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AS POSSÍVEIS LEITURAS EM CONTOS LITERÁRIOS

Autor: Rita de Cássia Lechinhoski Camilo de Souza1

Orientador: Ubirajara Inácio de Araújo2

Resumo

Incentivar os jovens a ler e a se expressar de maneira que tenham competência para interpretar qualquer mensagem em língua portuguesa é o grande desafio para os professores. Nesse sentido, pretendeu-se com o presente estudo observar as possíveis leituras nos contos, incentivando a leitura literária, buscando os sentidos explícitos e implícitos nas obras machadianas. Além disso, pretendeu-se contribuir para a valorização da leitura como elemento eficaz na formação do leitor/cidadão crítico, sendo ela fundamental para que o sujeito tenha a capacidade de pensar na sua consciência cidadã. A metodologia utilizada consistiu na leitura e análise de contos machadianos. A implementação foi direcionada aos alunos da 2.ª Série do Ensino Médio do Colégio Estadual “São José” da Lapa.

Palavras-chave: 1. Literatura; 2. Contos; 3. Machado de Assis

1 Especialização em Magistério de 1° e 2° Graus com concentração em Metodologia do Ensino

pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Curitiba. Licenciada em Letras (UNC-Mafra SC).

Professora no Colégio Estadual da Lapa - PR. 2 Mestre e Doutor em Semiótica e Linguística Geral pela Universidade de São Paulo (USP).

Professor de Metodologia e Prática de Ensino de Língua Portuguesa do Setor de Educação da

Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Introdução

O Projeto de Pesquisa “As possíveis leituras nos contos literários” teve por

tema o desenvolvimento da capacidade leitora dos alunos por meio da

linguagem literária analisada em contos de Machado de Assis. Seu principal

objetivo foi o de incentivar a leitura literária, buscando os sentidos explícitos e

implícitos. E, além disso, objetivou-se, também, priorizar a leitura desse gênero

dando sentido e vida ao texto literário, aproximar a literatura do universo do

aluno e ampliar e enriquecer o repertório de leitura.

A escolha da temática decorreu do fato de o mundo exigir pessoas com

reflexões éticas e pensamentos críticos. A adolescência representa o período

mais complexo da vida do ser humano, no qual o jovem deve consolidar uma

ampla base de conhecimentos científicos e culturais, além de equacionar a

difícil opção por uma futura carreira profissional. Diante dele, encontra-se uma

sociedade que orienta ao individualismo e ao consumismo.

Incentivar os jovens a ler e a se expressar de maneira que tenham

competência para interpretar qualquer mensagem na língua portuguesa, ou

seja, preparando-os para essa sociedade, é o grande desafio para os

professores. Não se formam bons leitores, se eles não têm um contato íntimo

com os textos. Candido (1972) afirma que a literatura tem um papel

fundamental na formação do leitor, porque ela é encarada como a arte que

transforma/humaniza o homem e a sociedade. Assim, a literatura revela quem

somos e como somos, podendo ser considerada uma atividade de extrema

importância para o ser humano no seu processo de autoconhecimento e de

conhecimento do mundo que o circunda, trabalhando com os sentidos

cristalizados e com a ruptura.

Pretendeu-se, com o presente estudo, observar as possíveis leituras nos

contos literários e também desconstruir o pensamento de que a leitura desse

gênero é complexa. Nos contos, o leitor tem a possibilidade de entrar em

contato com histórias curtas que são frequentemente verdadeiras obras-

primas. Nessas histórias, a arte mostra-se na sua máxima perfeição. Este

trabalho visou, também, contribuir para a valorização da leitura como elemento

eficaz na formação do leitor/cidadão crítico, sendo ela fundamental para que o

sujeito tenha capacidade de pensar na sua consciência cidadã. Para isso, a

metodologia utilizada consistiu em debates, visitações a locais públicos,

pesquisas, exposição, leitura, apreciação, análise e discussão de contos de

Machado de Assis. A escolha pelo referido autor deveu-se ao fato de sua

biografia ser um exemplo de superação a ser seguido e também devido ao

interesse e a curiosidade que desperta nos leitores por sua originalidade,

espetacular domínio da narrativa e temas atuais.

A questão da leitura literária colocou-se, então, na necessidade de

transformar alunos desmotivados, muitas vezes sem uma educação reflexiva,

em leitores efetivos que buscassem significações no que liam, de modo que os

textos desencadeassem a mobilização e os alunos se vissem como sujeitos

históricos. Como afirma Candido (1972), a literatura é um fenômeno da

civilização e depende de outros fatores sociais para se caracterizar e constituir.

Sendo assim, é de extrema importância para pais e educadores discutirem o

que é leitura, a importância do hábito de ler e do livro no processo de formação

do leitor, bem como o ensino da literatura como processo para o

desenvolvimento do leitor crítico, já que ela é expressão legítima da cultura de

um povo.

Saber ler significa um mundo de oportunidades. Diante dessa afirmação,

os professores precisam repensar o ensino da leitura na escola, para que a

sala de aula se torne um lugar realmente de contato com os textos, formando

bons leitores, participantes e críticos no mundo, de forma que possam tentar

intervir positivamente na dinâmica social.

A literatura e a escola

“Modernamente, o único reduto onde a leitura ainda tem a chance de ser desenvolvida é a escola.”

Ezequiel Theodoro da Silva

O ensino da Literatura exige que se pensem as contradições, as

diferenças e os paradoxos do quadro complexo do mundo contemporâneo.

Embora vivamos em uma época que possibilita acesso rápido às informações,

convivemos com o índice crescente de analfabetismo funcional, o aluno não

compreende o texto que lê, muitas vezes devido ao desinteresse pela leitura

em geral e ao fato de não vislumbrar o verdadeiro alcance e a importância

social da leitura, deixando de entender que ela pode ser uma fonte de

informação e de conhecimento. Ela possibilita o acesso às informações

necessárias para o cotidiano e aos mundos criados pela literatura. Nesse

sentido, Wellek e Warren (1995, p.117) afirmam que “a literatura representa a

vida e a vida é, em larga medida, uma realidade social”. Dessa maneira, a

literatura traz consigo um imenso potencial revolucionário e de transformação,

pois dá acesso ao leitor à conscientização de sua situação social, uma vez que

mostra os mecanismos de superioridade e opressão que atingem as

personagens em um conto, por exemplo.

É preciso que a escola seja um espaço que promova, por meio de textos

com diferentes funções sociais, o letramento do aluno, para que ele se envolva

nas práticas de uso da língua.

Nas Diretrizes Curriculares da Educação Básica do Paraná, destaca-se

que o letramento vai além da alfabetização. Soares (1998) refere-se ao

indivíduo que não só sabe ler e escrever, mas usa socialmente a leitura e a

escrita, pratica a leitura e a escrita, posiciona-se e interage com as exigências

da sociedade diante das práticas de linguagem, demarcando a sua voz no

contexto social. Essas habilidades são importantes para que o sujeito tenha

participação efetiva na sociedade, torne-se uma pessoa capaz de resolver seus

problemas com maior facilidade.

O professor de Língua Portuguesa precisa, então, propiciar ao educando

a prática, a discussão, a leitura de textos diversos, assim ele terá mais

possibilidades de entender o texto, seus sentidos, suas intenções e visões de

mundo. A ação pedagógica referente à linguagem, portanto, precisa pautar-se

na interlocução, em atividades planejadas, contextualizadas e significativas que

possibilitem ao aluno a leitura, bem como a reflexão e o uso da linguagem em

diferentes situações de comunicação.

Como produção humana, a literatura está intrinsecamente ligada à vida

social. Para Candido (1972), ela tem três funções: a psicológica, a formadora e

a social. A primeira, função psicológica, atribui ao homem a fuga do real,

quando passa do estado de consciência para a inconsciência, ou seja, sai da

realidade e passa para o mundo da fantasia, onde prevalece a irrealidade,

possibilitando-lhe momentos de reflexão, reconhecimento e purificação. Na

segunda, afirma que a literatura por si só faz parte da formação do homem, a

qual age como instrumento do conhecimento, ao mostrar realidades não

retratadas pela ideologia dominadora. Por sua vez, a função social traduz-se no

modo como a literatura expõe os diferentes segmentos sociais, sendo a

representação social e humana.

O homem, desde a antiguidade, tenta expressar-se por palavras de

maneira a ultrapassar sua realidade, produzindo narrativas e heróis. Assim, o

trabalho com contos favorece o retrato da realidade de maneira direta, o sujeito

se reconhece na história, mesmo fazendo parte de outro contexto, uma vez que

a leitura de uma história ficcional implica um pacto de leitura em que o leitor

aceita a verossimilhança constitutiva de textos dessa natureza. Ele cria

possibilidades e automaticamente reflete sobre suas ações e seu mundo, por

meio da fantasia.

Para Sigmund Freud, o pai da psicanálise, a leitura de um texto literário

faz despertar no leitor uma “constelação mental”, ele deposita no texto uma

elevada carga de emoção, quando ativa sua capacidade de pensar. Para o

psicanalista, o escritor, da mesma forma que uma criança brincando, cria

mundos, altera a percepção da realidade, tornando-a intensa através da

imaginação.

Já na versão de Karl Marx, teórico que fundamentou o chamado

materialismo histórico, a literatura estabelece com a realidade social envolvida

uma relação dialética: de um lado essa relação é comercial, isto é, a literatura

tornou-se, com o passar dos anos, mais um produto a ser consumido, de

acordo com as regras do mercado; por outro lado, a literatura traz consigo um

potencial revolucionário enorme e transformador, pois faz com que o sujeito

tenha plena consciência de sua situação social, uma vez que mostra o

processo de funcionamento do exercício exagerado de poder e força que

atingem os personagens de um conto, por exemplo.

A literatura tem cumprido diversas funções ao longo da história.

Destacam-se, entre elas, a função de registrar a realidade, as transformações

pelas quais passam as sociedades. Em sua modalidade escrita, o texto literário

também já foi um divisor de classes, de um lado uma elite culta e letrada, de

outro uma parte da população que não tinha acesso à escrita. Hoje, a literatura

está ao alcance de todas as classes sociais, principalmente depois de ter

entrado nos ambientes virtuais.

Ler é inteirar-se com uma diversidade de textos produzidos em diferentes

esferas sociais. A concepção de educação defendida por Bordini e Aguiar

(1993) está ligada à noção de transformação sociocultural, que só se manifesta

por meio de um ensino voltado para a realidade do aluno e que tem como

objetivo uma postura crítica ante o mundo e a práxis social. Toda atividade

literária deve, em consequência dessas premissas, resultar em um fazer

transformador: em uma leitura em que o aluno descobre sentidos e reelabora

aquilo que ele é e o que pode ser.

As autoras afirmam que a teoria da estética da recepção estuda a reflexão

sobre as relações entre narrador-texto-leitor. Veem a obra como um objeto

verbal esquemático a ser preenchido pela atividade da leitura, que se realiza

sempre a partir de um horizonte de expectativas. A obra literária é avaliada por

meio de descrição de componentes internos e dos aspectos vazios a serem

preenchidos pelo leitor. A obra é tanto mais valiosa quanto mais emancipatória.

As autoras estabelecem as etapas do método recepcional, que seriam:

1) determinação do horizonte de expectativas;

2) atendimento do horizonte de expectativas;

3) ruptura do horizonte de expectativas;

4) questionamentos do horizonte de expectativas;

5) ampliação do horizonte de expectativas.

O estudo da literatura, nessa perspectiva, implica um caráter

transformador, não se reduz a ela mesma como universo fechado ao contexto

sociohistórico, não termina no texto. O leitor assume um comportamento,

dialoga com o texto e interage de acordo com o seu cabedal de conhecimento

de mundo e de interesses.

O processo de recepção textual, portanto, necessita que o leitor participe

ativa e criativamente da leitura da obra, sem perder sua autonomia. O trabalho

com contos literários auxiliará nessa participação, por serem narrativas curtas,

objetivas, cujas soluções dos conflitos aparecem perto de seus desfechos,

geralmente surpreendendo o leitor, o qual começa a pensar no conhecimento

como uma forma para entender melhor a realidade e fazer uma reflexão sobre

ela.

Wolfgang Iser mostra A Teoria do Efeito, a qual demonstra o resultado

estético da obra literária no leitor durante a recepção. No seu estudo, Iser

trabalha com os conceitos de “leitor implícito”, “estrutura de apelo” e “vazios do

texto”. Para o autor (1996, p.73), “... a concepção de leitor implícito designa […]

uma estrutura do texto que antecipa a presença do receptor”. Sendo assim, ao

escrever ocorre uma previsão, por parte do autor, de quem será seu

interlocutor, o sujeito que dará vida/sentido ao seu texto. Nem sempre o leitor

será real, trata-se de um leitor ideal. Nessa direção, nos contos machadianos,

por exemplo, os narradores estão sempre se dirigindo ao leitor, seja para

elogiá-lo ou para criticar seus hábitos e costumes, o autor prevê

antecipadamente as características de seu interlocutor.

O texto literário permite inúmeras interpretações, uma vez que é na

recepção que ele significa. Porém, não servirá qualquer interpretação. O texto

traz lacunas, vazios, que serão preenchidos de acordo com o conhecimento

que o leitor carrega consigo, ou seja, as experiências de vida, as ideologias, as

crenças, os valores, o conhecimento de mundo, entre outras. Vale lembrar

ainda que o texto é cheio de pistas, estruturas de apelo, as quais direcionam o

leitor, orientando-o para uma leitura coerente. Nesse sentido, um bom conto, de

uma forma ou de outra, leva o leitor a fazer uma reflexão sobre si mesmo e

sobre o mundo atual.

Enfim, a literatura pode ser vista como uma atividade de extrema

importância para o homem, pois, por meio da leitura de uma obra, é possível

fazer uma reflexão sobre quem somos e como somos, às vezes nos

reconhecemos nos textos artísticos, mudamos comportamentos,

compreendemos a realidade de maneira lúdica, amenizamos obstáculos

cotidianos, o mundo atual confunde-se com a ficção de maneira prazerosa.

Observando o comportamento dos personagens refletimos sobre os nossos.

As possíveis leituras em contos literários

Geralmente, a Literatura é bastante diversificada e enriquecedora. Assim,

com a finalidade de abrilhantar e definir os caminhos da presente pesquisa,

escolheu-se um dos grandes escritores da Literatura Brasileira: Joaquim Maria

Machado de Assis. A escolha deveu-se a vários motivos: o fato de sua biografia

ser um exemplo de superação a ser seguido; o interesse e a curiosidade que

desperta nos leitores, devido à originalidade e o espetacular domínio da

narrativa; a importância de sua produção, que provoca estudos, análises e

interpretações; o uso do humor corrosivo, muitas vezes presente em suas

obras; enfim, também pelo contexto histórico vivido por Machado de Assis,

naquela época valorizava-se o poder supremo do dinheiro, o culto à imagem e

a exploração do fraco, problemas esses que o autor soube criticar com

maestria.

Para desenvolver o estudo, elaborou- se uma Unidade Didática cujas

atividades relacionaram-se ao ensino e aprendizagem de leitura para os alunos

do Ensino Médio, fundamentadas nas possíveis leituras dos contos “Apólogo”,

“Ideias do Canário” e “Flor Anônima”, todas obras machadianas. Além dos

objetivos citados na Introdução desse artigo, objetivou-se, também, não perder

de vista a dimensão do texto literário como produção artística e cultural, o que

implicou procedimentos de interpretação que valorizassem adequadamente

sua especificidade, já que os textos literários se dão à fruição estética.

Foi escolhido trabalhar com contos em sala de aula por ser uma

alternativa que auxilia a prática da leitura, visto que são textos curtos, de fácil

acesso, compatíveis com a realidade financeira da escola, são significativos e,

devido à sua extensão, não intimidam o leitor, mesmo os contos machadianos

utilizados no estudo.

A Unidade Didática procurou auxiliar os professores de Língua Portuguesa

na difícil tarefa de incentivar a leitura no Ensino Médio, bem como aproximar o

leitor jovem dos textos machadianos, muitas vezes tidos como difíceis e

inatingíveis.

As atividades elaboradas na Unidade Didática tiveram o seguinte roteiro:

O professor instigou os alunos, em conversa informal, sobre a relação existente

entre leitura e vida, levando-os a refletirem a respeito de seu mundo e de

outras pessoas a seu redor, as histórias reais que acontecem na sociedade,

que muitas vezes parecem ter saído de um livro, haja vista tamanha

originalidade. Deixei comentarem suas experiências. Algumas questões foram

abordadas, tais como:

a) Qual a importância da leitura em sua vida?

b) Você sabia que, enquanto Machado de Assis, um mestre da literatura,

escrevia sua obra no século XIX, descobriu-se que mais de 80% dos brasileiros

não sabiam ler nem escrever?

c) Atualmente, essa situação mudou? Como?

d) Você conhece alguém não alfabetizado? Como é o cotidiano dessa

pessoa?

e) A leitura consegue transformar a vida das pessoas e contribui para a

formação integral do sujeito?

f) Você acredita que bons leitores têm a chance de escrever bem?

g) Você já leu ou ouviu alguma história que poderia ter acontecido na vida

real?

Feitas as discussões sobre leitura e vida, o próximo passo foi levá-los à

biblioteca da escola, a fim de inteirarem-se com o ambiente, visto que a maioria

não costumava frequentá-lo. Pedi a eles que observassem, manuseassem os

livros, tirassem suas dúvidas com a bibliotecária sobre empréstimos, horário de

atendimento, acervo, público frequentador, entre outras. A seguir, levei-os à

Biblioteca Pública, seguindo o mesmo roteiro anterior, para que tivessem

conhecimento de que a leitura pode ser feita não somente na escola, que

existe um espaço público extraescolar para toda a comunidade usufruir.

Vale ressaltar que nem todos os alunos costumavam frequentar

bibliotecas e os que o fizeram sentiram satisfação em compartilhar com os

colegas as suas preferências.

Ao terminar a visita cultural, o próximo momento foi recordar as

características do conto, sinalizando a unidade de ação e a brevidade do

enredo, que logo se encaminha para o clímax e o desenlace. Fez-se

necessário, também, lembrá-los de que existem histórias verídicas e histórias

criadas pela nossa imaginação, ou seja, histórias fictícias, as narrativas de

ficção. Chamadas assim, porque as narrativas imaginadas são admissíveis,

verossímeis, não aconteceram, mas poderiam ter acontecido. Uma história

possível nos conta sobre o mundo. Mesmo criadas pela imaginação, nos falam

muitas coisas sobre nosso cotidiano.

A ficção transpõe a realidade para o plano da imaginação. Vemos o

mundo e nós mesmos por meio da história, ampliamos a nossa capacidade de

percepção da realidade e de dar sentidos ao mundo, transformamos a nossa

vida, nos enxergamos no lugar do personagem e também refletimos a respeito

da época em que foi escrito o texto, o modo de pensar das pessoas, os

costumes. Por meio das atitudes dos personagens repensamos as nossas

atitudes.

Discorri a respeito de Machado de Assis, sua vida, sua condição de

mulato em uma época de escravidão, o interesse, a curiosidade despertada

nos leitores, devido à originalidade e ao espetacular domínio sobre a narrativa.

Ressaltei a importância de sua produção a qual provoca estudos, análises e

interpretações. Sinalizei, também, o uso do humor corrosivo, muitas vezes

presente em suas obras. Nelas, o autor costuma dirigir-se ao leitor, às vezes

para agradar-lhe ou criticá-lo. Lembrei-os do contexto histórico vivido por

Machado de Assis, naquela época valorizava-se o poder supremo do dinheiro,

o culto à imagem e a exploração do fraco, problemas esses que o autor soube

criticar como ninguém.

Segundo o Professor Domício Proença Filho, em entrevista à Revista Na

ponta do lápis, os contos e romances machadianos têm como temática a luta

entre o absoluto e o relativo, o jogo da verdade e da mentira, o amor, a morte, o

ciúme, a cobiça, a vaidade, a ligação entre o ser e o parecer, a ditadura da

aparência, entre outros. Como se percebe, os temas citados continuam

bastante atuais, em especial, o jogo de poder das relações humanas, a

máscara social e a ditadura da aparência sofrida pelos adolescentes

contemporâneos nos diversos segmentos da sociedade. Também foram

lembradas as características do Realismo, nesse momento.

Na sequência, sugeri aos alunos uma pesquisa sobre a vida cotidiana no

Brasil do século XIX. Pedi para levarem gravuras sobre a vestimenta, os

hábitos, meios de transporte, entre outros. Depois de recolhido o material,

fizemos uma exposição a respeito da época em que viveu o escritor, visando à

aproximação do mundo do escritor com o do aluno.

O próximo procedimento foi reunir os alunos, em grupos de três ou quatro

componentes, e entregar uma cópia xerocopiada do conto “Flor Anônima” de

Machado de Assis para que fizessem a leitura juntamente com o professor.

Seguiu-se o roteiro:

1) Depois de feita a leitura, mediada pelo professor, fiz comentários a

respeito do vocabulário, aspectos da narrativa, características do conto,

entre outras.

2) Em seguida, solicitei aos alunos a leitura em equipe do conto para que a

história fosse representada para os colegas da escola por meio de

mímica. O objetivo dessa atividade era levar o educando a se perceber

coautor da obra e entrar em contato com outras interpretações que

talvez nem tivessem percebido.

3) Observei as diferentes leituras realizadas pelas equipes.

4) Os alunos registraram as impressões observadas em cada equipe. O

professor, como mediador do processo, fez as seguintes indagações:

a) Uma das principais características machadianas é dirigir-se ao leitor,

seja para agradar-lhe ou criticá-lo. Indique uma passagem do texto em

que apareça tal característica.

b) Por que o autor usou a antítese clara /escura na frase “Manhã clara. A

alma de Martinha é que acordou escura”? A que se deve essa

escuridão?

c) O autor pergunta de quem é a culpa da solidão de Martinha. É do

destino ou dela? Posicione-se a respeito.

d) O título do conto é significativo e adequado à obra? Por quê?

e) A história se passa em 1897, e fala sobre as relações amorosas na

juventude e sobre o poder do dinheiro encobrindo os sentimentos

verdadeiros. Atualmente, existem pessoas como as citadas pelo autor?

f) Comente as reflexões de Martinha ao abrir a gaveta.

g) O texto nos faz refletir sobre o verdadeiro valor do ser humano. Fale

sobre isso.

Para iniciar as atividades de leitura, análise de conto e instigar a

curiosidade, levei para a sala de aula uma caixa de costura e levantei hipóteses

sobre a finalidade dos objetos. Logo após, comentei que aqueles objetos, tão

comuns em nosso cotidiano, foram usados como personagens principais no

conto “Um Apólogo”, cujo título significa uma pequena história que revela uma

lição de sabedoria, um ensinamento. Entreguei o conto xerocopiado para que,

juntos, fizéssemos a leitura. Em seguida foi feita a seguinte atividade:

1) Por que foi dado o título Apólogo a esse conto?

2) Por que o professor é citado no conto como “professor de melancolia”?

Existe essa disciplina?

3) Quem são os personagens do conto?

4) Caracterize o lugar em que transcorre a ação.

5) Qual dos personagens tem maior importância? Por quê?

6) Ao apresentar os personagens, o autor faz uma análise da própria

sociedade. Atualmente a sociedade mudou? Estamos menos

individualistas?

7) O texto apresenta uma sociedade colaborativa ou individualista?

8) Que visão do ser humano transparece nas atitudes da linha?

9) O “professor de melancolia” encerra o conto afirmando: “Também eu

tenho servido de agulha a muita linha ordinária”. Explique o significado

das palavras agulha e linha na frase acima.

10) Atualmente, existem muitas costureiras em nossa cidade? Você

costuma solicitar os serviços delas?

11) Esse conto nos faz refletir sobre questões importantes. Fale sobre isso.

12) Produção textual: O professor citado nos texto mostra-se bastante

pessimista em relação a seus alunos e ao ambiente escolar. Hoje, a

situação de muitas escolas continua a mesma retratada por Machado de

Assis, encontramos muitos professores desanimados e desmotivados. O

que você responderia ao professor de melancolia? E para aqueles que,

atualmente, sentem-se melancólicos na escola? Elabore um bilhete com

sua resposta, não há necessidade de identificar-se e muito menos citar o

nome de algum professor.

Poderia iniciar assim:

Para essa atividade de produção textual, utilizei o conto “Idéias do

Canário”. Após a leitura realizou-se a Quebra-cabeça do conto, como segue: o

professor entregou o conto aos alunos, em equipe, xerocopiado e recortado em

várias partes. Cada equipe recebeu o texto integral, porém fragmentado e

embaralhado. Os alunos reconstruíram a sequência das ações, montando o

texto do modo que acharam conveniente. Discorrido um tempo, o professor

expôs os fragmentos do texto no quadro e, juntamente com os educandos,

levantou hipóteses sobre quais partes deveriam ser anexadas, até que o texto

fosse finalizado com coerência.

Terminada a tarefa, fez-se a leitura do conto, pausadamente, debateram-

se as questões pertinentes e, para finalizar, os alunos ilustraram as diferentes

visões de mundo do canário, assim como a visão de mundo de cada um.

Solicitei aos alunos uma pesquisa sobre reportagens atuais sobre os

temas trabalhados nos contos para que se fizessem uma análise

contextualizada dos assuntos abordados.

Encerrado o trabalho com os contos, sugeri a leitura de outras obras do

escritor Machado de Assis e de outros autores, a fim de criar no aluno o desejo

de ampliar suas experiências como leitor.

Os recursos utilizados no decorrer da intervenção pedagógica foram:

cópias dos contos, folhas, caderno, lápis de cor, recortes de jornais e revistas,

lápis, borracha, internet, giz e quadro-negro.

DE: Fulano de tal

PARA: Professor de melancolia

Resultados

O Projeto de intervenção pedagógica “As possíveis leituras em contos

literários” foi aplicado no Colégio Estadual “São José” do município da Lapa

para um universo de 43 (quarenta e três) alunos inscritos na 2.ª Série do

Ensino Médio do turno matutino, em encontros ocorridos no período de agosto

a outubro de 2011.

Iniciadas as atividades em sala de aula, realizou-se um debate informal

sobre a relação existente entre literatura e vida procurando conduzir os alunos

a refletirem a respeito de seu mundo e de outras pessoas a seu redor. A

participação foi ativa. Destaque para relatos sobre a convivência deles com

pessoas analfabetas, mais especificamente suas avós. “As dificuldades

sofridas por ela são enormes”, comentou um dos alunos. Isso levou os alunos a

refletirem sobre a situação crítica enfrentada pela pessoa que não tem acesso

aos estudos.

Quanto às visitas às bibliotecas, surpreendeu-me o fato de os alunos

comportarem-se de maneira exemplar, leram, pesquisaram, tiraram dúvidas,

trocaram experiências. Por meio de relatórios feitos por eles percebi que a

visão que tinham desses espaços públicos melhorou positivamente, conforme

pude observar nos seguintes relatos: “fomos à Biblioteca Municipal, foi algo

diferente, pois descobrimos várias coisas, lá podemos encontrar livros de

pesquisas, contos, fábulas e também ir lá para ler, fazer trabalhos. Eles têm a

lista dos livros do vestibular, o que é muito interessante!” Já outra aluna afirmou

o seguinte: “Agora, quando precisar de um livro, sei onde encontrar, pois é

através da leitura que adquirimos conhecimentos e experiência de vida, todos

os contos, novelas, romances têm um pouco de realidade.” “Foi uma boa

iniciativa de a professora sair um pouco da rotina de sala de aula, um bom

começo para incentivar a leitura para os alunos.” Assim, conforme observei

nesses e em outros relatos, uma atitude simples do professor quebra a rotina e

consegue enriquecer a prática cotidiana nas aulas de Português.

Os educandos interessaram-se muito sobre a vida e a obra de Machado

de Assis, realizaram pesquisa, confeccionaram cartazes com gravuras de

pessoas, vestimentas, ruas e utensílios sobre a vida cotidiana do Brasil do

século XIX. O que chamou mais a atenção foram gravuras de vestimentas e

do urinol utilizados na época em que viveu o escritor, uma vez que os alunos

não estavam habituados com tais objetos, o que lhes causou estranheza.

Na análise do conto “Flor Anônima”, percebi que, apesar de os alunos

gostarem da história, tiveram dificuldades em se expressar no momento da

mímica, algo compreensível devido ao fato de ser uma turma numerosa, o que

gerou timidez e também por nunca terem realizado um trabalho que exigisse

tamanha concentração. Das 10 equipes, somente 3 conseguiram interpretar a

história de modo satisfatório, 1 equipe conseguiu se sobressair e 1 não

conseguiu realizar a atividade. As restantes apresentaram de maneira

incompleta, porém demonstrando grande esforço.

No conto “Um Apólogo”, curiosidades a respeito do título e da palavra

melancolia. No momento da elaboração dos bilhetes, observei a valorização

que todos deram para a figura do professor, as palavras foram de carinho,

incentivo, arrependimento, pedidos de desculpas e reconhecimento. Conforme

observei nos seguintes exemplos: “Professor de melancolia, não se sinta

desmotivado, posso imaginar o que você passa com esses alunos que não

sabem valorizar o seu trabalho, mas não se sinta mal com isso, você está

fazendo o seu trabalho.” “Professor, não desanime, são vocês que levam a

educação aos jovens, seu esforço é muito importante para nós, adolescentes,

precisamos de você para sermos alguém na vida.” Diante disso, considero

relevante essa atividade, no sentido de levar o aluno a refletir sobre a sua

consciência cidadã e também sobre a importância da figura do professor na

formação integral do educando.

Por fim, no conto “Ideias do Canário”, pude notar que não demonstraram

nenhuma dificuldade em montar a obra de modo coerente, já que ela estava

dividida em 9 partes. Das 14 equipes, somente uma não conseguiu montar

coerentemente o texto. No momento das ilustrações, observei o seguinte: ao

ilustrar as visões do canário, demonstraram ter entendido perfeitamente o texto

apesar do vocabulário elaborado. Na visão de mundo deles, destacaram-se

como importantes: o dinheiro, a natureza, o amor, esportes, casa noturna,

motocicletas, carros, estudos e principalmente a família, amigos e dúvidas

sobre o futuro. Diante dos resultados, concluo que a literatura é capaz de levar

o aluno a refletir sobre a sua vida e seu futuro, fazendo com que busque

sentidos no que lê e que as obras de Machado de Assis, em especial os

contos, são textos acessíveis e por meio da mediação feita pelo professor

podem ser analisados com facilidade. Com base no que foi exposto acima,

acredita-se que o projeto desenvolvido atingiu seu principal objetivo que era o

de incentivar a leitura literária, visto que os alunos tiveram uma aproximação

positiva com a literatura, ampliaram e enriqueceram seu repertório, efetuaram

leituras compreensivas e críticas questionando a realidade e por fim deixaram

transparecer que sentiram interesse pela obra literária o que é um ganho

significativo no que diz respeito a prática de incentivo à leitura para os

adolescentes.

Conclusão

Como parte das atividades do Programa de Desenvolvimento Estadual, o

presente projeto possibilitou algumas contribuições para o ensino e

aprendizagem da leitura. Como comentou o Professor Ubirajara Inácio de

Araújo, em sua justificativa à Secretaria Estadual de Educação (2011), o projeto

tratou de questão relevante do ensino de língua materna: a leitura. Este tem

sido um tema que preocupa, quando se fala em políticas educacionais, tendo

em conta o desempenho não raro insuficiente de significativa parcela de

nossos alunos. A proposta de explorar o texto literário, nesse caso o conto,

circunscreveu a leitura no domínio da leitura metafórica, confrontando

diferentes visões de mundo, o que exigiu uma postura leitora que se fundisse

em atividades mais complexas. O desenvolvimento do projeto representou aos

alunos um ganho significativo no que diz respeito ao conhecimento de mundo e

ao domínio de estratégias de leitura mais significativas. Portanto, a literatura

esteve presente em práticas que garantiram a fruição artística e estética do

texto e, simultaneamente, promoveram uma postura crítica do aluno em

relação ao mundo em que vive.

Como afirma Ezequiel Theodoro da Silva (2005), a boa leitura é aquela

que, quando terminada, produz aprendizagem, propõe comportamentos e

reflete valores, estimulando, impregnando, aprimorando as maneiras de o leitor

perceber e sentir a vida. Nesse sentido, o trabalho com contos contribuiu para

que o aluno refletisse sobre o seu cotidiano e o mundo em que vive, produzisse

conhecimentos, tornasse um sujeito crítico e atuante na sociedade. Há muitas

ligações entre o mundo de Machado de Assis e o nosso, como, por exemplo,

os conflitos existentes em nossas relações, visões de mundo e lembranças.

Notou-se que os alunos perceberam nitidamente essa ligação nas várias

atividades propostas.

Dentro do Programa PDE, participei do GTR (Grupo de Trabalho em

Rede) onde fui tutora e tive a oportunidade de compartilhar e interagir sobre o

Projeto com nove professores da Rede Estadual de Ensino. Foi uma

experiência enriquecedora. Todos os professores foram unânimes em avaliar

positivamente o projeto. Dentre as contribuições postadas cito algumas: ”O

Projeto favorece para o desenvolvimento intelectual do aluno”. “O Projeto

realizado entrelaça atividades dinâmicas que envolvem e estimulam os alunos

a repensarem seus próprios comportamentos.” “A leitura da sua proposta

didática foi prazerosa, gostaria de parabenizá-la pelas excelentes propostas de

atividades com os contos de Machado de Assis.” Diante disso e de outras

afirmações, considero que os colegas professores se motivaram para

desenvolver projetos semelhantes.

Por fim, reconhece-se de forma positiva a aplicação do projeto como

forma de incentivo à leitura, as experiências relatadas anteriormente

evidenciam a importância desse tipo de trabalho no sentido de priorizar

atividades que contemplem a qualidade de leitura no cotidiano da escola

pública. São estratégias simples que representaram aos alunos a oportunidade

de entrar em contato com uma diversidade textual que lhes possibilitou

aprofundar a capacidade de pensamento crítico e a sensibilidade estética,

permitindo assim, a expansão lúdica, não somente da leitura, como também da

oralidade.

Referências

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Em: www.dominiopublico.gov.br.

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