As Possibilidades de Notação para a Viola Caipira

37
LUCAS LANZA DE PAULA AS POSSIBILIDADES DE NOTAÇÃO PARA A VIOLA CAIPIRA

description

Trabalho de conclusão de curso, Bacharelado em viola caipira, USP

Transcript of As Possibilidades de Notação para a Viola Caipira

12

1

LUCAS LANZA DE PAULA

AS POSSIBILIDADES DE NOTAO PARA A VIOLA CAIPIRA

Ribeiro Preto 2014LUCAS LANZA DE PAULA

AS POSSIBILIDADES DE NOTAO PARA A VIOLA CAIPIRA

Trabalho de Concluso de Curso para obteno do diploma de graduao pelo Departamento de Msica da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto da Universidade de So Paulo na rea de Bacharelado em Msica com habilitao em Viola Caipira.

Orientador: Prof. Dr. Gustavo Silveira Costa

Ribeiro Preto 2014

AGRADECIMENTOS

Aos meus amigos Eduardo Panda Costa Ribeiro e Carmem Ribeiro Costa, pela orientao extra-acadmica e reviso do texto, contribuindo para que esse trabalho ficasse coeso.

LISTA DE EXEMPLOS DE NOTAO

Exemplo de notao 1 Tablatura italiana. (TYLER, 2002, p. 165)

Exemplo de notao 2 Trecho de Fandango, para guitarra barroca, de Santiago de Murcia, 1732. (KOONCE, 2006, p. 147)

Exemplo de notao 3 Tablatura italiana com a indicao rtmica. (TYLER, 2002, p. 165)

Exemplo de notao 4 Tablatura francesa. (TYLER, 2002, p. 166)

Exemplo de notao 5 Tablatura francesa com a indicao rtmica. (TYLER, 2002, p. 167)

Exemplo de notao 6 Trecho de estudo para viola caipira, de Roberto Corra. (CORRA, 2002, p. 220)

Exemplo de notao 7 Trecho de No Mexe Comigo, para viola caipira, de Fernando Deghi. (DEGHI, 2001)

Exemplo de notao 8 Trecho de Trama, para viola caipira, de Braz da Viola. (retirado da internet no site , visualizada no dia 10/09/2014)

Exemplo de notao 9 Trecho de Preldio 5, para viola de arame, de Ascendino Theodoro Nogueira, 1962. (CORRA, 2014)

Exemplo de notao 10 Trecho de Vago e florido firmamento de notas para viola de arame, de Maurcio Dottori, 2007. (CORRA, 2014)

Exemplo de notao 11 Trecho de Preludio em Mi, para viola caipira, de Jorge Antunes, 1984. (CORRA, 2014)

Exemplo de notao 12 Trecho de estudo, para viola de arame, de Jos Gustavo Julio de Camargo, 2012.

Exemplo de notao 13 Trecho de Preldio XIX, para viola caipira, de Roberto Victrio. (retirado da internet no site , visualizado no dia 10/09/2014)

RESUMO

O presente trabalho teve por objetivo fazer um apanhado de alguns dos diversos tipos de notao musical utilizados por compositores e instrumentistas contemporneos, como tambm os utilizados para os instrumentos ancestrais da viola caipira (ou viola de arame), tais como a vihuela, alade e guitarra barroca. Alm disso, buscou-se, de uma maneira breve, situar e contextualizar esse instrumento na histria, as modificaes estruturais no decorrer dos sculos e a transio cultural de um ambiente formal e acadmico ao popular e de tradio oral. Essa pesquisa poder servir como material de apoio, para futuros trabalhos relacionadas com a notao musical para a viola caipira.

Palavras-chave: Viola caipira. Viola de arame. Viola brasileira. Msica contempornea. Notao. Tablatura. Msica antiga.

ABSTRACT

The present work aims to summarize some of the various kinds of writing used by contemporary composers and instrumentalists, as well as the writing for ancient instruments of the viola caipira (or viola de arame), such as the vihuela, lute and baroque guitar. In addition, it was sought to, in a brief way, situate and contextualize this instrument in history, structural changes over the centuries and the cultural transition from a formal, academic setting to the popular and oral tradition. This research can serve as supporting material for future works related to musical notation for viola caipira.

Keywords: Viola caipira. Viola de arame. Viola brasileira. Contemporary music. Notation. Tablature. Early music.

SUMRIO

1. INTRODUO ..........................................................................................................82. ASPECTOS HISTRICOS .......................................................................................93. DIVERSOS TIPOS DE NOTAO .......................................................................12 3.1 Leitura da tablatura ...........................................................................................13 3.1.1 Tablatura italiana ............................................................................................14 3.1.2 Tablatura francesa ...........................................................................................16 3.1.3 Tablatura espanhola ........................................................................................16 3.2 A notao utilizada por compositores instrumentistas ...................................17 3.3 A notao utilizada por compositores com produo variada que no tocam o instrumento ................................................................................................................19 3.4 A notao utilizada por compositores com produo variada que tocam o instrumento .................................................................................................................21 4. CONCLUSO ..........................................................................................................23REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .......................................................................24

1. INTRODUO

Neste trabalho utilizou-se, por vezes, a nomenclatura viola de arame referenciando-se em pesquisas e trabalhos sobre o instrumento. Roberto Corra, em seu livro A arte de pontear viola, e Gisela Nogueira, em sua tese de doutorado A viola com anima: uma construo simblica, fazem uso dessa nomenclatura para designar esse instrumento.

Como prossegui a pesquisa sobre a utilizao de tal instrumento no Brasil colonial e no sculo XIX, precisava diferenci-lo das outras violas brasileiras, tendo em mente que sempre me perguntavam se toco repertrio popular caipira. A palavra viola no satisfazia curiosidade do pblico que sempre questionava se eu me referia viola caipira. Decidi usar um nome mais abrangente, algo como mito de origem das nossas violas. (NOGUEIRA, 2009)

Correa (2002, p. 29) explica que utiliza o nome viola de arame para referir-se a todas as espcies de violas diretamente oriundas do popular instrumento portugus do sculo XV e que o termo capaz de qualificar o instrumento em todas as suas variaes. Compreendem-se assim os motivos de adotar-se essa nomenclatura, designando a viola caipira, assim como a viola brasileira, viola de fandango, viola nordestina, viola braguesa, viola campania e viola de dois coraes, que so tipos diferentes de viola de arame, no trabalho destes pesquisadores e tambm no presente trabalho.O termo viola de arame tambm popular nos Aores, e denomina as violas utilizadas por l.As violas de arame portuguesas (...) so todas do mesmo tipo fundamental, pouco diferindo do instrumento que, a partir do sc. XVI e sob designao corrente de viola, se encontra largamente difundido pelo povo.Esse instrumento caracterizado por uma caixa de ressonncia em forma de oito, dois tampos chatos e quase paralelos, e um encordoamento de cinco parcelas ou ordens de cordas metlicas, duplas ou triplas. (ALMEIDA, 2010, p. 19)

A viola caipira instrumento de cordas dedilhadas e caixa acstica em forma de oito, da famlia das guitarras, desse modo, cordofone[footnoteRef:1] com extenso de brao. Com cinco pares de cordas[footnoteRef:2], maneira de afinar e tipo de construo, a viola oferece recursos tcnicos e sonoros peculiares que vm sendo bem aproveitados por compositores contemporneos e permite tambm praticar o repertrio de instrumentos antepassados. Contudo, boa parte da notao musical utilizada atualmente ainda carece de clareza e objetividade na hora de representar todas essas possibilidades tcnicas e sonoras deste instrumento. [1: Instrumentos musicais cuja fonte primria de som a vibrao de uma corda tensionada quando beliscada, percutida ou friccionada.] [2: Enumerados em ordem crescente de baixo para cima, com o instrumento em posio de tocar. O primeiro par o que est mais prximo ao cho.]

A motivao para este trabalho surgiu da necessidade e dificuldades diante da leitura e escrita para esse instrumento. Como exemplo, temos casos em que se podem utilizar as notas agudas nas ordens reentrantes[footnoteRef:3], alternando com os outros pares afinados em unssono ao tocar escalas ou execuo de campanelas[footnoteRef:4], e casos tambm como questes sonoras, se devem ser pinadas as duas ou apenas uma corda do par, quando as notas ocorrem na terceira, quarta e quinta ordens, que so oitavadas. [3: A afinao reentrante, nos instrumentos do perodo Barroco e anterior, regulada de modo que o quinto e/ou quarto pares so afinados na oitava superior, com o intuito de facilitar a execuo de escalas alternando toques entre o polegar e os outros dedos. Os bordes so as cordas de maior espessura, uma oitava abaixo da outra corda do par, podendo ser apenas no quarto par ou no quarto e no quinto, nos instrumentos ancestrais.] [4: Efeito criado pela sobreposio de um grupo de notas tocadas em sequencia em cordas diferentes.]

Essa compilao de variados tipos de notao prope-se a apresentar as diversas maneiras de escrever msica para esse instrumento, tanto as que foram consolidadas no decorrer do tempo e que so utilizadas atualmente como suporte - que o caso da tablatura, acompanhando a partitura para auxiliar o instrumentista que no est familiarizado com a notao convencional e tambm como referncia para a digitao ou mesmo para fins didticos - como tambm as experincias de compositores contemporneos que sugerem alternativas para a escrita com o intuito de tornar o mais claro possvel como gostariam que a pea soasse.

2. ASPECTOS HISTRICOS

A viola de arame chegou ao Brasil atravs dos colonizadores e, principalmente, jesutas portugueses no incio do sculo XVI. Os navegantes e viajantes portugueses, em suas longas viagens expansionistas rumo s Amricas, frequentemente levavam consigo suas violas, contribuindo para a disseminao do instrumento nessas terras. (BOUDASZ, 2001, p.49)Os missionrios catlicos, no inicio da colonizao, utilizavam frequentemente a viola como instrumento acompanhador, para catequizar e converter os indgenas. Seguiam com a viola canes e hinos religiosos, como tambm festas, procisses e aos autos populares de cunho religioso, que encantariam e doutrinariam o povo gentio. No presente sculo ainda possvel observar e vivenciar reflexos dessas prticas, em que a viola o principal instrumento acompanhador, como, por exemplo, na folia de reis, manifestao muito viva em todo o Brasil, ainda que um tanto restrita ao ambiente rural. (BOUDASZ, 2001, p. 61) Pertencente famlia das cordas dedilhadas, que tm a reputao de instrumentos populares de fcil execuo, a viola de arame apartada de seu passado erudito passou a ser ensinada oralmente, sendo esse modo de transmisso de conhecimento por vezes marginalizado. Mesmo com isso a viola de arame sempre esteve inserida na vida do roceiro e em outros ambientes populares nos quais os instrumentistas preocupavam-se apenas com a formao bsica para tanger sua viola. A msica ficaria por conta dos outros. (NOGUEIRA, 2009, p. 13) Essa consolidao da viola de arame no meio rural deu-se por vrios motivos.

Fato incontestvel que, na Europa do sculo XIX, a viola (ou guitarra barroca), bem como a guitarra clssica (ou violo), encontrava-se em franca decadncia nas camadas mais altas da sociedade, ao contrrio do piano, presente nas salas de concerto e em grande parte do contedo musical impresso. (NOGUEIRA, Gisela Gomes Pupo, 2009, p. 45, 46)

Entretanto, at o sculo XVIII, a viola foi tambm amplamente utilizada por essas camadas mais altas da sociedade, inclusive no Brasil, sobretudo no acompanhamento das modinhas.Na Espanha do sculo XVIII, as palavras vihuela e guitarra eram sinnimos enquanto que em Portugal, pas limtrofe, a palavra viola gradualmente substituiu o significado de guitarra. Durante o sculo XVII os portugueses utilizavam os dois termos alternadamente, mas, em meados do sculo XVIII, o termo viola foi consolidado para a designao de vrios tipos de guitarras de cinco ordens, enquanto guitarra viria referir-se a um novo instrumento. (TYLER, 2002)Em Portugal, o termo viola designava, ento, tanto a vihuela espanhola de seis ordens quanto a viola de cinco ordens, comumente conhecida nos dias de hoje como viola caipira ou viola brasileira. A viola de cinco ordens era largamente difundida em Portugal nos sculos XV e, principalmente, no sculo XVI, muito popular nos jograis e cantorias trovadorescas. Foi muito apreciada tanto pela nobreza quanto pelas classes mais baixas, tendo sido o instrumento musical mais frequentemente mencionado nas fontes documentais portuguesas do sculo XVI. (BUDASZ, 2001, p. 49) A viola no Brasil manteve a estrutura bsica do instrumento portugus, sendo prioritariamente construda artesanalmente at o incio do sculo XX, quando fbricas especializadas na confeco de instrumentos musicais dominaram a atividade. At ento as violas tinham as cravelhas de madeira, cavalete trabalhado e os trastes colocados no mesmo nvel do tampo, a maioria com apenas dez trastes que compreendiam toda extenso do brao. Alguns instrumentos tinham alguns trastes a mais, fixados no tampo. Porm, com o processo da industrializao, as fbricas acabaram por modificar um pouco a viola, fazendo uso de sua experincia na fabricao de violes e inovaes tcnicas de construo. As cravelhas passaram a ser de metal e o espelho, ou trasteira, segue at a abertura sonora, colada ao tampo e abrigando quase o dobro de trastes da sua antiga verso. Essas alteraes trouxeram consequncias para a prtica instrumental e da escrita, pois com essa nova disposio do espelho, alm de proporcionar algum afastamento das cordas em relao ao tampo favorecendo a ao da mo direita, permite tambm maior acesso s notas agudas pela mo esquerda. Mas caractersticas percussivas de mo direita foram perdidas devido a esse distanciamento, pois os dedos raspavam no tampo, alm de atacarem as cordas, em toques de acompanhamento. Apesar de tudo, esse processo disponibilizou instrumentos com preos mais acessveis, mesmo com qualidade tcnica e sonora precria. (CORRA, 2002, p. 23) Na viola caipira, por utilizar um encordoamento que possibilita um bordo e uma corda afinada oitava acima no mesmo par, a afinao reentrante abrange do quinto ao terceiro par, e os bordes do terceiro at o quinto par, possibilitando recursos tcnicos e sonoros peculiares a esse instrumento.Mas todos esses recursos sonoros no so bem representados na pauta, gerando confuso no intrprete no que concerne a leitura da pea, precisando muitas vezes levar um tempo considervel para arranja-la - a no ser quando a partitura acompanhada da tablatura - enquanto poderia fazer uma leitura mais rpida e resolver as questes sonoras mais brevemente. Todavia, isso no um problema atual. Em Portugal, por volta dos sculos XVII a XVIII, no repertrio contido em trs cdices de tablatura para viola (guitarra de cinco ordens) nota-se certo descuido com a notao, desde a ausncia de valores rtmicos e ornamentaes at erros de digitao e nmeros na tablatura. Entre elas, algumas notaes tinham mesmo um formato de rascunho, provavelmente apenas para ajudar o msico a lembrar algo que ele j havia decorado. (BOUDASZ, 2001, p. 2)No ambiente acadmico, para o aprimoramento da prtica interpretativa na viola, lana-se mo do repertrio de instrumentos ancestrais da viola caipira (guitarra barroca, alade, vihuela), transcries, e tambm arranjos e composies originais contemporneas. No entanto, apesar desse instrumento ser cada vez mais reconhecido na academia e vir recuperando espao no ambiente urbano - praticando msica sem o estigma e qualquer obrigatoriedade de fazer referncia ao caipira e ampliando as possibilidades tcnicas e sonoras da viola - ainda h certa dificuldade em notar a msica, pois no h uma conveno ou formalizao de smbolos que possibilitem ao intrprete uma leitura clara da obra, melhor orientado por uma notao simples e concisa, sem adio de tablaturas (que ocupam muito espao na pgina) ou utilizando apenas a tablatura, dependendo do repertrio, com as indicaes apropriadas.No presente trabalho apresentam-se alguns tipos de notaes utilizadas pela viola caipira, desde as tablaturas barrocas at a notao convencional, com as experimentaes de escrita por compositores no esforo de transmitirem suas intenes musicais.

3. DIVERSOS TIPOS DE NOTAO

Notao musical uma analogia visual do som musical, servindo tanto para registrar sons ouvidos ou imaginados quanto como uma srie de indicaes e instrues para o intrprete. A notao musical para alade, vihuela e guitarra, encontrada nas fontes primrias do perodo entre os sculos XV e XVII, tinha a mesma forma como resultado do entendimento dos msicos sobre esses instrumentos de cordas dedilhadas. No tratado sobre tcnica de tavolatura, publicado em Npoles no ano de 1559 por Bartholomeu Lieto Panhormitano, no havia diferena plausvel entre os (...) instrumentos em questo. (TYLER, 1980, p. 24 apud NOGUEIRA, 2009, p. 87) As msicas eram escritas, portanto, em tablaturas ou alfabeto musical para instrumentos cordofones. (NOGUEIRA, 2009, p. 86)A tablatura para guitarra, alade ou viola, consiste em um sistema de notao convencional, escrito sobre uma pauta de tantas linhas horizontais quantas ordens de cordas contm o instrumento e sobre os quais se indicam por meio de nmeros ou letras, os trastos em que devero pressionar-se as cordas para obter as notas. As figuras de valores rtmicos colocadas acima da pauta representam a durao de cada nota ou acorde escrito abaixo delas; considerando como regra geral, que o valor assinalado para um acorde ou nota, dever prevalecer, enquanto no aparea outra figura acima da pauta. Segundo a poca ou o instrumento, pas, gnero de msica (rasgada ou ponteada) e autor, varia a tablatura. (PUJOL, 2005, p. 59 apud CORRA, 2014, p. 139)

At o sculo XVIII foi utilizada a tablatura para instrumentos como a guitarra, alade e viola de arame, quando a notao convencional passou a representar a msica para essa famlia de cordas. Uma explicao para essa mudana pode ser porque alguns desses instrumentos passaram a ser considerados antigos e de pouco uso enquanto que em outros instrumentos que ainda faziam uso de tablatura, tais como o alade e a guitarra classica (conhecida no Brasil pelo nome violo), a leitura na notao convencional seria mais cmoda. A tablatura serviria muito bem, contudo, para as primeiras lies de principiantes. (CORRA, 2014, p. 140) A tablatura permite uma aproximao mais direta no que concerne representao da msica, pois no demanda ao intrprete a tarefa de ter que decifrar onde esto as notas na escala (espelho ou trasteira) do instrumento e indica exatamente onde as notas devem ser pressionadas pelos dedos da mo esquerda e qual a digitao a ser utilizada.

3.1 Leitura da Tablatura

Saber ler a tablatura de grande importncia para o intrprete que deseja reproduzir o repertrio do perodo barroco, ou anterior, pois possibilita um melhor entendimento de como a pea deveria soar. A tablatura torna possvel a leitura da msica original, sem alteraes de transcries, e acesso a um vasto repertrio que ainda no foi transcrito para a notao convencional.Mas apesar disso, a tablatura transcrita tambm tem benefcios. Frank Koonce (2006, p. 7) lista trs:

1) Transcriptions facilitate the playing of music on instruments other than those for which it was written. 2) Modern notation enables performers to see functional aspects of the music such as pitch relationships, voicing, and harmonic structures. 3) Modern notation also provides an introduction to the performance of early music for those not yet accustomed to reading tablature. [footnoteRef:5] [5: 1) Transcries possibilitam tocar a msica em outros instrumentos alm daqueles para os quais foi escrita. 2) Notao moderna possibilita aos intrpretes verem os aspectos funcionais da msica tais como relaes intervalares, conduo das vozes e estruturas harmnicas. 3) Notao moderna fornece tambm uma introduo prtica de msica ancestral para aqueles que ainda no esto acostumados a ler a tablatura. (Traduo do autor) ]

A guitarra barroca, assim como a viola de arame e o alade, tinha a afinao bastante diversificada, que s foi estabelecida da maneira como conhecemos hoje na segunda metade do sculo XIX posteriormente ao desenvolvimento da guitarra clssica (violo) e popularizao do encordoamento simples. (NOGUEIRA, 2009, p. 146-151) Para tocar o repertrio da guitarra barroca na viola caipira deve-se afinar a viola do mesmo modo que era afinada a guitarra, do quinto para o primeiro par (sentido da gravidade): l, r, sol, si, mi. Outras obras, composies contemporneas e transcries, so escritas para serem tocadas nas mais diversas afinaes, aproveitando o que o universo rural forjou, e utilizando tambm a afinao da guitarra, conhecida pelos violeiros de diversas regies do Brasil como afinao natural, oitavada, comum, paulista ou paraguau. Essas diversas afinaes foram desenvolvidas em funo da execuo. (CORRA, 2002)No entanto, a atual prtica do repertrio de guitarra barroca na viola caipira emprega apenas a afinao natural, para a qual est escrito um vasto repertrio, valendo-se das tablaturas disponveis.

3.1.1 Tablatura italiana

Compositores italianos e franceses utilizavam a tablatura italiana. O conjunto de cinco linhas representa as cinco ordens do instrumento, e os nmeros dispostos nas linhas representam os trastes (ou as casas) no brao do instrumento em que os dedos devem posicionar-se. As linhas, de cima para baixo, representam do quinto ao primeiro par. Ao ler a tablatura italiana como se a notao fosse o reflexo do instrumento em posio de tocar.

Exemplo de notao 1 Tablatura italiana. (TYLER, 2002, p. 165)

O nmero 0 representa cordas soltas; 1, a primeira casa; 2, a segunda casa, e assim por diante. O numeral X representa a dcima casa e adota-se o algarismo romano ao invs do arbico para evitar confuses, como se 1 0, dependendo da caligrafia, sugerisse serem duas notas. Alguns compositores guitarristas indicam tambm a digitao de mo esquerda com pontos ao lado dos nmeros. A quantidade de pontos, de um a quatro, representa os dedos. Santiago de Murcia um exemplo de compositor intrprete que escrevia fazendo uso desses recursos.

Exemplo de notao 2 Trecho de Fandango, para guitarra barroca, de Santiago de Murcia, 1732. (KOONCE, 2006, p. 147)

As indicaes do ritmo da melodia so dispostas acima do sistema de linhas, sobre determinados nmeros. A durao de cada nota ou acorde varia de acordo com o tempo que possvel segurar as notas com a mo esquerda e assume-se que o baixo deve ser segurado o maior tempo possvel ou aceitvel. Quando uma figura rtmica aparece, seu valor de durao para cada nmero na tablatura permanece at que outra figura rtmica aparea. (TYLER, 2002, p. 165)

Exemplo de notao 3 Tablatura italiana com a indicao rtmica. (TYLER, 2002, p. 165)

3.1.2 Tablatura francesa

A tablatura francesa foi um dos estilos de tablatura mais utilizados, nos sculos XVI e XVII, para guitarras e alades na Europa ocidental. (NOGUEIRA, 2009, p. 99) muito parecida com a italiana, mas com duas distines. As linhas, ainda que continuem representando as cordas do instrumento, no sistema francs tem a ordem invertida, sendo que a linha superior da pauta representa o primeiro par do instrumento e a linha inferior, o quinto par (o que est mais distante do cho). E, ao invs de nmeros, so utilizadas letras para indicar os trastes. A letra a representa as cordas soltas; b a primeira casa; c a segunda casa e assim por diante. A letra j no era utilizada.

Exemplo de notao 4 Tablatura francesa. (TYLER, 2002, p. 166)

A indicao rtmica e valores de durao funcionam do mesmo modo que na tablatura italiana, alguns compositores escrevendo integralmente o ritmo.

Exemplo de notao 5 Tablatura francesa com a indicao rtmica. (TYLER, 2002, p. 167)

3.1.3 Tablatura espanhola

A tablatura espanhola uma mescla das tablaturas italiana e francesa. Utiliza nmeros para representar os trastes, mas com a mesma direo vertical da tablatura francesa. Esse o tipo de tablatura mais utilizado para acompanhar a notao convencional de msica para viola caipira e em aulas para iniciantes.

3.2 A Notao Utilizada Por Compositores Instrumentistas (Violeiros)

Os violeiros que escrevem sua msica tambm no esto em consenso a respeito de como escrevem sua msica. Roberto Correa e Fernando Deghi adotam a notao convencional, como a utilizada para o violo, acompanhada da tablatura espanhola. Na notao convencional, o terceiro, quarto e quinto pares so representados pela oitava mais grave. Na tablatura, cada par de linhas representa uma ordem no instrumento. As partituras geralmente vm com indicao de qual afinao deve ser utilizada.

Exemplo de notao 6 Trecho de estudo para viola caipira, de Roberto Corra. (CORRA, 2002, p. 220)

Exemplo de notao 7 Trecho de No Mexe Comigo, para viola caipira, de Fernando Deghi. (DEGHI, 2001)

O violeiro Braz da Viola, em seu livro Um Toque de Viola, faz uso da tablatura italiana, porm sem as indicaes rtmicas. Para isso, acompanha o livro um CD com o udio das peas escritas, para complementar a leitura da tablatura.Algumas peas tambm esto disponveis na internet, em site prprio, inclusive com o udio.

Exemplo de notao 8 Trecho de Trama, para viola caipira, de Braz da Viola. (retirado da internet: , acessado em 10 set. 2014)

Ruy Torneze, violeiro, compositor e ex-professor de viola caipira da Escola de Msica do Estado de So Paulo (Emesp Tom Jobim), por sua vez, utiliza o sistema de notao convencional, acompanhado, ou no, da tablatura espanhola. Em seu livro Viola Caipira Instrumental: 42 estudos progressivos, a maioria dos estudos vem escrita apenas em notao convencional. Somente a partir dos estudos mais difceis que a notao convencional vem acompanhada da tablatura. Torneze justifica a utilizao da tablatura explicando que esta ser um auxlio principalmente no tocante regio mais apropriada a se produzirem as notas. (TORNEZE, 2011, p.39)

3.3 A Notao Utilizada Por Compositores Com Produo Variada Que No Tocam o Instrumento

Temos ainda alguns compositores que, ao explorar a sonoridade da viola caipira e mesmo sem saber tocar o instrumento, experimentam e sugerem maneiras de notar a msica para a viola ao escreverem suas obras.Corra (2014, p. 141) indica o incio dessas experincias com a notao:

Em 1962, o compositor Ascendino Theodoro Nogueira inaugurou a escrita musical para a viola caipira com uma notao prpria, utilizando-se das claves de Sol e de F. Escolheu para suas composies a afinao Natural (...) com o terceiro par afinado em unssono.

A clave de F destinava-se aos pares com bordes, que seriam os pares oitavados. As notas oitavadas dos bordes so representadas em tamanho menor.

Exemplo de notao 9 Trecho de Preldio 5, para viola de arame, de Ascendino Theodoro Nogueira, 1962. (CORRA, 2014)Outros compositores, desconhecendo a tcnica desenvolvida por Theodoro Nogueira adotaram a notao convencional, na clave de Sol, como se fosse o violo, sem as notas dobradas escritas na pauta. Algumas vantagens foram constatadas, pois a notao seria a mesma, com a viola tendo ordens simples, duplas ou triplas, tendo as indicaes no cabealho da partitura de quais seriam essas ordens, se seriam unssonas ou oitavadas e qual a afinao utilizada. E no caso do compositor optar apenas pelo bordo sem a oitava ele pode elucidar com anotaes especficas como indicaes de que deve ser tocada apenas uma corda ou o par, procedimento adotado por Jorge Antunes, Maurcio Dottori e Jos Gustavo Julio de Camargo. (CORRA, 2014, p. 142-144)

Exemplo de notao 10 Trecho de Vago e florido firmamento de notas para viola de arame, de Maurcio Dottori, 2007. (CORRA, 2014) Jorge Antunes indica com anotaes especficas que devem ser tocadas apenas as notas do bordo sem a oitava. Jos Gustavo Julio de Camargo tambm utiliza esse recurso no Concerto para viola caipira e orquestra (2009). (CORRA, 2014, p. 143, 144)

Exemplo de notao 11 Trecho de Preludio em Mi, para viola caipira, de Jorge Antunes, 1984. (CORRA, 2014)

3.4 A Notao Utilizada Por Compositores Com Produo Variada Que Tocam o Instrumento

Entre os compositores que escrevem para diversos instrumentos e formaes e que, ainda, tocam a viola caipira temos Jos Gustavo Julio de Camargo e Roberto Victorio como exemplos. Em seus estudos e tentativas para aprimorar a tcnica da notao musical da viola, Julio de Camargo, para representar na pauta a sonoridade desejada no instrumento e em quais ordens localizar as notas, utilizou-se de um recurso similar ao de Theodoro Nogueira, mesmo sem o conhecimento prvio desse modo de escrita musical para a viola. Ele faz uso de um sistema com duas pautas, ambas em clave de Sol, sendo a pauta inferior do sistema dedicada ao terceiro, quarto e quinto pares. No caso dessas ordens as notas que no devem ser destacadas ao tocar esto representadas em tamanho menor.

Exemplo de notao 12 Trecho de estudo, para viola de arame, de Jos Gustavo Julio de Camargo, 2012.

Roberto Victorio, como a maioria dos compositores, faz uso da notao convencional escrevendo como se a viola fosse um violo de cinco cordas. Suas obras esto disponveis em fac simile do manuscrito original na internet em site prprio e so escritas sem quaisquer indicaes, tanto sobre quais pares devem ser utilizados para tocar determinadas notas, quanto digitaes, ainda que, em alguns trechos da pea, seja possvel observar a utilizao dos recursos da afinao reentrante para tocar notas agudas no terceiro, quarto e quinto pares.

Exemplo de notao 13 Trecho de Preldio XIX, para viola caipira, de Roberto Victrio. (retirado da internet: , acessado em 10 set. 2014)

4. CONCLUSO

As questes sonoras da viola caipira e a maneira de represent-las fielmente em notao musical so dilemas que acompanham a histria desse instrumento desde sua ancestralidade. Essa compilao de uma diversidade de recursos de escrita poder servir como consulta para aqueles que se interessam pelo assunto, tanto intrpretes quanto compositores, ao disponibilizar variados recursos e solues que alguns compositores e professores encontraram para notar sua msica. Compreende-se que ainda no h consenso sobre como escrever para esse instrumento. Msicos envolvidos com a tradio caipira, como Roberto Corra, Rui Torneze e Fernando Deghi, fazem uso da notao convencional acompanhada da tablatura espanhola, o que torna a leitura bastante clara sobre onde localizar as notas, principalmente para aqueles que no esto familiarizados com a partitura, porm ocupa demasiado espao na folha. Outros compositores, desvinculados da tradio rural e que escrevem para a viola caipira buscando explorar suas possibilidades e recursos e que no utilizam a tablatura, inventam, inovam e sugerem meios para que a escrita seja o menos ambgua possvel, mas cada um a seu modo, no aproveitando o que j foi desenvolvido, por desconhecimento ou mesmo na tentativa de buscar mais clareza na comunicao com o intrprete. Enquanto que h tambm compositores que escrevem em notao convencional, sem o apoio da tablatura e tambm sem outras indicaes sobre onde localizar determinadas notas, dificultando a leitura da pea, demandando mais tempo do intrprete para resolver as questes sonoras e tcnicas da msica.No est no escopo deste trabalho sugerir alternativas ou solues, mas sim demonstrar que muita coisa j foi desenvolvida sobre o assunto e que ainda h lacunas a serem preenchidas no intuito de melhorar a comunicao do compositor com o intrprete a respeito da reproduo, sobre como tocar e extrair os sons do instrumento de maneira que a pea soe o mais similar possvel com a ideia original de quem escreveu.Conclui-se ainda que h muito a ser explorado sobre a viola caipira, no s no que diz respeito notao mas tambm na sonoridade, tcnicas interpretativas e na mecnica desse instrumento, principalmente com o trabalho conjunto entre compositor e intrprete.

REFERNCIAS BIBLIOGRAFICAS

ALMEIDA, Jos Alfredo Ferreira. A viola de arame no Aores. 2. ed. Ponta Delgada: Publior, 2010. 238p.

BUDASZ, Rogrio. The five-course guitar (viola) in Portugal and Brazil in the late seventeenth and early eighteenth centuries. Los Angeles, 2001. 185p. Dissertao (Doutorado em Filosofia) - Faculty Of The Graduate School University of Southern California, Los Angeles, 2001. [Orientador: Prof. Bruce Alan Brown].

CORRA, Roberto Nunes. A arte de pontear viola. 2. ed. Braslia: Viola Corra, 2002. 259p.

______. Viola caipira: das prticas populares escritura da arte. So Paulo, 2014. 283p. Dissertao (Doutorado em Musicologia) Universidade de So Paulo, So Paulo, 2014. [Orientador: Prof. Dr. Rubens Russomano Ricciardi].

DEGHI, Fernando. Viola brasileira e suas possibilidades. So Bernardo do Campo: Violeiro Andante, 2001. 168p.

KOONCE, Frank. The baroque guitar in Spain and the New World. Pacific: Mel Bay Publications, 2006. 170p.

NOGUEIRA, Gisela Gomes Pupo. A viola com anima: uma construo simblica. So Paulo, 2008. 241p. Dissertao (Doutorado em Concentrao: Interfaces Sociais da Comunicao) Universidade de So Paulo, So Paulo, 2008. [Orientador: Prof. Dr. Waldenyr Caldas].

TORNEZE, Rui. Viola caipira instrumental: 42 estudos progressivos. So Paulo: Irmos Vitale, 2011. 48p.

TYLER, James. A guide to play the baroque guitar. Bloomington: Indiana University Press, 2011. 160p.

TYLER, James; SPARKS, Paul. The guitar and its music: from Renaissance to the Classical era. New York: Oxford University Press, 2007. 322p.