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AS PRÁTICAS DE ALFABETIZAÇÃO E A APRENDIZAGEM DO SISTEMA DE ESCRITA ALFABÉTICA

Andréa Tereza Brito – UFRPEEliana Borges Correia de Albuquerque – UFPE

Artur Gomes de Morais - UFPE

1. Introdução

O ato de ensinar a ler e escrever – a alfabetização – não tem sido praticado de

maneira uniforme ao longo da história da escolarização. Mudanças de naturezas didática

e pedagógica, decorrentes de diferentes aspectos – desenvolvimento científico em

diferentes áreas, contexto sócio-econômico, organização escolar, etc. - têm influenciado

essa prática de ensino.

O ensino da leitura e da escrita baseado no treino das habilidades de

decodificação e codificação da escrita, muito criticado nas duas últimas décadas do

século XX tanto nos textos acadêmicos quanto nos oficiais, é uma prática antiga

específica, criada e desenvolvida em um meio também específico: a escola. Ela se

distancia das práticas sociais de leitura e de escrita vivenciadas por diferentes grupos,

em diferentes contextos e épocas. COOK-GUMPERZ (1991) relaciona essa prática

escolar de leitura com ênfase no processo de decodificação à expansão da escolarização

à população com o objetivo de alfabetizá-la ou de “controlar a alfabetização e não

promovê-la; controlar tanto as formas de expressão quanto o comportamento que

acompanham a passagem em direção à alfabetização” (p. 40). Nesse contexto, segundo

a autora, as práticas sociais de leitura e de escrita se diferenciavam já no final do século

XIX, da “alfabetização escolarizada”, relacionada a uma noção estratificada e

potencialmente padronizável de alfabetização.

Pedagogicamente, a alfabetização considerada como o ensino das habilidades de

codificação e decodificação foi transposta para a sala de aula, no final do século XIX,

através da criação de diferentes métodos de alfabetização – métodos silábicos/sintéticos

x métodos globais/analíticos, método misto x método natural – que padronizaram a

aprendizagem da leitura e da escrita.

Um dos pressupostos básicos dos métodos tradicionais, como os sintéticos, é o

de que primeiro tem que se ensinar as unidades menores das palavras (letras, fonemas e

sílabas) para só depois os alunos poderem ler frases e textos. Assim, para garantir que

os alunos lessem apenas palavras que continham as unidades já trabalhadas, os autores

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das cartilhas passaram a inventar textos, controlando o repertório das palavras neles

contidos.

Como observado por MORAIS E ALBUQUERQUE (2005), as atividades das

cartilhas tradicionais se relacionavam a uma perspectiva empirista/associacionista de

aprendizagem, que concebe a escrita como um código, que deveria ser aprendido

através da memorização das letras/fonemas/sílabas, não possibilitando que os alunos

reflitam sobre as características do Sistema de Escrita Alfabética (SEA). Ao mesmo

tempo, pelo artificialismo dos “textos” que contêm, as cartilhas impediam que os

aprendizes convivessem com a linguagem própria dos gêneros escritos que circulam em

nosso mundo. Nessa perspectiva, considerava-se “Alfabetizado” os alunos que

conseguiam ler (decodificar) e escrever (codificar) as palavras, frases e textos contidos

nas cartilhas.

Como já dissemos, a partir da década de 1980, o ensino da leitura e da escrita

centrado no desenvolvimento das habilidades de codificação e decodificação, realizado

com o apoio de materiais pedagógicos que priorizavam a memorização de sílabas e/ou

palavras e/ou frases soltas, passou a ser amplamente criticado. Nesse período,

pesquisadores de diferentes campos – Psicologia, História, Sociologia, Pedagogia, etc. –

tomaram como temática e objeto de estudo a leitura e seu ensino, buscando redefini-los.

No campo da Psicologia, foram muito importantes as contribuições dos estudos

sobre a psicogênese da língua escrita, desenvolvidos por Emília FERREIRO e Ana

TEBEROSKY (1984). Contrariando os fundamentos empiristas dos “métodos de

alfabetização”, - que viam o aprendizado da leitura e da escrita como um processo de

associação entre grafemas e fonemas, no qual a criança evoluiria por receber e “fixar”

informações transmitidas pelos adultos -, as referidas autoras demonstraram que as

crianças formulam uma série de idéias próprias sobre a escrita alfabética, enquanto

aprendem a ler e escrever. Os diversos trabalhos resultantes daquela linha teórica

evidenciaram que:

- as crianças, antes de poderem ler e escrever sozinhas e convencionalmente,

formulam uma série de idéias próprias ou hipóteses, atribuindo aos símbolos da escrita

alfabética significados bastante distintos dos que lhes transmitem os adultos que as

alfabetizam;

- As hipóteses elaboradas pela criança seguem uma ordem de evolução onde, a

princípio, não se estabelece uma relação entre as formas gráficas da escrita e os

significantes das palavras (hipótese pré-silábica). Em seguida a criança constrói

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hipóteses de fonetização da escrita, inicialmente relacionando os símbolos gráficos às

sílabas orais das palavras (hipótese silábica) e finalmente compreendendo que as letras

representam os fonemas da língua (hipótese alfabética). Entre esses dois momentos,

haveria um período de transição (hipótese silábico-alfabética);

- Este processo de evolução conceitual se dá entre crianças de diferentes classes

sociais, e a possibilidade de vivenciá-lo ou o ritmo em que ocorre estariam

provavelmente relacionados ao maior/menor contato que os aprendizes têm com a

língua escrita em seu meio e à possibilidade de viverem situações em que esta é

empregada socialmente.

Os trabalhos da Psicogênese da Língua Escrita foram muito difundidos no

Brasil e com eles vimos nascer um forte discurso contrário ao uso dos tradicionais

métodos de alfabetização e a defesa de uma prática que tomasse por base a teoria

psicogenética de aquisição da escrita. Pregava-se a necessidade de possibilitar que as

crianças se apropriassem do sistema de escrita alfabético a partir da interação com

diferentes textos escritos em atividades significativas de leitura e produção de textos.

SOARES (2003) destaca a mudança que a propagação da perspectiva

psicogenética representou para a área de alfabetização:

“alterou profundamente a concepção do processo de construção da representação

da língua escrita, pela criança, que deixa de ser considerada como dependente de

estímulos externos para aprender o sistema de escrita – concepção presente nos

métodos de alfabetização até então em uso, hoje designados “tradicionais” – e

passa a sujeito ativo capaz de progressivamente (re)construir esse sistema de

representação, interagindo com a língua escrita em seus usos e práticas sociais,

isto é, interagindo com material “para ler”, não com material artificialmente

produzido para “aprender a ler”...” (p. 8)

O discurso da importância de se considerar os usos e funções da língua escrita a

partir do desenvolvimento de atividades significativas de leitura e escrita na escola foi

incorporado, principalmente a partir da década de 90, a um novo conceito de

alfabetização: o de letramento. Segundo SOARES (1998), o termo letramento é a

versão para o Português da palavra de língua inglesa literacy, que significa o estado ou

condição que assume aquele que aprende a ler e escrever.

SOARES (1998) faz uma distinção entre os termos alfabetização e letramento.

O primeiro corresponderia à ação de ensinar/aprender a ler e a escrever, enquanto o

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segundo é visto como o estado ou a condição de quem não apenas sabe ler e escrever,

mas cultiva e exerce as práticas sociais que usam a escrita. Segundo a referida autora,

“alfabetizar e letrar são duas ações distintas, mas não inseparáveis, ao contrário: o ideal

seria alfabetizar letrando, ou seja: ensinar a ler e escrever no contexto das práticas

sociais da leitura e da escrita, de modo que o indivíduo se tornasse, ao mesmo tempo,

alfabetizado e letrado” (p. 47).

O ensino da leitura e da escrita baseado em uma concepção interacionista de

língua implica, diferentemente, considerá-las como práticas sociais. Nessa perspectiva,

a nova transposição didática – ou o “letramento escolar” que envolve o processo de

didatização da leitura e da escrita– precisa ser feito de modo a garantir que as práticas

de leitura e de escrita desenvolvidas nesse espaço se aproximem daquelas realizadas

fora dele. Isso implica trazer para a sala de aula os contextos significativos de leitura e

de escrita que envolvem diferentes gêneros presentes no convívio social dos alunos e

dos professores.

Assim, duas questões de natureza didática estão presentes nos textos sobre

alfabetização que subsidiam o trabalho do professor, textos esses oficiais ou não: a

importância de se considerar a alfabetização como um processo de apropriação do

sistema de escrita alfabético e a necessidade de considerá-la, também, como práticas de

letramento.

Se percebemos mudanças, nos últimos vinte anos, nos discursos acadêmico e

oficial sobre alfabetização, na prática, o índice elevado de fracasso escolar nesse nível

de ensino ainda permanece. E os programas de avaliação dos índices de leitura e escrita

(PISA, SAEB) revelam que nossos alunos têm concluído o Ensino Fundamental sem o

domínio da leitura e escrita. A responsabilidade por esses resultados muitas vezes recai

no professor, que continuaria preso a um ensino “tradicional” da leitura e escrita.

Pesquisas (ALBUQUERQUE, 2002) apontam para o fato de que mudanças têm sido

realizadas nas práticas de alfabetização e que os professores têm se apropriado

principalmente da necessidade de se trabalhar com diferentes gêneros. No entanto, ao

lado de atividades de leitura e produção de textos, uma boa parte dos docentes ainda

lança mão de muitos aspectos dos métodos tradicionais de alfabetização para ensinarem

o sistema de escrita alfabético. E justificam esse uso por sentirem a necessidade de um

ensino sistemático de alfabetização.

Por outro lado, como abordado por SOARES (2003), a abordagem psicogenética

da alfabetização conduziu a alguns equívocos e falsas inferências, o que resultou na

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“desinvenção” da alfabetização resultante de diferentes fatores, tais como: o privilégio

da faceta psicológica da alfabetização, obscurecendo sua faceta lingüística - fonética e

fonológica; e a compreensão equivocada de que seria incompatível com o paradigma

conceitual psicogenético a proposta de métodos de alfabetização.

“Talvez se possa dizer que, para a prática da alfabetização, tinha-se,

anteriormente, um método, e nenhuma teoria; com a mudança de concepção

sobre o processo de aprendizagem da língua escrita, passou-se a ter uma

teoria, e nenhum método.”

Que práticas de alfabetização estão sendo construídas pelos professores e qual a

relação destas práticas com o desempenho dos alunos no aprendizado da leitura e

escrita, mais especificamente no que se refere ao domínio do Sistema de Escrita

Alfabético. São essas duas questões que pretendemos investigar neste estudo.

2. Questões metodológicas

Nesta pesquisa, em função da própria natureza do objeto e da escolha teórica,

privilegiamos a perspectiva etnográfica da Pesquisa Qualitativa. Concordando com

DEZIN e LINCOLN (1994), concebemos que a mesma consiste na descrição e

interpretação de grupos humanos com base no contato intenso e multifacetado, em que

se valorizam, na ação, os elementos simbólicos das relações sociais.

A pesquisa foi desenvolvida com um grupo de nove professoras de alfabetização

(1º ano do primeiro ciclo) da Secretaria de Educação da Cidade do Recife, no ano de

2004. A tabela 1, em anexo, apresenta alguns dados sobre as professoras.

A maior parte das professoras trabalhava em dois turnos e tinha mais de um ano

de experiência em classes de alfabetização. Apenas uma, lecionou exclusivamente para

alunos dessa turma por quinze anos.

A professora de mais idade participou do programa de capacitação: “ciclo de

alfabetização”, promovido pela rede municipal de Recife na década de 1980, que teve a

duração de um ano.

Para registrar as práticas de alfabetização das professoras utilizamos a

observação participante como procedimento metodológico. As observações de aulas

foram realizadas no período de junho a dezembro de 2004, totalizando 10 observações

em cada sala de aula. Analisamos, também, o material usado pelas docentes para o

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ensino da leitura e da escrita, principalmente os livros didáticos utilizados e os cadernos

dos alunos.

Durante o período das observações, realizamos mensalmente um encontro com

as professoras, no qual desenvolvíamos um trabalho com a técnica de grupo focal. A

cada encontro discutíamos temas relativos à alfabetização, tanto do ponto de vista

teórico, quanto das práticas de ensino das docentes. As temáticas trabalhadas foram:

memórias e concepções de alfabetização, atividades de rotina da sala de alfabetização,

uso do livro didático, importância do trabalho com textos para alfabetizar e promoção

de habilidades de reflexão fonológica.

No sentido de relacionar as práticas de alfabetização das professoras com o

desempenho dos alunos no final do ano, no que diz respeito ao aprendizado do sistema

de escrita, aplicamos um instrumento avaliativo (ditado de palavras e frase) a todos os

alunos das professoras investigadas.

3. As práticas de alfabetização desenvolvidas pelas professoras

Para cada dia de aula observado, elaboramos um protocolo de observação e, a

partir da análise do conjunto de protocolos, categorizamos as atividades das professoras

nos seguintes eixos: atividades de rotina, atividades de apropriação do Sistema de

Escrita Alfabética (SEA), atividades de leitura e produção de textos e atividades de

desenho. Em cada eixo, elencamos um conjunto de subcategorias relacionadas às

atividades desenvolvidas.

No que se refere às atividades de apropriação do SEA, foco deste trabalho, estas

foram categorizadas em:

leitura de letras, sílabas, palavras ou frases com ou sem auxílio do professor;

escrita de letras, sílabas, palavras e frases com e sem auxílio do professor;

cópia de letras, sílabas, palavras e frases;

Contagem de letras em sílabas, de letras e sílabas em palavras e de palavras em

frases;

Partição de palavras em sílabas e letras e de frases em palavras;

Identificação de letras e sílabas em palavras;

Identificação, exploração e produção de rimas e aliterações;

Comparação de: sílabas e palavras quanto ao número de letras; palavras quanto ao

número de sílabas, palavras quanto à presença de letras iguais / diferentes.

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Formação de palavras a partir de letras ou sílabas dadas;

Exploração: de diferentes tipos de letra, da ordem alfabética, da segmentação das

palavras e das relações som/grafia.

Após a análise das observações realizadas na sala de cada professora, com base

na categorização acima descrita, classificamos suas práticas de alfabetização no que se

refere ao trabalho com o sistema de escrita alfabética, em três tipos, descritos a seguir:

3.1. Prática sistemática de alfabetização

Essa categoria engloba as práticas que apresentaram um trabalho sistemático de

apropriação do sistema de escrita alfabética, pois contemplaram, em todos os dias

observados, algumas das atividades relacionadas a esse eixo. As professoras cujas

práticas foram classificadas nessa categoria foram: Cláudia, Patrícia, Mônica, Solange e

Eleuses. As quatro primeiras apresentaram práticas parecidas, pois desenvolviam

diariamente atividades variadas que envolviam uma reflexão sobre os princípios do

SEA. Elas estavam construindo uma metodologia de trabalho que envolvia a realização

diária de atividades relacionadas à apropriação do SEA. Para exemplificar o que

estamos chamando de prática sistemática, nos apoiaremos no trabalho da professora

Cláudia.

Nas 10 observações realizadas na sala dessa professora pudemos observar que

foram realizadas atividades diferenciadas de apropriação do SEA. Escrita e leitura de

palavras foram as mais freqüentes. As atividades de contagem (de letras, sílabas e

palavras) foram realizadas, no conjunto, em sete dias. Com exceção do sétimo e oitavo

dias, todos os outros envolveram, além da leitura e escrita de palavras, pelo menos um

dos seguintes tipos atividade: contagem, partição, identificação, comparação, formação

e exploração, o que significa que sistematicamente os alunos eram solicitados a realizar

atividades que levavam à reflexão sobre os princípios do SEA. Tais atividades foram

exploradas pela professora Cláudia, sobretudo com tarefas elaboradas por ela e

mimeografadas para os alunos, o que indicava uma busca de suplementação do que

apontava como lacunas no livro didático da turma.

Quanto à professora Eleuses, ela desenvolvia uma prática sistemática

relacionada à alfabetização, mas vinculada aos métodos tradicionais. Ela priorizava em

suas aulas a Cópia de Palavras e Frases, atividades que foram registradas em todas as

observações. Apesar da professora não intitular essa atividade como cópia, solicitava

que os alunos copiassem o que ela havia escrito no quadro; essa prática diária

correspondia a mais da metade do tempo total gasto com as atividades de apropriação

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do SEA. Já a Leitura de palavras foi o segundo item com maior freqüência (4 registros

desta atividade).

A professora utilizava os textos apenas para trabalhar, a partir deles, letras e

sílabas. Isto ficava evidente quando analisávamos a seqüência por ela desenvolvida a

cada aula. No caso da 5ª aula observada, por exemplo, a professora afixou no quadro

dois cartazes, sendo o primeiro sobre uma fábula (Os viajantes e o urso) e o outro sobre

como devemos tratar os amigos. Depois leu os dois cartazes em voz alta. Em seguida,

perguntou para os alunos quem eram os personagens da história e o que eles faziam (no

caso do primeiro cartaz) e falou sobre a moral da história (referente ao segundo cartaz).

Depois escreveu algumas palavras do texto no quadro e realizou uma leitura coletiva

delas. Separou, então, a primeira palavra em sílabas, contou o número de letras e

sílabas, e solicitou que os alunos copiassem e fizessem o mesmo, sozinhos, com as

demais palavras. Após meia hora, a professora realizou a atividade no quadro junto com

os alunos.

Podemos, então, dizer que ela trabalhava um "método cartilhado sem cartilha",

ou seja, não ensinava BA BE BI BO BU, mas utilizava a apresentação de textos para

levar os alunos a memorizar letras ou sílabas soltas. Isso parece ser uma recriação da

professora a partir das novas orientações sobre alfabetização e letramento, já que para

alfabetizar na perspectiva do letramento orienta-se trabalhar com diversos gêneros

textuais. Assim, a professora parecia desenvolver uma prática tradicional com uma nova

roupagem.

3.2. Prática intermediária de alfabetização

Classificamos nessa categoria as práticas que equilibravam as atividades de

leitura e produção de textos com as de apropriação do SEA. Estas, no entanto, não eram

realizadas diariamente. As professoras cujas práticas foram categorizadas nesse tipo

foram Leônia e Daniele. Descreveremos essa prática com base nas observações

realizadas na sala da primeira professora.

As atividades de apropriação do SEA, de forma geral, não foram muito

exploradas. As crianças foram pouco convidadas a escrever e até mesmo a copiar. O

trabalho com a palavra, tratada de forma global, parece ter sido priorizado em

detrimento do trabalho com sílabas e letras.

Todavia, podemos evidenciar um aumento na concentração das atividades

voltadas à apropriação do SEA nos últimos encontros. Nestes, pôde-se perceber

atividades de contagem, partição e identificação, o que pode ter acontecido em função

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dos encontros mensais de grupo focal, nos quais a questão da apropriação do SEA foi

discutida tanto teoricamente, quanto na perspectiva da prática pedagógica.

Na 10ª observação, por exemplo, a professora realizou não só atividades de

leitura e escrita de palavras, mas de “contagem” e “partição”, o que aponta para uma

preocupação em refletir sobre as unidades da palavra. A produção de rima e aliteração,

quando ocorria, era realizada através da seguinte atividade: a professora passava um

barquinho de papel e pedia para que as crianças falassem palavras iniciadas pela sílaba

trabalhada – ex: “Esse barquinho tá indo carregado de CA...”.

3.3. Prática assistemática de alfabetização

Compreendia as práticas que priorizavam as atividades de leitura e produção de

textos e que, no conjunto das dez observações, contemplaram muito pouco as atividades

relacionadas à apropriação do SEA. As professoras cujas práticas foram classificadas

nessa categoria foram Ana Luzia e Claudecy.

Relataremos as atividades de apropriação do SEA desenvolvidas pela professora

Ana Luzia, no decorrer de 9 observações. Ao analisarmos os protocolos de aulas,

percebemos que as atividades que envolviam a apropriação do SEA não foram

exploradas de forma sistemática. As crianças foram pouco convidadas a escreverem

sozinhas. Essas passavam a maior parte do tempo copiando a tarefa de classe, de casa e

desenhando.

As tarefas de classe e casa tinham basicamente os seguintes exercícios: desenho

demonstrando leitura, ditado mudo e atividade de completar frases com palavras. Os

dois últimos são exemplos da categoria escrita de palavra. Isso demonstra uma

preocupação maior da professora com a palavra, em detrimento da reflexão sobre

sílabas e letras.

Percebemos que, apesar do SEA na maioria das observações não ter sido

enfocado pela professora, havia um maior número de atividades dessa natureza nas

observações 5 e 6. Nessas aulas apareceram as categorias que trabalham com os

processos cognitivos de: contagem, partição, identificação e formação. Porém, a

professora só explorou essas categorias na modalidade oral, coletivamente, e não fez

nenhuma comparação de palavras quanto ao número de sílabas. Não houve, também,

um trabalho sistemático envolvendo as atividades de consciência fonológica, em que os

alunos refletiriam sobre as partes e os sons que compõem a palavra.

No que se refere à leitura, a professora leu todos os dias para as crianças. A

leitura sempre acontecia no início das aulas e estava relacionada com a temática que

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seria trabalhada. Para isto, ela trazia cartazes, textos produzidos pelas crianças em aulas

anteriores, fragmentos de textos e livros de história. Os textos sempre eram lidos por

ela. Quando a mesma solicitava que os alunos a ajudassem no momento da leitura,

poucos o faziam. Percebemos, assim, que o ensino de leitura predominou na prática da

professora. Em nenhum momento os alunos realizaram uma leitura coletiva ou

silenciosa.

As atividades de produção coletiva de textos não tinham um destinatário real ou

uma finalidade específica. Os gêneros produzidos durante as aulas foram: recado,

bilhete, diálogo e lista, ocorrendo este último com maior incidência. A produção dos

textos, na maioria das vezes, era feita pela professora, ou seja, os alunos poucas vezes

interagiam durante a atividade.

Constatamos, enfim, que a professora não trabalhou o SEA de forma sistemática.

Ela priorizava, em sua prática, a leitura de textos, a produção de texto coletivo, o

desenho demonstrando leitura e, o desenho gratuito, em detrimento das atividades

relacionadas à apropriação do sistema.

4- Sobre o desempenho dos alunos

As práticas das professoras apresentadas revelam “fabricações” próprias, pois,

apesar das influências acadêmicas, institucionais e oficiais, a singularidade marcava o

“o que-fazer” das docentes pesquisadas. No entanto, algumas se preocupavam mais com

o ensino sistemático do SEA, enquanto outras pareciam acreditar as atividades de leitura

e produção de textos coletivos garantiriam a aprendizagem do sistema de escrita. Diante

da possibilidade de vivenciar práticas diferenciadas de alfabetização, teriam os alunos

apresentado desempenhos diferentes na aprendizagem do sistema? A tabela 2, em

anexo, apresenta os níveis de compreensão do Sistema de Escrita Alfabético

apresentados pelos alunos a partir da realização da atividade do ditado por nós proposta.

Tabela: Compreensão do Sistema de Escrita (percentual de alunos)

Como podemos observar, ao final do ano mais de 70% dos alunos das

professoras Solange, Patrícia, Cláudia e Mônica, com suas práticas consideradas

sistemáticas, alcançaram o nível silábico-alfabético ou alfabético de escrita, e apenas a

professora Mônica permaneceu com alunos no nível pré-silábico (7%). Já os alunos da

professora Eleuses, que apresentava uma prática considerada sistemática de

alfabetização, centrada em atividades tradicionais de repetição e memorização,

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demonstraram um desempenho pior em relação aos alunos das outras turmas: 12% se

encontram ainda no pré-silábico, 44% no silábico e apenas 44% dos alunos atingiram os

níveis silábico-alfabético ou alfabético.

Dentro do que consideramos práticas intermediárias de alfabetização, a prática

da professora Leônia, que misturava atividades de apropriação com leitura e

interpretação de textos, parece não ter conseguido fazer avançar os alunos que estavam

no nível pré- silábico e silábico. Talvez, necessitasse desenvolver mais atividades de

apropriação de forma sistemática de apropriação, principalmente para alunos que se

encontravam nestes níveis.

Já os alunos das professoras Ana Luzia e Claudecy, cujas práticas de

alfabetização foram consideradas de assistemáticas, ao final do ano se distribuíram nos

níveis silábico, silábico-alfabético e alfabético de escrita. Essas professoras priorizavam

um trabalho com leitura de textos e se preocupavam com a diversidade de gêneros, o

que se relaciona com o forte discurso da “importância de se trabalhar com diferentes

textos”. Nessa perspectiva, elas concebiam estar desenvolvendo uma prática

diferenciada e inovadora. O depoimento da professora Ana Luzia, em um dos encontros

finais do grupo focal, é revelador dessa questão. Ela assim falou:

Agora eu sei por que meus alunos não estão alfabetizados. Eu trabalho muito

com leitura e produção de textos, mando desenhar, mas não realizo essas

atividades de reflexão com as palavras. Agora vou fazer diferente.

Essas práticas nos fazem refletir que, as “fabricações” das professoras produzem

resultados diferentes, porém, àquelas que incorporavam às suas práticas atividades de

reflexão sobre o sistema de escrita de maneira mais sistemática e reflexiva, conseguiram

um desempenho relativamente melhor dos seus alunos, como foi o caso da professora

Solange.

7. Considerações finais

Gostaríamos de, inicialmente, relacionar as práticas de alfabetização das

professoras com alguns aspectos de suas experiências de formação. As professoras

Cláudia, Patrícia e Leônia lecionavam em uma mesma escola, e as duas primeiras

trabalhavam juntas em uma outra escola da rede privada, no turno da manhã, e

vivenciavam naquela instituição um trabalho de formação continuada na área de

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alfabetização. Elas disseram que traziam muitas atividades daquela escola para serem

realizadas com seus alunos da rede pública. A professora Solange também tinha

vivenciado um trabalho de formação na área de alfabetização na época do Ciclo de

Alfabetização da rede municipal de ensino do Recife (período de 1986 a 1990), em que

se discutia nos encontros quinzenais (realizados aos sábados) a importância de se

desenvolver atividades de leitura e produção de textos, juntamente com atividades de

Reflexão Fonológica.

Consideramos que a análise das práticas de alfabetização aqui apresentada,

permitiu ver a influência do imaginário e do discurso pedagógico hoje dominante no

campo da alfabetização. As docentes que acompanhamos demonstravam ter um

razoável conhecimento das propostas didáticas que privilegiam a realização de práticas

de leitura e produção textuais, desde o início da escolarização formal.

Podemos dizer, então, que as práticas das professoras alfabetizadoras estavam

apoiadas em uma determinada maneira de entender o processo de alfabetização, o que

estaria ligado, diretamente, com suas histórias, enquanto sujeitos que foram

alfabetizados, que vivenciaram (e vivenciam) um processo de formação e que se

tornaram profissionais. Todo esse processo, vivido pelas professoras, parecia refletir na

“fabricação" de suas práticas em sala de aula, frente aos modelos cientificamente

elaborados.

Em relação ao aprendizado do SEA pelos alunos, a análise dos dados revelou

que o desenvolvimento de uma prática sistemática de alfabetização, a partir da

realização diária de atividades, tanto individuais como coletivas, de reflexão sobre o

SEA, é imprescindível para que os alunos se apropriem do nosso sistema de escrita e,

com isso, possam ler e produzir textos com autonomia. Dessa forma, concordamos com

a professora Magda Soares (2003), sobre a necessidade de se reinventar a alfabetização

a partir da criação de metodologias que articulem alfabetização e letramento, ou seja,

que “alfabetizem letrando”. Nessa perspectiva, as professoras-alfabetizadoras, nas

“fabricações” de suas práticas de ensino, nos têm muito a ensinar.

8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBUQUERQUE, Eliana B. C. Apropriações de propostas oficiais de ensino de leitura

por professores: o caso do Recife. Faculdade de Educação, UFMG, 2002 (Tese de

Doutorado).

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COOK-GUMPERZ, Jenny. Alfabetização e escolarização: uma equação imutável? In:

COOK-GUMPERZ, Jenny (org.). A construção social da alfabetização. Trad. Dayse

Batista. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.

DENZIN, Norman e LINCOLN Yvonna, Handbook of qualitative research. Londres,

Sage publications1994.

FERREIRO, Emília E TEBEROSKY, Ana. A psicogênese da língua escrita. Porto

Alegre: Artes Médicas, 1984.

MORAIS, Artur. e ALBUQUERQUE, Eliana. 2005. O livro didático de alfabetização:

mudanças e perspectivas de trabalho. In: MORAIS, Artur; ALBUQUERQUE, Eliana E

SOARES, Magda. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Anais da 26a. Reunião

Anual da ANPEd, em outubro de 2003.

SOARES, Magda. Concepções de linguagem e o ensino da Língua Portuguesa. Em

BASTOS, Neusa Barbosa (org.). Língua Portuguesa: História, Perspectivas, Ensino.

São Paulo: EDUC, 1998

Tabela 1

Idade Formação Pós-

graduação

Tempo de

magistério (anos)

Turnos de

trabalho

Claudecy 38 Pedagogia 13 2

Claudia 32 Pedagogia Sim 12 2

Daniele 28 Pedagogia 7 2

Eleuses 63 Pedagogia

(cursando)

21 1

Leônia 41 Pedagogia Sim 13 2

Ana Luzia 50 Pedagogia 15 2

Mônica Pedagogia 12 1

Patrícia 28 Pedagogia 01 2

Solange 40 Pedagogia Sim 21 2

Tabela 2: Compreensão do Sistema de Escrita (percentual de alunos)

Distribuição percentual dos alunos em relação aos diferentes

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níveis de compreensão do sistema de escrita, ao final do ano.

Pré-silábico Silábico S-alfabético Alfabético

ELEUSES 12 % 44 % 6 % 38 %

SOLANGE - 5 % 5 % 90 %

PATRÍCIA - 29 % 7 % 64 %

CLÁUDIA - 29 % 36 % 36 %

MÔNICA 7 % 20 % 27 % 46 %

DANIELE - 23 % 14 % 63 %

LEÔNIA 8 % 38 % 8 % 46 %

CLAUDECY 5 % 27 % 27% 41 %

LUZIA 37 % 32 % 32 %

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