As Pixações Em São Paulo o Puer o Patologizar e o Ver Através Da Cidade - Guilherme Scandiucci
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AS PIXAES EM SO PAULO: O PUER, O PATOLOGIZAR E O VER
ATRAVS DA CIDADE.
Guilherme Scandiucci
Psiclogo clnico e professor universitrio. Mestre e doutor pelo Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo. Professor e supervisor de estgio em psicoterapia analtica do curso de psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Membro do grupo Himma Estudos em Psicologia Imaginal.
RESUMO
A proposta debater de forma aprofundada a diversidade e a problemtica presente em alguns fenmenos urbanos contemporneos. Especificamente, este trabalho de debrua sobre as pixaes1, notoriamente presentes na cidade de So Paulo. Compreende-se a cidade e suas manifestaes luz das concepes tericas da sociologia, da antropologia urbana, da psicologia analtica de Carl Jung e da psicologia arquetpica de James Hillman, sobretudo em suas ideias de alma e de anima mundi e do arqutipo do puer aeternus. Conclui-se que a pixao expresso tanto do patologizar quanto do psicologizar (ver atravs) da metrpole.
OBJETIVOS
Discutir, partindo sobretudo da psicologia arquetpica, as problemticas referentes vivncia do espao pblico na metrpole. Mais especificamente, refletir sobre a relevncia das pixaes e dos jovens que a fazem no cenrio e na alma da cidade de So Paulo dos ltimos vinte e cinco anos.
JUSTIFICATIVA
O tema est inteiramente de acordo com a proposta geral do congresso de discutir a alma brasileira, suas manifestaes, sua multiplicidade e seus mitos contemporneos. Encaixa-se bem especificamente no tema Horrores e Maravilhas da Polis.
DESENVOLVIMENTO DO TEMA
Cidade, psique e patologizar
A cidade, sobretudo a grande, por excelncia um locus privilegiado da
convivncia e da diversidade. Pode ser enxergada como um arqutipo primrio da
experincia humana, isto , a vida em comunidade, com toda a contradio, tenso e 1 A maior parte dos autores pesquisados utilizam o termo com x (pixao), referindo-se escrita urbana de grupos contempornea (em letras estilizadas, geralmente ilegveis ao leigo). Diferem-na de outras formas de protesto escrito, em letras legveis (estas seriam pichaes, com ch).
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exuberncia que a mesma implica. As cidades podem ser vistas por ngulos diversos,
pois podem se destacar como centros comerciais e suas oportunidades econmicas ou
produo de tecnologia, ou sobressair pelas produes artsticas, atividades esportivas,
cultos religiosos, pesquisas, entretenimento. Podem ainda representar, por outro lado,
um apanhado de problemas coletivos a serem resolvidos, como circulao, lixo,
drenagem, esgoto, pobreza. As cidades, enfim, so aglomeraes humanas, colees de
estruturas e sistemas ora lgubres e montonos, ora interessantes e diversificados,
portanto, podem ser bastante inspiradoras.
Conforme aponta Jones (2003), as cidades esto conosco (e ns com elas) h
milhares de anos, entretanto experimentamos muitas vezes nas metrpoles
contemporneas uma inquietao ou intranquilidade, ou uma sensao de sermos
estrangeiros em nossa prpria terra. A criatura parece estar saindo de nosso controle,
pois os to arraigados problemas urbanos podem resultar numa espcie de queda
coletiva ou no caos palavra que comumente utilizamos ao nos referirmos s
metrpoles. A cidade tornou-se, simultaneamente, nossa esperana e nossa priso, e um
abrigo para muitos de nossos medos e frustraes.
Entretanto, se retomarmos a concepo junguiana de psique, nos ser ofertada
uma viso diferente desta. Jung (1954/2002) separa a psique em duas esferas: a
subjetiva e a objetiva. A primeira relacionada aos processos conscientes e ao que
chamaramos de inconsciente pessoal e seus contedos; a ltima preenchida pelos
temas arquetpicos, mitolgicos: o inconsciente impessoal ou coletivo. Embora a anima
esteja intimamente relacionada alma ou psique, ela ocupa outro lugar na conceituao
junguiana e no pode ser completamente confundida com o que Jung chama de Seele.
Assim como Jung, James Hillman est distante de uma abordagem metafsica da
alma. Ele a pensa como uma perspectiva em vez de uma substncia, um ponto de vista
sobre as coisas em vez de uma coisa em si. Ou seja, a alma menos um objeto de
conhecimento do que uma maneira de conhecer o objeto. Carrega algumas
caractersticas bsicas, como o aprofundamento dos eventos em experincias, uma
relao com a morte, uma possibilidade imaginativa no homem: especulao reflexiva,
sonho, imagem e fantasia. Acompanhando Jung, Hillman coloca que tudo o que o
homem pode encontrar derivado de imagens psquicas. No por acaso cita o primeiro
no uso de fantasia-imagem como uma espcie de termo sintetizador. Portanto, o
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processo de imaginao a raiz da proposta hillmaniana: uma psicologia e uma base
potica da mente (HILLMAN, 1977, 2010).
Mantendo-se fiel aos textos junguianos, Hillman critica a psicologia por
permanecer to distante da alma, observando que a mesma nem utiliza mais essa
palavra, e sim Self ou ego para se referir a uma pessoa. Fomos todos des-almados
(HILLMAN, 2010, p. 42). A psicologia parece estar muito preocupada com a
conceituao e com a compreenso. O autor reclama uma personificao, a habilidade
de personificar: o fazer-alma (ou cultivo da alma) depende dessa atitude, cuja presena
em Jung, ao longo de sua vida, foi bastante forte, segundo Hillman.
O inconsciente junguiano espontaneamente personifica, portanto justo que
Jung faa uso de personificaes em sua terminologia. A anima a imagem-alma
personificada e pessoal de algum. A anima uma pessoa e uma noo conceitual,
significando alma. de certa forma uma conversa entre ela (como Jung a denomina)
e o psiclogo suo; ela est sempre criando conflitos, trazendo desejos e variaes de
humor, incitando fantasias. Trata-se de uma personificao do inconsciente do homem.
Para Hillman, anima significa tanto psique como alma ou psique personificada; se
uma funo psquica relacionada alma imaginativa ativada, o homem pode
experimentar a realidade imaginal. Aqui, o autor parece equiparar alma (soul) e anima:
ambos habitam a capacidade de perceber imaginalmente o mundo tanto externo
quanto interno , pois nesse registro no haveria nem motivo para diferenci-los
completamente (HILLMAN, 2010).
Hillman pensa na ideia de fazer-alma ou cultivo da alma, um trabalho de
certa devoo alma, que pode ser desenvolvido no apenas pelo analista no
consultrio, mas por qualquer pessoa em contato com a imagem, em qualquer situao.
Afinal, a alma est no olhar, e no no objeto. Nesse sentido, nossas personalidades so
como personagens por meio das quais a alma fala. Afirma Hillman: No sou eu que
personifico, mas a anima me personifica, ou faz-se a si mesma atravs de mim, dando
minha vida o seu (dela) sentido (2010, p. 130). A alma nos usa para se expressar, ela
nos invade e carrega os deuses junto.
Deve-se ressaltar a ideia de anima mundi. Hillman lana uma nova luz ao
entendimento das foras vitais subjacentes ao mundo que nos rodeia, declarando que
cada coisa de nossa vida urbana construda tem uma importncia psicolgica
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(HILLMAN, 1993, p. 9). Retomando ideias platnicas e confrontando com as filosofias
de Aquino, Descartes, Locke e Kant, as coisas de fora recuperam suas almas. A anima
mundi o mundo almado, e no somente material ou morto, ou simplesmente uma
espcie de pano de fundo no qual a subjetividade se manifesta.
Como formas expressivas, as coisas falam: mostram as configuraes que assumem. Elas se anunciam, atestam sua presena: Olhem, estamos aqui. Elas nos observam independente do modo como as observamos, independentes de nossas perspectivas, do que pretendemos com elas e como as utilizamos. Essa exigncia imaginativa de ateno indica um mundo almado [...] Qualificar um prdio de catatnico ou anorxico significa examinar o modo como ele se apresenta, seu comportamento em sua estrutura descarnada, alta, rgida, magra, sua fachada envidraada, frieza dessexualizada, sua explosiva agressividade reprimida, seu trio interior vazio seccionado por colunas verticais. [...] Interpretar as coisas do mundo como se fossem nossos sonhos priva o mundo de seu sonho, sua queixa. (HILLMAN, 1993, p. 14-16)
Em suma, anima mundi uma maneira de perceber, sentir e imaginar. Com essa
proposio, Hillman (1993) sugere que a psicologia deveria mudar seu ponto de vista
como um todo, da reflexo mental em direo ao reflexo cordial, movendo o lugar da
alma do crebro para o corao, e o mtodo da psicologia da compreenso cognitiva
para a sensibilidade esttica. A ameaa de destruio do mundo e a imagem
patologizada de nosso planeta nas ltimas dcadas parece ter revivido o reconhecimento
da alma no mundo.
Outro desenvolvimento terico fundamental aqui o conceito de Hillman de
patologizar. Estados patolgicos, por assim dizer, so chamados por Hillman (2010) de
alma in extremis. So estados de sofrimento, anormalidade e fantsticas condies da
psique. Cada alma, mais cedo ou mais tarde, revelar iluses e depresses, ideias
supervalorizadas, voos manacos e raivas, ansiedades, compulses e perverses
(HILLMAN, 2010, p. 132).
Hillman (2010) localiza certas tentativas de compreender a psicopatologia,
enfatizando duas formas clssicas de interpret-la: por meio da medicina e da religio.
Se sofremos, porque estamos doentes ou cometemos pecados, e a cura para isso clama
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pela cincia ou pela f. De todo modo, para ambos os modos de compreenso, a
patologia o lugar de algo que est errado.
Patologizar, na definio de Hillman (2010, p.134-135),
[...] a habilidade autnoma da psique para criar doena, morbidade, anormalidade e sofrimento em qualquer aspecto de seu comportamento, e de experimentar e imaginar a vida atravs desta perspectiva deformada e aflita.
Na viso arquetpica, portanto, a patologia no errada ou correta, mas
meramente necessria, j que se trata de expresso fundamental da psique. O
patologizar um estilo de retrica da alma. No algo estrangeiro a ns ou secundrio,
pois isso negligencia a realidade de que o patologizar um fundamento, [...] um fio
condutor em nosso ser, tranado em cada complexo (Hillman, 2010, p.136).
A psique no existe sem o patologizar. Desde que o inconsciente foi descoberto
como um fator operativo em cada alma, o patologizar foi reconhecido como um aspecto
inerente da personalidade interior. O patologizar est presente no apenas em especiais
momentos de crise, mas nas vidas cotidianas de todos ns (HILLMAN, 2010).
A cidade afeta fortemente a psique. A cidade psique. Levou algum tempo para
que a terapia aprendesse que corpo psique, que o que o corpo faz, como ele se move, o
que ele percebe psique. Depois a terapia foi aprendendo que a psique existe
inteiramente em sistemas relacionais, no sendo uma mnada, autodeterminada. O
prximo passo seria nos darmos conta de que a cidade, onde o corpo vive e se move e
onde a rede relacional tranada, tambm psique (HILLMAN; VENTURA, 1992).
Afinal, na teoria junguiana, o inconsciente coletivo o mundo e a psique no
est no indivduo, e sim o indivduo est na psique. Esse inconsciente se estenderia para
alm dos grandes smbolos de nossos sonhos ou das repercusses da histria de nossos
ancestrais. Ele inclui as ondas de fluxo e refluxo da cidade, as modas, linguagens,
tendncias, coreografias que regem nossas almas andantes, assim como as imagens
regem nossas almas. Uma cidade uma alma (HILLMAN; VENTURA, 1992, p. 83).
Exemplificando, como expem Hillman e Ventura (1992, p. 118), o carro um
espao privado que pode ir a qualquer direo a qualquer hora. O quarto do motel
assegura o seguinte: onde quer que voc v, haver um espao para voc uma
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peculiaridade da vida contempornea e estranha s sociedades prvias. Mas o fato de
haver um quarto para voc em qualquer lugar faz o lugar em que voc est menos
substancial. Assim, voc um transeunte, sem ter escolhido ser um. A transitoriedade
humana costumava ser definida quase exclusivamente como morte; agora, o fato de
termos inmeras escolhas faz de todos ns transeuntes o tempo todo.
Grafite e pixao em So Paulo
[...] Se olhar para a cidade nos faz entender um pouco mais os pixadores [sic],
olhar para os pixadores tambm nos ajuda a compreender um pouco mais a cidade
(PEREIRA, 2010, p. 146). No h dvida da importncia da pixao em So Paulo.
O grafite e a pixao expressam importantes aspectos da alma de uma cidade,
especialmente das grandes cidades. Ao lidar com diferentes aspectos de uma cidade e
sua situao fatores histricos, polticos, econmicos e sociais , os grafiteiros e
pixadores podem revelar partes dessa alma que esto normalmente encobertas na rotina
diria da vida de negcios. Tais revelaes podem ser um prazer para alguns e um
horror para outros: esse o conflito interno de qualquer sistema psquico, como mostra
a psicologia analtica. Quando a alma surge, a ltima coisa que podemos esperar
tranquilidade.
interessante retomar alguns preceitos da clnica junguiana, j que se est
comparando diretamente a viso clnica com a viso em direo cidade. Hillman
(1981) chama ateno para a diferenciao, isto , a necessidade da anlise de fazer
distino entre as partes componentes da personalidade, ou conhecer as diferentes
coletividades que falam atravs do ego. Esse classicamente um ponto nevrlgico do
pensamento de Jung, j nitidamente presente em sua teoria dos complexos. Sendo partes
fragmentadas e autnomas da personalidade, naturalmente multifacetada, os complexos
podem inclusive possuir o ego. o que ocorre, por exemplo, na dissociao neurtica
da personalidade, fenmeno clnico bastante comum.
Neuroses e complexos podem ser vistos tanto na cidade como nos indivduos. A
cidade pode ser considerada uma imagem e trabalhada da mesma maneira como um
sonho pessoal trabalhado. A cidade uma coleo de formas e dinmicas que podem
revelar sentido alm das interpretaes superficiais. Pode-se dizer que ela tem uma
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persona, a face que ela mostra ao mundo. Uma cidade que vive demasiadamente na luz
ignora ou marginaliza o que no pode ver, borrando ou obscurecendo a multiplicidade
invisvel, sombra do que revelado. Basta pensarmos nos bairros de periferia e seus
habitantes: os primeiros so frequentemente esquecidos pela administrao pblica; os
segundos, quando interagem com aqueles que habitam as partes centrais e nobres da
cidade, tendem a se tornar invisveis.
Se diferenciar-se tambm ser diferente, como a individualidade implica ser
nico (peculiar), a anlise junguiana recai sobre aquilo que diferente; o excntrico,
que no se adapta, geralmente evidenciado nas anormalidades psicopatolgicas. Aqui,
em vez de estas serem vistas como pontos falhos a serem excludos, devem ser vistas
como sementes de individualidade. A ideia
[...] reconectar as vrias partes supostamente equilibradas ou curadas da personalidade com os seus aspectos bizarros, de modo a no nos afastarmos deles (suprimi-los). (HILLMAN, 1981, p. 216)
Compreende-se, partindo-se dessa colocao, que o excntrico, o que est fora
do centro, o incomum, o deslocado, o divergente, enfim, interessa-nos em si mesmo,
como discurso de uma potencialidade para aquilo que nos especfico. Jung enfatiza a
importncia de ficar com o sintoma em vez de consert-lo rapidamente. Ficar na
confuso tambm abre possibilidades de processos alqumicos transformadores.
Doenas urbanas como expanso suburbana, engarrafamento, crimes de rua,
periferias arruinadas, arquitetura anorxica, consumismo, poluio do ar e da gua esto
em todo lugar. Compreendemo-las como impedimentos para evoluir, como problemas a
ser resolvidos, como atribuies para especialistas dotados de conhecimento tcnico.
Mas esses mesmos problemas podem tambm ser entendidos em termos de sintomas
que podem ser trabalhados em camadas mais profundas de sentido.
Voltando aos grafites e pixaes, interessante observar que o envolvimento do
grafiteiro com sua atividade costuma ser enorme. medida que muitas vezes uma
atividade proibida, correr riscos parte da vida diria do grafiteiro, o que inclui fugir da
polcia, roubar latas de spray, estar em locais perigosos em termos de altura, risco de
choque eltrico ou violncia. Quanto mais visvel a pea, mais respeito ganha o
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responsvel pela mesma. As perguntas mais comuns so: o que leva algum a fazer tais
coisas? Qual a ideia de se apresentar em espaos pblicos?
Os grafiteiros conhecem misteriosos e conspiratrios segredos da cidade grande.
Eles atingem escuras passagens subterrneas que poucos conhecem, descobrindo muros
e quebradas quase deixadas para trs. So como pequenas confisses feitas pelo amante,
de hbitos estranhos ou comportamentos ocasionais, que somente aqueles que possuem
muita intimidade podem conhecer. Eles amam a cidade a seu modo, e vice-versa. Uma
cumplicidade no escuro. como iluminar novamente um lado acinzentado na rotina do
relacionamento. O corpo da cidade o corpo do amado: estranho o suficiente para a
curiosidade sexual, ntimo o suficiente para ser tocado sem medo.
relevante observar que a transgresso elemento fundamental em tais
expresses urbanas. Para Franco (2009, p. 28), ela [...] gera a fora motriz para a
expanso e disseminao da prtica, j que preciso fazer a marca do grupo em locais
no autorizados e ao mesmo tempo visveis a qualquer cidado. Consequentemente,
os ativistas da pixao (e do grafite no autorizado) correro riscos e sero ousados em
suas investidas.
Diversos autores de diferentes pocas comparam os organismos fisiolgico e
urbano, propondo analogias entre o corpo e a cidade. O artista Celso Gitahy, por
exemplo, escreve:
Embora toda a polmica sobre a pixao [sic], propriedade privada e graffiti, sinto-me compelido a comparar a origem de tais linguagens em So Paulo com uma grande gastrite que a cidade contraiu, em que a inflamao, em vez de ser nas paredes mucosas do estmago, seria nos muros e espaos pblicos da cidade. Toda inflamao serviu, e continua servindo, para sinalizar o organismo sobre algum tipo de disfuno ou distrbio vindo do meio externo. Vou ainda mais longe: o graffiti no seria somente a inflamao que apresenta o sintoma de uma urbanidade corrompida e banalizada pelos diversos meios contemporneos, mas tambm o prprio blsamo curativo apresentando a prpria arte nas ruas, e para todos. (GITAHY, 2006, p. 48-49)
O autor parece se referir a ao grafite como uma espcie de pharmakon, isto ,
tanto veneno como remdio, conforme nos indica a palavra em grego. A comparao
interessante na medida em que expe certo paradoxo presente na pixao. Podemos
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enxergar polarizaes nesse cenrio e nos depoimentos de quem os faz: vida e morte,
arte e destruio, solidariedade e competio. Se as pixaes, num primeiro olhar,
provocam certo desgosto por estragarem a digesto do cenrio urbano, se olhadas
mais de perto conferem certa humanizao cidade mecanizada.
A periferia torna-se um smbolo. luz da psicologia analtica de Jung, pode-se
pensar que esse corpo perifrico, como smbolo, fornece expresso concreta a um
complexo, sendo este um personagem com caractersticas prprias, um modo de ser,
vinculado ao politesmo psquico (cidade). Mesmo considerando que o ego (centro) se
faa presente e seja essencial para o encontro e certa organizao dos ncleos de afeto
(complexo), so esses ncleos que nos atravessam o tempo todo. Ou seja: ainda que no
centro, fala-se frequentemente a partir da regio perifrica.
fundamental observar que, de acordo com o antroplogo Alexandre Pereira
(2005), h um grande nmero de pixos que se referem a imagens de sujeira,
criminalidade, marginalidade, estados alterados de conscincia (pelas drogas ou pela
loucura). Exemplos de nomes de grupos de pixadores so: Mfia, Arsenal, Fugitivos,
Homicidas, Ilegais, Kanalhas, Marginais, Metralhas, Vndalos, Dejetos, Os Dorme
Sujo, Trapos, Vmitos, Adrenalina, Aloprados, Chapados, Dopados, Lunticos, Pirados,
Psicopatas, Psicose, Vcio. Mais uma vez reforamos a ideia de que o patologizar da
cidade encontra expresso na pixao, seja pela agressividade dessa comunicao de
letras pretas e retas, seja pelas prprias identidades assumidas por esses seres da
metrpole, identidades essas relacionadas s partes mais escuras e temidas da vida
autnoma da psique. Como complexos insistentes, autnomos, possessivos e
desafiadores da ordem egoica, os pixadores imprimem suas terrveis marcas neste
conglomerado multifacetado que a polis/psique.
A atividade de pixar tem o potencial de criar uma rede de contatos e de
pertencimento. As gangues de pixadores so tambm chamadas de famlias. Aqui fica
claro tambm que o pixador um explorador da cidade. Se pensarmos nos lugares onde
vemos as pixaes, logo perceberemos que os destruidores parecem voar como
pssaros ou subir em paredes como aranhas, alm de circularem como ratos por todos os
buracos urbanos. Os pixos gritam do 15 andar de um prdio no centro da cidade, da
porta de ferro do pequeno comrcio num bairro de periferia, no monumento-smbolo da
metrpole, no bar, no muro do cemitrio, na calada, no banco de praa, na caixa de
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correio, na lixeira e se incluirmos alguns grafites a tinta escorre at mesmo na rede
de esgoto, nos subterrneos da cidade. No h limites para o pixador, nem a morte os
mata, nem a dor impede o pixo de falar atravs da multiplicidade urbana. Ao
contrrio: a possibilidade de dor e morte d mais vida s pixaes, desafia ainda mais os
cidados comuns da polis, que no conseguem compreender. No compreendem o que
leva algum a fazer isso, no compreendem o que est escrito.
Mas a cidade, se no compreende pela razo, se faz entender tambm pela
pixao. Afinal, o cenrio das grandes cidades brasileiras compreende a pixao.
Impossvel ignor-la, impossvel apag-la, impossvel venc-la. Da mesma forma que o
patologizar, como pretendemos demonstrar aqui: no h como ignorar sintomas de
depresso ou de sndrome do pnico. Eles insistem, como produes espontneas da
psique, brotam da vida e da morte.
Djan, pixador experiente do grupo Cripta, em depoimento aponta para o
destaque que a pixao confere ao sujeito. Aparecer na e atravs da cidade o ponto.
Como se a cidade falasse o seu nome, o nome da sua gangue (ou famlia) para quem
est andando por ela. O muro foi colocado no meu caminho, por isso eu vou inscrever
algo pessoal nessa parede, ela se trombou comigo no meu rol, afinal de contas. O
sentimento de pertencer a algo e poder ter uma experincia psicolgica, que leva a
pessoa a uma insero social, parece ser fundamental. A intimidade entre espao e
habitante da polis compartilhada.
como se os pixadores dissessem uns aos outros: eu entendo essa mistura com o
espao, um amor concreto e expansivo, pintado em letras garrafais, para quem quiser
ver. Isso nos faz especiais, mesmo que eu rale o dia inteiro fazendo entrega e levando na
cara de patro. Aqui somos algum, somos ns e a cidade infinita e eterna, acima,
abaixo, para todos os lados, circundados pelo forte aroma da tinta, somos mais que ns
mesmos, servimos ao apetite destruidor e original da polis. Falamos por ela e ela fala
por ns, em ns, entrelaados, sem volta.
A criao impulsiva do puer
O arqutipo do puer-senex j foi bastante explorado pelos junguianos. Os motivos da
criana e do materno foram alvos de reflexes de Jung (2002). A presena na psique
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da me devoradora e da criana abandonada, por exemplo, indicam que a temtica da
sada do reino materno para o mundo crucial na ontognese humana tal como descrita
por Jung. Destaco uma colocao do autor:
Afirmaes tais como o motivo da criana apenas um vestgio da memria da prpria infncia e outras explicaes similares s nos fazem fugir da questo. Se, ao contrrio com uma pequena modificao dessa frase , dissermos que o motivo da criana o quadro para certas coisas que esquecemos da prpria infncia, j nos aproximamos mais da verdade. No entanto, uma vez que o arqutipo sempre uma imagem que pertence humanidade inteira e no somente ao indivduo, talvez seja melhor formular a frase do seguinte modo: o motivo da criana representa o aspecto pr-consciente da infncia da alma coletiva (Jung, 1941/2002, p.162 grifo do autor).
A alma tambm se manifesta atravs do infantil. Medo, busca por proteo,
irresponsabilidade, criao, espontaneidade, choro, prazer, mamadas, esperar vir at
mim, contestao, fruio pelo aparentemente simples, esconder-se embaixo da cama,
entregar-se totalmente so possveis eventos que podem se tornar experincias
psicolgicas significativas.
O puer classicamente associado ao complexo materno. Von Franz (1992)
ressalta caractersticas como a arrogncia, falsos sentimentos de superioridade, seduo,
busca pela religio autntica, presentes nas pessoas muito influenciadas pelo arqutipo
do puer aeternus.
Hillman (1998) traz argumentos e reflexes interessantes a respeito do puer, que
vo por trajetos diferentes da caminhada de Von Franz. O autor suspende a
aparentemente necessria relao puer-complexo materno; consequentemente, oferece
outras possibilidades, para alm da sada do reino maternal.
Na alquimia, o abrao entre esprito (puer) e matria (me) tambm remete ao
sofrimento e ao mal o que a psicologia nomeia como neurose. Contudo, a sada desse
abrao no se restringe imagem do filho que deixa a me, essa batalha heroica
bastante conhecida no mundo ocidental e comumente representada por So Jorge e seu
investimento contra o Drago. Mas Hillman (1998) lembra que, na alquimia, o Drago
tambm representa Mercrio criador, uma figurao do puer. Ele no um animal, mas
criatura fictcia, a vitalidade instintiva da imaginao. Matar o drago no mito heroico
significa nada menos do que matar a imaginao, o verdadeiro esprito que o caminho
e a meta (p.70).
Para Hillman (1998), o mito do heri dominou as interpretaes da psicologia
moderna a respeito do puer. Esquecemo-nos de que esse mito um entre muitos
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motivos alqumicos, um modo de operar, dentro de uma constelao. Se a psicologia
tem de se libertar para outras fantasias, a fim de compreender a imensa amplitude dos
acontecimentos da psique, deve primeiro libertar o puer da me [...] (p.73).
Conforme coloca Bernardi (2008), Hillman aponta para a importncia do puer se
vincular aos valores espirituais representados pelo senex e viv-los, primeiramente, no
mundo das ideias. A imaginao seria um dos meios para se entrar em contato com
essa realidade.
Bernardi (2008) nos lembra, juntamente com Hillman, que puer e senex
apresentam duas qualidades opostas do tempo. H o tempo cronolgico do senex,
representado por Cronos, o pai devorador. E h o tempo do inesperado, do acaso, do
instante certo de se agir diante de uma abertura ou oportunidade (o que os gregos
nomeiam como kairs). Combatendo o tempo cronolgico ao buscar ou encontrar
brechas na sua inexorabilidade, o kairs do puer o impulsiona a investigar, buscar,
viajar, transgredir (Bernardi, 2008, p.37). Como escreve Hillman (1998, p.196):
espirito incansvel que no tem lar na terra, est sempre vindo de algum lugar ou indo
para algum lugar, em trnsito. Seu eros dirigido pelo anseio [...].
Sabemos que a irresponsabilidade, assim como a inexperincia e a impacincia,
podem por tudo a perder, conforme aponta Bernardi (2008). Entretanto, fundamental
termos em mente que nem sempre as aes cautelosas, planejadas e calculadas na
medida da realidade so as mais interessantes ou mesmo as mais eficientes. Ao
contrrio: [...] muitas vezes uma ao irresponsvel ou mesmo inexperiente a que
mais facilmente colocaria um processo em movimento, um acontecimento em curso que
estava atravancado por algum motivo: o excesso de cautela impedia uma ao
(Bernardi, 2008, p.42). O entusiasmo move o puer, este o deus dentro dele.
Em outro momento, Hillman (2005) faz interessantes observaes acerca da
verticalidade dentro da ideia de algo radical que quebra com o regular, o que o autor
entende como o mago do efeito criativo do puer. Pois para a conscincia do puer a
transcendncia de tudo que dado se torna ascendncia sobre tudo o que dado, o para
cima direciona todos os esforos. O esprito deve elevar-se, Eros deve fulgurar, o
insight deve produzir a viso global.
Pois ainda que o complexo materno possa impulsionar o componente heroico do
puer, cuidar de sua vulnerabilidade e chorar por causa de suas agonias, o garoto-
falco depende em ltima instncia de sua prpria fora e compelido pela sua
prpria autenticidade arquetpica. No puer o impulso-pai que redime as limitaes
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do pai; ou seja, um impulso que transcende o pai (e no se reconcilia com ele, ou
amado por ele e recebe uma bno). A retrica do puer rebela-se contra o velho no
porque ele vive num simples contraste entre o fresco e jovem contra o gasto e cansado,
mas porque a sabedoria do velho letrada, aprendida com a histria, acumulada pelo
tempo e isso bloqueia o acesso do puer eternidade, sua fonte e sua casa, seu
objetivo. A demanda do puer por conhecimento tem uma fria instintiva, a demanda
da ave de rapina (Hillman, 2005).
Para afirmar o seu ponto de servio a princpios mais altos e alm dele mesmo, o
homem-puer pode ir ao extremo de sacrificar-se causa. O ego no envia seu esprito
para to alto, mas o esprito envia seu ego para l. Pode-se situar firmemente com
orgulho (superbia) e voar bem alto com inflao (hubris), mas a ambio pouco aprende
do conselho e no d ateno cautela. O puer ascende com fogo porque ele est
pegando fogo. Essa a verticalidade da adolescncia, a ereo do corpo, o corpo em
ereo, esticando para cima. Ao invs de julgar o puer do ponto de vista convencional
da me, Hillman (2005) reverte tal inclinao e olha para tais convenes com a viso
inflamada e ultrajante do puer. Sua aproximao menos a do senex em busca da falha,
e mais uma liberao do puer, em busca de uma sexualidade livre das restries
dogmticas da me.
Enfim, a questo do puer superar os deuses ancios e ir alm do pai. O
chamado do puer reencontrar a ordem das coisas do cu para baixo. Ele precisa olhar
para baixo e, para aqueles que andam pelo plano mundano, essa a definio de
arrogncia. As emoes so altas: redeno, beleza, amor, felicidade, justia, honra. O
voo para cima diz respeito ao senex, com respeito pelo senex; trata-se de uma causa
espiritual, causado pelo esprito (Hillman, 2005).
Feitas essas consideraes tericas, gostaria de pensar sobre os ataques dos
pixadores aos altos edifcios de So Paulo, partindo dessas ideias. Sabemos da
importncia de alcanar pontos de difcil acesso na competio entre as gangues do
pixo. Observa-se com frequncia pixaes realizadas em topos de prdios nas regies
centrais da cidade. O pixador-puer est atrs mesmo disso: o topo, a sada da dura e
pobre realidade terrestre. Marca-se o alto para se sair da rebaixada vida comum.
A maioria dos pixadores muito jovem, alguns so adolescentes. Mas o que
mais nos interessa na aproximao com o puer no a idade em si, e sim a ousadia e a
transgresso, obrigatrias para um verdadeiro pixador. preciso escalar, correr,
arriscar-se, infringir regras, varar noites, desafiar a autoridade tanto policial quanto do
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status artstico. A verticalidade uma das possibilidades mais interessantes nesse
devaneio em preto a marcar o branco. O pixador tende a ser arrogante, marca as regies
nobres da metrpole sem se colocar em seu devido lugar (de cidado pobre da
periferia). So muitas as caractersticas do ato de pixar que nos levam diretamente
lgica do puer, levantadas por Jung, von Franz e Hillman.
A ousadia, alm de aparecer em diversos pontos da cidade, tambm aparece na
contestao do panorama da arte no Brasil e no mundo. Basta lembrar dos ataques s
instituies de arte ocorridos em 2008 e 2010 (Faculdade de Belas Artes de So Paulo,
Galeria Choque Cultural, 28 Bienal internacional de Artes de So Paulo2). Ou do
recente episdio ocorrido na 7 Bienal de Berlim, em junho de 2012, que tinha como
ttulo Forget Fear (esquea o medo). Recusando-se a fazer uma demonstrao prtica
(oficina), o grupo de pixadores brasileiros convidados a participar da Bienal pixou as
paredes externas de uma igreja no local onde ocorria a exposio de arte. Uma das
curiosidades do ocorrido foi a guerra de tinta entre o curador da Bienal, o artista polons
Artur Zmijewski, e Cripta Djan, pixador da grife Os Mais Fortes.
Se identificarmos as instituies tradicionais de arte citadas no reino do pai,
podemos ver a ao agressiva e afrontosa do puer. O debate no se d no mbito do
conhecimento sobre arte, ou sobre tcnicas artsticas aprendidas custa de tempo e
sacrifcio (trabalho). O debate est na guerra declarada pelo puer, nos atos inflados de
jovens que saem de seus bairros pobres onde no h arte e boa educao para pixar
construes rigorosamente planejadas pelo senex, devido s suas sofisticadas
arquiteturas e/ou cargas simblicas (faculdade de belas artes, edifcios que abrigam
exposies de arte, galeria de arte). O esprito do puer capaz de voar at o velho
continente e no levar desaforo de volta para casa, deixando sua marca
artstica/destruidora nas paredes da tradio.
Para ilustrar este ponto, trarei um trecho de entrevista do pixador Cripta Djan
(ou simplesmente Djan), publicada no blog da internet Risk Underground3. Ao ser
solicitado a contar uma histria marcante em seus rols de pixao, Djan narra o
seguinte:
2 Em mensagem enviada aos pixadores, quando da convocao para o ataque a esta Bienal, lemos o interessante trecho: Espancaremos na tinta a Bienal de Arte, esse ano conhecida como bienal do vazio. Retirado de: http://comjuntovazio.wordpress.com/2010/04/21/pixacao/. Acesso em 15/05/2011). Espancar na tinta uma expresso excelente para a violncia simblica presente na pixao. 3 Entrevista disponvel no blog Risk Underground. Retirada de: http://riskunderground.blogspot.com.br/2012/11/entrevista-cripta-djan.html. Acesso em 01/11/2012.
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Pixador sempre vai ter vrias histrias, algumas tristes outras engraadas ou emocionantes, mas eu vou contar uma que rolou no centro em 2003. Estvamos ns numa turma de sete pessoas, eu, Fern (Reais), Bafu (Zapi), Geral (Anes), Bilu (Inocentes), FILHO e o saudoso mano Guigo do (Nticos), nosso alvo era um prdio na Av. So Joo cujo seis primeiros andares funcionava um estacionamento, que estava vazio. Eu e o Rafael (PixoBomb) j tnhamos feito alguns andares dele com o Joo (Bbados) e o Derlei (PRDS), nossa inteno era terminar de fechar o prdio no Grapixo e no Bomb com o resto da galera. Por volta da meia noite depois que o estacionamento fechou ns invadimos pelo segundo andar, s o barulho de sete pessoas andando dentro do prdio era bastante alto, parecia soldados marchando. Logo que chegamos l dentro nos separamos pelos andares que estavam limpo e cada um comeou a fazer seu trampo. Pra ficar grande e bonito tudo mundo pegou dois andares do prdio, comeando de ponta cabea num andar de cima, e terminando em p nas janelas num andar de baixo, esse tipo de trampo costuma a demorar cerca de 4 a 5 horas, porque nossa inteno no era s fazer um pixo comum. emocionante pintar um prdio bem no centro com uma turma daquelas, era lindo olhar para todos os lados e ver gente pendurada pintando, de repente quando eu ainda pintava o meu pixo olhei para os lados e no vi ningum, foi ai que eu percebi que tinha uma viatura parada no meio da rua com um policial olhando para o alto e me xingando, ento demos um tempo e esperamos a viatura ir embora. Assim que as viaturas foram embora ns voltamos a pintar, mas elas acabaram voltando porque os taxistas sempre os chamavam de novo. Esse esconde, esconde se arrastou pela noite inteira, mas tinha um problema, o estacionamento abriria s 5 horas da manh e ns ainda no tnhamos terminado, ento comeamos a correr contra o tempo. Quando deu 10 para as 5 da manh ns comeamos a descer as escadas, para tentar a fuga pelo estacionamento, o prdio estava cercado, e os policias aguardavam ansiosos a abertura do local. Quando deu 5 horas a primeira viatura entrou no prdio, nesse momento ns estvamos no sexto andar do estacionamento procurando uma fuga, o Guigo sugeriu que pulssemos em uns telhados de estabelecimentos vizinhos ao prdio, mas a queda era muito alta, ento desistimos, e a comeamos a descer o tnel do estacionamento por onde subiam os carros, de repente ouvimos o barulho da viatura subindo, ns estvamos no quarto andar, onde tentamos nos esconder, mas no tinham paredes ento todos deitaram no cho para esperar a viatura passar, porque no tinha mais o que fazer. A viatura passou por ns e no viu ningum, nossa ficha s caiu quando percebemos que os policiais estava no andar de cima, ento comeamos a correr para chegar ao segundo andar. Ao chegarmos percebemos que um lado do estacionamento que dava na Rua Aurora no tinha polcia, ento foi por ali mesmo que empreendemos fuga, o nico problema era que todos tinham que pular do segundo andar de um hotel para cair na marquise e depois pular na rua, e nem todos que estavam no rol eram janeleiros, mas na hora da fuga ningum quer ficar pra trs. Eu e o Guigo puxamos o bonde, quando olhamos pra trs todos estavam na rua fugindo, da eu comecei a contar os manos para ver se ningum tinha ficado pra trs, e pra alegria de todos ningum ficou, em seguida tomamos um caf em frente estao Jlio Prestes e comemoramos com certa descrio para no chamar ateno, pois os policias deviam estar putos dentro do prdio procurando por ns.
A histria narrada pelo pixador traz imagens poderosas, que dizem respeito ao
puer. O sonho alto dos jovens de fato ambicioso: pintar um grande prdio com
diferentes estilos ao longo de uma noite inteira. O puer se confunde com a escurido,
palco da imaginao e sombra do ego que se agarra luminosidade e ao
estacionamento. O puer quer movimento, quer chamar a ateno; entusiasticamente,
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ele contagia o grupo e desafia a escurido ltima que a morte, seja a morte pela queda,
seja a morte da criao insana que circula por toda a cidade. Nada mais justo que o puer
no confronte diretamente a lei (polcia) e o estabelecido; a adrenalina e as rpidas
batidas do corao na fuga refletem a marca do puer ao lidar com a fiscalizao do
senex. A frmula a foi invertida na vitria pueril: o drago (imaginao) arrasou o
cavaleiro e sua espada com seu fogo em labaredas. A ordem foi driblada com coragem e
com paixo.
Aps a investida vertical, h a descida ao plano mundano dos cidados comuns,
e o dia comea a acordar os mortais que oferecem seu suor para a manuteno do motor
metropolitano e seus comrcios. Mercrio se dissolve em sua liquidez por entre os
homens, recuperando-se da fria que tinge de preto pontos que vivem por algum tempo
entre a criao e a destruio.
B.N., pixador entrevistado por mim, fala de uma espcie de ponto de vista altivo
do pixador, fala que pode ser lida metaforicamente:
Subiu, j era. Ningum te viu? J era. A polcia passa l embaixo, quem o policial que vai ficar olhando pro alto pra saber se t acontecendo alguma coisa? Ningum olha pro alto. o que a gente constuma comentar: pro alto s olha pixador. noite pro alto s olha pixador. Nenhuma pessoa vai tirar seu foco da sua frente pra ficar olhando o que t acontecendo no alto, ento...4(informao verbal grifo adicionado)
Assim, o pixador est no alto, no cu, pouco se importa com o mundo real de
baixo: algo familiar ao universo do puer.
Se fizermos um exerccio de suspenso da crtica a partir da moral, os atos de
pixao so fortes investidas contra o dominante, como j ressaltei. A ambiguidade
irrompe nessa fina camada que separa o ato criativo da delinquncia. dio e amor aqui
esto realmente prximos, num misto de encantamento, vitalidade e fascnio pela altura
seja esta literal ou simblica (ganhar fama entre os pixadores da cidade e alm dela).
H um ponto ressaltado com muita frequncia pelos pixadores, no apenas em
depoimentos dos entrevistados, mas tambm presentes em vdeos que circulam na
internet: o fazer parte de um grupo, a amizade que a atividade proporciona, como j
afirmado. Tem-se a um prato cheio para um adolescente principalmente aquele que
vive nas periferias da grande cidade , isto , laos sociais que ajudam a lidar com o
sentimento de vulnerabilidade/fragilidade frente ao mundo. A fora que impulsiona este
4 Entrevista concedida durante pesquisa intitulada: A alma e o patologizar da e na cidade contempornea: um estudo sobre intervenes urbanas a partir da psicologia analtica, realizada pelo autor deste trabalho em 14 de junho de 2013.
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jovem para perto do perigo e da morte caracterstica nuclear da fenomenologia da
psique adolescente. Aparecer (deixar sua marca), desafiar os limites e o status quo,
pertencer, ser reconhecido, fundir-se num grupo e em sua ideologia so alguns dos
atributos desse devir pbere-metropolitano. Ousaria afirmar que a pixao um dos
movimentos mais importantes para esse tipo de expresso anmica, essencial para essa
fase da vida, no contexto das periferias de So Paulo nos ltimos 25 anos.
Concluses
Obviamente, a pixao desagrada, incomoda, vai para bem alm do
costumeiramente aceitvel, intervm de forma devastadora. Pe o preto no branco. De
forma semelhante, desculpem a insistncia, ao patologizar e alma in extremis.
possvel apagar a pixao, mas geralmente ela volta, apresentando uma insistncia
impressionante. Como aquele nosso sintoma que nos visita sempre, aps anos de anlise
ou tratamento medicamentoso; na calada da noite, de repente ele vem e nos faz repetir
certas atitudes que cramos estarem j controladas.
Mas as mensagens da alma podem ser decifradas de alguma forma. O sintoma
pode ser desliteralizado ou metaforizado, reimaginado, encarado de outras formas, ou
pode compor nossas fices com passagens de suspense, aventura, terror e
principalmente drama. E o pixo tambm pode. O que a cidade fala atravs dele? Se
pudermos ver atravs, na expresso hillmaniana, poderemos enxergar muitas coisas
alm do feio e do sujo que deve ser eliminado. No se trata de querer ver ali uma beleza
agradvel como tambm no se trata de enxergar dessa forma o delrio paranoico, por
exemplo. Mas podemos ver jovens que se destacam e criam um mundo complexo com
falas diversas. Vemos a cidade marcar que violenta, excludente, muitas vezes difcil
de entender, quase indecifrvel em sua injustia, escura, nivelada pelo concreto
montono e cinza, guiada pelo dinheiro e pela propriedade privada.
Os pixos so ao mesmo tempo feios e extraordinrios, eles sujam e do vida
cidade, enraivecem uns e do um sentido para a vida de outros. lixo e arte,
assombram e encantam, tiram do srio. Afinal, transgresso com tudo o que uma
verdadeira transgresso acarreta, incluindo medo e fascnio. o patologizar da cidade
de So Paulo, em tintas carregadas, a alma in extremis: temos de tem-la, mas sem nos
afastar dela.
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Recursos de apresentao: Data-show (apenas imagens, no necessrio udio).