AS POLÍTICAS AGRÁRIAS DURANTE O GOVERNO OLÍVIO DUTRA ...

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UFRRJ INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE TESE AS POLÍTICAS AGRÁRIAS DURANTE O GOVERNO OLÍVIO DUTRA E OS EMBATES SOCIAIS EM TORNO DA QUESTÃO AGRÁRIA GAÚCHA (1999-2002) CÉSAR AUGUSTO DA ROS 2006

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  • UFRRJ INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS

    CURSO DE PS-GRADUAO EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E

    SOCIEDADE

    TESE

    AS POLTICAS AGRRIAS DURANTE O GOVERNO OLVIO DUTRA E OS EMBATES

    SOCIAIS EM TORNO DA QUESTO AGRRIA GACHA (1999-2002)

    CSAR AUGUSTO DA ROS

    2006

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    UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE CINCIAS SOCIAIS E HUMANAS

    CURSO DE PS-GRADUAO EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE

    AS POLTICAS AGRRIAS DURANTE O GOVERNO OLVIO DUTRA E OS EMBATES SOCIAIS EM TORNO DA QUESTO AGRRIA GACHA (1999-2002)

    CSAR AUGUSTO DA ROS

    Sob a orientao do professor Roberto Jos Moreira

    Tese submetida como requisito parcial para a obteno do grau de Doutor em Cincias Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade

    Rio de Janeiro, RJ Agosto de 2006.

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    338.188165

    D111p

    T

    Da Ros, Csar Augusto

    As polticas agrrias durante o

    governo Olvio Dutra e os embates

    sociais em torno da questo agrria

    gacha (1999-2002) / Csar Augusto

    da Ros. 2006.

    477 f.

    Orientador: Roberto Jos

    Moreira.

    Tese (doutorado) Universidade

    Federal Rural do Rio de Janeiro,

    Instituto de Cincias Humanas e

    Sociais.

    Bibliografia: f. 433-447.

    1. Polticas pblicas

    Agricultura Rio Grande do Sul -

    Teses. 2. Rio Grande do Sul

    Histria Teses. 3. Reforma

    agrria Rio Grande do Sul

    Teses. 4. Conflitos agrrios Rio

    Grande do Sul Teses. I. Moreira,

    Roberto Jos. II. Universidade

    Federal Rural do Rio de Janeiro.

    Instituto de Cincias Humanas e

    Sociais. III. Ttulo.

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    UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE CINCIAS SOCIAIS E HUMANAS CURSO DE PS-GRADUAO EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE CSAR AUGUSTO DA ROS Tese submetida como requisito parcial para a obteno do grau de Doutor Cincias Sociais em Desenvolvimento Agricultura e Sociedade, no Curso de Ps-Graduao em Desenvolvimento Agricultura e Sociedade, rea de concentrao em Sociedade e Agricultura. TESE APROVADA EM 30/08/2006. Membros da Banca Examinadora: ______________________________________________________________________

    Roberto Jos Moreira, Doutor em Cincias pela Faculdade Municipal de Cincias Econmicas e Administrativas de Osasco/SP Professor do CPDA/UFRRJ

    (Orientador)

    ______________________________________________________________________ Paulo Roberto Raposo Alentejano, Doutor em Desenvolvimento, Agricultura e

    Sociedade pelo CPDA/UFRRJ Professor da UERJ

    ______________________________________________________________________ Paulo Afonso Zarth, Doutor em Histria Social pela UFF/RJ Professor da UNIJU/RS

    ______________________________________________________________________ Regina ngela Landim Bruno, Doutora em Cincias Sociais pela UNICAMP/SP

    Professora do CPDA/UFRRJ

    ______________________________________________________________________ Srgio Pereira Leite, Doutor em Economia pela UNICAMP/SP Professor do

    CPDA/UFRRJ

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    AGRADECIMENTOS

    Esta tese de doutorado o resultado final de uma longa e trabalhosa jornada intelectual para a qual contei com a amizade, companheirismo, auxlio e a colaborao de inmeras pessoas a quem dedico os meus mais sinceros agradecimentos. Em primeiro lugar gostaria de agradecer ao professor Roberto Jos Moreira pela sua permanente disposio ao dilogo e pela confiana depositada em meu trabalho, por vezes at excessiva. Ao longo desses anos de trabalho, a sua dedicao em me orientar sempre foi pautada no respeito as minhas opes tericas e metodolgicas, o que contribuiu para crissemos uma relao de confiana mtua e amizade. Agradeo ao professor Srgio Pereira Leite e a professora Leonilde Srvolo de Medeiros pelas valiosas sugestes feitas durante o exame de qualificao, as quais foram fundamentais para a delimitao do objeto de pesquisa. Agradeo imensamente a todos os professores do CPDA que direta ou indiretamente contriburam para a minha formao acadmica ao longo desses anos. A generosidade intelectual, a abertura ao dilogo e a seriedade com que se empenharam em ministrar as disciplinas oportunizaram-me um rico aprendizado que ser de grande valia na minha vida pessoal e profissional. Agradeo imensamente a todos os colegas da Repblica Socialista do Pampa Gacho, que ao longo desses anos dividiram comigo no apenas as despesas de moradia, mas tambm as ansiedades, tristezas, alegrias e longas horas de conversas e divagaes histricas, antropolgicas, sociolgicas e polticas que foram fundamentais para amenizar as tenses da labuta intelectual. Um forte abrao ao Joo Mrcio, Andr Raupp, Marco Antnio, Marcos Piccin, Tiago Assis, Cleyton e Marcos Jakoby. Um agradecimento especial ao Joo Mrcio Mendes Pereira, pela sua amizade, companheirismo, confiana e pela sua disponibilidade em transcrever as fitas com os depoimentos dos meus entrevistados. Ao longo desses anos mantivemos uma interlocuo permanente, dividindo algumas preocupaes e reflexes sobre a questo agrria brasileira. Um agradecimento especial aos amigos Roberto Ramos (INCRA), Patrcia Silva (DRA/GRA), Marcelo Piccin (DRA/GRA) e ao Kid (MST/RS) pela abertura de contatos com os entrevistados e por disponibilizarem informaes que foram fundamentais no trabalho de pesquisa de campo. Agradeo imensamente a todos os entrevistados desta pesquisa pela sua pacincia em me atender, pelo tempo disponibilizado para os depoimentos e pelas valiosssimas informaes compartilhadas. A sua colaborao foi imprescindvel para que esta tese pudesse ser concretizada. Agradeo ao CNPq pelas bolsas de mestrado e doutorado, pois estas me possibilitaram uma dedicao exclusiva ao trabalho de pesquisa, sendo imprescindveis para a minha formao profissional. Um agradecimento especial aos meus pais, Romeu Egdio Da Ros e Nelci Nair Farias Da Ros pela confiana em mim depositada, pelo estmulo permanente, pelo apoio nos momentos difceis e pelos exemplos que referenciam o meu modo de ser e agir. Com eles sempre procurei dividir as minhas mais importantes conquistas. Agradeo as minhas irms Alexandra e Carla pela amizade, companheirismo, estmulo, apoio e pela sua presena constante nos momentos de alegria e tristeza.

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    Um agradecimento especial a todos os colegas e amigos que tive a oportunidade de conhecer e conviver nesta minha estada pelo Rio de Janeiro, em especial aqueles que encontrei no CPDA, este desaguadouro de diversidades, regionais, culturais e profissionais. Com eles dividi muitas horas de leituras, seminrios, discusses e reflexes, mas tambm muitas horas prazer e alegria nos bares da lapa, nas rodas de samba, nas praias, nos cinemas e teatros, na Feira de So Cristvo, nos churrascos e nas inmeras festas que participei como convidado ou como penetra. A lembrana dos momentos compartilhados com eles so tesouros que carregarei comigo enquanto viver.

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    RESUMO

    DA ROS, Csar Augusto. As polticas agrrias durante o governo Olvio Dutra e os embates sociais em torno da questo agrria gacha (1999-2002). 2006. 475p Tese (Doutorado em Cincias Sociais em Desenvolvimento Agricultura e Sociedade). Instituto de Cincias Sociais e Humanas, Curso de Ps-Graduao em Desenvolvimento Agricultura e Sociedade, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropdica, RJ, 2006. Este trabalho analisa a dinmica de implementao das polticas agrrias no Rio Grande do Sul durante os anos de 1999 a 2002. Neste perodo observou-se a presena simultnea de duas estratgias governamentais distintas para a ampliao do acesso a terra no estado. A primeira delas foi conduzida pelo governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e se concentrou em duas linhas de atuao: a) a poltica de assentamentos implementada pela Superintendncia Regional do INCRA; b) o programa de crdito fundirio o Banco da Terra, implementado pela Delegacia Regional do MDA. A segunda foi conduzida pelo governo Olvio Dutra e se objetivou na implementao de uma poltica estadual de assentamentos e reassentamentos, alm de ter concentrado as suas aes no atendimento das reivindicaes de diversos tipos de pblico. A nfase das anlises realizadas ao longo desta tese centra-se na tentativa de compreender a dinmica das aes desenvolvidas no mbito das polticas agrrias dos governos federal e estadual e das relaes de ambos com os principais agentes sociais presentes no campo dos conflitos agrrios. Neste sentido, as diferentes estratgias governamentais so analisadas de forma articulada luta poltica travada entre os agentes sociais em torno da questo agrria gacha. Num primeiro momento, o trabalho apresenta um painel histrico abrangente sobre a complexidade e heterogeneidade dos problemas fundirios que se constituram no estado, evidenciando a sua conexo com a emergncia dos agentes sociais que participam das lutas polticas no interior do campo dos conflitos agrrios. Num segundo momento, o trabalho procura analisar a internalizao dos conflitos fundirios no mbito dos governos (federal e estadual) e das instncias estatais responsveis pela implementao das polticas agrrias, numa conjuntura histrica mais recente. Nesta direo o trabalho demonstra que as tenses produzidas pela luta poltica travada entre os agentes sociais repercutiram diretamente no carter das polticas agrrias adotadas, assim como, no seu ritmo, extenso e na definio dos instrumentos utilizados. O modo pelo qual os governos Fernando Henrique Cardoso e Olvio Dutra diagnosticaram a natureza do problema agrrio e, as suas possveis solues, estavam intimamente relacionados natureza dos seus projetos polticos e composio das foras sociais que deram sustentao aos seus mandatos. O cotejamento das diretrizes gerais das suas polticas agrrias e dos resultados alcanados no perodo confirma essa percepo. Palavras-chaves: questo agrria, polticas agrrias; agentes sociais; luta poltica.

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    ABSTRACT

    DA ROS, Csar Augusto. The agrarian policies during the government of Olvio Dutra and the social clashes around the gaucho agrarian issue (1999-2002). 2006. 475p Thesis (Philosophiae Doctor in Social Sciences in Development, Agriculture and Society). Institut of Human and Social Sciences, Post-Graduate Course on Development, Agriculture and Society, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Seropdica, RJ, 2006. This paper analyzes the dynamics of implementation of the agrarian policies in Rio Grande do Sul from 1999 to 2002. In this period the simultaneous presence of two distinctive governmental strategies for the widening of the access to land in this State was observed. The first strategy was led by the government of Fernando Henrique Cardoso (PSDB) and focused on two lines of action: a) the policy of the settlements implemented by the Regional Superintendency of INCRA; b) the agrarian credit program from the Land Bank (Banco da Terra), implemented by the Regional Delegation of MDA. The second strategy was led by the government of Olvio Dutra and it purposed at implementing a state policy of settlements and resettlements and at assisting claims from several kinds of public. The emphasis of the analyses carried out throughout this thesis is placed on the attempt to understand the dynamics of the actions developed within the scope of the federal and state government agrarian policies and of the relationships between both governments and the main social agents present on the field of agrarian conflicts. In this sense, the different governmental strategies are analyzed in an articulate way with the political struggle between social agents about the gaucho agrarian issue. On a first moment, the paper presents a comprehensive historical panel on the complexity and heterogeneity of the agrarian problems that arose in the state, highlighting their connection to the rise of the social agents participating in the political struggle within the field of agrarian conflicts. On a second moment, the paper seeks to analyze the internalization of the agrarian conflicts within the scope of the governments (federal and state) and of the state authorities responsible for the implementation of agrarian policies, in a more recent historical background. In this sense the paper shows that the tensions produced by the political struggle between the social agents caused direct repercussions on the character of the adopted agrarian policies, as well as on its rate, extension and on the definition of the instruments used. The way in which the governments of Fernando Henrique Cardoso and Olvio Dutra diagnosed the nature of the agrarian problem and its possible solutions was intimately related with the nature of their political projects and with the composition of the social forces which supported their mandates. The comparison of their general agenda on agrarian policies with the results obtained in this period confirms that perception.

    Key-words: agrarian issue, agrarian policies, social agents, political struggle.

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    LISTA DE TABELAS

    Tabela 1: Taxas lquidas de emigrao, imigrao e imigrao interna no Rio Grande do Sul entre as dcadas de 1940 e 1980 (%)........................

    100

    Tabela 2: Populao residente, por situao de domiclio, no Rio Grande do Sul 1940-2000..............................................................................

    119

    Tabela 3: Ocupaes de terras, acampamentos e famlias acampadas, nucleadas e contatadas por movimentos sociais no rio grande do sul no perodo de janeiro de 1995 a dezembro de 1998....................

    220

    Tabela 4: Nmero de ocupaes de terra ocorridas no Rio Grande do Sul entre 1997 a 2002..............................................................................

    237

    Tabela 5: Assentamentos criados nos governos FHC: 1995-1999.................... 237 Tabela 6: Taxa mdia de desemprego total na regio metropolitana de Porto

    Alegre entre os anos de 1993 a 2003.................................................

    337

    Tabela 7: Ocupaes de terras, acampamentos e famlias acampadas, nucleadas e contatadas por movimentos sociais no rio grande do sul no perodo de janeiro de 1995 a junho de 2002...........................

    345

    Tabela 8: PAs implantados pelo INCRA no Rio Grande do Sul entre os anos de 1985-1998............................................................................

    347

    Tabela 9 Projetos de assentamentos implantados pelo INCRA no Rio Grande do Sul entre 1995 e 2002......................................................

    347

    Tabela 10: Nmero de assentamentos, rea arrecadada, nmero de famlias assentadas pelo Incra e nmero de ocupaes realizadas pelo MST no perodo de 1999 a 2002................................................................

    347

    Tabela 11: Recursos (em R$ e TDAs) disponibilizados pelos convenentes, entre os anos de 2000 a 2002............................................................

    357

    Tabela 12: Projetos de assentamentos compartilhados pelo Incra e o governo estadual, realizados no perodo de janeiro de 1999 a dezembro de 2002..................................................................................................

    358

    Tabela 13: Confronto das metas anuais de famlias a serem assentadas pelo Incra com os resultados obtidos pela autarquia no perodo de 1999 a 2002................................................................................................

    358

    Tabela 14: Comparativo do volume de gastos e famlias financiadas pelo Banco da Terra no Brasil e no Rio Grande do Sul entre os anos de 1999 a 2002.......................................................................................

    336

    Tabela 15: Demonstrativo dos gastos realizados com o Funterra entre os anos de 1995-2002, em relao aos gastos da SAA.

    365

    Tabela 16: Projetos de assentamentos realizados entre os anos de 1999 a 2002 pelos governos federal e estadual......................................................

    386

    Tabela 17: Projetos de assentamentos realizados pelos governos estaduais entre os anos de 1979 a 2002, com distribuio nos perodos respectivos vigncia dos seus mandatos.........................................

    399

    Tabela 18: Distribuio anual dos projetos de assentamentos implantados, nmero de famlias assentadas e rea adquirida pelo governo Olvio Dutra......................................................................................

    399

  • 10

    Tabela 19: Imveis adquiridos pelo governo estadual e federal, atravs de desapropriaes, compras e utilizao de reas pblicas no estado do Rio Grande do Sul destinadas ao pblico de agricultores sem terra, no perodo de janeiro de 1999 a 30 de junho de 2002.............

    400

    Tabela 20: Distribuio anual dos PAs, do nmero de famlias assentadas e da rea de terra adquirida pelo governo Olvio Dutra mediante o uso das desapropriaes por interesse social.....................................

    401

    Tabela 21: Resultados da poltica do governo estadual de reassentamento e indenizao de agricultores ocupantes em reas indgenas, no perodo de janeiro de 1999 a 30 de junho de 2002............................

    407

    Tabela 22: Imveis adquiridos pelos governos estadual e federal destinados a desintruso dos agricultores ocupantes das reas indgenas no Rio Grande do Sul, no perodo de janeiro de 1999 a 30 de junho de 2002...................................................................................................

    408

    Tabela 23: Resultados da poltica de reassentamento de agricultores atingidos pela barragem de Dona Francisca, no perodo de janeiro de 1999 a 30 de junho de 2002..........................................................................

    411

    Tabela 24: Nmeros globais atingidos pela poltica fundiria estadual entre os anos de 1999 a 2002..........................................................................

    421

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    LISTA DE QUADROS Quadro 1: Levantamento dos toldos indgenas existentes no Rio Grande do

    Sul em 1910.................................................................................... 80

    Quadro 2: Propostas de ndices de lotao pecuria apresentadas na Comisso Incra/170, em Unidades Animal/hectare........................

    225

    Quadro 3: Nmero de Ocupaes e conflitos no campo entre os anos de 1995 a 2002.....................................................................................

    236

  • 12

    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1: Mapa com a localizao das regies com concentrao de assentamentos rurais do Incra

    404

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    SUMRIO

    INTRODUO ....................................................................................................... 17 O uso da noo de campo dos conflitos agrrios como referncia

    metodolgica................................................................................................ 20

    A delimitao dos conceitos de questo agrria e reforma agrria.............. 29 Os procedimentos metodolgicos utilizados na realizao da

    pesquisa........................................................................................................ 34

    CAPTULO I - O PROCESSO DE OCUPAO DO TERRITRIO

    GACHO.........................................................................................................

    39

    1.1 A ocupao territorial do Rio Grande do Sul durante o perodo colonial... 39 1.2 A Terra e o poder no Rio Grande do Sul durante o perodo Imperial ........ 46 1.2.1 A colonizao dirigida e a ocupaes das reas de mata no Rio Grande do

    Sul................................................................................................................. 50

    1.2.2 A poltica de colonizao durante o governo imperial (1824-1848)............ 53 1.2.3 A privatizao das terras pblicas e a retomada das polticas de

    colonizao................................................................................................... 54

    1.2.4 A poltica de colonizao dirigida pelo governo imperial (1874-1889)..... 61 1.3 A Terra e o poder no perodo da Repblica Velha (1889-1930)................ 63 1.3.1 A poltica de colonizao dirigida pelo governo positivista....................... 68 1.3.2 A expanso da colonizao rumo ao Planalto Gacho (1890-1914).......... 70 1.3.3 A ocupao da terra a partir de 1914: em busca das ltimas fronteiras..... 72 1.3.4 As terras indgenas no Rio Grande do Sul: da demarcao intruso....... 76 1.4 Consideraes finais do captulo................................................................ 81 CAPTULO II: A INSERO DA AGROPECURIA GACHA NOS MODELOS DE DESENVOLVIMENTO E AS SUAS IMPLICAES SOBRE A CONFIGURAO DA QUESTO AGRRIA................................

    85

    2.1 Da constituio de um modelo gacho de desenvolvimento crise dos anos 50.........................................................................................................

    85

    2.2 A trajetria histrica e a insero da agropecuria na economia gacha.... 92 2.2.1 A trajetria da pecuria da pecuria na regio sul e as mudanas no Ps-

    1930............................................................................................................. 93

    2.2.2 O desenvolvimento da lavoura arrozeira na regio sul................................ 95 2.2.3 A trajetria do sistema produtivo colonial: da constituio crise............. 99 2.2.4 A modernizao da agricultura gacha com base na lavoura do trigo........ 102 2.3 O desenvolvimento da agropecuria e suas implicaes na configurao

    da questo agrria nos anos 1960................................................................ 106

    2.3.1 A emergncia do MASTER e as disputas em torno da reforma agrria...... 109 2.3.2 A configurao da questo agrria gacha nos anos 60............................... 114 2.4 A insero da economia gacha no modelo de desenvolvimento dos

    governos militares........................................................................................ 117

    2.5 A modernizao conservadora da agricultura na regio Norte com base na 119

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    soja............................................................................................................... 2.6 As mudanas ocorridas na agropecuria da regio sul do estado no ps-

    64................................................................................................................ 124

    2.7 As conseqncias sociais da modernizao conservadora da agricultura gacha.........................................................................................................

    127

    2.8 A modernizao da agricultura e a continuidade da intruso nas terras indgenas.....................................................................................................

    128

    2.9 O fim do regime militar e a retomada da luta por reforma agrria nos anos 80........................................................................................................ .........

    133

    2.10 A configurao da questo agrria gacha na dcada de 1980.................... 139 CAPTULO III - O CAMPO DOS CONFLITOS AGRRIOS: HISTRICO, DESENVOLVIMENTO E CARACTERIZAO DOS PRINCIPAIS AGENTES................................................................................................................

    143

    3.1 O sindicalismo do patronato rural organizado na FARSUL........................ 143 3.2 O cooperativismo agropecurio organizado em torno da FECOAGRO...... 151 3.3 O Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais no Rio Grande do Sul.. 156 3.3.1 A Federao dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul....... 157 3.3.2 A Federao dos Trabalhadores da Agricultura Familiar da Regio Sul..... 164 3.3.3 As aes desencadeadas pelas comunidades indgenas.............................. 170 3.3.4 O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)....................... 175 3.3.5 O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)................................... 181 3.3.6 O Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)....................................... 186 3.3.7. O Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD).......................... 190 CAPTULO IV - AS POLTICAS AGRRIAS FEDERAIS NO RIO GRANDE DO SUL DURANTE OS ANOS DE 1995 A 2002...............................

    197

    4.1 O ajuste estrutural e a adoo do neoliberalismo no Brasil: de Collor a Cardoso........................................................................................................

    197

    4.1.1 O ajuste estrutural e as polticas para o setor agropecurio brasileiro.......... 201 4.1.2 O setor agropecurio gacho no contexto do ajustamento da economia

    brasileira....................................................................................................... 208

    4.2 As polticas agrrias federais no contexto do ajuste estrutural.................... 211 4.2.1 A poltica agrria do governo federal no estado do Rio Grande do Sul

    (1995-1999).................................................................................................. 219

    4.3 A poltica agrria durante o segundo governo FHC (1999-2002)................ 230 4.4 A poltica agrria do governo federal no Rio Grande do Sul (1999-2002).. 237 4.4.1 A primeira fase: a luta poltica em torno da efetivao do convnio de

    cooperao tcnica entre o governo federal e estadual................................ 240

    4.4.2 A segunda fase: a efetivao da descentralizao das aes de reforma agrria no Rio Grande do Sul.......................................................................

    248

    4.4.3. A terceira fase: a retomada da realizao das vistorias do Incra................. 265 CAPTULO V - A PROPOSTA DE DESENVOLVIMENTO DO GOVERNO OLVIO DUTRA E A POLTICA AGRRIA ESTADUAL..............................

    273

    5.1 A polarizao dos projetos de desenvolvimento nas eleies estaduais de 1994.............................................................................................................

    273

  • 15

    5.2. A disputa eleitoral de 1998 e a ascenso da Frente Popular ao governo estadual........................................................................................................

    285

    5.3. A estratgia de desenvolvimento implementada pelo governo da Frente Popular.........................................................................................................

    301

    5.4. A dinmica de funcionamento da poltica agrria no governo Olvio Dutra.............................................................................................................

    310

    5.4.1 A primeira fase da poltica agrria estadual................................................. 318 5.4.2 A segunda fase da poltica agrria estadual.................................................. 325 5.4.3 O governo Olvio Dutra e os embates polticos com o patronato rural

    gacho........................................................................................................... 331

    5.5 Consideraes finais do captulo.................................................................. 339 CAPITULO VI - MODO DE FUNCIONAMENTO E BALANO DE RESULTADOS DAS POLTICAS AGRRIAS FEDERAIS NO QUADRINIO DE 1999/2002..................................................................................................................

    343

    6.1 A poltica de assentamentos do Incra entre os anos de 1999 a 2002............ 343 6.2 Os resultados dos Convnios firmados entre o governo federal e o

    governo estadual........................................................................................... 355

    6.3 A implementao do Banco da Terra no Rio Grande do Sul: uma leitura poltica..........................................................................................................

    363

    CAPTULO VII - OS INSTRUMENTOS DE OBTENO DE TERRAS, A DINMICA DE FUNCIONAMENTO E OS RESULTADOS ATINGIDOS PELA POLTICA AGRRIA DO GOVERNO OLIVIO DUTRA....................

    381

    7.1. O Fundo de Terras do Estado do Rio Grande do Sul................................... 381 7.2. As desapropriaes por interesse social com base na Lei 4.132/62............. 387 7.3. O Programa Estadual de Reforma Agrria (PERA)..................................... 394 7.3.1. A diviso racional de Terras......................................................................... 395 7.3.2 A poltica estadual de assentamentos e reassentamentos de agricultores..... 397 7.3.3 Os resultados da poltica estadual de assentamentos.................................... 398 7.3.4 Os plos regionais de desenvolvimento sustentvel

    (PRDS)......................................................................................................... 401

    7.3.5 O plano de reassentamento de agricultores residentes em reas indgenas 405 7.3.6 Os reassentamentos de agricultores atingidos por Barragens....................... 410 7.3.7 A poltica de regularizao fundiria e de arrecadao de terras pblicas... 412 7.3.8 O programa de crdito fundirio - Terra e Arroz........................................ 415 7.3.9 O projeto dos assentamentos rururbanos...................................................... 418 7.4. Consideres finais do captulo.................................................................... 420 CONSIDERAES FINAIS........................................................................ 423 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA........................................................... 433 DOCUMENTOS CONSULTADOS......................................................... 447 ENTREVISTAS CONCEDIDAS AO PESQUISADOR......................... 448 MATRIAS DE JORNAIS CITADAS.................................................... 451 PAGINAS CONSULTADAS NA INTERNET........................................ 460 ANEXOS...................................................................................................... 461

  • 16

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    INTRODUO

    Nesta pesquisa analisaremos as polticas agrrias implementadas no Rio Grande do Sul durante os anos de 1999 a 20021. Nesse perodo observou-se a presena simultnea de duas estratgias governamentais distintas, uma federal e outra estadual, sendo que ambas tinham por objetivo atender as presses dos movimentos sociais e sindicais do campo em suas reivindicaes pela ampliao do acesso a terra. A primeira delas foi conduzida pelo governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e a segunda pelo governo Olvio Dutra (PT). A poltica agrria desenvolvida pelo governo federal foi orientada por duas linhas de atuao principais, a saber: a) a poltica de assentamentos implementada pela Superintendncia Regional do Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (INCRA); b) o programa de crdito fundirio o Banco da Terra, implementado pela Delegacia Regional do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (MDA). No que diz respeito estratgia adotada pelo governo estadual, observou-se que esta foi orientada para a implementao de uma poltica de assentamentos e reassentamentos, alm de ter concentrado as suas aes no atendimento das reivindicaes de diversos tipos de pblico, tais como, os sem terra, os atingidos por barragens, os agricultores ocupantes de reas indgenas, as comunidades indgenas, os posseiros de reas pblicas e privadas, os trabalhadores desempregados e os pequenos arrendatrios do arroz.

    Neste sentido, a nfase das anlises realizadas ao longo desta tese centra-se na tentativa de compreender a dinmica das aes desenvolvidas no mbito das polticas agrrias dos governos federal e estadual e das relaes de ambos com os principais agentes sociais presentes no campo dos conflitos agrrios2. Trata-se, portanto, de uma pesquisa que tem como pretenso analisar as polticas agrrias de forma articulada luta poltica travada entre os agentes sociais em torno da questo agrria gacha numa conjuntura histrica especfica. A questo agrria ser entendida aqui a partir de uma perspectiva poltica, como um problema que se coloca na agenda dos governos federais e estaduais a partir das aes protagonizadas pelos agentes sociais do campo em suas lutas pelo acesso imediato a terra e pela implementao de uma poltica de reforma agrria no pas3.

    A escolha deste objeto de pesquisa justifica-se pela especificidade da conjuntura poltica do perodo em questo e pelo carter das polticas agrrias implementadas. No Rio Grande do Sul, o ano de 1999 marcou o incio do primeiro governo estadual eleito por uma coalizo de partidos de esquerda reunidos em torno da Frente Popular, apresentando um programa de governo que se opunha s diretrizes polticas preconizadas em nvel nacional pelo governo reeleito de Fernando Henrique Cardoso e seu principal aliado no estado, o ex-governador Antonio Britto, ambos sustentados por coalizes de centro-direita4. As diretrizes do governo Olvio Dutra se ancoravam na defesa da centralidade do papel do Estado como agente indutor do desenvolvimento econmico; na universalizao do acesso s polticas sociais, as quais eram encaradas

    1 Por poltica agrria estamos nos referindo a todas as aes de poltica pblica (estatal) que visem aumentar o acesso a terra a fim de viabilizar os pequenos produtores rurais que no a possuem. 2 A perspectiva terica que embasa essa noo ser apresentada adiante. 3 O conceito de reforma agrria que inspira as anlises desta tese ser apresentado adiante. 4 A descrio da composio das coalizes polticas, assim como as suas diretrizes programticas sero apresentadas e detalhadas nos captulos IV e V.

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    como direitos do cidado e um dever do Estado; e na defesa de uma radicalizao da democratizao do Estado, mediante o estmulo das formas de democracia participativa criadas a partir da experincia do PT com o Oramento Participativo (O.P)5.

    Essas diretrizes representavam uma anttese das iniciativas desenvolvidas ao longo dos governos de FHC e de Antonio Britto, as quais estavam subordinadas aos esforos de reestruturao da economia brasileira economia internacional, nos marcos liberais preconizados pelas agncias multilaterais de financiamento, como o FMI e o Banco Mundial. A tnica geral dessas polticas se baseava na idia de que era preciso reduzir a interveno do Estado na economia mediante a transferncia de funes essenciais para a iniciativa privada. Nesta direo, uma das medidas mais emblemticas foi adoo de um amplo programa de privatizaes das empresas estatais e do sistema financeiro pblico. No mbito das polticas sociais, a nfase recaa sobre a necessidade de focalizar os gastos com as polticas pblicas, dirigindo os recursos apenas para os segmentos identificados como os mais pobres entre os pobres, assumindo um carter nitidamente compensatrio e assistencialista. E, por fim, no mbito da poltica, em que pese o discurso modernizante adotado por FHC e Britto, observou-se a presena de foras conservadoras nas coalizes que integraram os seus governos e a preservao dos interesses dos grupos sociais que ento compunham o bloco no poder.

    No que se refere ao carter das polticas agrrias implementadas, o fato da trajetria poltica do PT gacho estar marcada por um elevado grau de sintonia com os movimentos sociais e sindicais do campo foi determinante para que as polticas voltadas para o fortalecimento da agricultura familiar e a reforma agrria fossem consideradas como questes centrais na estratgia de desenvolvimento rural proposta pela Frente Popular naquela ocasio. Essa sintonia se deve principalmente aos seguintes aspectos: a) a existncia de uma convergncia entre as reivindicaes dos movimentos sociais e sindicais do campo com as propostas presentes no programa de governo da Frente Popular; b) pelo fato de que muitos dos integrantes e dirigentes desses movimentos serem filiados ao PT; c) pela participao direta dos integrantes desses movimentos nas eleies prvias do PT, especialmente o MST, o que alm de ter sido indito, foi decisivo para consagrar a escolha de Olvio Dutra como o candidato do PT nas eleies internas da agremiao contra o seu concorrente Tarso Genro; e) pela definio de um compromisso pr-eleitoral de que seriam assentadas 10 mil famlias de agricultores sem terra ao longo do mandato.

    Nesse contexto, a poltica agrria adotada pelo governo Olvio Dutra quebrou com a tendncia observada nos governos estaduais anteriores que somente adotavam polticas de assentamentos em resposta agudizao dos conflitos fundirios. Pela primeira vez na historia recente do estado, a questo agrria passou a receber tratamento poltico, sendo internalizada no governo atravs da criao do Departamento de Desenvolvimento Rural e Reforma Agrria (DRA), vinculado diretamente a Secretaria Estadual da Agricultura e Abastecimento (SAA), mais tarde transformado em uma Secretaria Extraordinria da Reforma Agrria, tambm denominado Gabinete da Reforma Agrria (GRA) vinculada diretamente ao gabinete do governador. Outro trao de ineditismo do governo foi participao direta de integrantes dos movimentos sociais e sindicais da sua base de sustentao poltica na equipe da SAA, possibilitando aos mesmos uma maior interferncia no processo de elaborao e implementao das polticas pblicas. Alm disso, o governo elaborou e oficializou, mediante a publicao de um decreto do governador, o Plano Estadual de Reforma Agrria (PERA), no qual foram contemplados vrios tipos de pblicos. No que tange aos instrumentos de

    5 No captulo V explicitaremos em linhas gerais o modo de funcionamento do Oramento Participativo.

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    obteno de terras, a poltica agrria estadual se baseou principalmente nas compras mediante a utilizao de recursos do Fundo Estadual de Terras (Funterra), nas aquisies compartilhadas com o governo federal, mediante a assinatura de um convnio com a Unio federal e nas desapropriaes por interesse social com base na Lei 4.132/62. Por fim, o governo estadual se comprometeu a tratar os conflitos fundirios resultantes das ocupaes de terras mediante a negociao poltica, evitando a utilizao dos despejos para a retirada dos ocupantes.

    Em nvel nacional, a poltica agrria adotada no segundo governo de Fernando Henrique Cardoso foi marcada pela consolidao de novas diretrizes. Nesse processo o denominado modelo de reforma agrria conduzido pelo mercado ganhou fora, estimulado pelas experincias implementadas no Nordeste brasileiro, tais como o projeto So Jos e do projeto-piloto Cdula da Terra, ambos apoiados e financiados pelo Banco Mundial. Na perspectiva deste ltimo e do governo FHC a introduo de instrumentos de acesso a terra baseados no mercado poderiam desligar a conexo existente entre as ocupaes de terras as desapropriaes realizadas pelo Incra. Isto era especialmente importante para o governo FHC, tendo em vista que a questo agrria somente havia entrado na agenda poltica durante o seu primeiro mandato, em razo da escalada das ocupaes de terras pelo pas afora e, sobretudo, pela comoo pblica produzida pelos massacres de trabalhadores rurais ocorridos em Corumbiara e Eldorado dos Carajs (Medeiros, 2002; Medeiros & Leite, 2004; Pereira, 2004).

    Nesta tica, havia a expectativa de que a ao governamental deixaria de ser regida apenas em resposta aos fatos polticos provocados pela ao dos movimentos, e se limitaria a intermediao das relaes de compra e venda de terras, aproveitando-se de uma conjuntura de rebaixamento nos seus preos6. A partir de ento, o governo federal passou a desqualificar o modelo de reforma agrria baseado nas desapropriaes, argumentando que este estava esgotado. Como corolrio dessas mudanas foi criado atravs de uma Lei Complementar, em fevereiro de 1998, o Banco da Terra, que se constituiu num fundo de carter nacional destinado a financiar a compra de terras pelos trabalhadores rurais, vindo a se integrar ao rol dos instrumentos permanentes de poltica agrria j existentes no pas (Pereira, 2004).

    As mudanas nas diretrizes da poltica agrria do governo federal conjugada existncia de uma poltica agrria estadual matizada pela sintonia com os movimentos sindicais e sociais do campo foram determinantes no curso dos principais acontecimentos que marcaram a luta poltica em torno da questo agrria gacha. Principalmente, se levarmos em conta que o Banco da Terra foi o principal programa implementado pelo governo federal no Rio Grande do Sul, apesar de ter sido rejeitado pelo MST e pelo governo estadual. Porm, no que se refere poltica de descentralizao preconizada pelo MDA, observa-se que houve uma adeso parcial do governo estadual, mediante a assinatura de um convnio de cooperao tcnica que facultou a ambas as esferas governamentais a realizao de aquisies de terras conjuntas. Assim sendo, nessa conjuntura especfica, no haveria possibilidade de se analisar as polticas agrrias (federal e estadual), separadamente, j que estas apresentaram uma relao de interdependncia dinmica, marcada por momentos de divergncias e convergncias. Para compreender a sua dinmica de funcionamento foi necessrio analis-las em relao, acompanhando as movimentaes da luta poltica travada entre os agentes sociais, bem como as presses realizadas por estes sobre as instncias do Estado (MDA/INCRA e SAA/GRA).

    6 O discurso veiculado pelo governo FHC no segundo mandato partia do pressuposto que as medidas de estabilizao econmica realizadas no mbito do Plano Real haviam rebaixado os preos das terras a ponto de ter quebrado com a espinha dorsal do latifndio (Pereira, 2004).

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    Neste sentido, as anlises contidas no conjunto dos captulos que fazem parte desta tese obedecem aos seguintes objetivos:

    1. Geral: analisar a dinmica do processo de implementao das polticas agrrias federais e estaduais no estado do Rio Grande do Sul, entre os anos de 1999 a 2002, a partir das relaes estabelecidas entre as instncias governamentais e os agentes sociais presentes no campo dos conflitos agrrios.

    2. Especficos: a) reconstituir por meio da literatura o processo histrico de ocupao e apropriao do territrio do Rio Grande do Sul, a fim de compreender a conformao da atual estrutura fundiria e a gnese dos principais problemas fundirios que caracterizam a especificidade da questo agrria gacha; b) analisar os processos scio-econmicos que se desenvolveram no Rio Grande do Sul aps o fechamento da fronteira agrcola, verificando de que maneira eles contriburam para a existncia das diferenas regionais, para a complexificao dos conflitos fundirios e para a intensificao da luta por reforma agrria, especialmente nas dcadas de 1960 e 1980; c) traar um painel sobre o processo de constituio dos principais agentes sociais, presentes no interior do campo dos conflitos agrrios da atualidade, diferenciando-os a partir dos seguintes parmetros: histrico, a abrangncia geogrfica, a estrutura organizativa, o perfil das suas respectivas bases sociais, diretrizes polticas, formas de ao, relacionamento com o Estado e grau de aproximao com a luta poltica por reforma agrria; c) analisar o processo de implementao das polticas agrrias federais no Rio Grande do Sul (no perodo de 1999 a 2002) a partir das suas diretrizes orientadoras, inserindo-as no contexto da luta poltica travada entre os agentes sociais; d) analisar o processo de ascenso poltica da Frente Popular ao governo do estado do Rio Grande do Sul, verificando a importncia assumida pela poltica agrria na sua proposta de desenvolvimento rural, bem como o processo de constituio do aparato estatal de tratamento dos problemas fundirios; e) analisar os instrumentos de obteno de terras, a dinmica de funcionamento e os principais resultados atingidos pelas polticas agrrias dos governos federal e estadual no perodo em tela.

    O uso da noo de campo dos conflitos agrrios como referncia metodolgica

    Ao definirmos como objeto desta pesquisa a anlise das polticas agrrias e a relao destas com a luta poltica travada entre os agentes sociais, torna-se necessrio explicitar os marcos tericos que referenciaram a construo da noo de campo dos conflitos agrrios. Em primeiro lugar, partimos do pressuposto de que a configurao das polticas agrrias implementadas pelo Estado, nas suas esferas federal e estadual est diretamente relacionada intensidade das lutas polticas travadas entre os agentes sociais em torno do direito posse e uso da terra7. Desse modo, torna-se possvel delimitar a existncia de um campo, no qual um determinado grupo de agentes sociais trava uma luta poltica a partir de interesses especficos8.

    Assim, a noo de campo de luta utilizada nesta pesquisa est referenciada na teoria do espao social elaborada por Pierre Bourdieu, na qual este autor procura 7 Segundo Novicki (1992: p. 2), pode-se entender a luta pelo acesso a terra como uma luta por um direito que assume basicamente duas formas: a) a luta por um direito constitudo ou legal ancoradas na legislao vigente; b) a luta por um direito que se insurge contra a lei ou no legal, posto que se baseia na busca do reconhecimento ou legitimidade das aes de ocupao de terras. 8 Segundo Ortiz: O campo se define como um lcus onde se trava uma luta concorrencial entre atores em torno de interesses especficos que caracterizam a rea em questo. Por exemplo, o campo da cincia se evidencia pelo embate em torno da autoridade cientfica; o campo da arte, pela concorrncia em torno da questo da legitimidade dos produtos artsticos (Ortiz, 1983: p. 19).

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    entender as mltiplas determinaes do mundo social a partir do lugar ocupado pelos diferentes agentes ou grupos de agentes, construindo assim, uma topologia social. Desse modo, o espao social concebido como uma representao do mundo social, nas suas vrias dimenses, sendo construdo a partir de princpios de diferenciao ou distribuio. Nessa proposio, os agentes ou grupos de agentes so definidos a partir das suas posies relativas neste espao. Ou seja, cada um desses agentes ocupa uma posio, ou uma classe precisa de posies vizinhas, numa determinada regio do espao social, no podendo ocupar duas regies opostas neste espao ao mesmo tempo (Bourdieu, 2002: p. 133). Assim, ao falarmos de um espao social, significa dizer que no se pode juntar uma pessoa qualquer com outra pessoa qualquer, descurando as diferenas fundamentais que as distanciam ou aproximam, sobretudo, as econmicas e culturais. Entretanto, isso no quer dizer que os agentes no possam ser organizados e classificados segundo outros princpios de diviso, tais como, tnicos, nacionais, etc (Bourdieu, 2002: p. 138).

    Na medida em que as propriedades tidas em considerao para a constituio deste espao so propriedades atuantes, ele pode ser entendido tambm como um campo de foras, onde operam um conjunto de foras objetivas que no podem ser apenas reduzidos s vontades individuais dos agentes, ou mesmo s suas interaes. As propriedades atuantes que interferem na constituio do espao social so as diferentes espcies de poder ou de capital utilizadas nos diferentes campos9. A posio de um determinado agente no espao social depende da posio ocupada por ele nos diferentes campos, principalmente no que se refere distribuio dos poderes em cada um deles, sobretudo, o capital econmico, o capital cultural, o capital social, e tambm o capital simblico, geralmente conhecido como prestgio, reputao, fama, etc10 (Bourdieu, 2002: p. 134).

    Assim sendo, Bourdieu entende campo social como um espao multidimensional de posies, onde estas podem ser definidas a partir de um sistema de coordenadas cujos valores correspondem s variveis consideradas pertinentes no mesmo. Neste caso, os agentes se distribuem no campo social em duas dimenses. Na primeira delas, a partir do volume global de capital que possuem e, na segunda, de acordo com a composio do seu capital (Bourdieu, 2002: 135). Esta definio permite ao autor construir um diagrama com a distribuio das posies dos agentes ou grupos de agentes no espao social de acordo com o volume de global de capital - principalmente o capital econmico e cultural - e a composio dos capitais, ou seja, ao peso relativo que os diferentes capitais assumem na estrutura do espao social. (Bourdieu, 1996: p. 19-21).

    Assim, o conhecimento do espao das posies nos permite recortar as classes no sentido lgico do termo, ou seja, permite mapear conjuntos de agentes que ocupam posies semelhantes. Estes, colocados em condies semelhantes e sujeitos a condicionamentos semelhantes, tm toda a probabilidade de manifestarem atitudes e

    9 Para Bourdieu o capital pode existir no seu estado objetivado, na forma de materiais, propriedades, ou sob a forma de capital cultural, em seu estado incorporado, representando um poder sobre o produto do trabalho acumulado em pocas passadas, ou seja, o conhecimento sobre os mecanismos de produo de determinados bens. Nas palavras do prprio autor: As espcies de capital, maneira dos trunfos num jogo, so os poderes que definem as probabilidades de ganho num campo determinado (de fato, a cada campo ou subcampo corresponde uma espcie de capital particular, que ocorre, como poder e como coisa em jogo, neste campo) (Bourdieu, 2002, p. 134). 10 Embora Bourdieu procure alertar para o fato de que o espao social no pode ser reduzido apenas ao universo do econmico, o que nos levaria a assumir um ponto de vista economicista, ressalta que h uma tendncia de que a estrutura e a hierarquia existente no campo econmico se imponha na estrutura dos demais campos (Bourdieu: 2002, p. 135).

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    prticas semelhantes, logo, prticas e tomadas de posio semelhantes. Bourdieu se refere a essas classes como classes no papel que tem uma existncia terica, enquanto produto de uma classificao que meramente explicativa. Mas, no so realmente uma classe, uma classe atual, no sentido atribudo pelas interpretaes marxistas, como um grupo mobilizado para a luta, que partilhe de objetivos comuns e que ao mesmo tempo esteja em oposio a outro grupo ou classe; pode-se dizer que ela uma classe provvel, enquanto um conjunto de agentes que opor menos obstculos mobilizao do que qualquer outro conjunto de agentes11 (Bourdieu, 2002: 136).

    Ao relativizar a existncia das classes tericas como classes reais, Bourdieu no est negando a possibilidade das classes se tornarem existentes, j que concorda que estas esto inscritas nas lutas pela classificao do mundo social. Essas lutas, no dependem apenas de uma boa teoria, mas de um trabalho poltico realizado pelas instncias de mobilizao e por seus representantes que recebem um mandato para falarem em nome da classe. Ao buscarem a representao dos interesses dessa classe, acabam contribuindo para a sua existncia real. Segundo Bourdieu:

    (...) o porta-voz dotado do pleno poder de falar e de agir em nome do grupo e, em primeiro lugar, sobre o grupo pela magia da palavra de ordem, o substituto do grupo que somente por esta procurao existe; personificao de uma pessoa fictcia, de uma fico social, ele faz sair do estado de indivduos separados os que ele pretende representar, permitindo-lhes agir e falar, atravs dele, como um s homem. Em contrapartida, ele recebe o direito de se assumir pelo grupo, de falar e de agir como se fosse o grupo feito homem: status est magistratus, Ltat cest moi, O sindicato pensa... etc (Bourdieu, 2002: p. 158).

    Neste sentido, torna-se necessrio levar em conta no somente a representao

    que os agentes tm do mundo social, mas, tambm, a contribuio que eles do para a construo da viso deste mundo e, assim, para a prpria construo do mundo por meio do trabalho de representao que realizam continuamente para imporem a sua viso de mundo, ou a viso da sua prpria posio neste mundo. A percepo do mundo aparece como produto de uma dupla estruturao do social: de um lado a dimenso objetiva, na qual as autoridades ou representantes dos agentes so percebidas no de forma independente, mas socialmente estruturadas e numa combinao de probabilidades muito desiguais; e de outro lado, a dimenso subjetiva, que se encontra estruturada porque os esquemas de percepo e de apreciao suscetveis de serem utilizados, sedimentados na linguagem, so produtos das lutas simblicas anteriores e exprimem de forma mais ou menos transformada, o estado das relaes de fora simblica (Bourdieu, 2002: p.139-140).

    Esta percepo e a enunciao do mundo social pode ocorrer de diferentes formas, isso porque os objetos do mundo natural sempre guardam uma parte de indeterminao e de vago e pelo fato de serem objetos histricos, esto sujeitos s variaes no tempo, de maneira que a sua significao, na medida em que est ligada ao porvir, fica em suspenso, ou seja, relativamente indeterminada. precisamente esta incerteza que d fundamento pluralidade das vises de mundo, ela prpria ligada pluralidade dos pontos de vista, permitindo que os agentes atravs das suas lutas simblicas produzam os sentidos dos objetos do mundo para alm dos seus atributos diretamente visveis pela referncia ao futuro e ao passado. Ao se considerar a

    11 Segundo Bourdieu: No se passa da classe-no-papel classe real a no ser por um trabalho poltico de mobilizao: a classe real, se que alguma vez ela existiu realmente, apenas uma classe realizada, isto mobilizada, resultado da luta de classificaes como luta propriamente simblica (e poltica) para impor uma viso do mundo social ou, melhor, uma maneira de constru-la, na percepo e na realidade, e de construir as classes segundo as quais ele pode ser recortado (Bourdieu, 1996: p. 26).

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    percepo do mundo como um ato de construo, isso no significa necessariamente que se deva adotar uma teoria intelectualista do conhecimento, j que o que essencial numa construo se opera na prtica, aqum do nvel de representao explcita e da expresso verbal (Bourdieu, 2002: p. 140).

    Para Bourdieu, as categorias de percepo do mundo social so produto da incorporao das estruturas objetivas do espao social. Como conseqncia, isso leva os agentes a tomarem o mundo social da maneira como ele , ou seja, de forma naturalizada, muito mais do que se rebelarem contra ele. Se as relaes de fora objetivas permanecem porque os princpios estruturantes da viso do mundo radicam-se nas estruturas objetivas e porque as relaes de fora esto sempre presentes nas formas de percepo destas relaes. Por isso, aquilo que determinados agentes podem ou no fazer, implica numa aceitao tcita dos limites que so tanto mais firmes, quanto mais rigorosas forem as condies de existncia, e quanto mais rigorosa a imposio do princpio de realidade. Esse realismo caracteriza freqentemente a viso dos dominados e funciona como um senso de conservao socialmente constitudo (Bourdieu, 2002: p. 141).

    Percebe-se, assim, a preocupao do autor em demonstrar que os mecanismos que corroboram com a reproduo de uma determinada ordem social e das hierarquias de poder que ela contm no so obra apenas da difuso de uma determinada ideologia, mas produto da internalizao, pelos agentes sociais, das categorias de percepo do mundo que esto radicadas na prpria estrutura social. Neste contexto, a margem de manobra para as mudanas sociais opera-se nos marcos de uma luta poltica e simblica em torno das categorias de conhecimento e percepo do mundo. Segundo Bourdieu: O conhecimento do mundo social e, mais precisamente, as categorias que o tornam possvel, so o que est por excelncia, em jogo na luta poltica, luta ao mesmo tempo terica e prtica pelo poder de conservar ou de transformar o mundo social, conservando ou transformando as categorias de percepo do mundo (Bourdieu, 2002: p. 142).

    Neste sentido, Bourdieu destaca que todo o campo um lugar de uma luta mais ou menos declarada pela definio dos princpios legtimos de diviso do campo. A legitimidade dos agentes no interior do campo surge a partir da possibilidade de pr em causa a doxa, entendida pelo autor como a aceitao da ordem existente como algo evidente e natural. Assim, a fora simblica dos agentes envolvidos nessa luta nunca independente da sua posio no jogo, o que em parte explica porque os agentes que detm um maior volume de capitais conseguem impor a sua viso de mundo como legtima (Bourdieu, 2002: p. 150).

    Para Bourdieu, o espao social entendido como um espao multidimensional, um conjunto aberto de campos relativamente autnomos, subordinados, de modo mais ou menos firme, mais ou menos direto ao campo de produo econmica. No interior de cada um dos subespaos que compem o espao social, os ocupantes das posies dominantes e dominadas esto envolvidos em lutas de diferentes formas, sem que isso leve necessariamente constituio de grupos antagonistas (Bourdieu, 2002: p.153). Assim sendo, a noo de campo elaborada por este autor compreende o espao onde as posies dos agentes se encontram fixadas de antemo. Segundo Ortiz:

    O campo se particulariza, pois, como um espao onde se manifestam relaes de poder, o que implica afirmar que ele se estrutura a partir da distribuio desigual de um quantum social que determina a posio que um agente especfico ocupa no seu seio. Bourdieu denomina esse quantum de capital social. A estrutura do campo pode ser compreendida tomando-se como referncia dois plos opostos: o dos dominantes e o dos dominados. Os agentes que ocupam o primeiro plo so justamente aqueles que possuem um mximo de capital social; em contrapartida, aqueles que se situam no plo

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    dominado se definem pela ausncia ou pela raridade do capital social especfico que determina o espao em questo (Ortiz, 1983: p. 21).

    Para consolidar a sua posio de dominncia no interior do campo, os agentes constroem uma viso de mundo que se impe como verdadeira, convertendo-se naquilo que o autor denomina de ortodoxia. De outro lado, a viso de mundo daqueles que so dominados no campo e que atravs da luta pretendem mudar de posio, aparece definida como heterodoxia12. A ascenso de um grupo condio de dominncia no interior do campo, ou seja, a converso da heterodoxia em ortodoxia passa pelas lutas simblicas. Estas lutas por sua vez, devem ser entendidas pela maneira como os objetos do mundo social so percebidos e pelas diferentes formas em que podem ser enunciados. A enunciao o ato de representar aquilo que percebido no mundo objetivo, atribuindo-lhe significados, signos, ou smbolos13. A luta pela legitimidade destes significados em um dado campo, converte-se na luta simblica.

    Contudo, a delimitao de um determinado campo precisa ser concebida como uma referncia metodolgica, na qual torna-se possvel compreender as aes e as estratgias de um conjunto de agentes que concorrem em torno de interesses especficos. Portanto, da mesma forma que Bourdieu concebe a existncia das classes como classes tericas, como classes no papel, predispostas a se tornarem classes reais pelo trabalho de mobilizao poltica, os campos sociais no possuem uma existncia em si, dada a priori, j que dependem de um recorte arbitrrio do pesquisador que deseja conhecer um determinado espao de relaes de poder, relaes estas que so socialmente determinadas. Neste caso, preciso ter presente tambm, que os limites de um campo so sempre os limites dos seus efeitos. Assim, um agente ou uma instituio, somente faz parte de um campo, na medida em que nele sofre os efeitos ou que nele os produz (Bourdieu, 2002: p. 32).

    No caso desta pesquisa, qualificaremos como agentes sociais as organizaes de representao poltica dos trabalhadores rurais, dos pequenos proprietrios fundirios e do patronato rural existentes no Rio Grande do Sul. A nosso ver, as lutas polticas e simblicas travadas entre esses agentes sociais em torno do direito posse e uso da terra permitem delimitar a existncia de um campo dos conflitos agrrios. Entre os agentes sociais que integram este campo destacam-se os seguintes: a) a Federao da Agricultura do Rio Grande do Sul (FARSUL); b) a Federao das Cooperativas Agropecurias do Rio Grande do Sul (FECOAGRO); c) a Federao dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (FETAG); d) a Federao dos Trabalhadores da Agricultura Familiar da Regio Sul (FETRAF-SUL); e) o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); f) o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB); g) o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA); h) o Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD); i) e as aes desencadeadas pelas comunidades indgenas, em especial as Kaigangues.

    12 Segundo Ortiz (1983: p. 22-23), esses conceitos so recuperados por Bourdieu dos estudos de sociologia de religio realizados por Max Weber: Ao plo dominante correspondem s prticas de uma ortodoxia que pretende conservar intacto o capital social acumulado; ao plo dominado, as prticas heterodoxas que tendem a desacreditar os detentores reais de um capital legtimo. Os agentes que se situam junto ortodoxia devem, para conservar a sua posio, secretar uma srie de instituies e de mecanismos que assegurem o seu estatuto de dominao. (...) Os que se encontram no plo dominado procuram manifestar seu inconformismo atravs de estratgias de subverso, o que implica um confronto permanente com a ortodoxia. 13 Para Bourdieu (2002: p. 146) a luta simblica passa pelo poder de nomeao legtima como imposio oficial, explicitando publicamente a viso legtima do mundo social, onde os agentes investem o capital simblico acumulado em lutas anteriores.

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    No nosso entendimento, as lutas polticas e simblicas travadas por esses agentes sociais apresentam duas dimenses distintas: 1) uma primeira relacionada s diferentes percepes e prticas desses agentes sociais sobre a natureza da questo agrria brasileira e gacha e a sua vinculao aos projetos polticos em disputa no pas e no estado; 2) uma segunda relacionada as diferentes percepes e prticas desses agentes sociais acerca do carter, da extenso, do ritmo e dos principais instrumentos utilizados no mbito das polticas agrrias implementadas pelos governos para o equacionamento dos problemas fundirios. Neste contexto, os agentes sociais se posicionam no campo dos conflitos agrrios de acordo com a composio e o volume dos capitais que estes dispem para travarem as suas lutas.

    No caso das lutas travadas em torno da questo agrria, observa-se que num plo esto posicionados os agentes interessados na preservao da atual estrutura concentrada da propriedade fundiria e das formas sociais de uso da terra correspondentes, corroborando em maior ou menor grau com a defesa do monoplio da propriedade privada da terra14. No outro plo, posicionam-se os agentes sociais que reivindicam uma reforma agrria que possibilite a ampliao do acesso a terra s populaes desprovidas da propriedade fundiria (sejam elas de origem rural e/ou urbana), a fim de permitir a sua reproduo social e econmica. Neste plo, a reivindicao do acesso a terra aparece vinculada defesa da ampliao e do fortalecimento das mltiplas formas familiares de produo e por polticas pblicas diferenciadas que atendam a especificidade desses grupos sociais.

    Neste caso, as lutas travadas entre os agentes sociais em torno do direito posse e uso da terra apresentam trs aspectos fundamentais: 1) um primeiro diz respeito regulao pela Constituio Federal de 1988 de um direito da propriedade fundiria condicionado ao cumprimento da sua funo social15. O uso desse preceito constitucional tem sido foco de uma luta permanente entre os agentes sociais favorveis ou contrrios execuo de uma poltica de reforma agrria ampla e massiva no pas. Isso ocorre porque as lutas polticas conduzidas pelos defensores desse tipo de reforma agrria reivindicam o alargamento da regulao da funo social para outros requisitos que no apenas o da produtividade, enquanto que para os setores contrrios a essa proposta, a luta inversa, ou seja, ela movida no sentido de manter ou restringir essa regulao; 2) o segundo aspecto diz respeito emergncia de outras modalidades de direito posse e uso da terra, asseguradas pela legislao agrria vigente ou que foram incorporadas pela Constituio de 1988, entre as quais esto previstas as seguintes

    14 Aqui estamos nos referindo s diferentes formas de produo capitalista que se realizam nos grandes estabelecimentos rurais no Rio Grande do Sul, as quais so compreendidas basicamente: a) pelas propriedades dedicadas pecuria extensiva; b) pelas modernas cabanhas dedicadas criao de matrizes de alto potencial gentico; c) pelas coudelarias ou haras dedicados criao de cavalos de raa; d) pelas modernas lavouras dedicadas a produo de gros (soja, arroz, trigo, milho, etc); e) alm de outros formatos empresariais cuja produo dedicada exclusivamente para o mercado. 15 Segundo o Artigo n. 186, da Constituio Federal: A funo social cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente segundo critrios e graus de exigncia estabelecidos em Lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilizao adequada dos recursos naturais disponveis e preservao do meio ambiente; III observncia das disposies que regulam as leis de trabalho; IV explorao que favorea o bem-estar dos proprietrios e trabalhadores (BRASIL/Constituio de 1988: 2003, p. 130). A Lei 8.629/93 estabeleceu de forma clara apenas o primeiro requisito, considerando que o aproveitamento racional e adequado seria cumprido na medida em que a propriedade fosse produtiva. Nesta direo, estabeleceu critrios de mensurao da utilizao da propriedade e da sua eficincia baseados respectivamente, no Grau de Utilizao da Terra (GU) e no Grau de Eficincia Econmica (GEE), cujo clculo se referencia nos ndices de produtividade em vigor. Nos demais requisitos, a Lei genrica e no oferece grandes possibilidades para a ao governamental. Sobre o assunto ver Delgado (2004) e Teixeira (2005).

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    situaes: a) a demarcao e devoluo das terras ocupadas pelas comunidades indgenas16; b) a demarcao dos territrios ocupados por remanescentes de quilombos17; c) a regularizao dos ttulos de posseiros em reas pblicas e privadas pela modalidade de usucapio especial; d) a indenizao das populaes prejudicadas pela construo de obras pblicas, especialmente os atingidos por barragens. A existncia dessas outras modalidades de direitos implica numa leitura sobre a questo agrria que considere a heterogeneidade das situaes e dos conflitos existentes no campo, os quais exigem uma ao diferenciada dos governos (federal e estadual) no desenho das suas polticas agrrias.

    A segunda dimenso relacionada s lutas travadas pelos os agentes sociais em torno do direito posse e uso da terra diz respeito s polticas agrrias adotadas pelos governos federal e estadual para equacionar os problemas fundirios. Nesse processo, observa-se a existncia de diferentes posicionamentos polticos em torno do carter, da extenso, do ritmo e dos instrumentos necessrios execuo das polticas agrrias no pas e no estado. A defesa ou a nfase de uma determinada modalidade de poltica agrria est em grande parte relacionada luta travada pelos agentes sociais no interior das instituies do Estado e da sociedade civil acerca dos diferentes projetos de desenvolvimento para o pas. Tais projetos esto inspirados em diferentes diagnsticos sobre a questo agrria e voltados ao atendimento de grupos sociais distintos.

    Neste sentido, parte-se do entendimento que o carter das polticas agrrias implementadas deve considerar no apenas o tipo de orientao imprimida pelos partidos polticos ou coalizes de partidos, que dirigem as instituies do Estado durante um mandato de governo, mas, tambm, a sua ossatura material que no deve ser tomada como neutra18. Por essa razo, a noo de Estado utilizada nesta tese tem

    16 Assegurado pelo Artigo N. 66 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias da Constituio Federal de 1988, que assim expressa: A Unio concluir a demarcao das terras indgenas no prazo de cinco anos a partir da promulgao da Constituio (Brasil, 2003: p. 175). 17 Trata-se do Artigo N. 68 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias da Constituio Federal de 1988, que assim expressa: Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os ttulos respectivos (Brasil, 2003: p. 175). No ano de 1999, o Instituto de Assessoria s Comunidades Remanescentes de Quilombos (IACOREQ), juntamente ao Ncleo de Estudos de Identidade e Relaes Intertnicas (NUER) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) deu incio ao processo de identificao das comunidades de remanescentes de quilombos no Rio Grande do Sul, tendo constatado a existncia de 43 comunidades. A partir de ento, no ano de 2001 foi firmado um convnio com o governo Olvio Dutra para a elaborao de cinco laudos antropolgicos. Neste mesmo ano, a comunidade A Casca, localizada no municpio de Mostardas, foi a primeira a ser reconhecida pelo governo federal (Entrevista concedida ao autor por Ubirajara Toledo, integrante da IACOREQ, em 24/09/2004). Em que pese a grande importncia que vem assumindo este tema na atualidade, no o analisaremos em nossa tese, posto que privilegiamos tratar somente do pblico atendido diretamente pelo DRA/GRA, o que no o caso dos remanescentes de quilombos que contam com uma estrutura especfica na Secretaria de Assistncia Social e Cidadania, qual seja, o Conselho de Desenvolvimento das Comunidades Negras (CODENE). 18 Os autores marxistas ao destacarem que as instituies do Estado possuem um carter de classe, refutam as teses liberais que o concebem como uma arena neutra que faculta aos grupos sociais disputarem o poder com igualdade de condies (Boron, 1994). Neste caso, a aluso ao carter de classe do Estado, significa dizer que toda a dinmica de funcionamento institucional opera sob os marcos da reproduo do capitalismo enquanto sistema econmico e social. Como conseqncia observa-se a reproduo da estrutura de classes vigente no capitalismo. Nesta estrutura, as classes proprietrias dos meios de produo, na maior parte das vezes, apresentam uma posio poltica dominante sobre as classes trabalhadoras, detentoras apenas da sua fora de trabalho e de uma posio subalterna no plano poltico. A reivindicao central do marxismo se baseia na constatao de que no capitalismo, todos os governos devem respeitar e proteger as demandas essenciais daqueles que possuem a riqueza produtiva da sociedade. Segundo Przeworski: Os capitalistas so dotados de um poder pblico, poder que no pode ser subjugado por nenhuma instituio formal. O povo pode ter direitos polticos, pode votar, e os

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    como referncia a teoria ampliada do Estado, a luz da leitura da obra de Antonio Gramsci realizada por Coutinho (1992). Tal teoria se difere das formulaes marxistas clssicas, nas quais o Estado concebido simplesmente como um aparelho de represso e coero, cujo poder s pode ser conquistado atravs de uma guerra de movimento, ou seja, atravs de um levante revolucionrio que tome de assalto o poder estatal. Para Gramsci, o Estado em sentido amplo, comporta duas esferas principais. A primeira a sociedade poltica, na qual esto compreendidos os mecanismos pelos quais a classe dominante detm o monoplio legal da represso e da violncia, representados pelo controle da burocracia administrativa e dos aparatos de fora militar e policial. A segunda a sociedade civil, na qual esto compreendidas ass organizaes responsveis pela elaborao e difuso das ideologias. Estas organizaes so compreendidas pelo sistema escolar, pelas igrejas, pelos partidos polticos, pelos sindicatos, pelas organizaes profissionais, pelas organizaes da imprensa (revistas, jornais, rdio, televiso, etc)19 (Coutinho, 1992: p. 76-77).

    O tratamento em separado dessas esferas de poder relaciona-se existncia de dois problemas, um primeiro que diz respeito funo que elas exercem na organizao da vida social e na reproduo das relaes de poder. Ambas formam o Estado, s que no caso da sociedade poltica a sua funo exercer a dominao por meio da ditadura e da coero, enquanto que no caso da sociedade civil a dominao exercida por meio do exerccio da hegemonia, a qual entendida como a conquista de aliados para as posies polticas de um determinado grupo atravs da direo poltica e do consenso20. O segundo ponto de diferenciao entre as esferas dado por uma materialidade social-institucional prpria. Enquanto a materialidade da sociedade poltica se verifica nos aparelhos repressivos de Estado, a materialidade da sociedade civil conferida pelos aparelhos privados de hegemonia, ou seja, organismos sociais coletivos voluntrios e relativamente autnomos em face da sociedade poltica (Coutinho, 1992: p. 77-78).

    As formulaes de Gramsci sero teis para as anlises contidas nesta pesquisa, uma vez que oferecem a possibilidade de pensar o Estado a partir de uma perspectiva mais complexa, na qual as lutas polticas travadas entre os agentes sociais que se fazem presentes no campo dos conflitos agrrios esto imersas no interior de uma esfera mais ampla que sociedade civil, a qual pode ser comparada ao espao social, tal como aparece concebido por Bourdieu. Essas lutas se constituem em tentativas das classes ou fraes de classes em conquistarem a hegemonia poltica no interior da sociedade civil, a fim de se converterem em classes hegemnicas. Tal fato especialmente importante de ser observado, principalmente quando se sabe que as possibilidades de realizao de uma poltica agrria, ou ainda do carter que esta deva assumir, esto diretamente relacionadas natureza dos projetos de desenvolvimento em disputa no pas e no estado.

    governos podem agir segundo mandatos populares. Os governantes podem ter interesses e concepes prprias. Mas a capacidade objetiva de qualquer governo para atingir qualquer objetivo circunscrita pelo poder pblico do capital. A natureza das foras polticas que controlam as instituies do Estado no altera essa situao porque ela estrutural: uma caracterstica do sistema, e no dos ocupantes de posies governamentais ou dos vencedores de eleies (Przeworski,1995: p. 87) 19 Segundo Coutinho, Gramsci advertiu que a distino entre sociedade poltica e sociedade civil uma distino metodolgica e no uma distino orgnica; na realidade efetiva, sociedade civil e Estado se identificam (Coutinho, 1996: 87). 20 Segundo Luciano Gruppi (1978: p. 70), a hegemonia pode ser definida como: (...) a capacidade de unificar atravs da ideologia e de conservar unido um bloco social que no homogneo, mas sim marcado por profundas contradies de classe. Uma classe hegemnica, dirigente, dominante, at o momento em que atravs da sua ao poltica, ideolgica, cultural consegue manter articulado um grupo de foras heterogneas, consegue impedir que o contraste existente entre tais foras exploda, provocando assim uma crise na ideologia dominante, que leve recusa de tal ideologia, fato que ir coincidir com a crise poltica das foras no poder.

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    Desse modo, as possibilidades de aplicao dessas polticas dependem da conquista da hegemonia poltica por parte dos grupos que a defendem, em outras palavras, da construo de uma correlao de foras favorveis no seio da sociedade civil. A nosso ver, torna-se possvel comparar a luta pela conquista da hegemonia como ela pensada por Gramsci luta simblica travada entre os agentes nos diferentes campos sociais, tal como concebe Bourdieu. Em ambos os casos, o que est em jogo uma disputa pelo poder, cujo propsito central passa pela modificao das relaes de dominao e subordinao entre as classes sociais, entendidas por Bourdieu como agentes ou classes potenciais. No caso especfico desta pesquisa, observa-se que a eleio de Olvio Dutra no ano de 1999 no Rio Grande do Sul representou uma alterao na correlao de foras polticas estaduais que permitiram deslocar o tema da questo agrria de uma posio, at ento marginal no processo poltico, para uma posio central na estratgia de desenvolvimento econmico do governo estadual.

    Se, por um lado, as lutas travadas entre as classes pela conquista da hegemonia so importantes para alterar a correlao de foras no interior da sociedade civil, por outro lado, preciso no esquecer que estas lutas tambm esto inscritas no interior da ossatura institucional do Estado, ou seja, no interior das suas instituies. Nesta direo, Poulantzas (1985) alm de apontar para a existncia de um carter de classes por parte do Estado, procura explicitar a sua funo tanto em relao s classes dominantes quanto s dominadas. Segundo este autor, o Estado no apenas representa os interesses da burguesia, mas tambm cumpre o papel de organizar os interesses polticos no longo prazo do bloco no poder, composto por vrias fraes da classe burguesa. Essa organizao se faz sob uma unidade conflitiva da aliana no poder, e do equilbrio instvel dos compromissos entre os seus componentes, o que se faz sob a hegemonia e direo, nesse bloco, de uma de suas classes ou fraes, a classe ou frao hegemnica (Poulantzas, 1985: p. 44-145).

    Nesta direo, Poulantzas (1985: p. 146) adverte ainda, que o Estado possui uma autonomia relativa em relao aos interesses particulares em conflito. Essa autonomia constitutiva do Estado capitalista, uma vez que a sua materialidade apresenta uma separao relativa das relaes de produo. Tal separao confere uma especificidade no apenas s classes, mas tambm a prpria luta de classes sob o capitalismo. Segundo este autor: (...) o Estado, no caso capitalista, no deve ser considerado como uma entidade intrnseca, mas, como alis o caso do capital, como uma relao, mais exatamente como a condensao de foras entre classes e fraes de classe, tal como ele expressa, de maneira sempre especfica, no seio do Estado (Poulantzas, 1985: p. 147).

    Com essa formulao, torna-se possvel evitar os impasses oriundos das interpretaes que concebem o Estado, ora como um instrumento, ora como um sujeito. No primeiro caso, o Estado pensado como coisa, como um instrumento passivo, neutro, e merc das manipulaes de uma nica classe ou frao de classe, sem reconhecer a sua autonomia relativa. No segundo caso, a autonomia do Estado considerada quase que de forma absoluta, concebendo as elites e a burocracia poltica que o dirigem, como portadoras de uma vontade racionalizante da sociedade civil. Nesta perspectiva, as polticas do Estado devem ser consideradas como a resultantes das contradies de classes inseridas na sua prpria ossatura material. Segundo Poulantzas:

    (...) entender o Estado como condensao material de uma relao de foras, significa entend-lo como um campo e um processo estratgicos, onde se entrecruzam ncleos e redes de poder que ao mesmo tempo se articulam e apresentam contradies e decalcagens uns em relao aos outros. Emanam da tticas movedias e contraditrias, cujo objetivo geral ou cristalizao

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    institucional se corporificam nos aparelhos estatais (Poulantzas, 1985: p. 157).

    Ao evidenciar o papel desempenhado pelas contradies de classe na formulao das polticas do Estado, o autor contribui para desmistificar o seu papel unitrio e racionalizante, uma vez que coloca em evidncia a existncia no seu interior dos feudos, cls, faces as quais lidam com uma multiplicidade de micropolticas. Por mais coerentes que essas polticas possam parecer, consideradas isoladamente, no so menos contraditrias entre si. Isso demonstra que a poltica do Estado resultante do entrechoque e no da aplicao de um esboo global de objetivos do Estado (Poulantzas, 1985: p. 156).

    Outro aspecto importante destacado por Poulantzas, diz respeito ao papel desempenhado pelo Estado frente s classes dominadas e s lutas populares. No seu entendimento, o papel do Estado no se restringe apenas organizao e unificao do bloco no poder, mas tambm na tentativa de desorganizao e diviso contnua das classes dominadas. Por isso, o Estado no pode ser concebido como um bloco monoltico que imposto de fora s classes dominadas, como se fosse uma fortaleza impermevel e isolada delas (Poulantzas, 1985: p. 161-162). Neste sentido, as lutas populares atravessam o Estado de lado a lado, e se isso ocorre porque elas esto inscritas na sua trama e na sua configurao estratgica. A inscrio das lutas populares nos aparatos estatais no significa que elas sejam absorvidas por um Estado totalizante, mas, sim, pelo fato do prprio Estado estar submerso nas lutas que o submergem constantemente. At mesmo aquelas lutas que extrapolam o Estado, no podem ser concebidas como lutas que esto fora do poder, pois elas esto sempre inscritas nos aparelhos de poder que as materializam e que, tambm eles, condensam uma relao de foras (Poulantzas, 1985: p. 162).

    No que diz respeito aos propsitos desta pesquisa, cabe destacar que a noo de Estado como uma condensao material de uma relao de foras, ou ainda como um campo e processo estratgicos, nos possibilita pensar a luta poltica na sua totalidade, englobando as lutas pela conquista da hegemonia poltica no seio da sociedade civil e nas instituies estatais que compreendem a sociedade poltica. A partir desta constatao, possvel refutar a idia do Estado concebido como um instrumento ou como um sujeito, mas sim como resultado de uma correlao de foras entre as lutas dos agentes sociais, mediados ou no por organizaes de representao poltica. Isso significa que as lutas desenvolvidas pelos movimentos sociais e sindicais do campo esto, em maior ou menor grau, inscritas na materialidade institucional do Estado. No caso especfico desta pesquisa ser possvel perceber de que maneira a intensidade da luta poltica travada entre os agentes sociais se internalizou nos governos (federal e estadual), influenciando no carter e na dinmica de funcionamento das polticas agrrias implementadas. A delimitao dos conceitos de questo agrria e reforma agrria

    Dissemos anteriormente que a questo agrria ser tratada nesta pesquisa a partir de uma perspectiva poltica, como um problema que se coloca na agenda dos governos e do Estado, a partir das aes dos movimentos sociais e sindicais do campo em suas lutas pelo acesso imediato a terra e pela execuo de uma poltica de reforma agrria no pas. Entretanto, preciso destacar que as premissas que informam as discusses polticas contemporneas no so recentes, uma vez que o debate clssico sobre a questo agrria surgiu em concomitncia aos problemas interpostos acumulao ampliada do capital, no mbito da revoluo industrial, ocorrida no final do sculo XVIII e no incio do

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    sculo XIX, na Inglaterra e, posteriormente, nos pases da Europa Ocidental. Segundo Martins:

    A questo agrria em termos clssicos, o bloqueio que a propriedade da terra representa para o desenvolvimento do capital, reproduo ampliada do capital. Esse bloqueio pode se manifestar de vrios modos. Ele pode se manifestar como reduo da taxa mdia de lucro, motivada pela importncia quantitativa que a renda fundiria possa ter na distribuio da mais-valia e no parasitismo de uma classe de rentistas (Martins, 2000: p. 90).

    A constatao deste problema abriu nessas sociedades um espao para a discusso de alternativas que visassem reformar a estrutura concentrada da propriedade fundiria, com a finalidade de romper com o bloqueio causado principalmente pela apropriao da renda da terra pelos grandes proprietrios fundirios. Nestes casos, a aprovao de leis agrrias tinha como propsito central quebrar o monoplio da propriedade da terra e da sua renda, oportunizando a formao e a expanso de um mercado interno para o capital industrial, de tal modo que houvesse uma dinamizao das economias desses pases. A expanso do mercado interno estava associada diretamente ao crescimento da populao economicamente ativa que recebesse salrios e tivesse poder de compra. Isto no poderia ocorrer se as condies de vida dos trabalhadores em geral e dos pequenos proprietrios fossem precrias. Se essa populao entrasse no mercado de modo restrito, seriam reduzidas as possibilidades da reproduo ampliada do capital no seu conjunto (Martins, 2000: p. 91).

    Outro aspecto a ser considerado na discusso sobre a questo agrria a sua dimenso histrica, uma vez que esta precisa ser entendida a partir de uma perspectiva de longo prazo, a fim de que se possa estabelecer um diagnstico preciso sobre as causas que possibilitaram o surgimento e a continuidade das contradies sociais relacionadas concentrao da propriedade fundiria e da renda no campo. Segundo Martins:

    (...) a questo agrria tem sua prpria temporalidade, que no o tempo de um governo. Ela no uma questo monoltica e invariante: em diversas sociedades, e na nossa tambm, surge em circunstncias histricas determinadas e passa a integrar o elenco de contradies, dilemas e tenses que mediatizam a dinmica social e, nela, a dinmica poltica. por isso mesmo alcanada continuamente pelas condies cambiantes do fazer a histria. O prprio ato de intervir na questo, de um modo ou de outro, numa perspectiva ideolgica ou noutra, j altera a questo agrria. No s a atenua ou a agrava, como tambm muda-a qualitativamente, define as possibilidades de nela se continuar intervindo, as condies em que tal interveno pode ser feita. A questo , portanto, essencialmente uma questo histrica (Martins, 2000: p. 89).

    Assim, a partir da interpretao apresentada por Martins, possvel inferir que a

    questo agrria se constitui num diagnstico, ou na definio de qual o problema agrrio de uma determinada sociedade. Ao passo que a adoo de uma poltica de reforma agrria, almeja se constituir na soluo desse problema. Nesse sentido, o debate em torno da questo agrria sempre aparece associado s diferentes percepes polticas, que ensejam diferentes propostas de desenvolvimento, as quais esto em permanente disputa no interior da sociedade civil e do Estado. Por isso, no s os diagnsticos sobre a questo agrria podem diferir entre si, como tambm nas solues propostas, as quais se evidenciam nos objetivos e no carter assumido pelas polticas agrrias colocadas em prticas pelos governos.

    No faz parte dos objetivos deste trabalho detalhar a diversidade das experincias de reforma agrria realizadas em nvel internacional, cabendo apenas

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    mencionar que a maioria cumpriu um importante papel na democratizao da propriedade da terra e na modernizao das relaes econmicas, sociais e polticas de inmeros pases21. O trao comum dessas reformas agrrias, em especial daquelas conduzidas nos pases em desenvolvimento, foi o papel crucial desempenhado pelo Estado na sua efetivao, principalmente no que diz respeito ao confisco das terras dos grandes proprietrios, que resultou na perda de parte dos seus direitos e privilgios. Segundo Barraclough (2001: p. 379): Em tese, o Estado detm o monoplio de usar, com legitimidade e fora coercitiva dentro do seu territrio, juntamente com a responsabilidade de buscar o bem pblico para todos os seus cidados. A reforma agrria sem a participao do Estado seria uma contradio em termos.

    Neste sentido, a reforma agrria pode ser definida como um processo poltico, que implica numa mudana nas relaes de poder em favor daqueles que trabalham a terra, em detrimento daqueles que acumulam riquezas a partir do controle sobre a terra rural e sobre o trabalho. Tal processo pressupe a existncia de uma ao estatal no sentido de modificar profundamente o direito sobre a posse e uso da terra de um pas, de tal maneira que permita uma distribuio mais eqitativa das terras agrcolas. Para que seja qualificada como reforma preciso que a mesma apresente dois aspectos bsicos: dimenso e temporalidade. No primeiro caso, preciso que as aes de reestruturao da propriedade incidam sobre as regies que se encontrem com um elevado grau de concentrao da propriedade da terra, numa abrangncia tal que permita a sua qualificao enquanto reforma, caso contrrio, no passaro de medidas de carter tpico que no surtem efeitos sobre o grau de concentrao da propriedade da terra. No segundo caso, preciso que a reforma agrria se realize num espao de tempo suficiente para beneficiar a gerao que a vivenciou, ou seja, no devendo exceder a um perodo superior a 15 anos para a sua plena execuo, para que os seus impactos possam ser sentidos num perodo concentrado de tempo (Gomes da Silva, 1995: p. 8).

    Essa definio no consensual entre os diversos estudiosos do tema, j que o prprio conceito de reforma agrria est em disputa permanente na sociedade. Assim, a depender dos diagnsticos apresentados pelos agentes sociais envolvidos neste processo podero surgir os mais variados conceitos22. Portanto, ao utilizarmos essa definio estamos tentando estabelecer uma demarcao terica e poltica da nossa compreenso sobre o tema. Nesta direo, par