consumo de risco, que carecem de algu-ma intervenção. Não é possível esperar que cheguem à situação de dependência para intervirmos. Por outro lado, quando pensamos nos vários problemas e patolo-gias associadas ao consumo de álcool, elas não precisam da dependência para serem influenciadas pelo consumo de ál-cool. Um acidente de viação ou outro, sob o efeito do álcool, por exemplo, não terá ne-cessariamente a ver com dependência. Mui-tas outras patologias de efeito agudo têm a ver com acções imediatas após um consu-mo mais intensivo… As de longo prazo po-dem ter a ver com esse consumo de risco mas hoje sabemos que o consumo de mais de 10 ou 20 gramas de álcool por dia tem se-guramente algum risco. A abordagem que fi-zemos também em relação ao planeamento para a intervenção nas questões do álcool resulta nisso mesmo: em planear, em identi-ficar os problemas, com estudos como este e outros que temos realizado, onde estão os riscos e tentar intervir para reduzir os proble-mas…

O consumo de álcool em Portugal é uma questão cultural e o uso e o consumo nocivos, merecem da comunidade uma complacência enorme. Portugal continua a ser um dos países do mundo com um maior consumo per capita, e as consequências para a saúde são evidentes.

Tratando-se de um problema cultural a sua abordagem deve ser, em nossa opinião, tão alargada quanto possível. Precisamos primeiro de mudar mentalidades para depois alterarmos comportamentos. A criação e de-senvolvimento do Fórum Nacional Álcool e Saúde (FNAS) é o método escolhido para pôr a sociedade civil, os operadores econó-micos, as Organizações não-governamen-tais e a administração pública, Central e Lo-cal, a discutir e a encontrar soluções para os problemas identificados. Este é o grande de-sígnio do FNAS, juntar no mesmo espaço de discussão todos os que de algum modo pos-sam estar envolvidos e se queiram envolver, na resolução dos problemas identificados e com metas a alcançar perfeitamente defini-das. Na verdade, para esta abordagem, Por-tugal beneficia da experiência do Fórum Eu-ropeu Álcool e Saúde, um dos pilares para a implementação da Estratégia Europeia para a redução dos efeitos do uso nocivo do ál-cool, onde de certo modo se inspirou.

A estratégia portuguesa para a redução dos problemas ligados ao álcool, baseia-se numa intervenção equilibrada entre dois do-mínios: o da oferta e o da procura. Foi assim que perspetivámos e executamos o Plano Nacional para a Redução dos Problemas Li-gados ao Álcool e é assim que está dese-nhado e em execução o Plano Nacional para a Redução dos Comportamentos Aditi-vos e das Dependência. O FNAS também nos ajuda a manter este equilíbrio e a pro-mover a implementação das medidas.

Foi defendendo esta abordagem prag-mática e de pequenos passos, mas seguros, que fomos convidados para acompanhar o desenho da Estratégia Global da OMS, bem como do Plano de Ação da Região Europa para esta área. Ao nível da União Europeia foi-nos atribuída a liderança de uma Ação Comum, para a redução dos efeitos nocivos

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16do álcool, que envolve todos os 28 Estados Membros, mais a Islândia, a Noruega e a Suíça. Envolve ainda organizações como a OMS, a OCDE, o OEDT e o Grupo Pompi-dou. Estamos no último ano de execução e creio estarmos a ter um grande sucesso. É a Joint Action RARHA (Reducing Alcohol Rela-ted Harm) www.rarha.eu. Lá para outubro fa-remos uma conferência final, aqui em Lis-boa, para “apresentar contas”. Por outro lado estamos a desenvolver esforços com a Comissão Europeia para que seja aprovada e financiada uma segunda Joint Action. Diria que o nosso trabalho está a ser reconhecido também nesta área. Os últimos dados sobre os indicadores nacionais tem tido uma evo-lução positiva o que nos anima a continuar.

Voltando ao início, diria que toda a inter-venção precisa de ser planeada. No caso dos comportamentos aditivos e das depen-dências a comunidade tem que ser um forte aliado. Uma abordagem equilibrada entre procura e oferta é indispensável. Por outro lado importa partilhar experiências com os parceiros internacionais. É absolutamente crucial partilhar o que temos de melhor e in-tegrar as boas práticas e saberes que temos para receber deles.

Um pouco no seguimento da lógica a que obedeceu a conceptualização do PORI…MC – A lógica do planeamento é sempre

semelhante. Depois, as actividades e inter-venções que se desenham para tentar resol-ver os problemas é que serão diferentes. Quando pensamos em termos globais, inter-vimos sobre o global e podemos fazer inter-venções de âmbito mais universal ou mais seletivo. Mas chegamos a um momento em que o que disponibilizamos para toda a co-munidade não é suficiente para alguns ni-chos e, aí, temos que entrar na especializa-ção e identificar os problemas mais específi-cos quer em termos territoriais, quer popula-cionais ou de contexto para depois definir o tipo de intervenção a desenvolver. O PORI tem essa grande mais-valia: com o apoio das forças vivas dos territórios, conseguimos perceber quais são os problemas de cada um deles, quais são os recursos que o mes-mo tem para trabalhar a todos os níveis e qual é a área lacunar. E, identificando o que falta, posso encontrar uma resposta para procurar satisfazer as necessidades identifi-cadas. É o que temos feito no âmbito do PORI. Penso que também por aí temos al-gum sucesso, sendo evidente que existem custos financeiros altos, mas estou convicto

de que os ganhos são substancialmente mais altos. Contudo não posso deixar de chamar a atenção para o facto de a resposta nacional estar centrada nas unidades de in-tervenção local. A resposta estruturada em termos nacionais é e tem que ser o pilar cen-tral da intervenção. O PORI é uma medida estruturante do Plano Nacional, mas deverá ser sempre uma resposta complementar.

Por último deixe-me dizer-lhe que neste processo de planeamento, com monitoriza-ção permanente e avaliação quer de proces-so, quer de resultados e de impacto, esta-mos a conseguir ganhos em saúde que me parecem muito relevantes.

Mais: diria que quando olhamos para o estudo recentemente apresentado sobre consumos na população escolar, quando olhamos para o estudo sobre os consumos na população geral e para o feito na popula-ção prisional, quando vemos a evolução dos indicadores de morbilidade e mesmo de mortalidade, quando percebemos que va-mos atingindo as metas e objetivos definidos no Plano Nacional, creio poder afirmar que estamos no bom caminho. Estamos todos de parabéns. O trabalho é de todos, os ga-nhos são de todos.

ÁLvaro pereira

Qual é a sua opinião sobre a es-tratégia nacional de luta contra a droga e do tão propalado modelo portuguêsÁlvaro Pereira – (AP) A ENLCD /

modelo português pode ser considerado como um marco civilizacional, revolucio-nário até, na medida em que, afrontando o pensamento então dominante, rompeu com um grande número de dogmas acri-ticamente aceites, sem qualquer susten-

tabilidade científica, que eram apenas sustentados por uma visão moralista da vida e dos comportamentos. A mu-dança de paradigma (da moral para a ética, do pré-conceito para a evidência científica, do reprimir para o cuidar,…) foi, então como hoje, dificilmente con-testável – porque assente em princí-pios e valores, afinal de contas o que torna uma opção ideológica mais acei-tável que outra. Sobretudo o tempo e os resultados vieram mostrar: que os seus detractores estavam errados; a todos os que se empenharam na sua concretização prática que vale a pena lutar contra a corrente quando ela está inquinada por preconceitos ideológi-cos retrógrados, incapazes de enten-der o sofrimento humano.

Como se sente ao ver a interna-cionalização deste modelo?AP – Obviamente satisfeito – ain-

da que seja compreensível que para muitos (países, políticos e técnicos) não é fácil inverter o sentido de políti-cas e práticas consolidadas pelo tem-po.

Foi um modelo que custou mui-to construir, enfrentando muitas batalhas políticas e que resultou mesmo em produção de evidên-cia… Mas, neste momento, esse modelo parece ter sido desman-telado…É assim?AP – Não diria tanto, diria mesmo

que não foi desmantelado. Se calhar porque não houve coragem para tanto, se houve essa intenção política.

Houve mudanças organizacio-nais, cortes orçamentais, alteração de estatuto dentro do Serviço Públi-co? É verdade! Eram necessárias? Tenho a convicção que, no geral, não! Foram úteis? Também me pare-ce que não! Os resultados foram ca-tastróficos? No Algarve, não! Regis-taram-se constrangimentos ao traba-lho dos profissionais? No Algarve não! Faltam profissionais, sobretudo médicos? Faltam! O SNS está amea-çado? Está!

Quando há o sentimento de que as coisas não correm bem, também há um “modelo português”: culpar al-guém, sobretudo culpar o outro. Pro-curar responsáveis é muito complica-do!

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17“a iNovação Leva aNos a ser recoNheciDa”

paULa marqUes

A Dra. Paula Marques é uma figura incontornável e uma das responsá-veis pela produção de recomenda-ções, e ideias que viriam a marcar a humanização do fenómeno das drogas em Portugal. Como vê hoje o problema no nosso País?A primeira constatação é que está

tudo bem diferente. Se calhar não tanto como desejaríamos… os últimos anos, por força de várias circunstâncias, entre a quais a crise económica e social, fez emergir situações às quais estávamos a ter progressos.

Foi alargado o espectro de interven-ção a outros comportamentos susceptí-veis de provocar adição, o que faz muito mais sentido.

Os resultados obtidos entretanto, não sendo os que mais gostaríamos na sua plenitude, apresentam indicadores bas-tante positivos.

Creio que muitos dos que trabalham neste âmbito identificam áreas onde há necessidade de (re)investir e outras a (re)pensar.

Espero que a dinâmica que caracteri-za/va os serviços e os intervenientes nes-te processo venha a ter um novo ânimo.

Há cerca de 17 anos foi publicada a estratégia Nacional de Luta Con-tra a Droga, hoje designado como o “Modelo Português”, apreciado

e reconhecido internacionalmente, pela sua centralidade no cidadão, na humanização e na descriminali-zação. Que memórias guarda desta importante ferramenta de interven-ção?Todos esses princípios entranharam-

se naturalmente no que poderemos cha-mar, uma vontade latente de mudança. Não houve grande resistência à mudança. Acho que muitos aguardavam um novo quadro onde se pudessem rever.

O que mais recordo foi a discussão que promovemos a nível nacional com um vasto número e tipo de instituições ou pessoas, para conseguirmos um consen-so para elaborar o Plano Nacional, na se-quência do documento da Estratégia.

Lembro-me de ter pastas cheias de propostas dos mais diferentes quadran-tes. O difícil foi verter num único docu-mento a imensidão de excelentes contri-butos.

Nestes 40 anos muita coisa mudou. Que avaliação faz desde o início até ao Modelo Português?Os primeiros serviços criados em

1977 já tiveram algum cariz inovador, para a época. Foi introduzida a intervenção sis-témica e a terapia familiar (TF). Uma “equipa de rua” que trabalhava à noite em locais de festa e de convívio.

A par da intervenção clínica para jo-vens, adultos e famílias, existia uma Divi-são Psico- Social que investiu na forma-ção e num trabalho em rede com Centros de Saúde, Escolas, IPSS e outras entida-des, nomeadamente académicas. Procu-rava-se sensibilizar profissionais de vários quadrantes para as questões ligadas ao uso/abuso de drogas lícitas e ilícitas. Abri-ram-se as duas primeiras Comunidades Terapêuticas (CT) e existia um programa de metadona no Norte.

Procurámos aprender com quem ti-nha mais experiência a nível nacional e in-ternacional, sobretudo franceses, suíços e canadianos.

Foi feito trabalho de qualidade, mas como serviço pioneiro, já com abordagens e estratégias pluridisciplinares e também em três vertentes, prevenção, tratamento e reinserção. Não foi fácil…

A então dependência do Ministério da Justiça não facilitou a acessibilidade dos utentes e familiares mas, verdade seja dita, deixaram-nos desenvolver interven-ções, que já se faziam a nível internacio-

nal, muito contestadas noutros serviços públicos e privados (CT, TF e metadona).

A integração no Ministério da Saúde trouxe vantagens e outros profissionais com experiência diferente e diferenciada.

Foi percorrido um longo caminho por vários técnicos que foram congregados num mesmo serviço. Todos traziam know how. Eram Equipas maioritariamente constituídas por gente jovem, com enor-me empenho, dedicação e conhecimento.

Nunca tive nada contra processos que congreguem e potenciem experiências adquiridas, desde que a intenção seja de introduzir mais-valias, em termos de capa-cidade e qualidade de respostas.

A nova Estratégia veio sacudir e are-jar, ou seja, procurou-se alterar a perspec-tiva vigente. Pretendia-se enveredar por um novo paradigma.

Enfim, estamos hoje onde estamos, porque muitos trilharam vários caminhos, procurando melhorar e continuar a inovar. A inovação leva anos a ser reconhecida. A história dos serviços ligados aos CAD é bem prova disso…

Foi um modelo que custou muito construir, enfrentando muitas bata-lhas políticas e que resultou mes-mo em produção de evidência… Mas, neste momento, esse modelo parece ter sido desmantelado…É assim?Não creio que se possa afirmar que o

modelo foi desmantelado; a sua operacio-nalização e aplicação no terreno é que tem tido algumas condicionantes, por in-compreensão ou pouca flexibilidade de al-gumas estruturas intermédias que não fa-cilitaram a sua execução com a agilidade que lhe era inerente.

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18 “aiNDa iremos a tempo De iNverter esta marcha para o aBismo?”

NUNo migUeL

O Dr. Nuno Miguel é uma figura incontornável e responsável pela produção de recomendações que viriam a dar origem à estratégia nacional para a droga e toxicode-pendência e para o tão propalado modelo português. Que memórias guarda desse momento em equipa em que estavam a conceber uma ferramenta pioneira, centrada na humanização e na descriminaliza-ção? Nuno Miguel (NM) - Eu comecei a

trabalhar na área das toxicodependên-cias em 1975, numa consulta então existente no Serviço de Psiquiatria do Hospital de Santa Maria, criada pelo Prof. Dias Cordeiro e de que mais tarde fui responsável. Essa consulta tinha uma grande afluência pois foi, até 1977, a única estrutura para o tratamento de toxicodependentes em Lisboa e, mesmo depois da criação do CEPD, continuou a ser muito procurada. Alguns dos técni-cos dessa consulta foram sendo con-frontados com a insuficiência de trata-mentos complementares do tratamento desenvolvido na consulta e, por esse motivo, criaram em 1986 uma comuni-dade terapêutica no concelho de Mação( Ares do Pinhal) e pouco depois estive-ram também envolvidos na tentativa de criação pela Misericórdia de Lisboa de

um centro de dia no Colégio dos Inglesi-nhos. E é a partir deste conjunto de téc-nicos – escolhidos pela Ministra da Saú-de Leonor Beleza -que é formado pri-meiro o Centro das Taipas cuja expe-riência é replicada no Porto ( CAT de Cedofeita) e também no Algarve (SPAT Algarve) e depois o SPTT – integrando também os CEPDs - com a função de criar uma rede pública de estruturas de tratamento de toxicodependentes com articulação com estruturas privadas.

Nesses anos o problema da toxico-dependência tinha um grande relevo – segundo os meus cálculos Portugal terá tido 100.000 dependentes de heroína muitos deles por via endovenosa – sen-do uma das principais preocupações da opinião pública e as questões legais eram também muito discutidas, havendo inclusivamente uma forte corrente de opinião – que chegou a incluir um Minis-tro da Saúde e também uma associação muito interventiva - partidária da legali-zação ou regulação pelo Estado, consi-derando que a luta contra a droga esta-va perdida e que o proibicionismo era uma má estratégia. Particularmente fo-cados na dependência da heroína com o seu cortejo de consequências negativas criminais e sanitárias defendiam ou a li-beralização (como o prémio Nobel da Economia Milton Friedman) ou a regula-ção do mercado, fornecendo o Estado a heroína a todos os dependentes. Mas outra corrente, ainda mais importante, era constituída por aqueles que temiam que qualquer alteração legal num senti-do menos repressivo pudesse ser en-tendida como um sinal de menor gravi-dade do consumo e se traduzisse num aumento descontrolado do número de consumidores. Argumentava esta cor-rente que a Lei portuguesa já era uma lei compreensiva para os consumidores, e que, na prática, embora o consumo de drogas fosse crime, não havia consumi-dores presos pelo facto de consumirem.

Sempre pensei de forma diferente destas duas posições. Por um lado, acreditava que era possível dar uma resposta consequente ao consumo de drogas – obviamente não acabando com o problema mas reduzindo-o a dimen-sões possíveis - a partir da prevenção e do tratamento e que a situação calamito-sa que vivíamos na altura era fruto da falta de investimento quer no tratamen-to, quer na prevenção ( Como foi possí-

vel que até 1986 a resposta oficial ao consumo de drogas fossem três reduzi-dos centros regionais em Porto, Coim-bra e Porto e duas pequenas consultas hospitalares? ) Por outro lado conhecia toxicodependentes que tinham estado presos só pelo consumo e sabia tam-bém que as autoridades policiais utiliza-vam algumas vezes o facto do consumo ser crime para exercer uma ilegítima pressão para conseguir a sua colabora-ção ou para os castigar com práticas hu-milhantes.

Assim para mim sempre foi claro que a lei devia ser mudada e que não era justo que o consumo fosse conside-rado crime. Nem o consumo eventual e muito menos o consumo dos dependen-tes cujo consumo não poderia ser consi-derado simultaneamente doença e cri-me. E nunca achei democrático manter leis cuja efectividade, ou antes não exe-cução, dependia da atitude discricioná-ria daqueles que estariam encarregados de as executar

Mas nunca considerei que a mudan-ça da lei pudesse contribuir para a solu-ção do problema da droga. Era apenas para mim uma questão de justiça e de respeito pela lei. A lei não pode ser in-justa e não pode ser desrespeitada.

Foi com este espírito que participei – como qualquer outro membro -na co-missão que elaborou a pedido do Mi-nistro José Sócrates a Estratégia Na-cional. Guardo boas recordações das reuniões e dos restantes actividades dessa comissão, presidida pelo Prof. Alexandre Quintanilha, que contribuiu muito para o bom ambiente e profundi-dade do trabalho realizado e em que vi concretizar-se, em relação às ques-tões legais, a posição que há muito de-fendia. E mais tarde tive a satisfação de ver que o Governo da altura, presi-dido por António Guterres, aceitou as propostas da comissão e publicou uma resolução de conselho de ministros em que nos reconhecemos e mais tarde as leis necessárias para a mudança, não só em relação à descriminalização como também em relação à política de redução de riscos.

Tudo parece ter partido de reco-mendações com base na ciência. Hoje, são evidências produzidas. Como se sente ao ver a interna-cionalização deste modelo?

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NM - A verdade é que as alterações legais respeitantes ao consumo de drogas coincidiram no tempo com a evidência dos resultados positivos que a rede pública de tratamento de toxicodependentes permitiu alcançar e isso criou no espírito de muitos observadores internacionais um equívo-co: a ideia de que os bons resultados al-cançados eram fruto das alterações legais o que só em parte era verdadeiro. Em par-te era verdadeiro particularmente, porque teria sido difícil actuar na área de redução de riscos, como o fizemos, sem as altera-ções legais.

Mas não tiveram em conta assim o outro factor determinante na evolução portuguesa, esta rede pública nacional que articulava prevenção, tratamento, re-inserção social e redução de riscos e da-

nos articulando os serviços públicos com privados e incluindo na rede outras insti-tuições, como as farmácias que possibili-taram um programa de troca de seringas bem dimensionado e a administração de metadona em farmácias selecionadas e preparadas para o efeito. Não podemos esquecer também a ampla colaboração que foi sendo possível ter com as institui-ções públicas da tuberculose e da SIDA e com muitos centros de saúde.

Também o facto de a toxicodepen-dência ser considerada uma doença foi determinante na forma como este pro-blema foi sendo encarado e respondido. Porque tornou possível pensar a respos-ta em termos de tratamento e concep-tualizar de forma diferente o tratamento. Muitas vezes a resposta que se tinha

era centrada na paragem dos consu-mos e na reinserção social ignorando que existe um trabalho - tratamento – a fazer com os toxicodependentes sem o qual o toxicodependente não será capaz de parar os seus consumos ou de se manter sem consumir.

Foi um modelo que custou mui-to construir, enfrentando muitas batalhas políticas e que resultou mesmo em produção de evidên-cia… Mas, neste momento, esse modelo parece ter sido desmante-lado…É assim?NM - Foi de facto um modelo que cus-

tou a construir e que é fruto do trabalho e reflexão de muitos técnicos, abertos ao questionamento das suas ideias a partir da realidade e que na sua elaboração en-controu por vezes resistências e falsos apoios. E não é obviamente um modelo perfeito e acabado. Mas a verdade é que foi tendo resultados muito positivos, reco-nhecidos em Portugal e no estrangeiro,

O que foi para mim surpreendente foi ver um governante elogiar publica-mente o modelo, as instituições, os téc-nicos, o trabalho realizado, os resulta-dos alcançados e simultaneamente ir destruindo tudo, medida a medida, pas-so a passo, parecendo que nunca esta-va satisfeito com a destruição já realiza-da e querendo sempre ir mais longe…

Será que é possível inverter esta marcha para o abismo? Ainda iremos a tempo?

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20 “Breve refLexão soBre a DescrimiNaLização Do coNsUmo De Drogas em portUgaL”

roDrigo coUtiNho

A medida legislativa da descriminali-zação do consumo privado de drogas, que integra todo um conjunto de outras medidas da Estratégia Nacional de Luta contra a Droga (ENLCD) aprovada em 1999, foi para mim um acto de justiça porque, desde que integrei em 1985 a equipa do Serviço de Psiquiatria do H. Stª Maria chefiada pelo Dr. Nuno Miguel, que era o responsável pela consulta de adolescentes e toxicodependência do serviço, aprendi com ele e tomei cons-ciência de que a adicção é uma doença da pessoa e que por isso esta não deve-ria ser tomada como criminosa só por esse facto.

Mas para além de injusta, a crimina-lização dos consumos de per si, inibia estes doentes de recorrerem às consul-tas e/ou prejudicavam a adesão e conti-nuidade dos seus projectos terapêuticos e de reinserção sócio-profissional (pro-cessos judiciais, cadastro no registo cri-minal, detenções, etc.).

Penso também que a concepção e a aprovação desta medida, e outras, da ENLCD, foi possível por terem existido alguns aspectos que importa lembrar:

1. A passagem, nos finais da década de 80, dos dispositivos de trata-mento criados e a criar para a tu-tela do Ministério da Saúde (esta-

vam na esfera do Ministério da Justiça), assumindo-se politica-mente de forma clara a adicção como uma doença.

2. A criação e desenvolvimento, a partir daquela altura e ao longo de toda a década de 90 a nível de todo o território nacional, de res-postas terapêuticas diversificadas (redução de danos, tratamento, reinserção social) mas integradas, e que na sua generalidade se re-giam pelos princípios do humanis-mo e pragmatismo posteriormente plasmados na ENLCD.

3. A constatação empírica a partir da prática clinica, corroborada por trabalhos científicos, de que os entraves criminais ao consu-mo não tinham peso específico nas opções dos utilizadores de drogas quanto ao seu consumo, e apenas prejudicavam a aproxi-mação aos serviços e/ou o seu tratamento

4. A dimensão avassaladora e epidé-mica do fenómeno e a sua trans-versalidade a todo o tecido social, tornando este problema e todas as suas consequências na princi-pal preocupação nos anos 90 das famílias portuguesas, que levou a uma leitura “compreensiva” das medidas preconizadas pela ENL-CD por parte da população em ge-ral, contribuindo para a sua acei-tação tácita.

5. A coragem politíca de criar um grupo de peritos e, contra os cos-tumes, aceitar as suas conclusões

Importa dizer que a descriminalização do consumo de drogas, apenas por si só, tem um impacto significativo (redução do estigma, redução das detenções, defesa dos direitos humanos,etc.) mas limitado. Foi o conjunto das intervenções inscritas na ENLCD, que colocadas no terreno, permitiram respostas mais eficazes e abrangentes que, ao aumentarem muito significativamente a procura e a adesão ao tratamento, aumentaram substancial-mente a eficácia das estratégias de inter-venção, conforme evidenciado nos relató-rios nacionais e internacionais pela desci-da de todos os indicadores de severidade nesta população em Portugal.

Para alcançar estes objectivos tam-bém foi essencial a partilha de saberes e experiências entre os seus profissio-nais e a estreita articulação entre os ser-viços no planeamento, organização e desenvolvimento destas estratégias, promovendo a coesão e dando consis-tência às intervenções.

A justeza da medida de descriminali-zação é-me transmitida todas as semanas pelos visitantes de todos os lugares do mundo que vêm observar como se traduz esta medida no terreno (diga-se também que muitas vezes nos referem algum sen-timento de frustração por não terem esta medida aplicada nos seus países).

Gostaria de chamar a atenção para o facto de muito frequentemente o tão falado “modelo português” ser apenas conotado com a medida de descriminali-zação do consumo de drogas, quando na verdade é todo o conjunto das medi-das inscritas na ENLCD que lhe dá a real consistência.

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21“Um casameNto perfeito eNtra a poLítica e os profissioNais No terreNo”

ferNaNDo meNDes

Qual a sua opinião sobre a estra-tégia nacional de luta contra a dro-ga e do tão propalado modelo por-tuguês? Reconhece que esta ferra-menta é pioneira, por centrar a sua acção na humanização e na descri-minalização?Fernando Mendes (FM) – Sem dúvida

que Portugal surpreendeu tudo e todos com a lei de descriminalização do consumo de drogas. Na altura como um dos vice coorde-nadores do IPDT recordo-me do reboliço que foi logo a seguir à promulgação. Foi a confusão baseada no pressuposto que tudo passaria a ser “liberalizado”. Embora hou-vesse da nossa parte um esforço para expli-car a lei e a sua “ dimensão” no terreno com as articulações institucionais parecia nos que por muito que explicássemos ficavam sempre duvidas, e alguns de nós também as tínhamos, e era tanta gente a querer sa-ber que quase não sabíamos para que lado falar. A nível nacional lançamos uma discus-são aberta à sociedade onde percorrendo o País íamos divulgando, explicando e ouvin-do algumas sugestões. Efetuaram-se em todas as capitais de distrito. Recordo-me que em companhia do Padre Victor Feytor Pinto, antigo Coordenador do Projecto VIDA visitei no patriarcado D. José Policarpo, na altura Arcebispo de Lisboa, com quem abor-damos o assunto clarificando alguns aspec-

tos da lei. Enfim um trabalho e tanto que en-volveu muita gente. Ainda sobre a lei diria que “não foi pioneira “ mas ainda é pioneira num certo sentido e tem vertentes ainda a explorar e a explicar. Tenho o sentimento que se pode aprofundar não a lei em si mas os pressupostos que ela nos disponibiliza e temo que não a esgotar neste sentido se resvale para uma fuga para uma frente em falso.

A Estratégia parece ter partido de recomendações com base na ciên-cia. Hoje, são evidências produzi-das. Como se sente ao ver a inter-nacionalização deste modelo?FM – Um pensamento ousado diria eu,

uma convicção forte e o desejo de fazer uma política mais humana, integradora e eficaz, foram os ingredientes desta lei. Um casamento perfeito entra a política e os pro-fissionais no terreno. Mas não nos podemos esquecer que até chegarmos aqui foi feito muito trabalho e recolhida muita experiencia ao longo de anos que nos permitiu elaborar uma nova estratégia. Fico satisfeito por ver que o modelo nacional chamou à atenção no exterior e que muitos desejam querer adaptá-lo às suas realidades. Contudo é bom recordar que cada um dos países tem a sua própria realidade (cultural, social e económica) e a mesmo terá que ter adapta-ções, que não sei se chegaram ao nosso desenho final. Ousar e realizar como referi anteriormente tem custos que nem todos podem ou querem concretizar e num tempo de crise a ideia é simplificar no mau sentido. Acho que em muitos países a palavra-cha-ve de momento é “ despenalizar”,” cuidar “ e integrar na medida que os sistemas o permi-tem. Nem todos os países têm modelos como o nosso Serviço Nacional de Saúde e talvez por esta razão estejamos a assistir porque o sistema não é publico e é muito caro às tentativas de legalizar certos tipos de consumo de substâncias como a Canna-bis como já acontecem em alguns países como viessem preencher um vazio que o estado não preenche.

Como nota, lembrar que um par de anos mais tarde o modelo implementado permitiu a fusão / integração de duas es-truturas base nesta área o IPDT e o SPTT. E aqui sim o modelo ficou completo e mui-to mais abrangente.

Foi um modelo que custou muito construir, enfrentando muitas bata-lhas políticas e que resultou mes-mo em produção de evidência… Mas, neste momento, esse mode-lo parece ter sido desmantelado… É assim?FM – Como qualquer bom modelo não

pode ser estático e tem que se adaptar às novas realidades a saber das velhas subs-tâncias às novas adições aos novos tipos de consumo como os novos grupos de con-sumidores entre outros fatores e circunstân-cias e nesta perspetiva acreditando que o modelo não está esgotado tem toda a po-tencialidade de se reenquadrar num cenário diferenciado. Para isso uma nova discussão técnica e pública deve ser feita. Passaram-se mais de 15 anos e era momento de se fa-zer uma avaliação Interna e global do todo, ganhos e perdas, da redução da oferta à re-dução da procura. Nem tudo serão um” mar de rosas” mas seguramente algumas coisas teremos que reequacionar. Mais qualidade, mais rede, diversificação de programas te-rapêuticos e socio profissionais mais apoios diferenciados mais intervenção da socieda-de civil e maior regionalização dos serviços com os enquadramentos locais. Conseguir uma integração mais eficaz nas respostas do álcool e do tabaco nos serviços existen-tes de prevenção tratamento e reinserção.

Para terminar direi que tão importante como as políticas são quem as faz e so-bretudo quem as aplica pois podemos ter uma “pedra preciosa” que se for bem tra-balhada poderá ter o dobro do valor que teria se não tivesse o toque final de quem sabe potenciar e valorizar. Conhecimento, ousadia, diplomacia alguma humildade e muito bom senso serão bons conselhei-ros.