As Pixações Em São Paulo o Puer o Patologizar e o Ver Através Da Cidade - Guilherme Scandiucci

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1 AS PIXAÇÕES EM SÃO PAULO: O PUER, O PATOLOGIZAR E O VER ATRAVÉS DA CIDADE. Guilherme Scandiucci Psicólogo clínico e professor universitário. Mestre e doutor pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Professor e supervisor de estágio em psicoterapia analítica do curso de psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Membro do grupo Himma – Estudos em Psicologia Imaginal. RESUMO A proposta é debater de forma aprofundada a diversidade e a problemática presente em alguns fenômenos urbanos contemporâneos. Especificamente, este trabalho de debruça sobre as pixações 1 , notoriamente presentes na cidade de São Paulo. Compreende-se a cidade e suas manifestações à luz das concepções teóricas da sociologia, da antropologia urbana, da psicologia analítica de Carl Jung e da psicologia arquetípica de James Hillman, sobretudo em suas ideias de alma e de anima mundi e do arquétipo do puer aeternus. Conclui-se que a pixação é expressão tanto do patologizar quanto do psicologizar (ver através) da metrópole. OBJETIVOS Discutir, partindo sobretudo da psicologia arquetípica, as problemáticas referentes à vivência do espaço público na metrópole. Mais especificamente, refletir sobre a relevância das pixações e dos jovens que a fazem no cenário e na alma da cidade de São Paulo dos últimos vinte e cinco anos. JUSTIFICATIVA O tema está inteiramente de acordo com a proposta geral do congresso de discutir a alma brasileira, suas manifestações, sua multiplicidade e seus mitos contemporâneos. Encaixa-se bem especificamente no tema “Horrores e Maravilhas da Polis”. DESENVOLVIMENTO DO TEMA Cidade, psique e patologizar A cidade, sobretudo a grande, é por excelência um locus privilegiado da convivência e da diversidade. Pode ser enxergada como um arquétipo primário da experiência humana, isto é, a vida em comunidade, com toda a contradição, tensão e 1 A maior parte dos autores pesquisados utilizam o termo com “x” (pixação), referindo-se à escrita urbana de grupos contemporânea (em letras estilizadas, geralmente ilegíveis ao leigo). Diferem-na de outras formas de protesto escrito, em letras legíveis (estas seriam pichações, com “ch”).

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Monografia sobre o arquetipo puer aeternus e os pixadores nas metrópoles

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    AS PIXAES EM SO PAULO: O PUER, O PATOLOGIZAR E O VER

    ATRAVS DA CIDADE.

    Guilherme Scandiucci

    Psiclogo clnico e professor universitrio. Mestre e doutor pelo Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo. Professor e supervisor de estgio em psicoterapia analtica do curso de psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Membro do grupo Himma Estudos em Psicologia Imaginal.

    RESUMO

    A proposta debater de forma aprofundada a diversidade e a problemtica presente em alguns fenmenos urbanos contemporneos. Especificamente, este trabalho de debrua sobre as pixaes1, notoriamente presentes na cidade de So Paulo. Compreende-se a cidade e suas manifestaes luz das concepes tericas da sociologia, da antropologia urbana, da psicologia analtica de Carl Jung e da psicologia arquetpica de James Hillman, sobretudo em suas ideias de alma e de anima mundi e do arqutipo do puer aeternus. Conclui-se que a pixao expresso tanto do patologizar quanto do psicologizar (ver atravs) da metrpole.

    OBJETIVOS

    Discutir, partindo sobretudo da psicologia arquetpica, as problemticas referentes vivncia do espao pblico na metrpole. Mais especificamente, refletir sobre a relevncia das pixaes e dos jovens que a fazem no cenrio e na alma da cidade de So Paulo dos ltimos vinte e cinco anos.

    JUSTIFICATIVA

    O tema est inteiramente de acordo com a proposta geral do congresso de discutir a alma brasileira, suas manifestaes, sua multiplicidade e seus mitos contemporneos. Encaixa-se bem especificamente no tema Horrores e Maravilhas da Polis.

    DESENVOLVIMENTO DO TEMA

    Cidade, psique e patologizar

    A cidade, sobretudo a grande, por excelncia um locus privilegiado da

    convivncia e da diversidade. Pode ser enxergada como um arqutipo primrio da

    experincia humana, isto , a vida em comunidade, com toda a contradio, tenso e 1 A maior parte dos autores pesquisados utilizam o termo com x (pixao), referindo-se escrita urbana de grupos contempornea (em letras estilizadas, geralmente ilegveis ao leigo). Diferem-na de outras formas de protesto escrito, em letras legveis (estas seriam pichaes, com ch).

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    exuberncia que a mesma implica. As cidades podem ser vistas por ngulos diversos,

    pois podem se destacar como centros comerciais e suas oportunidades econmicas ou

    produo de tecnologia, ou sobressair pelas produes artsticas, atividades esportivas,

    cultos religiosos, pesquisas, entretenimento. Podem ainda representar, por outro lado,

    um apanhado de problemas coletivos a serem resolvidos, como circulao, lixo,

    drenagem, esgoto, pobreza. As cidades, enfim, so aglomeraes humanas, colees de

    estruturas e sistemas ora lgubres e montonos, ora interessantes e diversificados,

    portanto, podem ser bastante inspiradoras.

    Conforme aponta Jones (2003), as cidades esto conosco (e ns com elas) h

    milhares de anos, entretanto experimentamos muitas vezes nas metrpoles

    contemporneas uma inquietao ou intranquilidade, ou uma sensao de sermos

    estrangeiros em nossa prpria terra. A criatura parece estar saindo de nosso controle,

    pois os to arraigados problemas urbanos podem resultar numa espcie de queda

    coletiva ou no caos palavra que comumente utilizamos ao nos referirmos s

    metrpoles. A cidade tornou-se, simultaneamente, nossa esperana e nossa priso, e um

    abrigo para muitos de nossos medos e frustraes.

    Entretanto, se retomarmos a concepo junguiana de psique, nos ser ofertada

    uma viso diferente desta. Jung (1954/2002) separa a psique em duas esferas: a

    subjetiva e a objetiva. A primeira relacionada aos processos conscientes e ao que

    chamaramos de inconsciente pessoal e seus contedos; a ltima preenchida pelos

    temas arquetpicos, mitolgicos: o inconsciente impessoal ou coletivo. Embora a anima

    esteja intimamente relacionada alma ou psique, ela ocupa outro lugar na conceituao

    junguiana e no pode ser completamente confundida com o que Jung chama de Seele.

    Assim como Jung, James Hillman est distante de uma abordagem metafsica da

    alma. Ele a pensa como uma perspectiva em vez de uma substncia, um ponto de vista

    sobre as coisas em vez de uma coisa em si. Ou seja, a alma menos um objeto de

    conhecimento do que uma maneira de conhecer o objeto. Carrega algumas

    caractersticas bsicas, como o aprofundamento dos eventos em experincias, uma

    relao com a morte, uma possibilidade imaginativa no homem: especulao reflexiva,

    sonho, imagem e fantasia. Acompanhando Jung, Hillman coloca que tudo o que o

    homem pode encontrar derivado de imagens psquicas. No por acaso cita o primeiro

    no uso de fantasia-imagem como uma espcie de termo sintetizador. Portanto, o

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    processo de imaginao a raiz da proposta hillmaniana: uma psicologia e uma base

    potica da mente (HILLMAN, 1977, 2010).

    Mantendo-se fiel aos textos junguianos, Hillman critica a psicologia por

    permanecer to distante da alma, observando que a mesma nem utiliza mais essa

    palavra, e sim Self ou ego para se referir a uma pessoa. Fomos todos des-almados

    (HILLMAN, 2010, p. 42). A psicologia parece estar muito preocupada com a

    conceituao e com a compreenso. O autor reclama uma personificao, a habilidade

    de personificar: o fazer-alma (ou cultivo da alma) depende dessa atitude, cuja presena

    em Jung, ao longo de sua vida, foi bastante forte, segundo Hillman.

    O inconsciente junguiano espontaneamente personifica, portanto justo que

    Jung faa uso de personificaes em sua terminologia. A anima a imagem-alma

    personificada e pessoal de algum. A anima uma pessoa e uma noo conceitual,

    significando alma. de certa forma uma conversa entre ela (como Jung a denomina)

    e o psiclogo suo; ela est sempre criando conflitos, trazendo desejos e variaes de

    humor, incitando fantasias. Trata-se de uma personificao do inconsciente do homem.

    Para Hillman, anima significa tanto psique como alma ou psique personificada; se

    uma funo psquica relacionada alma imaginativa ativada, o homem pode

    experimentar a realidade imaginal. Aqui, o autor parece equiparar alma (soul) e anima:

    ambos habitam a capacidade de perceber imaginalmente o mundo tanto externo

    quanto interno , pois nesse registro no haveria nem motivo para diferenci-los

    completamente (HILLMAN, 2010).

    Hillman pensa na ideia de fazer-alma ou cultivo da alma, um trabalho de

    certa devoo alma, que pode ser desenvolvido no apenas pelo analista no

    consultrio, mas por qualquer pessoa em contato com a imagem, em qualquer situao.

    Afinal, a alma est no olhar, e no no objeto. Nesse sentido, nossas personalidades so

    como personagens por meio das quais a alma fala. Afirma Hillman: No sou eu que

    personifico, mas a anima me personifica, ou faz-se a si mesma atravs de mim, dando

    minha vida o seu (dela) sentido (2010, p. 130). A alma nos usa para se expressar, ela

    nos invade e carrega os deuses junto.

    Deve-se ressaltar a ideia de anima mundi. Hillman lana uma nova luz ao

    entendimento das foras vitais subjacentes ao mundo que nos rodeia, declarando que

    cada coisa de nossa vida urbana construda tem uma importncia psicolgica

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    (HILLMAN, 1993, p. 9). Retomando ideias platnicas e confrontando com as filosofias

    de Aquino, Descartes, Locke e Kant, as coisas de fora recuperam suas almas. A anima

    mundi o mundo almado, e no somente material ou morto, ou simplesmente uma

    espcie de pano de fundo no qual a subjetividade se manifesta.

    Como formas expressivas, as coisas falam: mostram as configuraes que assumem. Elas se anunciam, atestam sua presena: Olhem, estamos aqui. Elas nos observam independente do modo como as observamos, independentes de nossas perspectivas, do que pretendemos com elas e como as utilizamos. Essa exigncia imaginativa de ateno indica um mundo almado [...] Qualificar um prdio de catatnico ou anorxico significa examinar o modo como ele se apresenta, seu comportamento em sua estrutura descarnada, alta, rgida, magra, sua fachada envidraada, frieza dessexualizada, sua explosiva agressividade reprimida, seu trio interior vazio seccionado por colunas verticais. [...] Interpretar as coisas do mundo como se fossem nossos sonhos priva o mundo de seu sonho, sua queixa. (HILLMAN, 1993, p. 14-16)

    Em suma, anima mundi uma maneira de perceber, sentir e imaginar. Com essa

    proposio, Hillman (1993) sugere que a psicologia deveria mudar seu ponto de vista

    como um todo, da reflexo mental em direo ao reflexo cordial, movendo o lugar da

    alma do crebro para o corao, e o mtodo da psicologia da compreenso cognitiva

    para a sensibilidade esttica. A ameaa de destruio do mundo e a imagem

    patologizada de nosso planeta nas ltimas dcadas parece ter revivido o reconhecimento

    da alma no mundo.

    Outro desenvolvimento terico fundamental aqui o conceito de Hillman de

    patologizar. Estados patolgicos, por assim dizer, so chamados por Hillman (2010) de

    alma in extremis. So estados de sofrimento, anormalidade e fantsticas condies da

    psique. Cada alma, mais cedo ou mais tarde, revelar iluses e depresses, ideias

    supervalorizadas, voos manacos e raivas, ansiedades, compulses e perverses

    (HILLMAN, 2010, p. 132).

    Hillman (2010) localiza certas tentativas de compreender a psicopatologia,

    enfatizando duas formas clssicas de interpret-la: por meio da medicina e da religio.

    Se sofremos, porque estamos doentes ou cometemos pecados, e a cura para isso clama

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    pela cincia ou pela f. De todo modo, para ambos os modos de compreenso, a

    patologia o lugar de algo que est errado.

    Patologizar, na definio de Hillman (2010, p.134-135),

    [...] a habilidade autnoma da psique para criar doena, morbidade, anormalidade e sofrimento em qualquer aspecto de seu comportamento, e de experimentar e imaginar a vida atravs desta perspectiva deformada e aflita.

    Na viso arquetpica, portanto, a patologia no errada ou correta, mas

    meramente necessria, j que se trata de expresso fundamental da psique. O

    patologizar um estilo de retrica da alma. No algo estrangeiro a ns ou secundrio,

    pois isso negligencia a realidade de que o patologizar um fundamento, [...] um fio

    condutor em nosso ser, tranado em cada complexo (Hillman, 2010, p.136).

    A psique no existe sem o patologizar. Desde que o inconsciente foi descoberto

    como um fator operativo em cada alma, o patologizar foi reconhecido como um aspecto

    inerente da personalidade interior. O patologizar est presente no apenas em especiais

    momentos de crise, mas nas vidas cotidianas de todos ns (HILLMAN, 2010).

    A cidade afeta fortemente a psique. A cidade psique. Levou algum tempo para

    que a terapia aprendesse que corpo psique, que o que o corpo faz, como ele se move, o

    que ele percebe psique. Depois a terapia foi aprendendo que a psique existe

    inteiramente em sistemas relacionais, no sendo uma mnada, autodeterminada. O

    prximo passo seria nos darmos conta de que a cidade, onde o corpo vive e se move e

    onde a rede relacional tranada, tambm psique (HILLMAN; VENTURA, 1992).

    Afinal, na teoria junguiana, o inconsciente coletivo o mundo e a psique no

    est no indivduo, e sim o indivduo est na psique. Esse inconsciente se estenderia para

    alm dos grandes smbolos de nossos sonhos ou das repercusses da histria de nossos

    ancestrais. Ele inclui as ondas de fluxo e refluxo da cidade, as modas, linguagens,

    tendncias, coreografias que regem nossas almas andantes, assim como as imagens

    regem nossas almas. Uma cidade uma alma (HILLMAN; VENTURA, 1992, p. 83).

    Exemplificando, como expem Hillman e Ventura (1992, p. 118), o carro um

    espao privado que pode ir a qualquer direo a qualquer hora. O quarto do motel

    assegura o seguinte: onde quer que voc v, haver um espao para voc uma

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    peculiaridade da vida contempornea e estranha s sociedades prvias. Mas o fato de

    haver um quarto para voc em qualquer lugar faz o lugar em que voc est menos

    substancial. Assim, voc um transeunte, sem ter escolhido ser um. A transitoriedade

    humana costumava ser definida quase exclusivamente como morte; agora, o fato de

    termos inmeras escolhas faz de todos ns transeuntes o tempo todo.

    Grafite e pixao em So Paulo

    [...] Se olhar para a cidade nos faz entender um pouco mais os pixadores [sic],

    olhar para os pixadores tambm nos ajuda a compreender um pouco mais a cidade

    (PEREIRA, 2010, p. 146). No h dvida da importncia da pixao em So Paulo.

    O grafite e a pixao expressam importantes aspectos da alma de uma cidade,

    especialmente das grandes cidades. Ao lidar com diferentes aspectos de uma cidade e

    sua situao fatores histricos, polticos, econmicos e sociais , os grafiteiros e

    pixadores podem revelar partes dessa alma que esto normalmente encobertas na rotina

    diria da vida de negcios. Tais revelaes podem ser um prazer para alguns e um

    horror para outros: esse o conflito interno de qualquer sistema psquico, como mostra

    a psicologia analtica. Quando a alma surge, a ltima coisa que podemos esperar

    tranquilidade.

    interessante retomar alguns preceitos da clnica junguiana, j que se est

    comparando diretamente a viso clnica com a viso em direo cidade. Hillman

    (1981) chama ateno para a diferenciao, isto , a necessidade da anlise de fazer

    distino entre as partes componentes da personalidade, ou conhecer as diferentes

    coletividades que falam atravs do ego. Esse classicamente um ponto nevrlgico do

    pensamento de Jung, j nitidamente presente em sua teoria dos complexos. Sendo partes

    fragmentadas e autnomas da personalidade, naturalmente multifacetada, os complexos

    podem inclusive possuir o ego. o que ocorre, por exemplo, na dissociao neurtica

    da personalidade, fenmeno clnico bastante comum.

    Neuroses e complexos podem ser vistos tanto na cidade como nos indivduos. A

    cidade pode ser considerada uma imagem e trabalhada da mesma maneira como um

    sonho pessoal trabalhado. A cidade uma coleo de formas e dinmicas que podem

    revelar sentido alm das interpretaes superficiais. Pode-se dizer que ela tem uma

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    persona, a face que ela mostra ao mundo. Uma cidade que vive demasiadamente na luz

    ignora ou marginaliza o que no pode ver, borrando ou obscurecendo a multiplicidade

    invisvel, sombra do que revelado. Basta pensarmos nos bairros de periferia e seus

    habitantes: os primeiros so frequentemente esquecidos pela administrao pblica; os

    segundos, quando interagem com aqueles que habitam as partes centrais e nobres da

    cidade, tendem a se tornar invisveis.

    Se diferenciar-se tambm ser diferente, como a individualidade implica ser

    nico (peculiar), a anlise junguiana recai sobre aquilo que diferente; o excntrico,

    que no se adapta, geralmente evidenciado nas anormalidades psicopatolgicas. Aqui,

    em vez de estas serem vistas como pontos falhos a serem excludos, devem ser vistas

    como sementes de individualidade. A ideia

    [...] reconectar as vrias partes supostamente equilibradas ou curadas da personalidade com os seus aspectos bizarros, de modo a no nos afastarmos deles (suprimi-los). (HILLMAN, 1981, p. 216)

    Compreende-se, partindo-se dessa colocao, que o excntrico, o que est fora

    do centro, o incomum, o deslocado, o divergente, enfim, interessa-nos em si mesmo,

    como discurso de uma potencialidade para aquilo que nos especfico. Jung enfatiza a

    importncia de ficar com o sintoma em vez de consert-lo rapidamente. Ficar na

    confuso tambm abre possibilidades de processos alqumicos transformadores.

    Doenas urbanas como expanso suburbana, engarrafamento, crimes de rua,

    periferias arruinadas, arquitetura anorxica, consumismo, poluio do ar e da gua esto

    em todo lugar. Compreendemo-las como impedimentos para evoluir, como problemas a

    ser resolvidos, como atribuies para especialistas dotados de conhecimento tcnico.

    Mas esses mesmos problemas podem tambm ser entendidos em termos de sintomas

    que podem ser trabalhados em camadas mais profundas de sentido.

    Voltando aos grafites e pixaes, interessante observar que o envolvimento do

    grafiteiro com sua atividade costuma ser enorme. medida que muitas vezes uma

    atividade proibida, correr riscos parte da vida diria do grafiteiro, o que inclui fugir da

    polcia, roubar latas de spray, estar em locais perigosos em termos de altura, risco de

    choque eltrico ou violncia. Quanto mais visvel a pea, mais respeito ganha o

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    responsvel pela mesma. As perguntas mais comuns so: o que leva algum a fazer tais

    coisas? Qual a ideia de se apresentar em espaos pblicos?

    Os grafiteiros conhecem misteriosos e conspiratrios segredos da cidade grande.

    Eles atingem escuras passagens subterrneas que poucos conhecem, descobrindo muros

    e quebradas quase deixadas para trs. So como pequenas confisses feitas pelo amante,

    de hbitos estranhos ou comportamentos ocasionais, que somente aqueles que possuem

    muita intimidade podem conhecer. Eles amam a cidade a seu modo, e vice-versa. Uma

    cumplicidade no escuro. como iluminar novamente um lado acinzentado na rotina do

    relacionamento. O corpo da cidade o corpo do amado: estranho o suficiente para a

    curiosidade sexual, ntimo o suficiente para ser tocado sem medo.

    relevante observar que a transgresso elemento fundamental em tais

    expresses urbanas. Para Franco (2009, p. 28), ela [...] gera a fora motriz para a

    expanso e disseminao da prtica, j que preciso fazer a marca do grupo em locais

    no autorizados e ao mesmo tempo visveis a qualquer cidado. Consequentemente,

    os ativistas da pixao (e do grafite no autorizado) correro riscos e sero ousados em

    suas investidas.

    Diversos autores de diferentes pocas comparam os organismos fisiolgico e

    urbano, propondo analogias entre o corpo e a cidade. O artista Celso Gitahy, por

    exemplo, escreve:

    Embora toda a polmica sobre a pixao [sic], propriedade privada e graffiti, sinto-me compelido a comparar a origem de tais linguagens em So Paulo com uma grande gastrite que a cidade contraiu, em que a inflamao, em vez de ser nas paredes mucosas do estmago, seria nos muros e espaos pblicos da cidade. Toda inflamao serviu, e continua servindo, para sinalizar o organismo sobre algum tipo de disfuno ou distrbio vindo do meio externo. Vou ainda mais longe: o graffiti no seria somente a inflamao que apresenta o sintoma de uma urbanidade corrompida e banalizada pelos diversos meios contemporneos, mas tambm o prprio blsamo curativo apresentando a prpria arte nas ruas, e para todos. (GITAHY, 2006, p. 48-49)

    O autor parece se referir a ao grafite como uma espcie de pharmakon, isto ,

    tanto veneno como remdio, conforme nos indica a palavra em grego. A comparao

    interessante na medida em que expe certo paradoxo presente na pixao. Podemos

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    enxergar polarizaes nesse cenrio e nos depoimentos de quem os faz: vida e morte,

    arte e destruio, solidariedade e competio. Se as pixaes, num primeiro olhar,

    provocam certo desgosto por estragarem a digesto do cenrio urbano, se olhadas

    mais de perto conferem certa humanizao cidade mecanizada.

    A periferia torna-se um smbolo. luz da psicologia analtica de Jung, pode-se

    pensar que esse corpo perifrico, como smbolo, fornece expresso concreta a um

    complexo, sendo este um personagem com caractersticas prprias, um modo de ser,

    vinculado ao politesmo psquico (cidade). Mesmo considerando que o ego (centro) se

    faa presente e seja essencial para o encontro e certa organizao dos ncleos de afeto

    (complexo), so esses ncleos que nos atravessam o tempo todo. Ou seja: ainda que no

    centro, fala-se frequentemente a partir da regio perifrica.

    fundamental observar que, de acordo com o antroplogo Alexandre Pereira

    (2005), h um grande nmero de pixos que se referem a imagens de sujeira,

    criminalidade, marginalidade, estados alterados de conscincia (pelas drogas ou pela

    loucura). Exemplos de nomes de grupos de pixadores so: Mfia, Arsenal, Fugitivos,

    Homicidas, Ilegais, Kanalhas, Marginais, Metralhas, Vndalos, Dejetos, Os Dorme

    Sujo, Trapos, Vmitos, Adrenalina, Aloprados, Chapados, Dopados, Lunticos, Pirados,

    Psicopatas, Psicose, Vcio. Mais uma vez reforamos a ideia de que o patologizar da

    cidade encontra expresso na pixao, seja pela agressividade dessa comunicao de

    letras pretas e retas, seja pelas prprias identidades assumidas por esses seres da

    metrpole, identidades essas relacionadas s partes mais escuras e temidas da vida

    autnoma da psique. Como complexos insistentes, autnomos, possessivos e

    desafiadores da ordem egoica, os pixadores imprimem suas terrveis marcas neste

    conglomerado multifacetado que a polis/psique.

    A atividade de pixar tem o potencial de criar uma rede de contatos e de

    pertencimento. As gangues de pixadores so tambm chamadas de famlias. Aqui fica

    claro tambm que o pixador um explorador da cidade. Se pensarmos nos lugares onde

    vemos as pixaes, logo perceberemos que os destruidores parecem voar como

    pssaros ou subir em paredes como aranhas, alm de circularem como ratos por todos os

    buracos urbanos. Os pixos gritam do 15 andar de um prdio no centro da cidade, da

    porta de ferro do pequeno comrcio num bairro de periferia, no monumento-smbolo da

    metrpole, no bar, no muro do cemitrio, na calada, no banco de praa, na caixa de

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    correio, na lixeira e se incluirmos alguns grafites a tinta escorre at mesmo na rede

    de esgoto, nos subterrneos da cidade. No h limites para o pixador, nem a morte os

    mata, nem a dor impede o pixo de falar atravs da multiplicidade urbana. Ao

    contrrio: a possibilidade de dor e morte d mais vida s pixaes, desafia ainda mais os

    cidados comuns da polis, que no conseguem compreender. No compreendem o que

    leva algum a fazer isso, no compreendem o que est escrito.

    Mas a cidade, se no compreende pela razo, se faz entender tambm pela

    pixao. Afinal, o cenrio das grandes cidades brasileiras compreende a pixao.

    Impossvel ignor-la, impossvel apag-la, impossvel venc-la. Da mesma forma que o

    patologizar, como pretendemos demonstrar aqui: no h como ignorar sintomas de

    depresso ou de sndrome do pnico. Eles insistem, como produes espontneas da

    psique, brotam da vida e da morte.

    Djan, pixador experiente do grupo Cripta, em depoimento aponta para o

    destaque que a pixao confere ao sujeito. Aparecer na e atravs da cidade o ponto.

    Como se a cidade falasse o seu nome, o nome da sua gangue (ou famlia) para quem

    est andando por ela. O muro foi colocado no meu caminho, por isso eu vou inscrever

    algo pessoal nessa parede, ela se trombou comigo no meu rol, afinal de contas. O

    sentimento de pertencer a algo e poder ter uma experincia psicolgica, que leva a

    pessoa a uma insero social, parece ser fundamental. A intimidade entre espao e

    habitante da polis compartilhada.

    como se os pixadores dissessem uns aos outros: eu entendo essa mistura com o

    espao, um amor concreto e expansivo, pintado em letras garrafais, para quem quiser

    ver. Isso nos faz especiais, mesmo que eu rale o dia inteiro fazendo entrega e levando na

    cara de patro. Aqui somos algum, somos ns e a cidade infinita e eterna, acima,

    abaixo, para todos os lados, circundados pelo forte aroma da tinta, somos mais que ns

    mesmos, servimos ao apetite destruidor e original da polis. Falamos por ela e ela fala

    por ns, em ns, entrelaados, sem volta.

    A criao impulsiva do puer

    O arqutipo do puer-senex j foi bastante explorado pelos junguianos. Os motivos da

    criana e do materno foram alvos de reflexes de Jung (2002). A presena na psique

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    da me devoradora e da criana abandonada, por exemplo, indicam que a temtica da

    sada do reino materno para o mundo crucial na ontognese humana tal como descrita

    por Jung. Destaco uma colocao do autor:

    Afirmaes tais como o motivo da criana apenas um vestgio da memria da prpria infncia e outras explicaes similares s nos fazem fugir da questo. Se, ao contrrio com uma pequena modificao dessa frase , dissermos que o motivo da criana o quadro para certas coisas que esquecemos da prpria infncia, j nos aproximamos mais da verdade. No entanto, uma vez que o arqutipo sempre uma imagem que pertence humanidade inteira e no somente ao indivduo, talvez seja melhor formular a frase do seguinte modo: o motivo da criana representa o aspecto pr-consciente da infncia da alma coletiva (Jung, 1941/2002, p.162 grifo do autor).

    A alma tambm se manifesta atravs do infantil. Medo, busca por proteo,

    irresponsabilidade, criao, espontaneidade, choro, prazer, mamadas, esperar vir at

    mim, contestao, fruio pelo aparentemente simples, esconder-se embaixo da cama,

    entregar-se totalmente so possveis eventos que podem se tornar experincias

    psicolgicas significativas.

    O puer classicamente associado ao complexo materno. Von Franz (1992)

    ressalta caractersticas como a arrogncia, falsos sentimentos de superioridade, seduo,

    busca pela religio autntica, presentes nas pessoas muito influenciadas pelo arqutipo

    do puer aeternus.

    Hillman (1998) traz argumentos e reflexes interessantes a respeito do puer, que

    vo por trajetos diferentes da caminhada de Von Franz. O autor suspende a

    aparentemente necessria relao puer-complexo materno; consequentemente, oferece

    outras possibilidades, para alm da sada do reino maternal.

    Na alquimia, o abrao entre esprito (puer) e matria (me) tambm remete ao

    sofrimento e ao mal o que a psicologia nomeia como neurose. Contudo, a sada desse

    abrao no se restringe imagem do filho que deixa a me, essa batalha heroica

    bastante conhecida no mundo ocidental e comumente representada por So Jorge e seu

    investimento contra o Drago. Mas Hillman (1998) lembra que, na alquimia, o Drago

    tambm representa Mercrio criador, uma figurao do puer. Ele no um animal, mas

    criatura fictcia, a vitalidade instintiva da imaginao. Matar o drago no mito heroico

    significa nada menos do que matar a imaginao, o verdadeiro esprito que o caminho

    e a meta (p.70).

    Para Hillman (1998), o mito do heri dominou as interpretaes da psicologia

    moderna a respeito do puer. Esquecemo-nos de que esse mito um entre muitos

  • 12

    motivos alqumicos, um modo de operar, dentro de uma constelao. Se a psicologia

    tem de se libertar para outras fantasias, a fim de compreender a imensa amplitude dos

    acontecimentos da psique, deve primeiro libertar o puer da me [...] (p.73).

    Conforme coloca Bernardi (2008), Hillman aponta para a importncia do puer se

    vincular aos valores espirituais representados pelo senex e viv-los, primeiramente, no

    mundo das ideias. A imaginao seria um dos meios para se entrar em contato com

    essa realidade.

    Bernardi (2008) nos lembra, juntamente com Hillman, que puer e senex

    apresentam duas qualidades opostas do tempo. H o tempo cronolgico do senex,

    representado por Cronos, o pai devorador. E h o tempo do inesperado, do acaso, do

    instante certo de se agir diante de uma abertura ou oportunidade (o que os gregos

    nomeiam como kairs). Combatendo o tempo cronolgico ao buscar ou encontrar

    brechas na sua inexorabilidade, o kairs do puer o impulsiona a investigar, buscar,

    viajar, transgredir (Bernardi, 2008, p.37). Como escreve Hillman (1998, p.196):

    espirito incansvel que no tem lar na terra, est sempre vindo de algum lugar ou indo

    para algum lugar, em trnsito. Seu eros dirigido pelo anseio [...].

    Sabemos que a irresponsabilidade, assim como a inexperincia e a impacincia,

    podem por tudo a perder, conforme aponta Bernardi (2008). Entretanto, fundamental

    termos em mente que nem sempre as aes cautelosas, planejadas e calculadas na

    medida da realidade so as mais interessantes ou mesmo as mais eficientes. Ao

    contrrio: [...] muitas vezes uma ao irresponsvel ou mesmo inexperiente a que

    mais facilmente colocaria um processo em movimento, um acontecimento em curso que

    estava atravancado por algum motivo: o excesso de cautela impedia uma ao

    (Bernardi, 2008, p.42). O entusiasmo move o puer, este o deus dentro dele.

    Em outro momento, Hillman (2005) faz interessantes observaes acerca da

    verticalidade dentro da ideia de algo radical que quebra com o regular, o que o autor

    entende como o mago do efeito criativo do puer. Pois para a conscincia do puer a

    transcendncia de tudo que dado se torna ascendncia sobre tudo o que dado, o para

    cima direciona todos os esforos. O esprito deve elevar-se, Eros deve fulgurar, o

    insight deve produzir a viso global.

    Pois ainda que o complexo materno possa impulsionar o componente heroico do

    puer, cuidar de sua vulnerabilidade e chorar por causa de suas agonias, o garoto-

    falco depende em ltima instncia de sua prpria fora e compelido pela sua

    prpria autenticidade arquetpica. No puer o impulso-pai que redime as limitaes

  • 13

    do pai; ou seja, um impulso que transcende o pai (e no se reconcilia com ele, ou

    amado por ele e recebe uma bno). A retrica do puer rebela-se contra o velho no

    porque ele vive num simples contraste entre o fresco e jovem contra o gasto e cansado,

    mas porque a sabedoria do velho letrada, aprendida com a histria, acumulada pelo

    tempo e isso bloqueia o acesso do puer eternidade, sua fonte e sua casa, seu

    objetivo. A demanda do puer por conhecimento tem uma fria instintiva, a demanda

    da ave de rapina (Hillman, 2005).

    Para afirmar o seu ponto de servio a princpios mais altos e alm dele mesmo, o

    homem-puer pode ir ao extremo de sacrificar-se causa. O ego no envia seu esprito

    para to alto, mas o esprito envia seu ego para l. Pode-se situar firmemente com

    orgulho (superbia) e voar bem alto com inflao (hubris), mas a ambio pouco aprende

    do conselho e no d ateno cautela. O puer ascende com fogo porque ele est

    pegando fogo. Essa a verticalidade da adolescncia, a ereo do corpo, o corpo em

    ereo, esticando para cima. Ao invs de julgar o puer do ponto de vista convencional

    da me, Hillman (2005) reverte tal inclinao e olha para tais convenes com a viso

    inflamada e ultrajante do puer. Sua aproximao menos a do senex em busca da falha,

    e mais uma liberao do puer, em busca de uma sexualidade livre das restries

    dogmticas da me.

    Enfim, a questo do puer superar os deuses ancios e ir alm do pai. O

    chamado do puer reencontrar a ordem das coisas do cu para baixo. Ele precisa olhar

    para baixo e, para aqueles que andam pelo plano mundano, essa a definio de

    arrogncia. As emoes so altas: redeno, beleza, amor, felicidade, justia, honra. O

    voo para cima diz respeito ao senex, com respeito pelo senex; trata-se de uma causa

    espiritual, causado pelo esprito (Hillman, 2005).

    Feitas essas consideraes tericas, gostaria de pensar sobre os ataques dos

    pixadores aos altos edifcios de So Paulo, partindo dessas ideias. Sabemos da

    importncia de alcanar pontos de difcil acesso na competio entre as gangues do

    pixo. Observa-se com frequncia pixaes realizadas em topos de prdios nas regies

    centrais da cidade. O pixador-puer est atrs mesmo disso: o topo, a sada da dura e

    pobre realidade terrestre. Marca-se o alto para se sair da rebaixada vida comum.

    A maioria dos pixadores muito jovem, alguns so adolescentes. Mas o que

    mais nos interessa na aproximao com o puer no a idade em si, e sim a ousadia e a

    transgresso, obrigatrias para um verdadeiro pixador. preciso escalar, correr,

    arriscar-se, infringir regras, varar noites, desafiar a autoridade tanto policial quanto do

  • 14

    status artstico. A verticalidade uma das possibilidades mais interessantes nesse

    devaneio em preto a marcar o branco. O pixador tende a ser arrogante, marca as regies

    nobres da metrpole sem se colocar em seu devido lugar (de cidado pobre da

    periferia). So muitas as caractersticas do ato de pixar que nos levam diretamente

    lgica do puer, levantadas por Jung, von Franz e Hillman.

    A ousadia, alm de aparecer em diversos pontos da cidade, tambm aparece na

    contestao do panorama da arte no Brasil e no mundo. Basta lembrar dos ataques s

    instituies de arte ocorridos em 2008 e 2010 (Faculdade de Belas Artes de So Paulo,

    Galeria Choque Cultural, 28 Bienal internacional de Artes de So Paulo2). Ou do

    recente episdio ocorrido na 7 Bienal de Berlim, em junho de 2012, que tinha como

    ttulo Forget Fear (esquea o medo). Recusando-se a fazer uma demonstrao prtica

    (oficina), o grupo de pixadores brasileiros convidados a participar da Bienal pixou as

    paredes externas de uma igreja no local onde ocorria a exposio de arte. Uma das

    curiosidades do ocorrido foi a guerra de tinta entre o curador da Bienal, o artista polons

    Artur Zmijewski, e Cripta Djan, pixador da grife Os Mais Fortes.

    Se identificarmos as instituies tradicionais de arte citadas no reino do pai,

    podemos ver a ao agressiva e afrontosa do puer. O debate no se d no mbito do

    conhecimento sobre arte, ou sobre tcnicas artsticas aprendidas custa de tempo e

    sacrifcio (trabalho). O debate est na guerra declarada pelo puer, nos atos inflados de

    jovens que saem de seus bairros pobres onde no h arte e boa educao para pixar

    construes rigorosamente planejadas pelo senex, devido s suas sofisticadas

    arquiteturas e/ou cargas simblicas (faculdade de belas artes, edifcios que abrigam

    exposies de arte, galeria de arte). O esprito do puer capaz de voar at o velho

    continente e no levar desaforo de volta para casa, deixando sua marca

    artstica/destruidora nas paredes da tradio.

    Para ilustrar este ponto, trarei um trecho de entrevista do pixador Cripta Djan

    (ou simplesmente Djan), publicada no blog da internet Risk Underground3. Ao ser

    solicitado a contar uma histria marcante em seus rols de pixao, Djan narra o

    seguinte:

    2 Em mensagem enviada aos pixadores, quando da convocao para o ataque a esta Bienal, lemos o interessante trecho: Espancaremos na tinta a Bienal de Arte, esse ano conhecida como bienal do vazio. Retirado de: http://comjuntovazio.wordpress.com/2010/04/21/pixacao/. Acesso em 15/05/2011). Espancar na tinta uma expresso excelente para a violncia simblica presente na pixao. 3 Entrevista disponvel no blog Risk Underground. Retirada de: http://riskunderground.blogspot.com.br/2012/11/entrevista-cripta-djan.html. Acesso em 01/11/2012.

  • 15

    Pixador sempre vai ter vrias histrias, algumas tristes outras engraadas ou emocionantes, mas eu vou contar uma que rolou no centro em 2003. Estvamos ns numa turma de sete pessoas, eu, Fern (Reais), Bafu (Zapi), Geral (Anes), Bilu (Inocentes), FILHO e o saudoso mano Guigo do (Nticos), nosso alvo era um prdio na Av. So Joo cujo seis primeiros andares funcionava um estacionamento, que estava vazio. Eu e o Rafael (PixoBomb) j tnhamos feito alguns andares dele com o Joo (Bbados) e o Derlei (PRDS), nossa inteno era terminar de fechar o prdio no Grapixo e no Bomb com o resto da galera. Por volta da meia noite depois que o estacionamento fechou ns invadimos pelo segundo andar, s o barulho de sete pessoas andando dentro do prdio era bastante alto, parecia soldados marchando. Logo que chegamos l dentro nos separamos pelos andares que estavam limpo e cada um comeou a fazer seu trampo. Pra ficar grande e bonito tudo mundo pegou dois andares do prdio, comeando de ponta cabea num andar de cima, e terminando em p nas janelas num andar de baixo, esse tipo de trampo costuma a demorar cerca de 4 a 5 horas, porque nossa inteno no era s fazer um pixo comum. emocionante pintar um prdio bem no centro com uma turma daquelas, era lindo olhar para todos os lados e ver gente pendurada pintando, de repente quando eu ainda pintava o meu pixo olhei para os lados e no vi ningum, foi ai que eu percebi que tinha uma viatura parada no meio da rua com um policial olhando para o alto e me xingando, ento demos um tempo e esperamos a viatura ir embora. Assim que as viaturas foram embora ns voltamos a pintar, mas elas acabaram voltando porque os taxistas sempre os chamavam de novo. Esse esconde, esconde se arrastou pela noite inteira, mas tinha um problema, o estacionamento abriria s 5 horas da manh e ns ainda no tnhamos terminado, ento comeamos a correr contra o tempo. Quando deu 10 para as 5 da manh ns comeamos a descer as escadas, para tentar a fuga pelo estacionamento, o prdio estava cercado, e os policias aguardavam ansiosos a abertura do local. Quando deu 5 horas a primeira viatura entrou no prdio, nesse momento ns estvamos no sexto andar do estacionamento procurando uma fuga, o Guigo sugeriu que pulssemos em uns telhados de estabelecimentos vizinhos ao prdio, mas a queda era muito alta, ento desistimos, e a comeamos a descer o tnel do estacionamento por onde subiam os carros, de repente ouvimos o barulho da viatura subindo, ns estvamos no quarto andar, onde tentamos nos esconder, mas no tinham paredes ento todos deitaram no cho para esperar a viatura passar, porque no tinha mais o que fazer. A viatura passou por ns e no viu ningum, nossa ficha s caiu quando percebemos que os policiais estava no andar de cima, ento comeamos a correr para chegar ao segundo andar. Ao chegarmos percebemos que um lado do estacionamento que dava na Rua Aurora no tinha polcia, ento foi por ali mesmo que empreendemos fuga, o nico problema era que todos tinham que pular do segundo andar de um hotel para cair na marquise e depois pular na rua, e nem todos que estavam no rol eram janeleiros, mas na hora da fuga ningum quer ficar pra trs. Eu e o Guigo puxamos o bonde, quando olhamos pra trs todos estavam na rua fugindo, da eu comecei a contar os manos para ver se ningum tinha ficado pra trs, e pra alegria de todos ningum ficou, em seguida tomamos um caf em frente estao Jlio Prestes e comemoramos com certa descrio para no chamar ateno, pois os policias deviam estar putos dentro do prdio procurando por ns.

    A histria narrada pelo pixador traz imagens poderosas, que dizem respeito ao

    puer. O sonho alto dos jovens de fato ambicioso: pintar um grande prdio com

    diferentes estilos ao longo de uma noite inteira. O puer se confunde com a escurido,

    palco da imaginao e sombra do ego que se agarra luminosidade e ao

    estacionamento. O puer quer movimento, quer chamar a ateno; entusiasticamente,

  • 16

    ele contagia o grupo e desafia a escurido ltima que a morte, seja a morte pela queda,

    seja a morte da criao insana que circula por toda a cidade. Nada mais justo que o puer

    no confronte diretamente a lei (polcia) e o estabelecido; a adrenalina e as rpidas

    batidas do corao na fuga refletem a marca do puer ao lidar com a fiscalizao do

    senex. A frmula a foi invertida na vitria pueril: o drago (imaginao) arrasou o

    cavaleiro e sua espada com seu fogo em labaredas. A ordem foi driblada com coragem e

    com paixo.

    Aps a investida vertical, h a descida ao plano mundano dos cidados comuns,

    e o dia comea a acordar os mortais que oferecem seu suor para a manuteno do motor

    metropolitano e seus comrcios. Mercrio se dissolve em sua liquidez por entre os

    homens, recuperando-se da fria que tinge de preto pontos que vivem por algum tempo

    entre a criao e a destruio.

    B.N., pixador entrevistado por mim, fala de uma espcie de ponto de vista altivo

    do pixador, fala que pode ser lida metaforicamente:

    Subiu, j era. Ningum te viu? J era. A polcia passa l embaixo, quem o policial que vai ficar olhando pro alto pra saber se t acontecendo alguma coisa? Ningum olha pro alto. o que a gente constuma comentar: pro alto s olha pixador. noite pro alto s olha pixador. Nenhuma pessoa vai tirar seu foco da sua frente pra ficar olhando o que t acontecendo no alto, ento...4(informao verbal grifo adicionado)

    Assim, o pixador est no alto, no cu, pouco se importa com o mundo real de

    baixo: algo familiar ao universo do puer.

    Se fizermos um exerccio de suspenso da crtica a partir da moral, os atos de

    pixao so fortes investidas contra o dominante, como j ressaltei. A ambiguidade

    irrompe nessa fina camada que separa o ato criativo da delinquncia. dio e amor aqui

    esto realmente prximos, num misto de encantamento, vitalidade e fascnio pela altura

    seja esta literal ou simblica (ganhar fama entre os pixadores da cidade e alm dela).

    H um ponto ressaltado com muita frequncia pelos pixadores, no apenas em

    depoimentos dos entrevistados, mas tambm presentes em vdeos que circulam na

    internet: o fazer parte de um grupo, a amizade que a atividade proporciona, como j

    afirmado. Tem-se a um prato cheio para um adolescente principalmente aquele que

    vive nas periferias da grande cidade , isto , laos sociais que ajudam a lidar com o

    sentimento de vulnerabilidade/fragilidade frente ao mundo. A fora que impulsiona este

    4 Entrevista concedida durante pesquisa intitulada: A alma e o patologizar da e na cidade contempornea: um estudo sobre intervenes urbanas a partir da psicologia analtica, realizada pelo autor deste trabalho em 14 de junho de 2013.

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    jovem para perto do perigo e da morte caracterstica nuclear da fenomenologia da

    psique adolescente. Aparecer (deixar sua marca), desafiar os limites e o status quo,

    pertencer, ser reconhecido, fundir-se num grupo e em sua ideologia so alguns dos

    atributos desse devir pbere-metropolitano. Ousaria afirmar que a pixao um dos

    movimentos mais importantes para esse tipo de expresso anmica, essencial para essa

    fase da vida, no contexto das periferias de So Paulo nos ltimos 25 anos.

    Concluses

    Obviamente, a pixao desagrada, incomoda, vai para bem alm do

    costumeiramente aceitvel, intervm de forma devastadora. Pe o preto no branco. De

    forma semelhante, desculpem a insistncia, ao patologizar e alma in extremis.

    possvel apagar a pixao, mas geralmente ela volta, apresentando uma insistncia

    impressionante. Como aquele nosso sintoma que nos visita sempre, aps anos de anlise

    ou tratamento medicamentoso; na calada da noite, de repente ele vem e nos faz repetir

    certas atitudes que cramos estarem j controladas.

    Mas as mensagens da alma podem ser decifradas de alguma forma. O sintoma

    pode ser desliteralizado ou metaforizado, reimaginado, encarado de outras formas, ou

    pode compor nossas fices com passagens de suspense, aventura, terror e

    principalmente drama. E o pixo tambm pode. O que a cidade fala atravs dele? Se

    pudermos ver atravs, na expresso hillmaniana, poderemos enxergar muitas coisas

    alm do feio e do sujo que deve ser eliminado. No se trata de querer ver ali uma beleza

    agradvel como tambm no se trata de enxergar dessa forma o delrio paranoico, por

    exemplo. Mas podemos ver jovens que se destacam e criam um mundo complexo com

    falas diversas. Vemos a cidade marcar que violenta, excludente, muitas vezes difcil

    de entender, quase indecifrvel em sua injustia, escura, nivelada pelo concreto

    montono e cinza, guiada pelo dinheiro e pela propriedade privada.

    Os pixos so ao mesmo tempo feios e extraordinrios, eles sujam e do vida

    cidade, enraivecem uns e do um sentido para a vida de outros. lixo e arte,

    assombram e encantam, tiram do srio. Afinal, transgresso com tudo o que uma

    verdadeira transgresso acarreta, incluindo medo e fascnio. o patologizar da cidade

    de So Paulo, em tintas carregadas, a alma in extremis: temos de tem-la, mas sem nos

    afastar dela.

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    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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    Recursos de apresentao: Data-show (apenas imagens, no necessrio udio).