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As OSCIP (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público) e a Administração Pública: Intermediação Fraudulenta de Mão-de-Obra sob uma Nova Roupagem Jurídica Enoque Ribeiro dos Santos Procurador do Trabalho da Procuradoria Regional do Trabalho da Região (Paraná); Professor Doutor de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Desestatização e Privatização; 3 Regime dos Contratos de Gestão (as Organizações Sociais); 4 Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP); 5 A Declaração Liminar de Inconstitucionalidade pelo STF dos arts. 5º, 11 a 15 e 20 da Lei nº 9.637/98 (Lei das Organizações Sociais); 6 Da Inconstitucionalidade Reflexa da Lei nº 9.790/99 (OSCIP); 7 Uma Nova Roupagem Jurídica da Terceirização Ilícita por Órgãos da Administração Pública; 8 Responsabilidade da Autoridade Responsável pela Contratação de Servidores, sem Concurso Público; 9 Conclusões. 1 Introdução Nosso objetivo é demonstrar nas próximas linhas a perpetuação de uma das práticas mais deploráveis nos tempos modernos, em que o homem procura tirar proveito do próprio homem, com a manutenção da merchandage 1 , porém, sob uma nova roupagem jurídica, substituindo as combatidas e combalidas cooperativas de trabalho (de mão-de-obra) pelas organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP), regidas pela Lei nº 9.790/90, em verdadeiro atentado contra um dos 1 No Direito Comparado, em 1848, a França aboliu a merchandage, sob o argumento de que o trabalho, por não ser uma mercadoria, jamais poderia ser intermediado.

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Enoque Ribeiro dos Santos (Procurador do Trabalho da Procuradoria Regional do Trabalho da 9ª Região (Paraná); Professor Doutor de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).)1 Introdução; 2 Desestatização e Privatização; 3 Regime dos Contratos de Gestão (as Organizações Sociais); 4 Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP); 5 A Declaração Liminar de Inconstitucionalidade pelo STF dos arts. 5º, 11 a 15 e 20 da Lei nº 9.637/98 (Lei das Organizações Sociais); 6 Da Inconstitucionalidade Reflexa da Lei nº 9.790/99 (OSCIP); 7 Uma Nova Roupagem Jurídica da Terceirização Ilícita por Órgãos da Administração Pública; 8 Responsabilidade da Autoridade Responsável pela Contratação de Servidores, sem Concurso Público; 9 Conclusões.

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As OSCIP (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público) e a

Administração Pública: Intermediação Fraudulenta de Mão-de-Obra

sob uma Nova Roupagem Jurídica

Enoque Ribeiro dos Santos

Procurador do Trabalho da Procuradoria Regional do

Trabalho da 9ª Região (Paraná); Professor Doutor de

Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da Universidade de São

Paulo (USP).

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Desestatização e Privatização; 3

Regime dos Contratos de Gestão (as Organizações Sociais); 4

Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP); 5 A

Declaração Liminar de Inconstitucionalidade pelo STF dos arts.

5º, 11 a 15 e 20 da Lei nº 9.637/98 (Lei das Organizações

Sociais); 6 Da Inconstitucionalidade Reflexa da Lei nº 9.790/99

(OSCIP); 7 Uma Nova Roupagem Jurídica da Terceirização Ilícita

por Órgãos da Administração Pública; 8 Responsabilidade da

Autoridade Responsável pela Contratação de Servidores, sem

Concurso Público; 9 Conclusões.

1 Introdução

Nosso objetivo é demonstrar nas próximas linhas a perpetuação de uma

das práticas mais deploráveis nos tempos modernos, em que o homem

procura tirar proveito do próprio homem, com a manutenção da

merchandage1, porém, sob uma nova roupagem jurídica, substituindo

as combatidas e combalidas cooperativas de trabalho (de mão-de-obra)

pelas organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP),

regidas pela Lei nº 9.790/90, em verdadeiro atentado contra um dos

1 No Direito Comparado, em 1848, a França aboliu a merchandage, sob o argumento de que o trabalho, por não ser uma mercadoria, jamais poderia ser intermediado.

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fundamentos de validade do Estado Democrático de Direito: o princípio

da dignidade da pessoa humana, insculpido no art. 1º, III, da Carta

Magna de 1988.

Com o advento das privatizações, a partir da década de 70, mais

especificamente com o Decreto-Lei nº 200/67, o Estado passou a

transferir grande parcela da prestação dos serviços públicos à iniciativa

privada, em face dos progressos tecnológicos verificados nos campos da

informática, da telefonia celular, da televisão a cabo, da Internet, da

química fina, telecomunicações, infovias, energia, meio ambiente, etc.,

que fez com que os Estados se deparassem com uma nova realidade

econômica, social e política.

Nesse movimento engendrado de transferência de atividades do Estado

para a iniciativa privada, procurou-se criar alternativas jurídicas, com

bastante criatividade, objetivando "terceirizar" até mesmo os serviços

básicos essenciais, verdadeiros postulados constitucionais,

consubstanciados nos serviços da educação, saúde, transporte e

segurança.

Nada a contestar se nesse movimento de "publicização", como assim

chamou os legisladores, a prática de transferência de atividades do

Estado para a iniciativa privada, revelando preocupação em adaptar-se

à modernidade, à gestão eficiente de atividades diante do fenômeno da

globalização econômica, se não houvesse, como está havendo, o

malferimento de direitos basilares do trabalhador, assegurados não

apenas pela Constituição Federal, como também por tratados e

declarações internacionais, das quais o Brasil é signatário e que foram

devidamente ratificadas, hoje fazendo parte integrante de nosso sistema

jurídico.

2 Desestatização e Privatização

Após o Decreto-Lei nº 200/67, o primeiro instrumento jurídico a mudar

a configuração do Estado como prestador de serviços foi o Programa

Nacional de Desestatização, instituído pela Lei nº 8.031/90, que

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posteriormente foi revogada pela Lei nº 9.491/97. Tais instrumentos

tinham por escopo "reordenar a posição estratégica do Estado na

economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente

exploradas pelo setor público", (art. 1º, I, da Lei nº 8.031/90),

demonstrando que a busca desse objetivo acarretará a diminuição da

dívida pública e a concentração da Administração Pública em

atividades nas quais seja fundamental a presença do Estado em vistas

das prioridades nacionais.

Na busca desses objetivos, além da associação e formação de convênios

de cooperação e consórcios públicos, o Estado pretendeu modernizar-se

por meio da possibilidade de executar os serviços públicos pelos

regimes de parceria, que caracterizam-se pela aliança entre o Poder

Público e entidades privadas, com o objetivo de fazer chegar aos mais

diversos segmentos da população os serviços de que esta necessita e

que, por várias razões, não lhe são prestados.

De acordo com José dos Santos Carvalho Filho2, "o ponto característico

nuclear desses regimes consiste em que a parceria do Estado é

formalizada junto com pessoas de direito privado e da iniciativa privada,

ou seja, aquelas que, reguladas pelo direito privado, não sofrem

ingerência estatal em sua estrutura orgânica. A elas incumbirá a

execução de serviços e atividades que beneficiem a coletividade, de modo

que tal atuação se revestirá da qualificação de função delegada do Poder

Público".

Ainda consoante aquele autor3 "referidas entidades, sem dúvida, se

apresentam com certo hibridismo, na medida em que, sendo privadas,

desempenham função pública, têm sido denominadas de entidades do

terceiro setor, a indicar que não se tratam nem dos entes federativos nem

das pessoas que executam a administração indireta e descentralizada

daqueles, mas simplesmente compõem um tertium genus, ou seja, um

agrupamento de entidades responsáveis pelo desenvolvimento de novas

formas de prestação dos serviços públicos. É possível classificar os

2 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 13. ed. Rio de Janeiro: Lumen

Juris, p. 267. 3 Idem, ibidem, p. 267.

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regimes de parceria em três grupos: 1) o regime de convênios

administrativos; 2) o regime de contratos de gestão e 3) o regime de

gestão por colaboração".

3 Regime dos Contratos de Gestão (as Organizações Sociais)

Para o desenvolvimento de nosso trabalho, o que nos interessa,

efetivamente, é o estudo das organizações sociais, entre elas, as OSCIP

e as organizações sociais de interesse público, sem fins lucrativos.

Iniciemos pelas organizações sociais e os contratos de gestão.

Com o escopo de ampliar a descentralização administrativa na

prestação de serviços públicos, o Estado criou o Programa Nacional de

Publicização (PNP), e, com o advento da Lei nº 9.637/98, algumas

atividades de caráter social, exercidas por pessoas e órgãos

administrativos de direito público, poderiam ser posteriormente

absorvidos por pessoas de direito privado. Estatui o art. 20, dessa Lei,

in verbis:

"Art. 20. Será criado, mediante decreto do Poder Executivo, o Programa

Nacional de Publicização - PNP, com o objetivo de estabelecer diretrizes e

critérios para a qualificação de organizações sociais, a fim de assegurar

a absorção de atividades desenvolvidas por entidades ou órgãos

públicos da União, que atuem nas atividades referidas no art. 1º, por

organizações sociais, qualificadas na forma desta Lei, observadas as

seguintes diretrizes:

I - ênfase no atendimento do cidadão-cliente;

II - ênfase nos resultados, qualitativos e quantitativos nos prazos

pactuados;

III - controle social das ações de forma transparente."

Na verdade, o que o Estado buscava com o programa mencionado era o

seu afastamento direto da atividade de prestação de alguns serviços

públicos, delegando-os a pessoas de direito privado, não integrantes da

Administração Pública direta ou indireta, principalmente organizações

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do terceiro setor. Essas pessoas jurídicas do terceiro setor, a quem

incumbiria a execução desses serviços públicos, em regime de parceria

com o Estado, por meio de contratos de gestão (Lei nº 9.637/98) ou

contratos de parceria (Lei nº 9.790/99) constituem as chamadas

organizações sociais ou organizações da sociedade civil de interesse

público (OSCIP).

A Lei nº 9.637/98, em seus primeiros artigos, dispõe:

"Art. 1º O Poder Executivo poderá qualificar como organizações

sociais pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos,

cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica,

ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio

ambiente, à cultura e à saúde, atendidos aos requisitos previstos

nesta Lei.

Art. 2º São requisitos específicos para que as entidades privadas

referidas no artigo anterior habilitem-se a qualificação como

organização social:

I - comprovar o registro de seu ato constitutivo, dispondo sobre:

a) natureza social de seus objetivos relativos à respectiva área de

atuação;

b) finalidade não-lucrativa, com a obrigatoriedade de investimento

de seus excedentes financeiros no desenvolvimento das próprias

atividades;

c) previsão expressa de a entidade ter, como órgãos de deliberação

superior e de direção, um conselho de administração e uma

diretoria definidos nos termos do estatuto, asseguradas àquele

composição e atribuições normativas e de controle básicas

previstas nesta Lei;

d) previsão de participação, no órgão colegiado de deliberação

superior, de representantes do Poder Público e de membros da

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comunidade, de notória capacidade profissional e idoneidade

moral;

e) composição e atribuições da diretoria;

f) obrigatoriedade de publicação anual, no Diário Oficial da União,

dos relatórios financeiros e do relatório de execução do contrato de

gestão;"

Observa-se, que por norma infraconstitucional, o Estado está

transferindo à iniciativa privada, algumas de suas atividades nucleares,

ou atividades-fim, entre elas a educação e saúde, dois setores que

absorvem o maior contingente de trabalhadores, nas mais variadas

funções: agentes comunitários, enfermeiras, médicos, laboratoristas,

etc. A responsabilidade do Poder Público, em qualquer de suas esferas

(União, Estado, Distrito Federal e Município), para a prestação de

saúde, por exemplo, na forma do art. 196 da CF/88, consolida-se como

atividade permanente, verdadeira missão do Estado. Como atividade-

fim, deve o Poder Público prestá-la, preferencialmente, de modo direto.

Para aquelas entidades basta obter o certificado de qualificação junto

ao Ministério da Justiça, desde que atendam às exigências legais, para

assumir a função de parceiros do Estado, visando à execução de

determinadas tarefas de interesse público.

Segundo a Lei nº 8.666/93 tais entidades poderiam contratar e celebrar

com o Poder Público contratos de gestão até mesmo sem licitação, como

se deflui do artigo:

"Art. 24. É dispensável a licitação:

XXIV - para a celebração de contratos de prestação de serviços

com as organizações sociais, qualificadas no âmbito das

respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no

contrato de gestão; (Inciso acrescentado pela Lei nº 9.648, de

27.05.98)."

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Nesse contexto, uma vez qualificadas como organizações sociais, o que

resultará de critério discricionário do Ministério competente para

supervisionar ou regular a área de atividade correspondente ao objeto

social (art. 2º, II), as entidades são declaradas como de interesse

público e utilidade pública para todos os efeitos legais e podem receber

recursos orçamentários e usar bens públicos necessários à consecução

de seus objetivos, neste último caso através de permissão de uso (arts.

11 e 112). Admissível ainda a cessão especial de servidor público, com

ônus para o governo, vale dizer, o governo poderá ceder servidor seu

para atuar nas organizações sociais com a incumbência do pagamento

de seus vencimentos4.

Nos contratos de gestão, segundo a Lei, deverão ser observados os

princípios da moralidade, da legalidade, da impessoalidade, da

publicidade e da economicidade, o que por si só atrita com a

inexigibilidade da licitação, haja vista que este fato retira a

oportunidade para que outras associações também, democraticamente,

participem do pleito, no sentido de firmar contratos com a

Administração Pública.

Portanto, pela Lei nº 9.637/98, as organizações sociais podem, entre

outras vantagens, contratar empregados sem concurso público,

adquirir bens, produtos e serviços sem processo de Licitação e ainda

não prestar contas de seus gastos a órgãos de controle interno e

externos da Administração Pública, porque estas são consideradas

atribuições privativas do Conselho de Administração, que por seu

turno, pode aprovar por maioria, no mínimo, de dois terços de seus

membros, o regulamento próprio contendo os procedimentos que devem

adotar para a contratação de obras, serviços, compras e alienações e o

plano de cargos, salários e benefícios dos empregados da entidade.

Trata-se de um tipo de terceirização ou privatização de serviços

públicos, que culmina com a transferência de um dever do Estado,

atribuído constitucionalmente entre as competências privativas da

União para entes privados, que podem dispor de bens, patrimônio,

4 Idem, ibidem, p. 269.

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créditos e até mesmo de servidores públicos para administrar e gerir

seus próprios interesses. Não bastasse isso, essas entidades do terceiro

setor são ainda declaradas de interesse social e utilidade pública, para

os fins legais.

A saúde (art. 196), a educação e o ensino (arts. 203 e 204 da CF/88)

são deveres do Estado, e este não pode simplesmente desobrigar-se ou

afastar sua responsabilidade na prestação desses serviços,

transferindo-as a terceiros, já que resta ao setor privado o papel tão-

somente de complementaridade5, na forma da Lei nº 8.666/93.

Não obstante, o que se percebeu pela experiência prática com as

terceirizações previstas nas Leis ns. 9.637/98 e 9.970/99 foi a

transferência pelo Poder Público de prédios, móveis, hospitais, postos

de saúde, equipamentos, recursos públicos e até mesmo cessão de

pessoal estatutário para esses entes do terceiro setor, portanto, da

iniciativa privada. Sem muito esforço, conclui-se que este último fato

trata-se de uma teratologia jurídica: obrigar servidores públicos

estatutários, a prestar serviços a empresas privadas, quando aprovados

em concursos para preencher cargos em órgãos públicos.

4 Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP)

As OSCIP como ficaram conhecidas e como passaremos a chamar

doravante as organizações da sociedade civil de interesse público,

criadas pela Lei nº 9.790/99, apresentam as seguintes características

básicas, como defluem dos artigos a seguir mencionados:

"Art. 1º Podem qualificar-se como Organizações da Sociedade

Civil de Interesse Público as pessoas jurídicas de direito privado,

5 A iniciativa privada tem participação complementar na prestação de serviços da saúde ao SUS, que caracterizam-se como serviços de relevância pública (art. 197

CF/88). Quando a capacidade instalada do Estado for insuficiente, tais serviços podem ser prestados por terceiros. Vale dizer, pela capacidade instalada de entes privados, preferencialmente entidades filantrópicas e sem fins lucrativos (art. 199, §

1º, CF/88) e art. 24 da Lei nº 8.080/90, que dispõe: "quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde - SUS poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada".

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sem fins lucrativos, desde que os respectivos objetivos sociais e

normas estatutárias atendam aos requisitos instituídos por esta

Lei.

§ 1º Para os efeitos desta Lei, considera-se sem fins lucrativos a

pessoa jurídica de direito privado que não distribui, entre os seus

sócios ou associados, conselheiros, diretores, empregados ou

doadores, eventuais excedentes operacionais, brutos ou líquidos,

dividendos, bonificações, participações ou parcelas do seu

patrimônio, auferidos mediante o exercício de suas atividades, e

que os aplica integralmente na consecução do respectivo objeto

social.

§ 2º A outorga da qualificação prevista neste artigo é ato

vinculado ao cumprimento dos requisitos instituídos por esta

Lei."

Não podem ser qualificadas como OSCIP várias categorias de pessoas

jurídicas, entre elas, as sociedades comerciais, inclusive as que

comercializam planos de saúde, as cooperativas, organizações sociais,

organizações creditícias relacionadas com o setor financeiro, partidos

políticos, instituições religiosas, hospitais, escolas sem gratuidade,

pessoas, inclusive fundações instituídas pelo Poder Público.

O objetivo das OSCIP vem ditado pelo art. 3º da Lei nº 9.790/90, in

verbis:

"Art. 3º A qualificação instituída por esta Lei, observado em

qualquer caso, o princípio da universalização dos serviços, no

respectivo âmbito de atuação das Organizações, somente será

conferida às pessoas jurídicas de direito privado, sem fins

lucrativos, cujos objetivos sociais tenham pelo menos uma das

seguintes finalidades:

I - promoção da assistência social;

II - promoção da cultura, defesa e conservação do patrimônio

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histórico e artístico;

III - promoção gratuita da educação, observando-se a forma

complementar de participação das organizações de que trata esta

Lei;

IV - promoção gratuita da saúde, observando-se a forma

complementar de participação das organizações de que trata esta

Lei;

V - promoção da segurança alimentar e nutricional;

VI - defesa, preservação e conservação do meio ambiente e

promoção do desenvolvimento sustentável;

VII - promoção do voluntariado;

VIII - promoção do desenvolvimento econômico e social e combate à

pobreza;

IX - experimentação, não-lucrativa, de novos modelos sócio-

produtivos e de sistemas alternativos de produção, comércio,

emprego e crédito;

X - promoção de direitos estabelecidos, construção de novos

direitos e assessoria jurídica gratuita de interesse suplementar;

XI - promoção da ética, da paz, da cidadania, dos direitos

humanos, da democracia e de outros valores universais;

XII - estudos e pesquisas, desenvolvimento de tecnologias

alternativas, produção e divulgação de informações e

conhecimentos técnicos e científicos que digam respeito às

atividades mencionadas neste artigo.

Parágrafo único. Para os fins deste artigo, a dedicação às

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atividades nele previstas configura-se mediante a execução direta

de projetos, programas, planos de ações correlatas, por meio da

doação de recursos físicos, humanos e financeiros, ou ainda pela

prestação de serviços intermediários de apoio a outras

organizações sem fins lucrativos e a órgãos do setor público que

atuem em áreas afins."

Uma vez qualificadas pelo Ministério da Justiça, as OSCIP poderão

celebrar termos de parceria com o Poder Público, na modalidade de

gestão por colaboração. Essa delegação de atividades pelo Estado às

OSCIP, na verdade tem o mesmo efeito da terceirização, pois envolve

atividade-fim e não atividade-meio, já que a própria Lei nº 9.790/99

declara quais as atividades que podem ensejar os contratos de parceria.

José dos Santos Carvalho Filho6 destaca que "tais preceitos

demonstram que o regime de parceria previsto na Lei nº 9.790/99

implica sérias responsabilidades às entidades qualificadas como

organizações da sociedade civil de interesse público, e isso pela

circunstância de que, mesmo tendo personalidade jurídica de direito

privado e pertencendo ao segmento da sociedade civil, passam a

executar serviços públicos em regime formalizado por instrumento

próprio, o termo de parceria, devendo, por conseguinte, respeitar as

obrigações pactuadas e, o que é mais importante, direcionar-se

primordialmente ao interesse público, visto que no exercício dessas

atividades a organização desempenha função delegada do Poder

Público".

Em seu art. 4º, a Lei nº 9.790/99 também enfatiza a observância dos

princípios básicos da Administração Pública, discriminados no art. 37

da Carta Magna, ao dispor:

"Art. 4º Atendido o disposto no art. 3º, exige-se ainda, para

qualificarem-se como Organizações da Sociedade Civil de Interesse

Público, que as pessoas jurídicas interessadas sejam regidas por

estatutos cujas normas expressamente disponham sobre:

6 Idem, ibidem, p. 273

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I - a observância dos princípios da legalidade, impessoalidade,

moralidade, publicidade, economicidade e da eficiência;

II - a adoção de práticas de gestão administrativa, necessárias e

suficientes a coibir a obtenção, de forma individual ou coletiva, de

benefícios ou vantagens pessoais, em decorrência da participação

no respectivo processo decisório;

III - a constituição de conselho fiscal ou órgão equivalente, dotado

de competência para opinar sobre os relatórios de desempenho

financeiro e contábil, e sobre as operações patrimoniais realizadas,

emitindo pareceres para os organismos superiores da entidade;

IV - a previsão de que, em caso de dissolução da entidade, o

respectivo patrimônio líquido será transferido a outra pessoa

jurídica qualificada nos termos desta Lei, preferencialmente que

tenha o mesmo objeto social da extinta;

V - a previsão de que, na hipótese de a pessoa jurídica perder a

qualificação instituída por esta Lei, o respectivo acervo patrimonial

disponível, adquirido com recursos públicos durante o período em

que perdurou aquela qualificação, será transferido a outra pessoa

jurídica qualificada nos termos desta Lei, preferencialmente que

tenha o mesmo objeto social;

VI - a possibilidade de se instituir remuneração para os dirigentes

da entidade que atuem efetivamente na gestão executiva e para

aqueles que a ela prestam serviços específicos, respeitados, em

ambos os casos, os valores praticados pelo mercado, na região

correspondente a sua área de atuação;

VII - as normas de prestação de contas a serem observadas pela

entidade, que determinarão, no mínimo:

a) a observância dos princípios fundamentais de contabilidade e

das Normas Brasileiras de Contabilidade;

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b) que se dê publicidade por qualquer meio eficaz, no encerramento

do exercício fiscal, ao relatório de atividades e das demonstrações

financeiras da entidade, incluindo-se as certidões negativas de

débitos junto ao INSS e ao FGTS, colocando-os à disposição para

exame de qualquer cidadão;

c) a realização de auditoria, inclusive por auditores externos

independentes se for o caso, da aplicação dos eventuais recursos

objeto do termo de parceria conforme previsto em regulamento;

d) a prestação de contas de todos os recursos e bens de origem

pública recebidos pelas Organizações da Sociedade Civil de

Interesse Público será feita conforme determina o parágrafo único

do art. 70 da Constituição Federal.

Parágrafo único. É permitida a participação de servidores públicos

na composição de conselho de Organização da Sociedade Civil de

Interesse Público, vedada a percepção de remuneração ou

subsídio, a qualquer título. (NR) (Redação dada ao parágrafo pela

Lei nº 10.539, de 23.09.02, DOU 24.09.02)"

Observa-se a grande semelhança existente entre o sistema dos

contratos de gestão próprios das organizações sociais e os termos de

parceria firmados pelo Estado com as OSCIP. O núcleo central de

ambos é a parceria Estado/entidade privada na busca de objetivos de

interesses comuns, porém, envolvendo a delegação de poder para o

exercício de atividades-fim do Poder Público, especialmente as ligadas à

saúde e educação, que absorvem grande contingente de trabalhadores,

cuja mão-de-obra anteriormente era fornecida especialmente pelas

cooperativas ilícitas de mão-de-obra.

É digno de realce que a CF/88 (art. 199) permite a participação de

entes privados de forma complementar, afastando a possibilidade de

celebração de contratos de administração gerenciada, que tenha por

objeto o próprio serviço da saúde e da educação. O Poder Público não

tem autorização para transferir a uma organização social, a

administração e execução plena de suas atividades de saúde, prestada

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por exemplo por um hospital público. Logo, o Poder Público pode

apenas contratar terceiros para prestação de atividades-meio (limpeza,

vigilância, bem como serviços técnicos especializados, como consultas e

exames médicos), e não a transferência de toda a gestão administrativa

e operacional.

5 A Declaração Liminar de Inconstitucionalidade pelo STF dos

artigos 5º, 11 a 15 e 20 da Lei nº 9.637/98 (Lei das Organizações

Sociais)

Em julgamento da ADI 1.923, no STF, no dia 02.02.07, sobre

organizações sociais, o Ministro Eros Grau apresentou voto de vista

divergente, concedendo liminar para suspender os efeitos do disposto

no art. 1º da Lei nº 9.648/987, e nos arts. 5º, 11 a 15 e 20 da Lei nº

9.637/988, de cuja ementa transcrevemos os pontos que julgamos mais

importantes para o debate que nos propusemos.

7 Art. 1º Os arts. 5º, 17, 23, 24, 26, 32, 40, 45, 48, 57, 65 e 120 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993,

que regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal e institui normas para licitações e contratos da Administração Pública, passam a vigorar com as seguintes alterações:

XXIV - para a celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais, qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão. Parágrafo único. Os percentuais referidos nos incisos I e II deste artigo serão 20% (vinte por cento) para compras, obras e serviços contratados por sociedade de economia mista e empresa pública, bem assim por autarquia e fundação qualificadas, na forma da lei, como Agências Executivas.

"Art. 26. As dispensas previstas nos §§ 2º e 4º do art. 17 e nos incisos III a XXIV do art. 24, as situações de inexigibilidade referidas no art. 25, necessariamente justificadas, e o retardamento previsto no final do parágrafo único do art. 8º deverão ser comunicados dentro de três dias à autoridade superior, para ratificação e publicação na imprensa oficial, no prazo de cinco dias, como condição para eficácia dos atos

8 Do Contrato de Gestão

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, entende-se por contrato de gestão o instrumento firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como organização social, com vistas à formação de parceria entre as partes para fomento e execução de atividades relativas às áreas relacionadas no art. 1º.

Do Fomento às Atividades Sociais

Art. 11. As entidades qualificadas como organizações sociais são declaradas como entidades de interesse social e utilidade pública, para todos os efeitos legais.

Art. 12. Às organizações sociais poderão ser destinados recursos orçamentários e bens públicos necessários ao cumprimento do contrato de gestão.

§ 1º São assegurados às organizações sociais os créditos previstos no orçamento e as respectivas liberações financeiras, de acordo com o cronograma de desembolso previsto no contrato de gestão.

§ 2º Poderá ser adicionada aos créditos orçamentários destinados ao custeio do contrato de gestão parcela de recursos para compensar desligamento de servidor cedido, desde que haja justificativa expressa da necessidade pela organização social.

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A rigor, a ADI foi proposta pelo PDT questionando: a) a qualificação de

entidades como organizações sociais; b) a criação do Programa Nacional

de Publicização; c) a extinção dos órgãos e entidades que ela, a Lei,

menciona e d) a absorção de suas atividades por organizações sociais.

Questionam ainda a constitucionalidade do inciso XXIV do art. 24 da

Lei nº 8.666/93, com a redação que lhe foi conferida pelo art. 1º da Lei

nº 9.648/98. O Ministro Ilmar Galvão indeferiu o pedido liminar

anteriormente, entendendo que os textos normativos impugnados não

transferem a entidades privadas a prestação de serviços públicos, mas

apenas possibilitam que o Estado estabeleça parcerias com

particulares, visando a maior eficiência no desempenho das atividades

relacionadas no art. 1º da Lei nº 9.637/98. Outros Ministros do STF

§ 3º Os bens de que trata este artigo serão destinados às organizações sociais, dispensada licitação, mediante permissão de uso, consoante cláusula expressa do contrato de gestão.

Art. 13. Os bens móveis públicos permitidos para uso poderão ser permutados por outros de igual ou maior valor, condicionado a que os novos bens integrem o patrimônio da União.

Parágrafo único. A permuta de que trata este artigo dependerá de prévia avaliação do bem e expressa autorização do Poder Público.

Art. 14. É facultado ao Poder Executivo a cessão especial de servidor para as organizações sociais, com ônus para a origem.

§ 1º Não será incorporada aos vencimentos ou à remuneração de origem do servidor cedido qualquer vantagem pecuniária que vier a ser paga pela organização social.

§ 2º Não será permitido o pagamento de vantagem pecuniária permanente por organização social a servidor cedido com recursos provenientes do contrato de gestão, ressalvada a hipótese de adicional relativo ao exercício de função temporária de direção e assessoria.

§ 3º O servidor cedido perceberá as vantagens do cargo a que fizer jus no órgão de origem, quando ocupante de cargo de primeiro ou de segundo escalão na organização social.

Art. 15. São extensíveis, no âmbito da União, os efeitos dos arts. 11 e 12, § 3º, para as entidades qualificadas como organizações sociais pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, quando houver reciprocidade e desde que a legislação local não contrarie os preceitos desta Lei e a legislação específica de âmbito federal.

Art. 20. Será criado, mediante decreto do Poder Executivo, o Programa Nacional de Publicização - PNP, com o objetivo de estabelecer diretrizes e critérios para a qualificação de organizações sociais, a fim de assegurar a absorção de atividades desenvolvidas por entidades ou órgãos públicos da União, que atuem nas atividades referidas no art. 1º, por organizações sociais, qualificadas na forma desta Lei, observadas as seguintes diretrizes:

I - ênfase no atendimento do cidadão-cliente;

II - ênfase nos resultados, qualitativos e quantitativos nos prazos pactuados;

III - controle social das ações de forma transparente.

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acompanharam o relator.

O Ministro Eros Grau9 assevera que:

"(...) quanto ao ensino e à saúde, seja os prestados pelo Estado,

seja os prestados por particulares, configuram serviço público não

privativo, isto é, serviço público que pode ser prestado pelo setor

público independentemente de concessão, permissão ou

autorização. São porém, sem sombra de dúvida, serviço público. O

art. 199 e o art. 209 da CF afirmam que a assistência à saúde e ao

ensino são livres à iniciativa privada, isso significando que o setor

privado pode prestar esses serviços públicos independentemente

da outorga de concessão ou permissão pelo Estado. (...) São outras

as inovações por ela trazidas. Quem prestigiasse a busca da

intenção ou vontade do legislador - método de interpretação que a

nova hermenêutica despreza - diria que essa lei, na crista do

chamado neoliberalismo, instrumenta a redução do tamanho do

Estado, na redefinição de seu papel. O legislador teria sido

inspirado por uma 'vontade de reforma do Estado'. Sucede, para

azar dos que pretendem substituir o Estado pela sociedade civil

(rectius, pelo mercado), que essa redução e essa redefinição são

incompatíveis com a CF, cujos arts. 1º, 3º e 170 permanecem

íntegros, sem que nenhuma emenda nela introduzida os tenha

afetado. E isso de tal sorte que a sua normatividade permanece

voltada à construção de uma sociedade livre, justa e solidária; à

garantia do desenvolvimento nacional; à erradicação da pobreza e

da marginalização, bem assim à redução das desigualdades

sociais e regionais, à promoção do bem de todos; à afirmação da

soberania, da cidadania e do valor social do trabalho, bem assim

do valor social da livre iniciativa; à realização da justiça social."

Em continuação o insigne Ministro aduz que:

"(...) a definição do contrato de gestão como instrumento firmado

entre o Poder Público e a entidade qualificada como organização

9 Voto proferido pelo Ministro Eros Grau, em sede de ADI nº 1.923 sobre organizações sociais. Site oficial do STF, 02.02.07: <http://www.stf.gov.br>.

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social causa espanto. Pois a de nº 9.637 é uma lei que sem sombra

de dúvida muito inova a ciência do direito: seu art. 5º define como

contrato não o vínculo, mas seu instrumento... Seja como for, a

celebração desse contrato de gestão com o Poder Público habilitará

a organização social ao desfrute de certas vantagens. Mais do que

vantagens, favores desmedidos, visto que essa contratação não é

antecedida de licitação. (...)

13. Uma das inovações ao ordenamento jurídico aportada pela lei

está em que às organizações sociais poderão ser destinados

recursos orçamentários e bens públicos móveis e imóveis com

dispensa de licitação (art. 12 e §§). Para recebê-los, a organização

social, como observa Celso Antônio Bandeira de Mello, 'não

necessita demonstrar habilitação técnica ou econômico-financeira

de qualquer espécie. Basta a concordância do Ministro da área (ou

mesmo do titular do órgão que a supervisione)...'

14. Mas não é só. É facultada ainda ao Poder Executivo a 'cessão

especial de servidor para as organizações sociais, com ônus para a

origem' (arts. 13 a 15). Uma coisa nunca vista. Direi neste passo

apenas isso, além de me permitir a transcrição de pequeno trecho

de Celso Antônio Bandeira de Mello10: 'enquanto para travar

relações contratuais singelas (como um contrato de prestação de

serviços ou de execução de obras) o pretendente é obrigado a

minuciosas demonstrações de aptidão, inversamente, não se faz

exigência de capital mínimo nem demonstração de qualquer

suficiência técnica para que um interessado receba bens públicos,

móveis ou imóveis, verbas públicas e servidores públicos custeados

pelo Estado, considerando-se bastante para a realização de tal

operação a simples aquiescência de dois Ministros de Estado ou,

conforme o caso, de um Ministro e de um supervisor da área

correspondente à atividade exercida pela pessoa postulante ao

qualificativo de 'organização social'. Trata-se, pois, da outorga de

uma discricionariedade literalmente inconcebível, até mesmo

escandalosa, por sua desmedida amplitude, e que permitirá

favorecimentos de toda a espécie'."

10 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 221-2.

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Continua o mestre, em seu voto11:

"Há nisso uma inconstitucionalidade manifesta, pois se trata de

postergar o princípio constitucional da licitação (art. 37, XXI) e,

pois, o princípio constitucional da isonomia (art. 5º) do qual a

licitação é simples manifestação punctual, conquanto abrangente

também de outro propósito (a busca do melhor negócio).

15. A circunstância de o art. 37, XXI, permitir seja excepcionada,

nos casos previstos em lei, a exigência de licitação para a seleção

dos que poderão celebrar contratos com a Administração, essa

circunstância não libera o legislador para, discricionariamente,

afastar o certame quando lhe aprouver. Permito-me tornar a dizer

que não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços. Tenho

insistido em que a interpretação do direito é interpretação do

direito, não de textos isolados, desprendidos do direito. Não se

interpreta textos de direito, isoladamente, mas sim o direito - a

Constituição - no seu todo. Por isso, embora a Constituição autorize

o legislador a excepcionar a exigência da licitação, ele o fará, se e

quando o fizer, sob as vinculações que a totalidade normativa que

a Constituição é impõe, especialmente, a vinculação pela

igualdade.

16. A concreção do princípio da igualdade reclama a prévia

determinação de quais sejam os iguais e quais os desiguais, até

porque - e isso é repetido quase que automaticamente, deste Platão

e Aristóteles12 - a igualdade consiste em dar tratamento igual aos

iguais e desigual aos desiguais. Vale dizer: o direito deve distinguir

pessoas e situações distintas entre si, a fim de conferir

tratamentos normativos diversos a pessoas e a situações que não

sejam iguais entre si. A questão fica - crucial - está em sabermos,

na dicção de Celso Antonio Bandeira de Mello13, 'que espécie de

11 Voto proferido pelo Ministro Eros Grau, em sede de ADI nº 1.923, sobre organizações sociais. Site oficial do STF, 02.02.07: <http://www.stf.gov.br>. 12 GRAU, Eros. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 127.

13 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Op. cit.

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igualdade veda e que tipo de desigualdade faculta a discriminação

de situações e de pessoas, sem quebra e agressão aos objetivos

transfundidos no princípio constitucional da isonomia'.

17. Tudo se torna mais claro na medida em que considerarmos o

quanto afirma Kelsen: 'os homens (assim como as circunstâncias

externas) apenas podem ser considerados como iguais, ou, por

outras palavras, apenas há homens iguais (ou circunstâncias

externas iguais), na medida em que as desigualdades que de facto

entre eles existem não sejam tomadas em consideração. Se não há

que tomar em conta quaisquer desigualdades sejam elas quais

forem, todos são iguais e tudo é igual'.

18. E prossegue, adiante, observando que o princípio 'postula não

apenas um tratamento igual mas também um tratamento desigual.

Por isso, tem de haver uma norma correspondente a este princípio

que expressamente defina certas qualidades em relação às quais

desigualdades hão de ser tidas em conta, a fim de que as

desigualdades em relação às outras qualidades possam

permanecer irrelevantes, a fim de que possam haver de todo em

todo, portanto, indivíduos 'iguais'. 'Iguais' são aqueles indivíduos

que, em relação às qualidades assim determinadas, não são

desiguais. E o poderem, de todo em todo, existir indivíduos 'iguais',

é a conseqüência do facto de que, se não todas, pelo menos certas

desigualdades não são consideradas'.

19. Por isso mesmo que a lei - como qualquer outro texto normativo

- pode, sem violação do princípio da igualdade distinguir situações,

a fim de conferir a uma tratamento diverso do que atribui a outra.

Para que possa fazê-lo, contudo, sem que tal violação se manifesta,

é necessário que a discriminação guarde compatibilidade com o

conteúdo do princípio. Procurando dar resposta à indagação a

respeito de quais situações e pessoas podem ser discriminadas

sem quebra e agressão aos objetivos transfundidos no princípio

constitucional da isonomia, a jurisprudência do Tribunal

Constitucional alemão toma como fio condutor o seguinte: 'A

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máxima da igualdade é violada quando para a diferenciação legal

ou para o tratamento legal igual não seja possível encontrar uma

razão adequada, que surja da natureza da coisa ou quem, de

alguma forma, seja compreensível, isto é, quando a disposição

tenha de ser qualificada de arbitrária'14.

20. Dir-se-á, pois, que uma discriminação será arbitrária quando

'não seja possível encontrar, para a diferenciação legal, alguma

razão adequada que surja da natureza das coisas ou que, de

alguma forma, seja concretamente compreensível'.

21. Pois exatamente isso se dá na hipótese da Lei nº 9.637/98:

não há razão nenhuma a justificar a celebração de contrato de

gestão com as organizações sociais, bem assim a destinação de

recursos orçamentários e de bens públicos móveis e imóveis a elas,

tudo com dispensa de licitação. Mais grave ainda a afrontosa

agressão ao princípio da licitação quando se considere que é

facultada ao Poder Executivo a 'cessão especial de servidor para

as organizações sociais, com ônus para a origem'.

Inconstitucionalidade chapada, como diria o Ministro Pertence,

inconstitucionalidade que se manifesta também no preceito

veiculado pelo inciso XXIV do art. 24 da Lei nº 8.666/93, com a

redação que lhe foi conferida pelo art. 1º da Lei nº 9.648/98.

22. Mas não apenas esses preceitos - o art. 1º da Lei nº 9.648/98

e os arts. 11 a 15 da Lei nº 9.637/98 - são inconstitucionais.

Também o são o art. 5º, na medida em que coloca sob um

indefinido e difuso regime de 'parceria' o cumprimento de função

(dever poder) do Estado e o art. 20, que prevê a criação de um

'Programa Nacional de Publicização (PNP)', cujo objetivo, bem ao

contrário do que o nome (com sarcasmo?) pretenderia indicar, é a

privatização de funções estatais. Dessas funções não se pode

demitir o Estado sem agressão ao disposto nos arts. 1º, 3º, 215,

218 e 225 da CF.

14 ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1986, p. 366.

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23. Os preceitos veiculados pelos arts. 1º a 4, 7º a 11 e 16 a 19

tornam-se inócuos na medida em que venham a ser liminarmente

suspensos os efeitos dos artigos cuja inconstitucionalidade parece

incontestável. O art. 6º estabelece que o contrato de gestão será

'elaborado de comum acordo entre o órgão ou entidade supervisora

e a organização social' - incorporando ao direito a afirmação

(pasmem!) de que o contrato, apesar de ser um 'instrumento', é um

acordo de vontades... E estabelece, em seqüência, que o contrato

discriminará as atribuições, responsabilidades e obrigações das

partes...

24. Quanto ao disposto nos arts. 21 a 23, tenho-os à primeira vista

como dotados de efeitos concretos, o que inviabilizaria a sua

apreciação em sede de controle concentrado de

constitucionalidade. Examinarei essa matéria posteriormente,

quando cuidarmos do mérito da presente ADI. Assim, divergindo

dos que me antecederam, com as vênias de estilo, concedo a

liminar para suspender os efeitos do disposto no art. 1º da Lei nº

9.648/98, e nos arts. 5º, 11 a 15 e 20 da Lei nº 9.637/98."

6 Da Inconstitucionalidade Reflexa da Lei nº 9.790/99 (OSCIP)

Considerando que vários artigos da Lei nº 9.790/99 (OSCIP) repetem

ipsis litteris arts. da Lei nº 9.637/98, especialmente em relação às

benesses que lhe faculta o Poder Público, cujos efeitos foram

suspensos, via liminar do STF, cujo voto justamente acabamos de

transcrever, não remanesce qualquer dúvida que idênticos artigos da

retro-mencionada Lei nº 9.790/99 são flagrantemente

inconstitucionais, mesmo que de forma reflexa. É dizer: aquilo que não

vale para as organizações sociais, da mesma forma não deve valer para

as OSCIP, posto que existe uma relação de continência entre essas

últimas relativamente às primeiras.

E em sendo tais artigos da Lei nº 9.790/99 inconstitucionais,

reflexamente, são inservíveis para efeito de servirem de fundamento à

intermediação fraudulenta de mão-de-obra perpetrada pelos órgãos

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públicos, já que cai por terra toda a sua linha de argumentação.

Sabemos que vários procedimentos devem ser obedecidos na

terceirização dos serviços públicos, quais sejam:

A licitação, exigência da norma constitucional (arts. 175 e 37, XXI da

Carta Magna de 1988), constitui procedimento obrigatório na

terceirização de serviços públicos, sempre tendo em vista a escolha da

oferta mais vantajosa para a Administração, bem como para facultar a

igualdade de acesso à contratação pela Administração;

No que respeita à fiscalização do serviço, cabe ao poder Público

controlar a execução dos serviços públicos terceirizados, em especial

quanto à prestação de serviços adequados (art. 175, IV, da CF/88);

As hipóteses de terceirização lícita de serviços públicos estão, portanto,

circunscritas à terceirização para o trabalho temporário, com

observância do art. 10 da Lei nº 6.019/74 (não pode ser superior a 3

(três) meses, salvo autorização conferida pelo órgão local do Ministério

do Trabalho); a terceirização dos serviços de vigilantes, com fulcro na

Lei nº 7.102/83; a terceirização de atividades-meio (conservação,

limpeza, serviços especializados ligados às atividades-meio do Estado,

como tomador dos serviços).

Portanto, atividades de saúde e de ensino não são mais passíveis de

terceirização lícita. No que diz respeito ao ensino, a Lei de Diretrizes e

Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96) vedou, de forma

definitiva, a terceirização dos serviços educacionais, voltados à

atividade de "ensinar", uma vez que o profissional da educação deve

necessariamente ser selecionado por meio do concurso público. Diz o

art. 67 dessa Lei:

"Art. 67. Os sistemas de ensino promoverão a valorização dos

profissionais da educação, assegurando-lhes, inclusive nos

termos dos estatutos e dos planos de carreira do magistério

público:

I - ingresso exclusivamente por concurso público de provas e

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títulos." (grifo nosso)

Neste contexto, não poderá mais o Poder Público se valer de estagiários

para "ensinar" em lugar de docentes, regularmente contratados por

concurso público. Portanto, verificada a inconstitucionalidade das leis

das organizações sociais e das OSCIP, não restará outra alternativa às

entidades da Administração Pública, a não ser a trilha do caminho da

legalidade, e esse caminho conduz necessariamente à realização de

concursos públicos de provas ou de provas e títulos na contratação de

pessoal.

7 Uma Nova Roupagem Jurídica da Terceirização Ilícita por Órgãos

da Administração Pública

Como é cediço, o MPT vem combatendo as irregularidades na

contratação de servidores pelos Municípios e órgãos da Administração

Pública, principalmente relacionados à ausência do concurso público

(art. 37, II, e § 2º, da CF/88), por meio de Ações Civis Públicas,

utilizando-se da legitimidade que lhe atribuem os arts. 127 a 129 da CF

e art. 83 da LC nº 75/93.

Até pouco tempo atrás, os entes públicos vinham usurpando a prática

do concurso público por meio da contratação de cooperativas de mão-

de-obra. Mediante tal desiderato, toda sorte de servidores eram

contratados pela cooperativa para prestar serviços ao Poder Público, em

verdadeiro processo de mercantilização da mão-de-obra, já que os

trabalhadores tinham todos os seus direitos trabalhistas e

previdenciários sonegados, uma vez que tal contratação é nula, não

produzindo quaisquer efeitos jurídicos, a não ser o pagamento das

horas efetivamente trabalhadas e o FGTS, consoante Súmula nº 36315

do TST16.

15 Nº 363 - Contrato nulo. Efeitos. Nova redação

A contratação de servidor público, após a CF/88, sem prévia aprovação em concurso público, encontra óbice no respectivo art. 37, II e § 2º, somente lhe conferindo direito ao pagamento da contraprestação pactuada, em relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo, e dos valores referentes aos depósitos do FGTS.

16 "Embargos em agravo em recurso de revista. Contrato nulo. Revista da reclamada provida com fundamento na Súmula nº 363 do TST. Omissão quanto aos princípios constitucionais aplicáveis às relações

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Com o surgimento dessas novas figuras jurídicas - Organizações Sociais

e OSCIP - criadas pelas Leis ns. 9.637/98 (organizações sociais) e

9.790/99 (OSCIP), os entes federativos encontraram uma janela aberta

para substituir as malfadadas e visadas cooperativas de trabalho pelas

novas e inusitadas organizações do terceiro setor, para em última

instância, realizarem idêntico negócio vil, qual seja: a contratação de

servidores das mais variadas áreas, a seu livre alvedrio e conveniência.

Quando muito, para atrair mão-de-obra tais organizações sociais

promoviam testes seletivos, incorporavam trabalhadores advindos das

antigas cooperativas de mão-de-obra, neste caso sem qualquer tipo de

seleção, ou simplesmente atendiam meras indicações das autoridades

municipais (prefeitos, secretários, etc.). Por meio de tal artifício jurídico,

antigas organizações sociais transformaram-se em OSCIP (Lei nº

9.790/99), por sua maior abrangência, para tão-somente colocarem-se

à disposição da Administração Pública Direta, em troca de uma

polpuda taxa de administração, que em alguns casos chega a 20% do

valor do repasse mensal, desvirtuando totalmente seu objeto social e

servindo a um duplo propósito: atender aos interesses eleitoreiros dos

chefes das municipalidades, em típico cabide de emprego a filiados

políticos, e, fraudar o mandamento constitucional do concurso público.

Pode-se acrescentar ainda que o próprio patrimônio público restaria

vilipendiado com a contratação de pessoas despreparadas e

desqualificadas para as funções públicas, já que ausentes critérios

objetivos de seleção.

Encontramos virtualmente quase todos os tipos de trabalhadores

militando nos órgãos públicos nesse novo modelo contratual

trabalhistas da Administração Pública. Inexistência. A Súmula nº 363 do TST foi editada com base no entendimento deste C. Tribunal acerca do conflito aparente e angustiante entre dois dos mais importantes princípios gerais do direito; por um lado, a vedação do enriquecimento sem causa do empregador, ainda que de natureza estatal, tendo em vista a previsão do valor social do trabalho como fundamento da República (art. 1º, IV, da Constituição Federal de 1988); por outro, o princípio da moralidade da Administração Pública que, relativamente à relação do Estado com seus servidores, tem gênese na contratação mediante prévia aprovação em concurso público, por força do art. 37, § 2º, da Constituição. Neste contexto, os argumentos relativos à possibilidade de condenação da Reclamada ao pagamento de todas as parcelas típicas do contrato válido de trabalho com base em dispositivos infraconstitucionais, ou mesmo com fulcro na notória incúria da Administração Pública ao contratar reiteradamente empregados sem prévia aprovação em concurso, mostram-se contrários ao princípio hermenêutico da hierarquia das normas, ou mais grave ainda, partem da subversiva premissa de que o princípio constitucional da moralidade da Administração Pública pode vir a ser mitigada pela simples recusa daquela de dar-lhe eficácia plena". Processo nº TST-E-A-RR-28.676/2002-900-09-00, Ac. SBDI-1)

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fraudulento, tais como agentes de saúde, agentes comunitários,

assistentes sociais, auxiliares de enfermagem, enfermeiras, médicos,

biólogos, farmacêuticos, veterinários, auxiliares de serviços gerais,

psicólogos, recepcionistas, vigias, assessores especiais, contadores,

dentistas, auxiliares de pedreiro, agentes administrativos, entre vários

outros.

Segundo João Batista Berthier Leite Soares17, a CF busca fundamento

da exigência constitucional do concurso público em três valores

básicos: a) a dignidade do ser humano, b) segurança nas relações

jurídicas e c) promoção da justiça. O instituto do concurso público,

previsto no art. 37, II, da Lei Maior, como não poderia deixar de ser,

atende aos três axiomas acima expostos: a) faz prevalecer a dignidade

humana, uma vez que fornece igual possibilidade a todos de ingresso

na Administração Pública; b) garante a segurança das relações

jurídicas, eis que os critérios de escolha são objetivos e determinados,

de forma clara e prévia, no edital e, c) promove-se justiça, já que a

diferenciação entre os candidatos é feita por mérito, pela capacidade e

preparo de cada um, tudo por critérios objetivos, o que, na hipótese, se

apresenta como meio ético e razoável de escolha.

Na verdade, as OSCIP, entidades de terceiro setor, estão sendo

utilizadas meramente como intermediárias de mão-de-obra

subordinada para os entes públicos, burlando a regra constitucional do

concurso público, já que tais trabalhadores são contratados sob o

regime da CLT, contratos temporários ou ainda como meros

prestadores de serviços autônomos, para trabalharem ao lado de

servidores públicos efetivados, aprovados em concurso público de

provas e títulos.

Tais entidades do terceiro setor estão sendo criadas, sem qualquer

outra função específica ou própria, mas tão somente para

intermediação de mão-de-obra à Administração Pública. Encontramos

alguns casos em que as OSCIP para gerar uma certa áurea de

17 SOARES, João Batista Berthier Leite. Ação civil pública proposta pelo MPT em face do Município de Aperibé, Estado do Rio de Janeiro. Cópia cedida gentilmente pelo autor da peça inaugural.

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credibilidade têm como objetivo social o tratamento de ex-viciados,

meninos de rua, idosos, portadores de deficiência, quando na realidade

sua função nuclear é a intermediação de mão-de-obra para os órgãos

públicos, servindo apenas de anteparo, já que apenas coloca-se na

posição de empregadora, quando, na realidade, atende às ordens

emanadas das autoridades públicas, essas sim as verdadeiras

responsáveis por tais contratações e indicações de servidores.

Às OSCIP cabe tão somente formular as planilhas de custos de pessoal,

acrescidas da taxa de administração, estabelecida aleatoriamente, sem

qualquer cientificidade, e ao final de cada mês receber/repassar aos

servidores sua respectiva remuneração. Tal prática configura fragrante

caso de desvio de finalidade, já que levantando-se o véu consignado em

seus estatutos sociais, encontramos seu verdadeiro objetivo social, que

é a contratação irregular e fraudulenta de trabalhadores. Além disso,

tais organizações, via de regra, são contratadas sem qualquer tipo de

licitação, o que é vedado pela Constituição18 18.

Ademais, mesmo considerando que os Municípios detêm autonomia,

mediante Lei Municipal ou Lei Orgânica, para regulamentar a prestação

de serviços a seus órgãos, em assuntos de interesse local, consoante

art. 30, incisos I, IV e IV, da Magna Carta, se existir, a lei local não

poderá ser criada em desarmonia com os preceitos constitucionais sob

a matéria, especialmente levando-se em conta o art. 17519 da CF/88.

Com efeito, vários órgãos públicos apenas transferiram para as OSCIP

trabalhadores das antigas cooperativas de mão-de-obra fraudulentas

com quem vinham firmando contratos de prestação de serviços e se

viram obrigados a rescindi-los unilateralmente, por conta própria, ou

forçados por Termos de Compromisso de Ajustamento de Conduta com

o MPT, ou ainda por sentenças judiciais proferidas em sede de ações

18 Art. 37. (...)

XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

19 Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

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civis públicas. Assim sendo, em que pese o fato de os serviços de saúde

e de educação, consoante arts. 19920 e 20921 da Magna Carta, também

poderem ser executados por terceiros, ou seja, por pessoas físicas e/ou

jurídicas de direito privado, mas de forma complementar e quando

esgotada a capacidade do Estado, é o intuito fraudulento atualmente

desenvolvido, entre os entes públicos e as OSCIP (Lei nº 9.790/99) no

suprimento de servidores para cargos, empregos ou funções da

Administração que deve ser coibido, como forma de se evitar a

existência de uma categoria de servidores de segunda classe

(contratados por cooperativas fraudulentas, OSCIP, etc.), militando ao

lado de servidores públicos regularmente contratados por concurso

público.

A EC nº 51, de 2006, sepultou de uma vez por todas essa prática de

terceirização de serviços da saúde, ao dispor:

"Sistema Único de Saúde - SUS - Agentes Comunitários de Saúde.

Alteração da Constituição Federal de 1988. EC nº 51 de 2006.

Emenda Constitucional nº 51, de 14 de fevereiro de 2006 (DOU

15.02.06)

Acrescenta os §§ 4º, 5º e 6º ao art. 198 da Constituição Federal.

As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos

termos do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte

Emenda ao texto constitucional:

Art. 1º O art. 198 da Constituição Federal passa a vigorar

acrescido dos seguintes §§ 4º, 5º e 6º:

'Art. 198 (...)

20 Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada. § 1º As instituições privadas poderão participar de forma complementar do Sistema Único de Saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.

21 Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições:

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§ 4º Os gestores locais do Sistema Único de Saúde poderão admitir

agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias

por meio de processo seletivo público, de acordo com a natureza e

complexidade de suas atribuições e requisitos específicos para sua

atuação.

§ 5º Lei Federal disporá sobre o regime jurídico e a regulamentação

das atividades de agente comunitário de saúde e agente de

combate às endemias.

§ 6º Além das hipóteses previstas no § 1º do art. 41 e no § 4º do

art. 169 da Constituição Federal, o servidor que exerça funções

equivalentes às de agente comunitário de saúde ou de agente de

combate às endemias poderá perder o cargo em caso de

descumprimento dos requisitos específicos, fixados em lei, para o

seu exercício.' (NR)

Art. 2º Após a promulgação da presente Emenda Constitucional, os

agentes comunitários de saúde e os agentes de combate às

endemias somente poderão ser contratados diretamente pelos

Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios na forma do § 4º

do art. 198 da Constituição Federal, observado o limite de gasto

estabelecido na Lei Complementar de que trata o art. 169 da

Constituição Federal. (grifo nosso).

Parágrafo único. Os profissionais que, na data de promulgação

desta Emenda e a qualquer título, desempenharem as atividades

de agente comunitário de saúde ou de agente de combate às

endemias, na forma da lei, ficam dispensados de se submeter ao

processo seletivo público a que se refere o § 4º do art. 198 da

Constituição Federal, desde que tenham sido contratados a partir

de anterior processo de Seleção Pública efetuado por órgãos ou

entes da administração direta ou indireta de Estado, Distrito

Federal ou Município ou por outras instituições com a efetiva

supervisão e autorização da administração direta dos entes da

federação."

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Recentemente foi publicada a Lei nº 11.350/06, que regulamenta o § 5º

do art. 198 da CF, e estabelece em seu art. 2º que:

"O exercício das atividades de Agente Comunitário de Saúde e de

Agente de Combate às Endemias, nos termos desta Lei, dar-se-á

exclusivamente no âmbito do Sistema Único da Saúde - SUS - na

execução das atividades de responsabilidade dos entes federados,

mediante vínculo direto entre os referidos Agentes e órgãos ou

entidade da administração direta, autárquica ou fundacional."

(grifo nosso)

Em seu art. 9º, essa Lei estabelece o modo de contratação de pessoal,

estatuindo:

"A contratação de Agentes Comunitários de Saúde e de Agentes de

Combate às Endemias deverá ser precedido de processo seletivo

público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza

e complexidade de suas atribuições e requisitos específicos para o

exercício das atividades, que atenda aos princípios de legalidade,

impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência." (grifo nosso)

E o art. 16 dessa mesma lei veda a contratação temporária ou

terceirizada de Agentes comunitários, como se depreende de sua

redação:

"Fica vedada a contratação temporária ou terceirizada de Agentes

Comunitários de Saúde e de Agentes de Combate às Endemias,

salvo na hipótese de combate a surtos endêmicos, na forma da lei

aplicável." (grifo nosso)

Vê-se, de forma cristalina que essa recente Lei nº 11.350/06 trata

especialmente da regulamentação da contratação, por meio de concurso

público, de Agentes Comunitários de Saúde e de Agentes de Combate às

Endemias, ligados diretamente ao setor da saúde dos Estados e

Municípios. Portanto, em face dessa novel legislação, bem como do art.

196 da CF/88 e da Lei nº 8.080/90, o Estado tem a obrigação de

prestar os serviços públicos de saúde, de forma direta, ou seja, por

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meio de seus agentes e órgãos públicos. Apenas em havendo o

esgotamento dessa capacidade, como de fato ocorre, é permitida a

participação complementar de terceiros, utilizando sua própria

capacidade instalada, não havendo qualquer possibilidade de

transferência da gestão e operacionalização de serviços públicos de

saúde de hospitais e demais unidades do Estado para a iniciativa

privada.

Além dos desvios de finalidade mencionados, outras irregularidades

poderão ser encontradas nos termos de parceria firmados entre o Poder

Público e as organizações sociais ou as OSCIP. Vejamos:

Muitas OSCIP migraram da formatação original de organizações sociais,

já que o art. 18 da Lei nº 9.790/99 abria a possibilidade de:

"As pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos,

qualificadas com base em outros diplomas legais, poderão

qualificar-se como Organizações da Sociedade civil de Interesse

Público, desde que atendidos os requisitos para tanto exigidos,

sendo-lhes assegurada a manutenção simultânea dessas

qualificações, até dois anos contados da data da vigência desta

Lei. (grifo nosso)

§ 1º Findo o prazo de dois anos, a pessoa jurídica interessada em

manter a qualificação prevista nesta Lei deverá por ela optar, fato

que implicará a renúncia automática de suas qualificações

anteriores.

§ 2º Caso não seja feito a opção prevista no parágrafo anterior, a

pessoa jurídica perderá automaticamente a qualificação obtida

nos termos desta Lei."

Não obstante, em absoluto desatendimento ao dispositivo legal retro-

referenciado, algumas OSCIP são consideradas pelo Poder Público como

tendo dupla personalidade jurídica, na medida em que mesmo após a

mudança de qualificação jurídica (de organização social para OSCIP)

continuam recebendo auxílios financeiros vinculados à área de

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assistência social (como organização social) e, simultaneamente,

recebem remuneração atinente aos termos de parceria firmados com a

mesma entidade, agora como OSCIP.

Os Termos de Parceria firmados com as OSCIP carecem não apenas de

Licitação (Lei nº 8.666/93), como também da Consulta Prévia aos

Conselhos de Políticas Públicas, exigida consoante dispõe o art. 10, §

1º, da Lei nº 9.790/99, o que por si só geraria a nulidade dos mesmos.

Vale dizer, para ter validade jurídica, o Termo de Parceria celebrado

pelo Poder Público Municipal com a OSCIP, por exemplo, deverá

necessariamente ser precedido de consulta e aprovação pelo Conselho

Municipal de Saúde, que representa o Conselho de Políticas Públicas

nessa área de atuação.

Tais Termos transferem e delegam atividades e poder às OSCIP, sem

qualquer tipo de controle, fiscalização ou de gestão dos programas pelo

Poder Público, não ocorrendo nem mesmo a cobrança da realização de

metas, que constituem requisitos obrigatórios de tais instrumentos

jurídicos, o que por si só ensejaria a lesão a direitos metaindividuais ou

difusos de toda a coletividade.

Os Termos de Parceria admitem até mesmo a contratação de pessoas,

por via de terceirização, para exercer cargos de chefia, de direção, enfim

de confiança direta do administrador, o que é vedado pelo art. 37, V22,

da CF/88.

Regra geral, as OSCIP descumprem totalmente a exigência legal de, em

30 dias, após a celebração do Termo de Parceria, divulgar à sociedade

regulamento próprio de contratação de obras e serviços, conforme

preconiza o art. 14 da Lei nº 9.790/99.

Em suma, os Termos de Parceria estão sendo instrumentalizados por

planilhas de custos, dispondo sobre valores a título de obrigações

trabalhistas, que, ao fundo, revelam que o programa de trabalho dos

22 V - as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento; (Redação dada ao inciso pela Emenda Constitucional nº 19/98).

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mesmos não constitui nada mais do que mera intermediação de mão-

de-obra para os serviços públicos, com ausência de realização de

licitação e de concurso público, caracterizando flagrante situação de

desvio de finalidade, abuso de poder e total negligência das autoridades

em relação aos mandamentos constitucionais.

Vale dizer: esse tipo de contratação - Termo de Parceria - é utilizado

pelo Poder Público como mero simulacro de contrato, cujo único

propósito é a contratação de mão-de-obra terceirizada, sem qualquer

contraprestação da OSCIP, a título de experiência e qualificação

adequada na área de serviços, como exige a legislação. Em outras

palavras, esse artifício jurídico apresenta-se para o administrador

público como uma porta aberta para a perpetração de todos os tipos de

fraudes, desmandos, arbitrariedades, malversação de verbas públicas,

deficiências na prestação de serviços à coletividade, falta de

profissionalização, bem como tratamento da coisa pública como se

fosse patrimônio pessoal e particular do administrador de plantão, em

total desrespeito ao Princípio da Supremacia do Poder Público.

Tais instrumentos jurídicos (Termos de Parceria e Contratos de Gestão)

foram idealizados para fomentar a terceirização de serviços públicos,

como regra geral, e a eliminação do instituto do concurso público de

provas e títulos, como forma democrática de acesso aos cargos da

Administração Pública. Nestas situações, somos filiados à tese da

responsabilidade solidária do administrador responsável pela

contratação23, bem como da diretoria da OSCIP, como veremos logo

mais neste trabalho.

Ao permanecer o presente estado de coisas, vários princípios basilares

da Constituição Federal de 1988 e do próprio Estado de Direito

estariam sendo violados, entre eles, o princípio da dignidade da pessoa

humana, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a

erradicação da pobreza e da marginalização; a redução das

desigualdades sociais e regionais; a promoção do bem de todos; o valor

23 A Lei nº 8.429/92, denominada Lei de Improbidade Administrativa, dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de improbidade administrativa, entendendo-se como tal todas as condutas do administrador que ensejam enriquecimento ilícito, prejuízo ao Erário e ofensa aos Princípios da Administração Pública. Logo, apenas a ofensa ao princípio constitucional da realização do concurso público (art. 37, § 2º e inciso II da CF/88) já tipifica o crime da autoridade municipal.

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social do trabalho e a realização da justiça social.

8 Responsabilidade da Autoridade Responsável pela Contratação de

Servidores, sem Concurso Público

Entendemos que não apenas o órgão ou entidade pública deva figurar

no pólo passivo em eventual ACP promovida pelo MPT, como também a

autoridade responsável pela contratação de empregados, sem concurso

público. Quando se tratar de intermediação ilícita de mão-de-obra pela

Municipalidade, por meio de cooperativa de trabalho, organização

social, ou ainda OSCIP, desrespeitando o mandamento constitucional

do concurso público, a principal autoridade municipal também deverá

ser responsabilizada, especialmente no que tange à uma possível

condenação pecuniária, envolvendo obrigação de dar, fazer e não fazer.

No presente caso não se aplica o § 6º do art. 37, da CF/88, mas sim o §

2º, deste artigo, in verbis:

"II - A investidura em cargo ou emprego público depende de

aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e

títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou

emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações

para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e

exoneração;

(...)

§ 2º - A não observância do disposto nos incisos II e III implicará a

nulidade do ato e a punição da autoridade responsável, nos termos

da lei; (grifo nosso)

(...)

§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito

privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos

que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros,

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assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos

de dolo ou culpa."

Sopesando esses dois tipos de responsabilidades, o direito de regresso

imposto ao agente público que laborar em dolo ou culpa no exercício de

suas funções em relação a terceiros (§ 6º) possui uma gravidade muito

menor daquela disposta nos incisos II e III. Em primeiro plano, porque

nessa segunda hipótese, o agente político pratica geralmente um dano a

uma coletividade de trabalhadores aos quais são retirados toda e

qualquer sorte de indenização, já que o contrato de trabalho com a

Administração é considerado nulo. Em segundo lugar, esse dano

estende-se àquela coletividade de trabalhadores que não tiveram

condições de participar de um certame democrático e em igualdade de

condições, na luta por um cargo público, que é direito subjetivo

atribuído a todos que preencham as condições do edital de seleção.

Portanto, somos da opinião de que em casos da espécie, em que

configurada a responsabilidade da autoridade pública responsável pelo

órgão da Administração Pública Direta ou Indireta, a situação da

contratação ilícita é tão grave, que deverão a ele ser cometidas as

indenizações de todos os direitos trabalhistas que lhe foram sonegados,

bem como as respectivas multas pelas infração à legislação do trabalho.

Há doutrinadores que entendem que o contrato de trabalho deveria ser

aperfeiçoado com o respectivo registro daqueles trabalhadores com a

autoridade pública, no sentido de suscitar o pagamento de todos os

consectários legais derivados de sua resilição. Outros ainda entendem

que no julgamento do caso concreto, o magistrado deve invocar a

desconsideração da personalidade jurídica do ente público, nos moldes

do art. 28 da Lei nº 8.078/90, para atingir o patrimônio das

autoridades responsáveis pelas contratações irregulares, por este

instituto ser compatível com o § 2º do art. 37 da Magna Carta.

Outra corrente defende a responsabilidade de autoridade municipal,

porém, de forma solidária com a Municipalidade, pelo descumprimento

das obrigações de fazer e não fazer, atinentes à contratação irregular de

pessoal.

Nestas situações, propugnamos pela responsabilidade solidária do

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administrador responsável pela contratação fraudulenta, em conjunto

com os membros da Diretoria da OSCIP, com fulcro no art. 9º24 da CLT,

art. 2825 do CDC, arts. 5026, 18627, 18728, 92729, 93230 e 94231 do CC e

art. 13532 e 13733 do CTN, bem como nos arts. 1234 e 13 da própria Lei

nº 9.790/99.

Por derradeiro, no apagar das luzes desse breve trabalho, somos

surpreendidos com uma nova e inusitada forma de terceirização e de

precarização das relações do trabalho: trata-se da Emenda nº 3 ao PL

24 Art. 9º Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação

25 Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. 26 Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica 27 Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. 28 Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. 29 Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. 30 Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil: III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que

lhes competir, ou em razão dele; 31 Art. 942. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação. 32 Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos: II - os mandatários, prepostos e empregados; III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado. 33 Art. 137. A responsabilidade é pessoal ao agente:

I - quanto às infrações conceituadas por lei como crimes ou contravenções, salvo quando praticadas no exercício regular de administração, mandato, função, cargo ou emprego, ou no cumprimento de ordem expressa emitida por quem de direito; 34 Art. 12. Os responsáveis pela fiscalização do Termo de Parceria, ao tomarem conhecimento de qualquer irregularidade ou ilegalidade na utilização de recursos ou bens de origem pública pela organização parceira, darão imediata ciência ao Tribunal de Contas respectivo e ao Ministério Público, sob pena de responsabilidade solidária. Art. 13. Sem prejuízo da medida a que se refere o art. 12 desta Lei, havendo indícios fundados de malversação de bens ou recursos de origem pública, os responsáveis pela fiscalização representarão ao Ministério Público, à Advocacia-Geral da União, para que requeiram ao juízo competente a decretação da indisponibilidade dos bens da entidade e o seqüestro dos bens dos seus dirigentes, bem como de agente público ou terceiro, que possam ter enriquecido ilicitamente ou causado dano ao patrimônio público, além de outras medidas consubstanciadas na Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992, e na Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990. § 1º O pedido de seqüestro será processado de acordo com o disposto nos arts. 822 e 825 do Código de Processo Civil. § 2º Quando for o caso, o pedido incluirá a investigação, o exame e o bloqueio de bens, contas bancárias e aplicações mantidas pelo demandado no País e no exterior, nos termos da lei e dos tratados internacionais.

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nº 6.272/05, que cria a Super Receita, que unifica as ações

fiscalizadoras da Receita Federal e da Previdência, agora em vias de

sanção/veto presidencial. O projeto estabelece o enquadramento de

servidores, mudança nos procedimentos de declaração de nulidade do

imposto lançado, parcelamento de débitos e vedação aos fiscais da

Receita e da Previdência de multar empresas que contratam

profissionais sob a roupagem de pessoa jurídica.

9 Conclusões

Por todo o exposto, somos levados a acordar em relação à

inconstitucionalidade da Lei nº 9.637/98 (organizações sociais), e, como

corolário lógico, também pela inconstitucionalidade reflexa dos artigos

semelhantes da Lei nº 9.790/99 (OSCIP), já que existe uma relação de

continência entre ambas, o que, certamente, fechará as janelas de

oportunidade para a continuidade das práticas fraudulentas de

intermediação de mão-de-obra, por meio dos Termos de Parceria

firmados pelas OSCIP com o Poder Público, para que trabalhadores

prestem serviços de forma não-eventual e subordinada à Administração

Pública. em substituição à reincidente prática de contratação

fraudulenta por meio das cooperativas de mão-de-obra.

É cediço que leis infraconstitucionais (Leis ns. 9.637/89 e 9.790/99)

não tem o condão de revogar disposições e princípios constitucionais

que regem o Poder Público (legalidade, impessoalidade, moralidade,

publicidade e eficiência), expressas na Carta Magna, facultando por

exemplo, a exigência de licitação pelos órgãos da Administração Pública

direta, indireta, autárquica e fundacional e a contratação sem concurso

público para cargos efetivos, com exceção do disposto no art. 37, IX, da

CF/88.

Se até mesmo as sociedades de economia mista e as empresas

públicas35 que exercem atividades econômicas, não podem eximir-se 35 Art. 173. (...) § 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: I - sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade;

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dessas exigências constitucionais, quanto mais e com muito mais razão

é de se exigir que as organizações sociais e as OSCIP, curvem-se diante

dos ditames constitucionais.

É nesse momento que o MPT, agora expandindo sua base para alcançar

os rincões desse País, em recente projeto de interiorização, tão bem

desenvolvido pela atual Procuradoria-Geral, se vê diante de novos

desafios, no sentido de cumprir sua missão constitucional, já que lhe

foi incumbida a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos

interesses sociais e individuais indisponíveis.

E, entre esses novos desafios encontram-se a identificação e o combate

efetivo, por meio de instrumentos jurídicos adequados, a essa nova

chaga social fomentada por meio dessa nova técnica ou criatividade

jurídica, engendrada por agentes políticos que julgam-se mais espertos,

e que, em conluio com tal tipo de organização procuram fraudar não

apenas mandamentos constitucionais nucleares, como também a

própria dignidade da pessoa humana do trabalhador, fundamento de

validade do Estado Democrático de Direito e, por que não dizer,

fundamento de validade da própria preservação da raça humana.

II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários; III - licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública;