AS PROFESSORAS DE PIANOstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2507591.pdfde muito bom-humor, quando...
Transcript of AS PROFESSORAS DE PIANOstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/2507591.pdfde muito bom-humor, quando...
AS PROFESSORAS DE
PIANO
Bruno de Faria Crônicas e Contos Rio de Janeiro, 2008-2010
Bruno de Faria
As Professoras de Piano
(A Revolta dos Contos)
Livro Registrado na Biblioteca Nacional - ISBN
Protegido por direitos autorais.
Rio de Janeiro, 2008-2010
3
Bruno de Faria
As Professoras de Piano
4
Índice:
1 Marlene 6
2 Os Catadores de Cocô 12
3 As professoras de Piano 15
4 A Mão que Me Manteve Vivo 26
5 Baile de Máscaras 31
6 O Enforcado 35
7 Serenata… de Amor, claro 40
8 Braço Direito 45
9 Ô Claudinha... 49
10 Tia Dorina 51
11 Elas 60
12 Verdades de verdade 62
13 Pequenos Malefícios Maternos 65
14 Identidade, Ética, Profissionalismo e Paixão 69
15 Refletindo Diante do Aspirador de Pó 75
16 Acontece 77
17 Vó com Açúcar 79
18 Domingo de Ramos 82
19 Boina do Gianecchini 86
5
20 Como Sobreviver ao Mundo 88
21 Cercado de Cuidados 90
22 E tanto... para... 96
23 Era uma Vez... Três Vezes 97
24 Sociedade Fálica e Confusa 101
25 Mirtes 104
26 O Diário de Vovô Lilico 105
27 O Homenzinho e o Temporal 110
28 O menino e o beija-flor 113
29 A Aula de Neurologia 124
30 Operação Trocadilho de Beira de Estrada 127
31 Sob a Égide de Tánatos 129
32 Você se Sente 131
33 O Lado Ingênuo da Aristocracia 133
6
1 Marlene
Marlene era negra, gorda, pobre e falava alto. Por
outro lado, aparentava calma. Muita calma. Depois de dois
maridos, três namorados, dois ficantes e quarenta e três anos
de vida, Marlene decidira que sozinha iria muito bem dali em
diante. E adotara um menino, Robson, pequeno, malcriado,
inteligente e mulato, pois o sonho de Marlene era casar-se com
um homem branco, preferentemente de olhos claros, para ter
um filho assim, mulato, mais ou menos qualquer coisa,
diferente de todas as cores, de preferência de olhos verdes que
chamassem à atenção. Mas não casou nem engravidou:
arrumou o filho assim mesmo, de uma amiga vizinha,
Aparecida, que engravidou sabe-se-lá-de-quem e não iria criar.
O menino nasceu de parto normal, parto-normal-de-parteira, e
depois dos seis meses de amamentação foi para a casa de
Marlene. Era o filho. Ela e a vizinha-amiga manteriam segredo
daquela criança por toda a vida, as duas, promessa de
cumplicidade proximal. Se bem que não mais estreitaram seus
laços depois disto.
Daí Marlene deixou de ser apenas dona de casa para
ser também “mulher de negócios”, como ela mesma se definia
de muito bom-humor, quando foi admitida para trabalhar num
laboratório de análises clínicas.
- Sou uma mulher de negócios, porque nessa bolsa
aqui eu carrego um monte de negócios, quer ver? - e mostrava
a bolsa cheia de frascos de urina, de fezes, e de tubos de
ensaio com sangue coagulado: - “é esses os negócio” que eu
carrego.
7
Saía de manhã e deixava Robson "com a menina".
Um trânsito dos diabos de Alcântara para chegar ao Rio de
Janeiro. Colhia material num pequeno posto dentro de um
hospital que quase hospital nem era. Colhia sangue, recebia
fezes, urina e esperma numa clínica em Botafogo. Isto na parte
da manhã. De tarde Marlene portava aquela bolsa cheia dos
"negócios" para a "tal de matriz", como ela também
denominava. A “tal de matriz” era a... matriz mesmo, do
laboratório, em São Gonçalo. Ao menos bem perto de sua
casa, para onde ia depois, a pé.
Ao meio-dia Marlene começava a reclamar da vida:
- Ninguém merece ir pra São Gonçalo numa hora dessa, “cruz
n‟credo”. É calor, é aperto, é gente vendendo coisa, é guarda
municipal dando porrada nos cristão, olha: só vivendo prá vê.
- Era o mínimo que Marlene falava, ao sair, todas as manhãs.
E ia, ônibus até a praça XV, barca até Niterói, outro ônibus até
sabe-se-lá-que-cafundó de São Gonçalo. Depois o sorriso de ir
prá casa, a pé, para encontrar o filho.
Chegando em casa, encontrava Robson com a
"menina", que recebia de Marlene dois reais todos os dias e ia
embora. Paz de mãe e filho pelo resto do dia. Vinha sendo
etéreo ver aquele menino crescer, menino que conseguira
acreditar ser filho dela. Passara a ter até mesmo certeza da
existência da gravidez que não houve. E contava para as
amigas de churrasco, nos fins-de-semana, como havia sido a
dor do parto, da qual se lembrava vividamente. E o quanto ele
era faminto, mamando de duas em duas horas "até a teta
secar".
- O menino tinha uma esganação, uma fome dos
horrores, parecia que queria minha teta prá ele. - E as amigas
riam, engatilhando histórias sobre seus próprios filhos.
8
- Olha, se eu tivesse dez teta, ele ia querer mamar
nas dez teta! – riam e riam, envoltas pelo calor irradiado do
cimento, o cheiro da cerveja e o batuque do pagode.
E contava de como tinha sido seu casamento com o
"falecido", pai de Robson. - Pena que o menino nunca viu o
pai, que se foi durante minha gravidez. Mas eu me lembro da
noite que eu encomendei o Robson. Falei prá minha amiga
Aparecida; "Aparecida, hoje eu vou encomendar meu filho" -
e fui prá casa. naquela mesma noite eu tive as relações e fiquei
grávida desse aqui.
Marlene havia conseguido ser algo que considerava
viável socialmente, não necessariamente uma mulher casada,
pois mulheres casadas eram raridade em qualquer faixa etária,
mas uma mulher que trabalhava fora e uma mulher com um
filho para criar, com dignidade e responsabilidade. Para
Marlene a vida só teria sentido se sentisse o orgulho de ter
com quem se preocupar além de si. Pois viver de si mesma era
meio aborrecido e sem sentido. Assim cresceu Robson, cinco,
seis, sete, dez anos, sendo o motivo para tudo na existência de
Marlene, que era uma mulher “de negócios” de cinqüenta e
três anos totalmente realizada.
Certa tarde muito quente e úmida Marlene resolveu
dar uma passada em casa antes de deixar os “negócios” na
matriz. Queria um pouco de água no rosto e um pouco
também na garganta. Chegou em casa com muita dor de
cabeça e encontrou a "menina" lívida, jogando dados com o
menino, mas com aquele ar de tragédia dissimulada tão
facilmente detectável por uma mulher de tantos dissabores,
cicatrizes e feridas como Marlene. E quis saber o que ocorrera.
O menino apenas olhava; a "menina" apenas queria ir embora
9
o quanto antes. Dali nada se extraiu. Dois reais na mão da
"menina" e ela se foi.
Dias após os outros e cada vez mais a "menina"
tinha a tal cara de tragédia na recepção a Marlene. E o menino
também, aparentando esconder alguma coisa.
- Minha filha, desembucha, o que aconteceu com
você: você deu?
- Dei não senhora, da'Marlene.
- Se deu, a gente conversa: toda menina dá: eu já fui
menina, já dei a primeira vez e posso te ajudar em alguma
coisa! - E a "menina" nada de falar.
O problema era que o menino também tinha cara de
coisa estranha. Então Marlene decidiu pela força de sempre.
Os dois contra a parede:
- Cês querem porrada, então vem porrada que na
porrada tudo e resolve! Sem essa informação você não sai
daqui hoje, menina, e Robson não tem biscoito por duas
semanas!
A "menina" queria ir logo, pois tinha coisa prá fazer.
Robson queria biscoito imediatamente, como todos os
meninos querem assim que se fala em biscoito. Assim, a
"menina" e Robson se olharam:
O menino: - É que a tia Aparecida...
A "menina": - Dona Aparecida aí do lado...
Marlene: - Que foi que essa bruaca fez, me conta logo que eu
to nervosa.
A "menina": - Ela disse que o Robson não é filho da senhora,
que é filho dela.
10
Robson ficou apenas olhando, com cara de
espantado.
- Ah, filha da puta, eu vou acabar com a raça dessa
vagabunda agora! - E saiu porta afora, furiosa, vociferando
tudo o que lhe vinha à cabeça, com a bolsa do trabalho ainda
no ombro esquerdo, repleta dos "negócios".
A "menina" saiu apressada, como se fosse embora.
Robson ficou na sala, quase chorando, mas sem saber ainda se
aquilo era motivo para chorar, e o quanto deveria chorar. Não
entendia muito bem o que estava acontecendo.
Marlene entrou sem bater na casa de Aparecida e a
encontrou vendo o "Jogo da Vida" na televisão. Pôs-se a
berrar com ela: - Você quer roubar meu filho, sua vagabunda!
Aparecida não perdeu a calma fria:
- O filho é meu e vai ser sempre meu. Eu pari e
emprestei pra você. Posso ter emprestado prá sempre: não
quero ele de volta. Já até pensei em pegar de volta, mas não
quero. Desisti.
- E tu ta vendo esse programa por quê, sua safada,
vai escrever pra apresentadora por acaso?!
- Não se preocupe que não vou pedir o exame do
DNA do Robson. Mas se eu quisesse ter ele de volta, você
sabe que o DNA bastava.
- Cala a boca que tu não vai pedir nada, sua filha da
puta! - E esmurrou Aparecida até que ela caísse no chão; e
asfixiou Aparecida até a morte, possuidamente como uma mãe
11
verdadeira. E gritou muito depois a vitória. E a vizinhança
apareceu na casa de Aparecida para assistir Marlene ainda
matando, quebrando os frascos de sangue sobre o corpo, e
abrindo frascos de fezes e de urina para cobrí-la ainda quente
com toda aquela excrescência. E berrava, e chorava, e suava,
e não havia quem conseguisse controlar. Não que assim o
quisessem, pois era espetáculo bom o que se via.
E na cena do cadáver de mulher coberto de sangue e
excrementos, rodeado de gente curiosa e faminta de desgraça
maior, chegou o carro da polícia. Detiveram Marlene. Dali
saíram a procurar o menino. Depois de procurar por toda a
casa e quintal, foram informados por uma das vizinhas que o
menino, o menino Robson filho de Marlene, tinha saído há
pouco com a "menina", aquela menina que tomava conta dele.
12
2 Os Catadores de Cocô
Moro num lugar engraçado, no primeiro andar, de
frente para uma mini-mangueira (deve ter uns 4 metros de
altura) que dá mangas gigantescas, e de uma pracinha. No
lugar que moro quase todo mundo tem cachorro. E meu
passatempo, muitas vezes, tão misantropo que me tornei, é
ficar trancado no ar-condicionado observando pelo vidro da
janela da sala as pessoas, cedo na manhã ou tarde na noite,
passeando com seus cachorros.
Quem tem cachorro hoje em dia tem uma obrigação
cívica de não deixar a rua cagada (ta no dicionário esta
palavra). A imensa maioria anda com saquinhos do Sendas (o
supermercado mais próximo) dentro dos bolsos, sempre à
postos para catar um excremento, e torcendo para que o
cachorro não esteja desarranjado, o que obriga o dono a
acocorar-se às pressas, colocar o saco aberto no chão ali
mesmo e com boa mira sob o cu do cão (também cu está no
dicionário), torcendo também para que o cão não ache o gesto
brusco ameaçador o suficiente para mudar o trajeto do
trabalhinho.
Minha mãe é uma dessas catadoras de cocô. Ela tem
uma poodle mais quieta do que um repolho e todos os dias de
tarde ela sai com a pequenina, que xixi faz no jornal mas cocô
não, por mais que tenha sido recompensada com biscoitinhos
nas vezes que não se agüentou e fez ali mesmo, no jornal que
fica sempre no chão da área de serviço. Questão de
preferência, e o que fazer.
13
O relato de minha mãe é muito interessante, pois ela
é bem sincera e irônica quando conta seus causos. Ela sai com
a cachorrinha já indignada, pois sabe que terá que catar cocô.
Um misto de vergonha antecipada e ego ferido, pois catar
bosta aos sessenta e cinco anos não estava bem em seus planos
de aposentadoria. Quando a pequenina finalmente se excita
para exonerar, ela retira o saquinho do Sendas do bolso
apressadamente, pois cocô de poodle é bolotinha dura que rola
pela calçada. Sai catando então bolinha por bolinha, sentindo o
calorzinho interno da cachorrinha que, de missão cumprida e
alheia a tudo, já está puxando a coleira para que o passeio
continue. Triste função.
Mas na pracinha aqui em frente ao meu prédio
acontece de tudo relacionado à catação de cocô: tudo que se
possa imaginar.
Tem aqueles que catam naturalmente. Catam, dão o
nozinho no saco do Sendas e pronto: rumo à primeira lixeira.
Mas têm aqueles que não dão o nozinho no saco que isolaria o
odor e o “vazamento”: o gari deve ficar tiririca se algo se
desensaca. Tem gente que tira o saquinho do bolso, olha em
volta e, se não tiver nenhuma testemunha, guarda no bolso de
volta e deixa o cocô lá: são os falso-civilizados, os
dissimulados sociais. Eita tipo comum esse... Tem aqueles que
pegam o cocô com o saquinho, despejam no bueiro das águas
pluviais (!) e guardam o saquinho novamente para um futuro
uso, e isto pode ser interpretado tanto como porcaria (pela
poluição da galeria) quanto como catação de cocô sustentável
(sob o ponto de vista do saco plástico). Tem gente que cata o
cocô com uma folha de amendoeira e sumariamente joga
dentro das lixeiras laranjas presas aos postes e, sem nenhum
pudor, saem andando com a folha na mão como se estivessem
carregando um cachorro-quente ou um taco mexicano.
14
Dependendo do tamanho e da fragmentação das fezes, fazem
diversas viagens até a lixeira. E tem, ainda na facção dos da
folha de amendoeira, os arremessadores; atiram o cocô no
asfalto, próximo à guia de calçada, para que seja varrido pelos
– novamente – pobres garis ou atropelado por pneus durante
as manobras de estacionamento.
Hoje vi uma cena interessantíssima: um senhor ruivo
e barrigudo e que usa camisas enormes e floridas, e que tem
um cachorrão preto-e-branco, daqueles cães de caça ingleses
bem inquietos, que correm sem parar. Ele passeia com o
cachorro e, enquanto anda pelas calçadas, cata todos os cocôs
que encontra, depositando vários saquinhos premiados nas
lixeiras. Seus bolsos da bermuda são recheados de muitos e
muitos saquinhos. Uma novidade este tipo que muito me
surpreendeu: é um catador de cocô voluntário. Ou compulsivo.
Os homens que passeiam com poodles têm vergonha
de catar, como se a feminilidade do poodle e a pequenez dos
excrementos lhes diminuísse a masculinidade. Já os donos dos
cachorrões, pitbulls e rottweillers, estes catam com jeitão de
ameaça. Fico até com medo de passar perto, tanto pela
ferocidade dos cães como da possível animosidade dos donos.
Isto sem contar o tamanho do cocô.
Mas algo é inerente à praticamente todos os
catadores. Sempre olham em volta, ou para as janelas dos
edifícios, para certificar-se de que terá alguém olhando, como
que num desejo íntimo de sentir vergonha do que estão
fazendo. É fato que a maioria, quando procura testemunhas, dá
de cara comigo na janela, logo eu que decidi há tantos anos
que nunca mais cuidaria de nenhum cocô a não ser do meu
mesmo.
15
3 As professoras de Piano
Dinah tinha seus 50 anos, mas aparentava muito
mais. A seqüela de paralisia infantil a obrigava a usar um
sapato com plataforma para compensar a perna que não
cresceu. Mesmo assim mancava e muito. A combinação de
seus óculos de armação vermelha com sua pele cheia de
cicatrizes de espinhas, os cabelos sempre em cachos para
cima, seus vestidos floridos e sua manqueira lhe davam a total
aparência assustadora. Além de tudo tinha voz feia,
dissonante, cheia de altos e baixos num sotaque mineiro
carregado, de Caratinga. E como toda mineira, só falava em
saudade de Minas, além de sempre oferecer doce de leite,
queijo, canjica e chuvisco.
Dinah era intolerante e se irritava muito facilmente.
Mas como alguém conseguir ser tolerante comigo? Eu era
impossível. Tinha sete anos. Começava a ler as partituras e
prosseguia de ouvido, fazendo o que bem me desse na cabeça
com as obras eruditas, ignorando completamente o que o autor
imprimira para a eternidade. Eu bem que tentava nas aulas
simular que não fazia isso em casa, mas de vez em quando, de
tanto costume de florear, mostrava minhas garrinhas
anarquistas e durante a aula escapava um floreio. Ela pegava
meus dedos e espremia contra as teclas do piano, quase os
quebrava, irritada, vermelha como geléia de morango,
esganiçando mais ainda como uma gralha e revirando os
olhos. Eu enlouquecia Dinah. Além de tudo eu tinha nojo do
piano dela, pois as teclas muito velhas de marfim já estavam
totalmente impregnadas de gordura e suor humanos. Eu
limpava com o paninho verde, o que deixava ela na maior da
fúria e com os olhos piscando como asas de borboleta. E
Dinah tinha um hábito de enfurecer qualquer pessoa que tenha
16
tímpano: enquanto se tocava, ela batia com o lápis na madeira
do piano, impondo o ritmo dela. Se havia um metrônomo em
cima do piano (que funcionava), por que ela escolhia o ruído
insuportável das estacas de um lápis? Este mistério nunca foi
solucionado.
Quando minha mãe me mudou de professora (não
me lembro o motivo), o que mais me fez falta foi a sala de
estar da casa da Dinah. Nela havia sofás de couro asquerosos,
daqueles com rachaduras que, quando alguém senta, bufam
cheiro de morrinha. Não, não era do sofá bufão a minha
saudade, mas sim de um relógio cuco que ficava na parede em
frente a ele, no meio de um monte de pratos de louça
inclinados para frente como se fossem cair. Eu chegava mais
cedo, às vezes até uma hora antes, apenas para ver duas
performances do passarinho. Como a aula era às nove horas,
eu geralmente ouvia a cucada das oito, das oito e meia e, se
Dinah atrasasse, o que muito acontecia, a apresentação das
nove. Aquele passarinho compensava todo o horror que eu
tinha ao humor e à aparência de Dinah. Quando ela me
chamava para a aula, saía do reino do passarinho para o quarto
da bruxa, onde havia apenas o piano, dois banquinhos, um
sofá, eu e... a bruxa.
Marina não era melhor que Dinah. Era bem pior. Era
uma mulher problemática, magricela, sempre com os cabelos
louros completamente despenteados, vivia tomando uísque e
estava recém-separada do marido. Eu tinha uns 12 anos.
Morava com a mãe, uma tal Dona Amineres centenária, num
apartamento de esquina com a rua Miguel Lemos e a Avenida
Atlântica.
Na casa de Marina não havia relógio cuco e nem
distração na sala de espera, senão uma garrafa gigante de
17
uísque Grant´s que ficava numa espécie de suporte gangorra.
Quando ninguém me via, eu gangorreava aquela garrafa para...
nada.
Marina tinha uns 20 graus de miopia, talvez. Ou
mais, e também ceratocone. Tão míope que usava os óculos e
uma lente de aumento; e ainda se aproximava a um centímetro
das partituras para conseguir ler. Ou seja, era semi-cega.
Depois que a vi se aproximando a um centímetro do papel
para poder ler, passei a ter certeza de que ela me reconhecia
apenas pela voz. Ou pelo cheiro. Às vezes eu desconfiava que
Marina estava bêbada nas aulas, e foi disto que ela morreu
recentemente, de cirrose hepática. A maioria dos alunos de
Marina era de judeus. Como seus sobrenomes eram todos
difíceis, eu inventava sinônimos para eles e eles me odiavam.
Não apenas pelo fato de não ser judeu (que por si já basta para
eles), mas também pela minha criatividade, eles mantinham
total distância de mim. Afinal, o gentio é uma besta, é não-
humano. Eu menos ainda que as bestas. A pequena Sara
Intrator virou "Maquininha", porque seu sobrenome me
lembrava os tratores e as colheitadeiras. Já sua irmã mais
velha, por ser muito feia, virou a "Maquininha Feia". A mãe
delas, claro, era a Maquinona. Samuel Itchkovski virou o
"Coceirinha", porque seu sobrenome começava com itch, que
é coceira em inglês. Infeliz mesmo foi o Lew Cukierman, pois
alguém me disse que o sobrenome significava "homem da
cabeça de merda" e eu nem fui constatar se era verdade: pedia
um apelido e ele passou a ser o Menino Cabeça de Merda e
ninguém mais tascava isso de mim.
Se fosse hoje, eu teria percebido que o que me
apartava do mundo era justamente minha criatividade. Tinha
direito de ser irônico e sarcástico, mas tinha que ser à custa
dos outros?
18
E tudo teria sido diferente. Ou não.
Marina, como todas as professoras de piano, reunia
os alunos para a audição de fim de ano. Com uns 14 anos,
minha peça a ser executada seria uma Mazurka de
Moszkovski. Seria não, foi. Faltando 3 meses para a audição
eu quebrei o braço esquerdo patinando no gelo. Foram 28 dias
engessado e todo o trabalho técnico perdido para executar uma
obra difícil, prestissimo, e tive que reiniciar com o braço um
pouco atrofiado. Consegui quase 80% do que tinha atingido.
Mas...
O modo como Marina tentava me estimular era o
modo que mais me travava em tudo na vida: censurando-me,
comparando-me com a Maquininha ou com o Cabeça de
Merda, e também me desafiando. De outubro a dezembro
aquela míope cretina ficava dando chilique comigo, porque eu
não conseguia recuperar a agilidade que tinha antes de me
aventurar no gelo. Meu braço esquerdo teve um retrocesso
que, sinceramente, acho que só agora aos 40 anos recuperei.
Mas ela não compreendia. Talvez se eu fosse míope ou semi-
cego como ela houvesse uma identificação que despertasse
nela o entendimento. Mas não. Era como se eu fosse o pior
aluno dela. Marina, ao invés de bater com o lápis no piano,
tinha um aparelho de fazer ritmos. Um trambolho que ela
ligava e, nas caixas de som, saíam uns batuques de péssimo
gosto. Eu penso até hoje que Marina me fazia tocar com
aquele ritmo no fundo apenas para dizer que tinha aquela
porcaria. E ritmo nunca me faltou. Bem, vá saber.
Não precisava dizer, portanto, que a partir do
momento em que quebrei o braço, Marina passou a ser um
objeto do meu maior desprezo. Para mim ela virou a "Mulher-
19
Merda". Eu não falava sobre isso em casa porque minha mãe
queria que eu estudasse piano. Eu também queria, mas não era
eu que arcava com o custo e, por isto, respeitava a decisão de
minha mãe. E, para piorar, eu considerava meus problemas de
relacionamento sinceramente graves, vivia me sentindo
culpado. Era uma tão cruel autocrítica. Mas a coragem de
dizer isto também só surgiu aos 40 anos.
Até que um dia eu estourei com Marina. Não me
lembro o motivo, mas estourei. E, pelo telefone, minha mãe,
não sei qual motivo, estourou também. Acho que o motivo foi
apenas defender a cria. Fiquei uns 3 meses sem freqüentar
aulas de piano. Até que surgiu uma proposta.
Minha mãe teve a idéia de que eu estudasse piano
popular com a técnica de Amyrton Vallim, que morava numa
casa de vila na rua Tonelero, quase esquina de Siqueira
Campos. Eu, que morava na Xavier da Silveira, considerava
aquele lugar quase a Ásia. Eu aceitei, mas tinha um problema:
Amyrton era cego e minha mãe me conhecia desde o útero: eu
debochava de tudo. Da manca pra míope e então para o cego.
Deus abençoasse meu próximo professor, depois de Amyrton
(será revelado em breve nesta crônica).
Amyrton tinha uma técnica sem partituras
convencionais. Ele criou um método que necessitava ser lido
(mas qual!), mas que era em bom português mesmo, com as
notas escritas (dó, si, fá) e o acompanhamento em cifras de
violão na parte inferior. O ritmo era ditado na apresentação da
partitura. Havia um problema, e grave. Amyrton exigia que se
copiasse o modo dele tocar. Nota por nota, no mesmo ritmo,
tudo. Ligava o metrônomo e, com seu ouvido
espetacularmente desenvolvido de homem cego, implicava
com cada detalhe sem perguntar antes se aquilo era a
20
expressão de minha individualidade. Tinha que ter os dedos
iguais aos dele, o ritmo dele, tudo dele. Ah, quantas caretas e
quantos gestos feios eu fiz pro cego. Como eu nunca fui de ser
discípulo de ninguém, cada vez que ele implicava com meus
improvisos (que deveriam ser estimulados!), eu o mandava
solenemente tomar no cu com a mão e, vocalmente, eu dizia:
"claro, professor". E assim este casamento durou muito pouco,
eu já estava na idade de 16 anos de me rebelar e me rebelei
cordialmente e à francesa, dizendo em casa que nunca mais
iria lá e que a hipótese de me despedir dele estava
desconsiderada peremptoriamente.
Foi aí que conheci uma espécie de guru. Luiz Eça.
Luizinho. Pioneiro da Bossa Nova com um histórico
fenomenal na música. Meio doido, mas eu talvez seja mais.
Mancava também, como Dinah, mas nunca perguntei se ele
tinha sido acometido de alguma paralisia ou algum acidente.
Ele contava que havia ficado oito anos em coma, que havia
viajado à Índia para que uma rosa lhe fosse materializada na
mão por um hindu e, assim, a vitalidade lhe tivesse sido
devolvida. Tudo bem, eu não estava ali para acreditar ou
desacreditar, até porque no caso dele isto não fazia a menor
diferença. Estava ali para me tornar um pianista popular.
Mas... não havia como. Não havia como ser nem um décimo
do que Luizinho era, ou nem mesmo meio por cento. Ele era
simplesmente um fenômeno de técnica, de improviso e de
sentimento. Era um gênio. Acima de tudo isto, Luizinho era
um amigo, ou um pai, por quem eu me apaixonei. Ele tinha
resposta para todas as minhas perguntas de adolescente e para
todas as minhas dúvidas de conduta e ética. Coisas que eu não
tinha coragem de falar para meus pais ou a eles perguntar. Eu
realmente precisava da experiência dele para que pudesse
compreender a mim mesmo, à minha família e à minha
condição humana. Luizinho foi quem me deu um pontapé na
21
bunda e disse: "porra, passe a gostar de si mesmo e a se
conhecer, e mais, a se aceitar!".
Foi Luizinho que me disse uma frase absolutamente
sensacional: “para apresentar 99%, estude para apresentar
200%. Enquanto não for capaz de 200%, não apresentará 99.”
O modo de estudar técnica de piano de Luizinho era
ainda mais bizarro, e funcionava. Eu me deitava todos os dias
antes de dormir, no escuro, na minha cama, e com os braços
suspensos no ar eu realizava movimentos lentíssimos com os
dedos individualmente, contando as incursões respiratórias
como na ioga. Aquilo era ioga. Eu pensava cada músculo,
cada centímetro cúbico de ar que incorporava, cada feixe
muscular que contraía. E quando me sentava ao piano, a
música saía.
Luizinho me deu também aulas de Harmonia e de
Orquestração. Orquestração eu dominei de cara. Mas a
Harmonia... Depois de um ano tendo aulas semanais com ele,
Luizinho me deu um acorde dissonante por escrito:
- Escuta este acorde?
- Sim.
- Ele é seu ponto de partida. A partir deste acorde eu quero 32
acordes de 4 notas.
- Por que 32?
- Porque 32 é um número perfeito em música. A partir deste
acorde eu quero mais 32. Cada acorde que se seguir deve ter
íntima relação com o anterior, coerente em cada nota. Cada
nota individualmente deve ser uma melodia, de modo que haja
4 melodias individuais - e bonitas, quero melodias bonitas!
Você tem 4 semanas.
- Pra quê, Luizinho?
22
- Har mo nia !!
- Mas não é cedo para...
- Cedo o quê? O que é cedo? Tudo é tarde na vida, Bruno,
tudo é tarde!
- Tá...
Fui para casa naquele dia completamente enfurecido.
Não sabia se ele era meu professor de piano ou o Coelho de
Alice. Passei as quatro semanas irritado sobre o piano,
dividindo mentalmente cada acorde em 4 melodias,
executando aquela seqüência centenas de vezes, sempre quatro
vezes seguidas para ouvir cada melodia individualmente.
Quatro semanas depois eu estava com a minha
seqüência harmônica pronta. Pronta para ir pro lixo.
- Que merda é essa? (foi a primeira vez que Luizinho disse um
palavrão comigo)
- A seqüência que você pediu...
Ele abriu um enorme livro e, de dentro dele, tirou
uma apostila: Invenções a três vozes, de Bach.
- É isto que eu quero de você.
- Bach?!
- Sim, Bach. Em cada peça destas há três melodias
simultâneas. Enquanto você não puder ouvir as três melodias
individualmente enquanto executa, nada de orquestração mais.
Toma.
- O quê? (eu estava em estado de choque, tremendo de cima
abaixo)
- Leva pra casa, fotocopia, eu quero todas as peças em um
mês, prontas.
- E a seqüência harmônica?
23
- Depois você fará de novo.
Fui para casa quase chorando e pensando
“filhodaputa filhodaputa filhodaputa”. Um livro de trinta
páginas com partituras do grande matemático Johann
Sebastian Bach. E eu refém dos dois, de Luizinho e de Bach,
por mais quatro semanas.
Não consegui tocar todas as peças. Havia um limite
para mim, um limite de raciocínio, de boa-vontade, de
paciência, que impedia que eu raciocinasse como Bach, ou
como Luizinho, ou como Luizinho queria. Um mês depois
toquei, com dificuldade, as três primeiras Invenções. Só. Foi
humilhante.
- E as outras?
- Não consegui.
- Está bem.
- Mas...
- Eu pensei que você só tocaria a primeira. Três, você é um
sucesso! Mais 4 semanas e eu quero a seqüência pronta.
Quatro semanas depois, testando a seqüência
milhares de vezes, chorando na frente do piano diante de uma
estatueta de Bronze de Beethoven que me olhava ferozmente
(mas surdo, graças a Deus), terminei a seqüência. Entrei na
casa de Luizinho quase evacuando. Fazia calor ou eu suava
como se fizesse. Ele estava, como sempre, com um copo de
mate com gelo sobre um guardanapo bordado, sobre o piano.
Não me deixou sentar no piano, arrancou o caderno de minha
mão e sentou-se ele:
- Vamos ver isto aqui.
24
Luizinho executou o primeiro acorde:
- Este é o meu acorde.
- É.
- Shh...!
Ele continuou. Em cada acorde ele deixava o piano
ressonar por uns três segundos. A partir do quinto acorde ele
começou a cantar uma das melodias, a encolher os ombros, a
chorar. Quando terminou os 32 acordes, Luizinho estava aos
prantos.
- Você está pronto.
- Como assim, Luizinho?
- Pronto, Bruno. Pronto. É isso aqui o que você sabe fazer,
uma das seqüência mais lindas que já ouvi na vida.
- Eu não acho.
- Merda !! Quantas vezes já te disse que você deve gostar de
você?
Luizinho pegou o caderno onde estava escrita a
seqüência e, ainda tremendo com a caneta escreveu na parte
livre da folha: "Meus infinitos parabéns. Luizinho Eça".
Esta partitura guardo até hoje e não posso vê-la
muito: é de chorar. Executá-la quase nunca. Prefiro a memória
acústica que tenho de Luizinho, de ombros encolhidos,
tocando e cantando.
Nas aulas seguintes Luizinho desandou a falar de
um projeto de montar uma escola de piano popular onde eu
seria um dos professores. Mas esta idéia não se concretizou,
não houve tempo: Luizinho enfartou antes disto. E
sinceramente foi uma das minhas maiores perdas - ele. Eu não
queria ser professor para ele. Nunca tive a técnica necessária,
25
nem o raciocínio harmônico. Não tenho até hoje; nunca
consegui aprender teoria musical direito e o fracasso diante de
Bach significava para mim que eu não era músico, e do
contrário ele nunca me convenceu.
- Mas eu preciso de seu sentimento!
Então eu compreendi. Mas o que faria um
sentimento isoladamente?
Bem, eu não estaria sozinho.
26
4 A Mão que Me Manteve Vivo
Quem me conhece minimamente sabe de minha
intolerância com crianças, embora eu seja um fã ardoroso da
lógica que elas carregam e divulgam, da energia que doam aos
adultos indiscriminadamente, sem contar a honestidade com
que desovam seus sentimentos, sem medir conseqüência.
Hoje foi um dia de estar com uma criança. Não uma
criança qualquer: o sobrinho de meu melhor amigo. O
programa proposto foi interessante, porém cansativo: ir a um
museu onde há diversos aviões, informações sobre eles e até
uma réplica do 14-bis. Porém um museu distante, apesar de
dentro da cidade: cerca de cinqüenta quilômetros daqui de
casa. E tem gente (de Sampa) que ainda acha o Rio de Janeiro
pequeno... Um programa interessante e rico, ainda mais na
companhia de uma pessoinha de cinco anos repleta de
conclusões inéditas para nos contar, diante da vastidão de
informações e objetos que via.
Na caminhada longa pelo Museu Aeroespacial o
pequenino não parava quieto. Queria sentar em todos os
lugares improváveis de sentar, escalar coisas nunca escaladas,
correr descalço para todos os lados e conversar com qualquer
um que lhe aparecesse na frente. Para um adulto de mais de
quarenta anos, o incômodo que isto causa é, em alguns
momentos, desesperador. E havia muito para se ver. Chapéus
de pilotos, aviões, turbinas funcionando com sensores de
presença que surpreendiam em súbito movimento, material
bélico vasto, foguetes que o país desperdiça na Base de
Lançamentos de Alcântara, aeronaves de guerra e de aviação
comercial abertos para visitação, cheios de poeira e fedendo
27
tanto a mofo. Criança endoidece com isto e o menininho
estava completamente possuído por um espírito circense e
curioso. Talvez isto estivesse gerando nele tamanha
inquietação e desnorteio. Eu estava exausto. A mãe dele estava
exausta. O tio dele já estava desligado da bagunça do menino,
que já estava descalço correndo com os pezinhos pretos de
tanta sujeira. Já não adiantava mais pedir-lhe uma pausa nas
correrias e nos gritos. A mãe cansou-se de vez e sentou-se
num banco de uma pequena praça de alimentação. Sequer
tinha força para seguir tomando conta dele e me disse um
extenuado “olha ele pra mim um pouco”. Então tive a idéia
brilhante de lhe oferecer sorvetes. O garoto quis sabor de uva,
sujando-se inteiro com tinta roxa escorrida pelas mãos, queixo
e pela blusa branca. Depois quis sorvete de limão. Pior ainda,
depois de tanta imundícia não quis lavar nem o rosto e nem as
mãos: foi um sufoco pedagógico convencê-lo a lavar-se com
água abundante para ficar socialmente apresentável. Depois de
muito insistir até o limiar da perda de paciência com crianças,
ele se lavou. Voltou com uma carinha indignada, molhada de
não se secar, e furiosa:
- Eu não queria lavar minha mão. É que quando eu
sentisse saudade do sorvete, eu ia querer tanto lamber minha
mão – assim ele disse, brilhantemente.
Como eu nunca havia pensado nisto? Tão simples
lambuzar-se com comida para comer os restos depois. Ah, a
lógica infantil.
Terminada a longa visitação ao museu, por dois
hangares longos e quentes, todos decidimos almoçar num
shopping center que vive abarrotado de gente. O menininho
quis arroz, feijão e carne apenas. O prato ficou enorme.
Compus meu prato com peito de peru ao molho escabeche,
28
vagem cozida e uns bolinhos fritos de queijo e presunto, pois
também tenho meu lado criança de comer coisas apenas
gostosas, mesmo que não sejam nutritivas. Mas o menino
falou durante todo o almoço que havia esquecido a batata frita,
e que almoço para ele era sempre arroz, feijão, carne e batata.
Depois de repetir mais de dez vezes e ser ignorado pela mãe, o
que foi compreensível pela simples lógica da sobrevivência
materna, eu me levantei e disse que ia comer mais. Enchi um
prato de batatas fritas e de bolinhos de presunto e queijo.
Levei à mesa e o garotinho arregalou os olhos de surpresa.
Mas ele já havia comido muito arroz, muito feijão e muitos
pedacinhos de carne. Comeu uma batatinha, comeu a segunda
batatinha e a terceira, sempre me olhando nos olhos. Lá pela
quinta batatinha, ele apenas mordeu a pontinha e ficou
mastigando devagar. Com toda a sinceridade do mundo, que
só existe nas crianças de cinco anos, ele me disse recheado de
comida, vergonha e desapontamento: “eu já estou com a
barriga muito cheia...” Sim, claro que ele recebeu de volta um
imenso sorriso meu e a resposta de que não era necessário
comer mais. O que eu não sabia era que ele estava
incuravelmente desapontado de não conseguir comer todas as
batatinhas fritas que lhe surpreenderam tanto. Afinal, que
homem era aquele, que nem seu pai era, que lhe trazia tantas
batatinhas fritas sem nenhuma obrigação?
Acredito que sua maior decepção tenha sido estar
com o estômago cheio. Mas, mesmo assim, sem entender
ainda que não se possa agradar a todos, a culpa o invadiu de
alguma forma que a lógica infantil explica – mas que não sou
capaz de compreender muito bem. Ele quis deitar-se no meu
colo de todo jeito, depois de comer. Era o aconchego de
agradecimento.
29
- Mas por que você quer se deitar, logo agora depois
do almoço?
- É que eu preciso fazer a digestão… - ele
dissimulou.
Tentei explicar:
- Mas para fazer a digestão você precisa fazer o
contrário: precisa caminhar ou ficar sentado. Sabia? Senão a
comida não se mexe dentro de você.
- Mas a comida não se mexe dentro de mim, tio!
Expliquei então, ou tentei, que tem um trenzinho dentro da
nossa barriga. E que para este trenzinho andar, a gente precisa
se mexer e muito. Ele ignorou, acho que nem prestou atenção.
A idéia do trenzinho não lhe convenceu de absolutamente
nada. Deitou sua cabeça entre minhas pernas e soltou os
braços para os lados, como num desmaio, para que eu o
segurasse inteiro. E assim eu fiz, abraçando-o em pictórica
proteção. Mas logo chegou a hora de sairmos do restaurante
antes que o garçom nos desejasse a morte, pois certamente o
nó no pano de prato já estava dado, em nosso nome, em algum
lugar da copa.
O menino andava devagar no shopping. Estava
cansado e de estômago cheio. Fez questão de ficar de
mãozinha dada comigo todo o tempo. Acontece que era um
garotinho de mãos suadas. E eu tenho tal aversão às mãos
suadas, mas claro que tenho mesmo é aversão às mãos suadas
dos adultos. Pelo menos até aquele momento era isto que eu
pensava sobre minhas convicções. A experiência com a
mãozinha suada de uma criança, entretanto, não era menos
desagradável: apenas a mão era muito menor. Depois de andar
todo o primeiro andar do shopping, eu já sentia certo
desespero de segurar aquela mãozinha inteiramente molhada e
quente: é que sou muito calorento também. Criei coragem e
30
pedi a ele que segurasse apenas meus dois dedos, o segundo e
o terceiro, da mão direita. Assim eu ficaria com minha palma
da mão livre do calorzinho dele, e de seu suor caudaloso. Mas
qual foi minha surpresa diante do seu protesto:
- Tio, sempre que eu segurar sua mão, eu quero
segurar sua mão inteira. Eu não quero segurar só seus dedos
porque eu gosto muito de você.
Ele acabava de me provar que as crianças estão
sempre ávidas por nos amar. A partir desse instante e até o fim
do nosso passeio, não larguei mais aquela mãozinha molhada
e tórrida. A mão mínima, colada na minha, era minha única
ligação com a sobrevivência e nada, rigorosamente nada além
daquela pequenina mão, seria capaz de me manter vivo. Muito
pelo contrário, eu tinha a sensação de que morreria
instantaneamente se perdesse o contado com aquela mão de
amor.
31
5 Baile de Máscaras
Mário chegou sozinho na festa de casamento de sua
''colega'' Heloísa. Aspas porque ela já havia sido amiga dele,
mas ele não: ele necas de ser colega dela; Mário era de uma
capacidade invejável – invejável até certo ponto - de não sentir
nada por ninguém, de orbitar em si mesmo, não deixar a
costeleta à mostra na janela da torre de seu castelo. Respirou
fundo uma única vez - era o suficiente para ele - e entrou
naquele salão onde a música já tornava as conversas
proibitivas e os olhos da maioria já avermelhavam de bebida.
''Quem sou eu no mundo'' - apesar de já ter esta
resposta há muitos anos, saber que era um total clandestino,
que não era nada e nem ocupava qualquer posição, ainda se
perguntava por resíduo de esperança. Olhou para trás e a balsa
do Caiçaras ia ruidosa buscar mais convidados. Ajeitou o
terno azul-marinho, certificou-se da simetria da gravata
vermelha na noite parda e se os sapatos não estavam
engolindo as barras das calças. Estava esteticamente rigoroso.
Dirigiu-se à noiva e a beijou pelo casamento. Cumprimentou
palidamente o noivo semi-desconhecido e foi lentamente para
o salão. Sua miopia desarmada proposital permitia vultos
braços musicais; luzes piscando e a música, bela música,
desagradavelmente alta. Da janela do salão a mancha verde
era o gramado sombreado.
Aquelas pessoas dançando, sorrindo, gargalhando,
brincando umas com as outras: ''quem sou eu no mundo''. Ah,
sim, e n‟alguns nichos era notável a dança do acasalamento.
Então eram felizes, mesmo que em datas marcadas.
Assim era a humanidade e ponto-final. Tantas roupas
32
brilhantes, cabelos impecáveis, homens de colete, alguns de
polainas, copos brindantes de pro secco, pessoas desfilando e
cumprimentando umas às outras em série, por vezes
convidando-se umas às outras para dançar. ''Então são todos
felizes''.
Sentou-se. A cada dois minutos um garçon lhe
oferecia uma fritura a qual ele recusava. Seus olhos estavam
fixos nos sorrisos daquelas pessoas que eram tão, tão felizes.
''Por que eu não sou assim?…''. Não era. Sua felicidade era
mesmo marginal, suas músicas, seus livros, seu pão francês
com toneladas de requeijão nos domingos de manhã e um
copo de Coca-Cola, vil líquido negro. Seus cinco travesseiros,
seu DVD da Mercedes Sosa. Mas ali as pessoas sorriam
muito, eram lindas, cheirosas e dançantes: ''então é isto a
felicidade. O que estou fazendo de errado?''.
A noiva reapareceu e lhe agradeceu o presente; o
noivo aproveitou para lhe dizer que ele estava mais magro no
peso que mantinha há vinte anos. E seu celular tocou: era seu
melhor amigo: outro homem com quem ele havia decidido
passar o resto de seus dias - e versa-vice - muito embora
nenhum dos dois sentisse atração sexual por homens. Retirou-
se e, enquanto conversava, afastando-se da festa em direção à
lagoa, o ruído esmaecia, surgia aos poucos uma súbita paz de
festa distante, consagrada pelo encontro de quatro bancos de
ferro em círculo, protegidos pelo gigantesco flamboyant que
atapetara tudo ali com flores vermelhas caducas. Sentou-se
para conversar com sua alma-gêmea. ''Esta parece ser uma
felicidade, das muitas possíveis''. E uma grande folha marrom,
no chão, obedecia ao vento de um modo diferente. Miopia
corrigida pelo aperto das fendas dos olhos: era um sapo. E
como estava assim diante de uma total espontaneidade
solitária e batráquia, sentiu-se plenamente feliz. ''Eu, o mar,
33
esta árvore, este sapo, meu melhor amigo no telefone. Quem
pode querer mais.''
Voltou para a festa semi-refeito. Sentou-se no
mesmo lugar de onde saíra e prosseguiu sua contemplação.
Ver como o mundo era feliz e ele não. O que fazer?… Sabe-se
lá: far niente.
Surge finalmente uma conhecida: ex-cunhada da
noiva. Ela traz uma cadeira e senta-se com ele. ''Ta gostando
da festa, Mário?'' Mário consente, pois aprendera a
produtividade do consentimento. ''Ta nada, você ta odiando!''
Admite, pois aprendera também a nobreza de admitir.
E eis que Laura - este é o nome dela - lhe passa a
contar detalhes da vida alheia. ''Veja que crianças
interessantes, fáceis, brincando nesses sofás. Elas é que estão
se divertindo.'' Era verdade. As crianças pulavam os ritmos e
brincavam com adereços. Havia espontaneidade tal qual a
espontaneidade do sapo coaxante, mais pesado que as flores
vermelhas, ao sabor da brisa, marrom à beira da lagoa em
meio àqueles bancos de ferro, aproveitando-se da miopia
alheia desarmada para se fingir de folha de amendoeira.
"Aquela ali está condenada, tem câncer de pâncreas". A
condenada dançava, via-se agora que seu semblante não era
plenamente alegre e que se sentava um pouco ofegante, com
ritmada freqüência. "Aquele ali é um primo meu, já transamos
três vezes, a esposa dele nem sonha". A mulher do primo
dançava amistosamente com o marido que julgava ser posse
dela e, como os viu olhando em sua direção, acenou. "Aquele
pôs prótese peniana, imagine". Era um careca de lente de
contato verde, o que não deixa de ser outra prótese. "Aquele
ali largou a faculdade e foi morar no mato, misturado a um
34
grupo de ciganos, para tristeza dos pais. Nem sei o que está
fazendo aqui".
"Nem eu. Que saiam todos"
Ao longe, um casal visivelmente decidia o destino
de seus ciúmes.
Assim, pouco a pouco, o baile de máscaras se
reconfigurava: menos pessoas, mais embriaguez e quietude,
música que ia ficando abandonada, cansaço de alguns, tristeza
de outros que por fim se viam nus e sem propósito. Alguns
rostos faziam perguntas sem resposta, como se isto fosse
possível: não responder qualquer pergunta que se imagine
formular. E se perguntam diversos porquês indignados,
quietinhos em seus cantos de meio-de-salão: por que comi e
bebi tanto, por que ri tanto, por que dancei tanto, como se nada
fosse aceitável sem uma boa dose de culpa ou remorso.
Também como se houvesse um contraste devastador entre
suas vidas e aquele momento, de profano que deveria ser,
acabava tendo a obrigatoriedade de ser divino.
"Pode ser que eu seja, já há tanto tempo, tão feliz".
Este foi o último consciente de Mário antes de se despedir da
amiga, ates de se reencontrar com seu carro e seus asfaltos,
depois seu chuveiro de água quente e maternal e, por fim, seus
cinco travesseiros amantes. Se o céu não estivesse encoberto
haveria Lua, para mais rapidamente sonhar.
35
6 O Enforcado Não, não é a carta do baralho do tarô onde figura um
homem de cabeça para baixo, preso pelo pé. Trata-se de um
enforcado de verdade, em carne desvitalizando e osso,
realmente pendurado pelo nó no pescoço. É uma cena horrível
de se ver. Deveria ser proibido. Mas foi isto que ele quis fazer,
e a vontade própria é respeitável. Fico imaginando nos
“antigamentes”, quando as pessoas se reuniam nas praças de
execução penal para ver condenados a morrer na forca. Que
tipo de motivação leva uma pessoa a ver alguém ser
enforcado? Bem verdade que é uma característica genética
nossa, um gostinho delicioso de ver o próximo sofrer.
Aglomeram-se diante de qualquer sangramento, qualquer
atropelamento ou assassinato. É uma avidez por líquidos
orgânicos e tragédias de fim de vida, que sempre são
horrorosas. E acendem velas para si mesmas, fingindo ser para
o defunto, como forma de se desculpar pela atração mórbida e
aética de ver o próximo sofrer até morrer. É o paradoxo da
compaixão e do gozo pelo fim do outro.
Vou contar aqui a história de uma mulher
aparentemente comum. Digo aparentemente porque, naquela
época, era o jeito que ela vivia que era assim chamado, de
comum: era casada, tinha uns filhos, era dona de casa ocupada
com limpezas, culinária e recepção: tinha algumas amigas e
primas para servir um bolo no fim do dia e falar mal de
alguém. Após cuidar dos filhos durante a manhã, despachá-los
para a escola e ver um pouco de televisão, recebia suas amigas
à tarde, e depois os filhos de volta, aprontava-os para o sono
próximo e ficava à espera de rever o marido, enquanto assistia
a uma novela. Era assim, uma vida assim, comum mesmo.
Mas não era mulher feliz. Detestava dois dos seus três filhos,
especialmente o mais velho. Detestava o marido e fazia disto o
36
seu assunto diário com as amigas, na hora do chá. Detestava
ser dona de casa, mas não tinha coragem de procurar emprego,
pois não fora educada para tal e achava que os homens tinham
obrigação de sustentar as mulheres. Detestava também ser
mulher. Isso mesmo, um horror a ser mulher. Queria ser
homem, pois assim poderia apaixonar-se por outra mulher sem
sentir-se castigada por deus ou mesmo envergonhar-se diante
da sociedade sempre tão inquisitória e… devastadora.
Esta mulher tinha um relacionamento muito ruim
com seu pai. Ele morava a apenas duas quadras dela, sozinho e
viúvo. As conversas ao telefone eram breves e irônicas, bem
como as visitas eram breves e espetadas. Contava para as
amigas ela que tinha mágoas de seu pai, incorrigíveis; seu pai
dizia a todos que tinha mágoas dela, também incorrigíveis. A
verdade é que nenhum dos dois sentia muita vontade de se
corrigir em nada, nada mesmo. Iam levando suas vidas, nesta
cadeia de ódio entre gerações, de mágoas facetadas, mal-
explicadas e em mão-dupla, sempre em pé de guerra e
fingindo não serem guerreiros.
Para piorar suas latências dolorosas, ela nutria uma
forma de amor e libido por sua prima-irmã, que sempre ia lhe
ver às tardes para conversar sobre sogras e maridos, enquanto
comiam bolo e tomavam chá e café.
Acontece que sua indignação com a própria
existência foi tornando-se insuportável e assim, num ímpeto
de seguir vivendo, a mulher tomou a decisão de que mudaria
tudo. E começaria verbalizando, falando todas as verdades,
mesmo que invertidas fossem, a todos por quem nutria ódio,
mágoa ou inseria culpa. O primeiro a sofrer foi seu pai,
justamente seu pai, que não estava muito preparado para ouvir,
apesar dos oitenta anos. Saiu de casa andando apressada e
37
pisando forte na calçada como se fosse um soldado
determinado. E “matou” seu pai mais ou menos assim:
- Eu não gosto de você. Jamais gostei. Pelo
contrário, sinto raiva, nossos encontros me fazem mal. Não
quero mais ficar vindo aqui vê-lo toda hora. Quero que
combinemos o seguinte: que me telefone quando sentir-se mal
ou necessitar que eu compre alguma coisa. Só.
O pai engoliu em seco e concordou, porque é mais
conveniente concordar com os filhos crescidos.
O segundo a sofrer verdades corridas foi seu filho
mais velho, assim que chegou da universidade:
- Eu não gosto de você, jamais gostei. Pelo
contrário, sinto ódio mortal de você. Arrependo-me de não ter
lhe abortado. A partir de hoje não quero mais vê-lo no jantar.
Não me peça mais para fazer batata-frita. Mantenha-se no seu
quarto e eu estarei rezando no meu, para que arrume logo sua
vida e saia da minha casa o mais rápido quanto possível.
O filho entalou com a determinação da mãe, sentiu
vontade de matá-la, mas era mais conveniente ficar quieto,
pois não tinha teto e nem dinheiro suficiente naquele momento
para rebater-lhe com o que pensava e, muito menos, tomar
atitudes.
O terceiro a sofrer foi o marido, assim que chegou
do trabalho:
- Não te amo mais. Tenho asco do nosso sexo e do
seu suor. Nossas conversas me enfadonham e o dia a dia
contigo é monótono. Não suporto vê-lo sem roupa. Não quero
38
mais requentar o prato de comida para você, quando chegar
tarde do trabalho. A partir de hoje, quando quiser sexo, apague
a luz para que eu não o veja.
Cada etapa deste “livramento” desta mulher lhe
insuflou uma auto-estima torta e falsamente poderosa, que ela
confundiu com vitalidade. Ela entendia, com aqueles atos,
estar conquistando alguma coisa para si, desconsiderando o
sofrimento dos outros. Ela não percebia que, em verdade, sua
perda era ainda maior e incalculável.
Assim passou duas semanas numa euforia que
confundiu cegamente com felicidade. Pensou que estava se
tornando uma pessoa melhor. Acreditou que exercer suas
decisões em forma de maldade lhe traria uma liberdade de
juízo pleno e justo. Foram duas semanas em que comprou
roupas novas e andou pelas areias da praia com chapéu e
óculos escuros respirando, profundamente e de rosto erguido,
a brisa do mar. Convidou a prima não apenas para o chá, mas
para o almoço e para ir ao cinema. Ignorou o marido quando
chegou do trabalho, esqueceu que tinha filhos, principalmente
o mais velho, sentindo-se solta, livre e vingada.
Mas na terceira semana preocupou-se com seu pai,
pois ele não lhe telefonara para nada até aquele momento.
Discou seu número, mas ele não atendeu. Decidiu então que,
no dia seguinte, assim que acordasse, iria a casa dele levar uns
biscoitos e uma pequena cesta com alimentos. Sentiu-se um
pouco severa demais com ele e, já satisfeita com a pequena
vingança verbal, planejou um desjejum para os dois. Assim
fez. Acordou na manhã seguinte bem cedo, foi ao
supermercado e encheu uma sacola com biscoitos sortidos,
iogurte, queijo branco e dois pães franceses para que
comessem com manteiga. Como ele demorou para abrir a
39
porta depois que ela tocou a campainha, ela usou a cópia da
chave que possuía para entrar. Seu pai estava na posição
vertical, pendurado pelo pescoço em uma corda que o
sustentava no corrimão do segundo andar da casa. Tinha as
mãos cerradas, o rosto arroxeado e não existia mais. Ela
fraquejou as pernas, deixou as compras soltarem-se de suas
mãos ao chão. Em cima da mesa onde planejava o desjejum,
havia um terno completo, até com gravata e abotoaduras.
Sobre o terno um bilhete escrito à caneta trêmula: “este é o
terno do meu enterro”.
Imediatamente menstruou. Ainda faltavam duas
semanas para a regra descer, mas menstruou. E foi a última
vez que sangrou mensalmente.
Esta história tem uma continuidade longa e triste,
extensamente longa e morbidamente triste, que eu prefiro
manter em segredo. É que, neste dia de última hemorragia,
esta nossa personagem conseguiu um pouco do que quis a vida
inteira: deixar, em parte, de ser mulher. Ela nunca mais viu
seu filho mais velho. Seu marido, após alguns meses, foi-se
para muito longe e encontrou outra mulher para amar às
claras. Ela passa até hoje, todos os dias, tentando fazer novos
amigos, inventando para eles uma vida que não teve,
mitificando um passado feliz de realizações familiares.
Arrependida, sim, mas convicta de que viveu o que não
existiu. Idealizou o passado e passou a se apresentar ao mundo
como a mulher mais feliz e realizada do mundo, mas que
perdeu o contato com sua família de crápulas e egoístas que
não lhe deram nenhum valor como mãe e esposa. E todos os
dias, quando decide dormir, ela pede a deus, em quem
acredita, que a perdoe e traga de novo sua regra menstrual,
nem que seja por uma única e última vez.
40
7 Serenata… de Amor, claro
O pequeno Gabriel saiu de casa puxando seu velocípede
vermelho e azul, com o auxílio de uma cordinha feita por seu
pai e presa ao guidão, até o lugar onde poderia pedalar. Era
um grande momento, o de poder pedalar novamente, pois era
sua primeira convalescência de muitas que a vida traria. Uma
felicidade só. Sorrisos, pulinhos, pequenos gritos e correria. E
ainda melhor: estava sem camisa, pois estava bastante calor!
Sua mãe, atenta da janela que dava diretamente para o pátio
dos fundos do edifício, não poupou recomendações
impacientes: “não pode isso! Não pode aquilo!” Mas ele é que
sabia o que podia, e certamente podia tudo!, sua mãe é que
não se lembrava mais como as crianças se recuperam rápido
dos problemas de saúde. Havia apenas sete dias que ele se
submetera a uma cirurgia para retirar as amígdalas que
estavam bem, bem grandes e inflamadas, e lhes rendia antes
muitos dias na cama apenas vendo TV, sem conseguir falar
direito e, geralmente, com febre alta e vontade de chorar. O
que ele não imaginava é que, depois da cirurgia, ele sentiria
muito mais ardor lá no fundo da boca, porém por menos dias;
isso sem contar a bruta dor no corpo. Sua mãe o enganou bem,
como fazem as mães quando educam os filhos para irem
tranqüilos e confiantes para as cirurgias: “Gabriel, o doutor vai
lhe dar um cheirinho e você não verá nada: quando acordar, já
estará novinho em folha e nunca mais sentirá dor na
gargantinha”. Ele tinha que acreditar, não havia escolha, afinal
era sua mãe que estava lhe dizendo aquilo. Mas bem que a
questionou logo em seguida, no pós-operatório, com aquela
baita dor cem vezes pior e sem conseguir falar absolutamente
nada de verdade, isso sem contar o braço preso na cama com
um canudinho entrando nele e com uma tabuinha amarrada na
mão. Chegou a se perguntar se aquilo aconteceria todas as
41
vezes que sentisse alguma coisa ruim como era a dor de
garganta, e pensou em não aceitar mais nenhum cheirinho
inofensivo mesmo que sua mãe lhe dissesse que sairia melhor
dele. Além disso, marcaram a cirurgia bem na véspera de seu
aniversário, o que certamente aqueles adultos bobos deveriam
considerar coisa boa, pois levaram balões, chapeuzinho e
sorvete de creme para ele em pleno hospital, sem que nada
daquilo interessasse a ele. Achou aquilo tudo uma boa
porcaria, pois preferia bolo e bagunça com outras crianças
como foi no ano que passou, mas fingiu gostar de ser
agradado. Além de sua primeira cirurgia e primeira
convalescência, foi também seu primeiro fingimento, de
muitos necessários ou propositais que também viriam com o
tempo.
Mas o pequeno Gabriel estava já pedalando no pátio dos
fundos quando, subitamente, lembrou-se da existência de
Luana.
Luana era a menina do terceiro andar. Uma menina
bonita e de sorriso fácil, que fazia muito bem a ele. Por vezes
ele chegava lá e encontrava-se casualmente com Luana. Ela,
com bonecas e panelinhas, pedia sempre para pedalar um
pouco no seu velocípede. Enquanto ela pedalava, ele xeretava
as miniaturas coloridas de mulher-grande com as quais Luana
brincava. Depois cada um ficava com seus brinquedos e,
enquanto cada um usava o que tinha para imaginar um monte
de coisas, ferravam um papo bobo, de frases aleatórias e
descrições soltas, que só eles entendiam – e muito bem.
Conversa que adulto não entende jamais e ainda pensa que os
pequenos são tolinhos, achando muita graça e contando para
os amigos nos fins de semana regados à cerveja e amendoim,
por pura falta de assunto, mesmo.
42
Com saudade de Luana, Gabriel parou seu velocípede
em frente à sua janela:
- Lua-naaaaaaaaa!
E nada de Luana aparecer. Mas apareceu sua mãe (a
dele), numa voz austera, firme e definitiva: “eu falei pra você
não gritar, Gabriel!” – mas ele ignorou:
- Lua-naaaaaaaaa!
Luana finalmente apareceu, entre as grades de
alumínio bastante oxidadas, da janela de sua casa.
- Luana, eu já to bom, to com saudade de você, vem
brincar comigo!
- Não posso, Gabriel! – ela estava sendo taxativa e
convicta!
- Por que não pode, Luana? – aquilo era inaceitável.
- Porque minha mãe não ta em casa, eu tenho que
esperar ela chegar pra ela me ver da janela.
Gabriel ficou decepcionadíssimo. E logo esqueceu,
pois sua mãe apareceu de repente na sua frente, com pernas
compridíssimas que entravam num peignoir florido, dando-lhe
uma bronca de apenas ouvir com medo do grito virar palmada.
Ela não queria que ele usasse a voz de jeito nenhum, “pra não
forçar a garanta”. Seja lá o que isso significasse, ele tinha que
obedecer. Ouviu até o fim com a cabeça toda para trás para
poder ver sua mãe inteira, com os cabelos pendurados
cobrindo o pescoço, e achou melhor deixá-la a ir embora para
43
poder pedalar novamente, já que ela podia, sabe-se deus por
que, até proibir-lhe de continuar no velocípede. Pedalou mais
um pouco e logo aquela aventura de dar voltas no pátio
sozinho perdeu o sentido. Foi novamente à frente da janela de
Luana:
- Lua-naaaaa!
A menina apareceu.
- Se eu cantar uma música para você, você desce pra
brincar comigo?
- Não posso, Gabriel, minha mãe não ta em casa…
- Mas nem se eu cantar muito?
- Não posso…
Gabriel decepcionou-se bastante, mas olhando pro
chão, depois para o velocípede, e feliz de sua mãe não ter
aparecido novamente na sua frente para aplicar-lhe o golpe
final de ter que retornar para dentro de casa, resolveu cantar.
Para si, que fosse, ou para o comemorar seu dia de poder
brincar pela primeira vez depois de sete, desde que Luana
ouvisse e sua mãe não aparecesse:
- “Eu tenho tanto pra lhe falar, mas com palavras
não sei dizer: como é grande o meu amor por você…”
Cantava altíssimo, cada vez mais, e esquecera-se de
tudo: de sua mãe, da garganta, da Luana que não viria mesmo;
esquecera até mesmo de que estava pedalando. Até que
44
empacou numa frase, pois além dessa frase não sabia mais a
música:
- “Nem mesmo o céu, nem as estrelas, nem mesmo o
mar, e o infinito”
E repetiu esta frase dezenas de vezes, pedalando
freneticamente ao redor do pátio, como numa fúria de não ter
perto de si Luana rodeada de panelinhas rosas e amarelas. Até
que cansou-se de tudo; parou, ficou olhando para o nada que
estava bem diante de si.
- Gabriel! – era Luana na janela.
Ele olhou para cima, novamente levando os cabelos
da nuca até a base do pescoço.
- Gabriel, você canta tão bem…
Luana estava o tempo todo na janela vendo Gabriel
brincar: ele é que não havia percebido. Ela sentia tanta
vontade de estar com ele em vez de ficar trancafiada em casa
com aquela empregada desatenciosa e mecânica, esperando
sua mãe chegar para a tal da autorização sempre cheia de
poréns. No fundo, pensou ela, e também pensou ele, foi uma
brincadeira diferente: a primeira brincadeira do afeto, de
muitas, sim, muitas mesmo, que ainda viriam por aí. A
primeira brincadeira de sentir saudade, de agradar o objeto da
saudade e atraí-lo para si, de sentir felicidade com a presença
de outra pessoa e de cantar, sem sentir vergonha, para quem,
por existir, faz tanto bem. “Não é melhor, não é maior, nem
mais bonito”
45
8 Braço Direito
Estava debruçado sobre o paciente de boca aberta,
súbita sensação de infarto agudo do miocárdio, igualzinho ao
que se descrevia na TV: dor no peito, no braço esquerdo, um
enjôo, um tal frio. Um mês depois, ainda internado no
hospital, tomando anticoagulante, sem a perna esquerda.
Como se um século houvesse passado diante de si, projetado
na persiana do hospital de dias e noites e dias e noites: “eu era
assim, aquilo tudo; agora sou assim, isto aqui. Para quê
sirvo?” Uma necessidade de redimensionamento urgente de
tudo.
Sem o trabalho, sem a perda, sem seguro-saúde. Sem
a esposa já estava há dois anos, ela que desaparecera como
tantos desaparecem, e ressurgira nos braços de uma novidade.
Pelo menos não teve a pachorra – ela – de dizer ao sair que
iria comprar cigarros. A quantidade de gente que desaparece
por ter ido comprar cigarros era impressionante. Era o caso até
de se incluir nos anúncios de cigarros da TV, na tela azul que
vem depois: o Ministério da Saúde Adverte: Fumar Provoca
Desaparecimento de Pessoas.
Nunca imaginou que, aos 40 anos, fosse necessitar
de cirurgia, UTI, remoções, transferências, enfermeiras,
reabilitação. Precisou disto tudo e de muito mais. Vendeu seus
dois apartamentos e ainda se endividou.
Por sorte seu colega de profissão, com quem dividia
o consultório, estava dando conta de todos os pacientes. Para
46
isto se desdobrara em dois, trabalhara quase o dobro de seu
horário, e nos sábados, às vezes domingos, a fim de honrar os
tratamentos já iniciados pelo amigo mutilado pela trombose
arterial que lhe custara a perna e toda, inteirinha, completa
auto-estima.
O que restava estava ali, imóvel, visualizando
passado e futuro na persiana bege de um hospital. E sem saber
muito o que fazer. Bem verdade que vontade de fazer coisa
alguma. De passar a ser um contador de histórias numa cadeira
de rodas ou de balanço. Muita vontade de morrer, mas de
viver também, por medo de morrer ou desejo de sonhar,
impossível acertar. E eis que no momento de menor vontade
de qualquer coisa, entra o médico responsável:
- Seu Dimas, vamos pra casa hoje?
- Vamos.
Este “vamos” era, em verdade, um “não sei”. Porque não
sabia mesmo. Vontade tinha, mas não sabia exatamente para
quê. Se não sabia exatamente para quê estar no mundo sem a
perna, imagine-se então ir para casa, para quê?…
Foi. No minúsculo conjugado e sua nova casa, troco
da venda de um apartamento e quitação de parte das dívidas,
toda uma equipe de reabilitação que o ensinaria a andar com a
perna nova. “Perna nova” é a coisa mais engraçada de se dizer
da falta de perna. Não deixava de ser, de todo modo, uma
perna nova. Não deu em nada. Não se adaptou de modo algum
à perna mecânica: tombava, tropeçava, e assim foram meses
de tentativa, de insistência, de frustração, e lhe rompeu com
força total a psoríase refreada por mais de quarenta anos. Uma
psoríase contida pelo fenótipo que lhe floreou todas as dobras,
47
o flanco, e até o pênis. E assim decidiu morrer. Era, além de
um homem sem perna e sem poder trabalhar, um homem com
a pele detestável. Com a pele repulsiva por placas
avermelhadas que descamavam e repugnavam. Decidiu e
pronto. Era morrer. Além de tudo as placas coçavam. Não
poderiam coçar. Sensações demais. Desconforto demais.
Desilusão demais.
Pois antes de morrer decidiu que brigaria
definitivamente com deus. Nunca foi de rezar, mas de
conversar.
- Porra, seu filho da puta! Eu sempre fui tão correto, nunca
roubei nem matei, sempre me preocupei em tratar bem as
pessoas, em ser-lhes útil, e é isto que para mim você reserva?
Esta desgraça? Agora me diz, em quê eu mereço isto?
Ou talvez merecesse mesmo. No entanto, preferia ter
certeza de que não. Afinal, era um homem essencialmente do
bem.
E mais meses se passaram. A solução para a falta da
perna não terminou nem sendo muletas – que lhe feriam ainda
mais as placas de psoríase, mas um andador destes de velho
bem velhinho. E ele ia pelas calçadas do Flamengo, pé à
frente, andador perseguindo, pé à frente, andador…
Encontrava o psicanalista duas vezes por semana, tomava seus
anticoagulantes, seus antidepressivos, aplicava os ungüentos
que os especialistas em pele prescreviam, sem muito sucesso.
Por sorte seu colega ainda lhe ajudava no
consultório. Cria ele que seus doentes o esperavam
ansiosamente. Mas um dia sua secretária lhe telefonou para
48
outra finalidade que não a de perguntar se ele estava bem. Seu
colega, o que o vinha amparando profissionalmente há tantos
meses, desaparecera.
- Doutor Dimas, os clientes estão ligando, querendo
tratamento, o que eu faço?
Foi aí que a vontade de viver lhe abarrotou como uma
nova trombose fosse. Então era o trabalho que o faria andar, e
andar rápido, do fim ao começo do Flamengo, para reassumir
seu território. Andou. Fez bolha no pé que vinha sendo sub – e
super também – utilizado por todos aqueles meses. E os bíceps
incharam, de pressa furiosa e vital, rumo a seu quartel-general.
Na portaria do edifício onde ficava seu consultório,
o porteiro quase desmaiou quando o viu: “Ah, Doutor Dimas
ta morto!”. E saiu imediatamente dali o faxineiro do prédio,
totalmente cardecista que era, berrando pela portaria, avisando
aos quatro cantos e aos circulantes que doutor Dimas o estava
assombrando, que todos tinham que vir ver o espírito de
doutor Dimas.
Mesmo assim entrou no elevador, entrou em seu
consultório, assumiu sua cadeira e seus instrumentos,
ocupando, definitivamente, seu território.
49
9 Ô Claudinha...
Moro aqui há três anos. Antes morava na região dos
grandes e imundos lagos fluminenses.
Logo que cheguei, primeira providência: Telemar,
instalação de telefone. Telefone é sempre aborrecimento.
Vieram, instalaram um número tão difícil que eu mesmo
esqueço pelo menos uma vez por semana.
Logo na primeira semana começa a tocar pra cá um tal número
com prefixo de Botafogo...
- A Claudinha?
- Número errado, senhor. Clic.
Novamente, na manhã seguinte:
- A Claudinha, por favor.
- Não tem Claudinha aqui, senhor. Adquiri este telefone
recentemente. Clic.
Acontece que a coisa não parava. Todos os dias, sem
tréguas de fim de semana, feriados, nunca. O sujeito acordava
sempre pelas 5, 6 da manhã, sempre morrendo de saudade da
Claudinha. E telefonava para ela (eu), muitas vezes ébrio,
incoerente, sem noção de ridículo. Sim, eu acabava acordando
junto. A Claudinha, o alvo da importunação, esta felicíssima
estava imune! Qual!
Aquilo foi me deixando tão enfurecido, mas tão
transtornado de ser surpreendido com a mesma situação todas
as manhãs que, um dia, antes de sequer ouvir a voz do sujeito,
atendi o telefone aos berros:
50
- Porra, 'putaquepariu', não tem merda de Claudinha aqui, ô
cacete! Pára de ligar pra minha casa a esta hora, seu filho-da,
filho-do, filho-de ! - eu simplesmente não parava de exorcizar
o insistente, em taquicardia, suor frio e cara vermelha e
quente.
Para minimizar a chateação, inclusive para tentar me
poupar de futuros e certeiros descontroles, comprei uma
secretária eletrônica; assim, ouvindo minha voz masculina e
propositadamente cavernosa mais algumas vezes, quem sabe,
o sujeito desistiria de procurar a tal Claudinha que, pelo visto,
era um amor totalmente não-correspondido. Mas não. Agora,
todos os dias, mesmo ouvindo a minha voz de homem na
gravação, o infeliz faz questão de registrar na secretária
eletrônica:
- Ô Claudinha, faz isso comigo não, meu amor. Atende esse
telefone. Eu te amo tanto, minha deliciosa. Não me deixa,
Claudinha. etc etc etc.
Agora é minha vez: Poxa, Claudinha... eu lhe imploro! - se
você lê isto aqui, procura este raio desse homem, dá cabo dele
de vez ou volta pra ele, desde que eu passe a ter o direito de
dormir além das cinco da manhã...
51
10 Tia Dorina
Tia Dorina é uma “idosa” de oitenta e cinco anos
que acaba de receber alta do Hospital da Ordem Terceira da
Penitência, após dois meses na Unidade de Tratamento
Intensivo, a tal UTI. Depois de um derrame em decorrência de
hipertensão arterial negligenciada, passou mal, teve dor de
cabeça, perdeu a força e o movimento dos lábios e de um dos
braços, e foi parar toda torta no hospital, com sangramento lá
dentro do cérebro. Ô azar.
A internação foi penosa, necessitou de coma
induzido e de tubos. Mas aos poucos recuperou-se, voltou a
falar, desentortou-se o rosto e já está de volta a casa, até
pensando em escolher uma nova cor para pintar os cabelos.
Minha mãe vibrou ferozmente com a desgraça de
Tia Dorina. Eu não. Nunca fez parte de meu modo de ser isto
de ser feliz com sofrimentos dos outros, por mais que os
outros possam ter feito por merecer. Disse ela – minha mãe –
que vinha desejando um fim trágico para ela há cerca de
quarenta anos – que é quase a minha idade. Pois quando eu
nasci, um dos primeiros netos ou sobrinhos-netos da família,
nasci com os vinte dedinhos – como era hábito temeroso
contar no berçário naquela época de talidomida, mas
desafortunadamente nasci sem um pequenino pedaço da orelha
esquerda. E, segundo conta minha mãe, mitomaniacamente ou
não, tia Dorina fez deste considerado “defeito físico” motivo
de grande escárnio e comemoração na gigantesca família onde
fui inserido, no meio de dez tias-avós absolutamente
fofoqueiras e maledicentes. Tia Dorina teria ferido minha mãe
em seu maior temor, talvez, no medo de ter um filho
defeituoso de corpo ou de caráter. No meu modo de ver
52
durante a infância e a adolescência, a falta de um pedaço do
lóbulo de minha orelha foi mesmo um motivo de vergonha
para minha mãe somente, pois talvez se considerasse uma
fêmea má geradora ou má nutriz, já que seu filho tinha pedaço
de menos no corpo. Passou minha infância e adolescência me
assediando para me submeter a uma cirurgia plástica, na qual
uma pequena pele da nádega seria transplantada para a orelha
e eu, finalmente, teria o corpo “perfeito”, talvez neutralizando
o escárnio de tia Dorina. Para isto eu teria que ser exibido
novamente à família, como se fosse um troféu de novo no
berçário. Acontece que eu sempre gostei muito mais de minha
orelha defeituosa do que da outra teoricamente perfeita, porém
maior e menos harmoniosa com meu rosto – aos meus olhos.
E com o tempo passando, verdade isto é, nem me lembrava
mais que orelha eu tinha, a não ser na hora do banho, por ser
parte do corpo tão sebácea e tão dada a odores azedos,
merecendo o maior dos caprichos com o sabonete. E sim,
como esquecer, quando ia ao pediatra, Dr. Gregório, que
sempre me dizia que o que faltava na orelha estaria muito
provavelmente sobrando no cérebro. Acho que ele pensava
que me consolava dizendo essa grande idiotice. Ou minha mãe
transmitia a ele este trauma envergonhado de ter um filho com
a orelha diferente. Hoje entendo que certas asneiras têm que
ser ditas, se delas resultar um período de conforto e harmonia
a quem as ouve.
Mas vamos às verdades.
Tia Dorina tem responsabilidades graves na família.
Poucas pessoas gostam de Tia Dorina. Ela, junto com minha
avó que faleceu de pneumonia bem há pouco, foram
responsáveis por boa parte de todos os desentendimentos entre
todos, se não rigorosamente por todos. E eram desprovidas de
escrúpulos. As duas possuíam uma habilidade duofacetária de
53
estabelecer um disse-me-disse que, em poucos minutos, se
espalhava por toda a gigantesca família de doze irmãos, trinta
e seis sobrinhos e cento e doze netos, fora os sobrinhos-netos.
Depois que todos se inimizavam acreditando nos “disses” de
uns e nos “me-disses” de outros, criando um cenário de ódio e
desconfiança generalizados, elas novamente entravam em cena
como grandes apaziguadoras. Ô safadas. As pessoas, sabe-se
lá por que falha de julgamento, acreditavam no resultado final,
no qual as duas desejavam apenas fazer reinar o bem-estar da
família e muito contribuíam para isto.
Eu rompi com isto aos quinze anos. Mais
precisamente no dia do meu aniversário de quinze anos. Neste
dia minha mãe insistiu em me fazer um bolo e centenas de
brigadeiros, o que eu detestava (não os brigadeiros, mas a cena
dela os enrolando e reclamando do trabalho que dava, embora
estivesse determinada a terminar), e convidar algumas primas
e tias-avós, além de minha madrinha de batismo e minhas
avós. Seguramente eram convidadas apenas as pessoas que
certamente me dariam algum presente em dinheiro e que
passariam a tarde inteira tagarelando e gargalhando numa
espécie de conspiração contra o resto da família que não
estivesse presente para se defender, ou confrontar. Era um
nojo quando as piores víboras da família (justamente as
convidadas!) se reuniam, geralmente na casa de minha avó,
comentando as roupas, as vozes, os gestos, rindo do infortúnio
dos ausentes, dos casamentos desfeitos, da feiura dos genros.
A tônica era sempre a aversão à figura do homem. Sim, elas
aparentavam ser todas muito inimigas do sexo masculino.
Tia Dorina foi a primeira a chegar, como sempre,
por ansiedade e por morar muito perto. Tia Dorina gostava de
acompanhar o circo todo, desde a compra dos bilhetes,
passando pelos trapezistas quase suicidas e pelos ridículos
54
palhaços, até o grande incêndio final. Morava a uma quadra de
nós e tinha uma empregada que lhe trocava até os absorventes
íntimos. Nunca trabalhou na vida. Nunca fez rigorosamente
nada a não ser comprar bijuterias. Seu ex-marido, conhecido
contraventor da zona sul carioca, era também reformado pelo
exército como incapaz (embora fosse de todo capaz), e dava-
lhe metade do soldo como acordo de desquite. Uma das
distrações de minha mãe era falar da vida sexual de tia Dorina,
que tinha um amante no andar de cima, casado com outra,
legítima, e que bastava um estuque com o cabo de vassoura no
teto do quarto para que ele descesse as escadas e mandasse
brasa nela. Outra distração era falar da inutilidade de tia
Dorina, seu sedentarismo, sua futilidade manifestada nas suas
coleções de sabonetes envoltos com malhas de crochê,
dezenas de águas de colônia, brincos e anéis vagabundos.
Mas fugi muito do assunto, desculpem-me: tia
Dorina foi a primeira a chegar. Não me deu nada de presente.
Sentou-se no sofá e puseram-se, minha mãe e ela, a falar mal
de minha avó e de minha madrinha. Ouvi-las falar mal das
pessoas era divertido, afinal eu estava em plena fase de
absorção e queria aprender a conviver e a conversar. Pena que
o exemplo que eu tinha era aquele, o de um bando de
endemoniadas sempre furiosamente dispostas a difamar e
blasfemar contra os outros.
Em seguida chegaram minha avó e minha dinda.
Minha mãe e tia Dorina ficaram um tempo com aquela cara de
quem peidou na igreja ou dentro do elevador lotado, aquela
cara de idiota que todos nós fazemos quando estamos falando
mal de quem que, em seguida, aparece na nossa frente, num
súbito incapacitante, sem que tenhamos tempo de nos
recuperar do próprio veneno; mas habilidosamente elas
55
recuperaram a naturalidade. E, agora em grupo de quatro
mulheres, puseram-se a falar mal de Nádia.
Nádia foi a que chegou em seguida. Nádia era a puta
assumida da família. Orgulhava-se em dizer que só não
arranjava um homem pra conhecer sua cama quando decidia
sair nas ruas olhando para o chão. Era uma mulher com cara
mesmo de sexo, e que pintava os cabelos com um tom de
louro que só existe nos albinos, o que realçava uma mancha
avermelhada que tinha no canto esquerdo da boca. A voz de
Nádia era detestável: uma voz miada, lasciva como sempre
estivesse fingindo orgasmo. E talvez esta voz fizesse parte do
personagem proposital. Seu modo de seduzir os homens na rua
era particularmente interessante: ela se aproximava deles e
dizia que eles tinham “cara” de que gostavam de arte. Em
seguida à receptividade, ela dizia que tinha um Debret em casa
(e tinha mesmo, na parede sobre seu criado mudo – ainda bem
que mudo). Então perguntava ao homem já fisgado se ele
gostaria de conhecer seu Debret. E o homem ia conhecer... o
“Debret” de Nádia. Era assim. Um respeitável talento para o
acasalamento. Nádia abriu a carteira discretamente, assim que
entrou sala adentro, ao lado do piano, e me estendeu uma nota
de cem cruzeiros, a nota de maior valor naquela época. Minha
mãe, sempre cobiçando, mandou-me logo esconder o dinheiro
no quarto, afirmando que mais tarde se concentraria comigo
para decidir a melhor forma de gastá-lo. Pura cobiça. Cumpri
a ordem, guardando o dinheiro na gaveta central de minha
escrivaninha, voltando para a sala.
As cinco mulheres então se puseram a falar mal de
minha avó paterna que estava para chegar. Falar mal de minha
avó era o prato cheio de minha mãe. Afinal, era sua sogra. Em
todas as reuniões de família ela dava um jeito de inserir
maledicências sobre minha avó nas conversas. Isto estimulava
56
as demais, e o assunto passava a ser uma grande desova
generalizada e comparativa de maledicências sobre as sogras
de cada uma. Competiam para ver quem teria a pior
experiência com a respectiva sogra, a que falava mais, a que se
metia mais no casamento da nora. Curioso era que, já naquela
época, eu percebia o quanto havia de mentira nas verves
daquelas mulheres. Talvez por saber que era lorota pelo menos
oitenta por cento de tudo que minha mãe falava sobre minha
avó, eu dava um desconto também no que as outras falavam. E
as considerava notáveis discípulas de Lúcifer. Infelizmente,
devido a isto, criei nos meus arquivos uma idéia de que
mulher talvez não fosse bicho de se confiar.
Minha avó paterna, a sogra, a bola da vez, foi a que
chegou por último. E quando ela tocou a campainha, fez-se
um enorme silêncio de surpresa que ninguém conseguiu
naturalmente passar a falar sobre a morte da bezerra. As testas
de todas, os olhares perdidos, denunciavam que coisa boa não
estariam falando, e minha avó entrou na sala com o ar
aristocrático inabalável que tinha, sempre sabendo de tudo
mas fingindo não perceber nada. Não que minha avó paterna
fosse santa. Ao contrário, era bem chegada aos
endemoniamentos tal como as outras, mas nunca, nunca
mesmo, pude considerar as pequenas maldadezinhas de minha
avó graves como as maldades das mulheres da minha
ascendência materna.
Ela entrou, beijou-me e desejou feliz aniversário.
Abriu a bolsa e tirou de dentro dela um pacote com um
baralho de plástico Kem, sonho de consumo meu naquele
momento da vida. Depois pediu licença, sentou-se e
posicionou a bolsa ao seu lado no sofá. Ficou olhando para as
outras com fingimento de naturalidade, fitando rosto a rosto, o
que sabia fazer como ninguém, e com aquela cara de “e agora,
57
o que conversaremos?”. E como as demais estavam totalmente
paralisadas diante de terem sido surpreendidas sem
inteligência e improviso suficientes para transmutar o assunto
cruel na simples morte da bezerra, puseram-se a me
bombardear. Minha tia Dorina foi a primeira, como sempre, a
pioneira:
- Você agradeceu à sua avó o presente que ela lhe deu?
- Claro que sim.
- Não vi você agradecer. - ela arrematou, por falta de assunto.
- Agradeci sim.
Eu, que estava sentado no braço da poltrona onde
minha madrinha estava, abaixei meu rosto e fiquei olhando
para o carpete cinza, desejoso de que o tempo voasse como
um falcão e todos aqueles discípulos do inferno saíssem da
minha casa.
Tia Dorina, ainda sem imaginação sobre o que
conversar, insistiu:
- Mas nós aqui não vimos você agradecendo à sua avó!
- Agradeci sim, claro que agradeci, não foi, vó?
- Agradeceu. - foi o que minha avó fez, abreviadamente e
balançando a cabeça afirmativa e lentamente, olhando para
todos a fim de terminar aquele assunto. Seu rosto era
pragmático, grave e enojado.
Mas não conseguiu. Tia Dorina, num rompante
inexplicável de sadismo, resolveu me obrigar a agradecer
novamente à minha avó “na frente de todos”, para que fossem
testemunhas de que eu realmente havia agradecido o presente.
Eu, como era de se esperar, comecei a chorar. Fui ao banheiro
e lá me tranquei, molhei o rosto, vomitei em seguida, fiz um
58
pipi sentado, fantasiando em como envenenar todas aquelas
mulheres com cianureto de potássio, caso o possuísse.
Recuperei-me, sequei as últimas lágrimas dos meus quatorze
anos na toalha. Fui à sala; parei em frente a todas:
- Atenção - todas olharam, ainda impactadas com a presença
de minha avó paterna – Vocês estão me vendo e me ouvindo?
- Estamos. - apenas tia Dorina respondeu.
- Pois olhem bem meu rosto; ouçam bem minha voz. Guardem
bem na cabeça. Pois é a última vez que vocês me verão.
Saí, fui para o meu quarto. Tranquei-me lá e não
ouve toctoc insistente de mãe ou avó que me fizessem abrir a
porta. Só saí quando certamente a casa não tinha mais nenhum
inimigo. Obviamente a situação foi apenas o motivo maior
para eu tomar esta decisão. Muito aconteceu antes. Muito
assédio moral, humilhações públicas, maledicências que
atingiram direta e definitivamente a formação de meu caráter,
definindo meu modo de ser e de agir, especialmente em
relação às mulheres.
Estou com mais de 40 anos. Não sei como tia Dorina
ficou depois de velha. Não sei se aquelas mulheres todas
deixaram de maldizer e de semear discórdia. Nem lhes dei
chance. Nem me arrependo, tampouco. Na verdade nem sei se
ainda está viva neste exato momento a tia Dorina, pois afirmei
ontem que não faço questão de saber notícias de pessoas que
não existem a não ser em forma de fantasmas. Nunca fui nem
aos enterros de familiares, nem mesmo ao enterro de minha
avó. E olhem que morreu muita gente, já. Jurei e cumpri, que
ninguém na família de minha mãe jamais me veria novamente.
Literalmente tirei meu corpo fora. Já meu espírito,
este passou a vigorar de modo totalmente distinto do que eu
59
planejei. Mas o resultado foi adequado, digamos assim.
Dorina.
60
11 Elas
Elas eram assim: ela canceriana com ascendente em
Aquário; ela-outra capricorniana com ascendente em Áries.
Conheceram-se na internet e foram se encontrar acreditando
que já se entendiam bastante, o que foi o maior dos
estranhamentos. Para piorar, no horóscopo chinês, ela era tigre
e ela-outra, macaco. Viva a diferença. Ela engenheira química,
ela-outra gerente de uma loja de roupas em um shopping
Center movimentado. Foram a dois astrólogos brincar de
acreditar em sinastria: o primeiro disse que elas não tinham
longa vida juntas. O segundo disse que elas seriam muito
felizes enquanto estivessem juntas, apesar da lua em oposição
a saturno. Ficaram confusas. Eram destinos distintos para suas
vidas, mas reformularam seus projetos num destino
denominado - por elas - comum. Ela-outra então foi no
terreiro, tomou um banho de manjericão e de arruda, limpou-
se para o relacionamento dar certo. Só como precaução,
mesmo não acreditando em mandingas. E ela, ela foi no padre
gay - poucos sabiam que era - que prestava uma certa
assistência psicopedagogico-cristã aos homossexuais nos quais
ele depositava confiança de se confessar. O padre foi claro:
"vivam a vida de vocês" - bem frase de padre. Ela-outra foi
então na taróloga-ichingueira, numeróloga, uma espécie de
guru polivalente budo-indiana que ela-outra apelidara
ironicamente de Shana-shava-shiva-shota. A guru testou todos
os seus métodos para predizer - tentar - algo para as duas, mas
limitava-se a ecoar "É, esquisito; é... esquisito" enquanto
fuçava seus baralhinhos e suas pedrinhas. Ela saiu dali, então,
um tanto frustrada e inconformada, mas decidida a viver o
presente. Na alegria, na tristeza, na tosse, no câncer, no que
viesse. Pediram conselhos aos amigos, mas cada um
aconselhava de acordo com o que fosse mais conveniente e
61
gerasse mais resultado para si. E foram vivendo. No primeiro
mês foram ao sul do país e acordavam muito felizes. No
segundo mês ela-outra trocou de carro e fizeram a estréia num
fim-de-semana em Paraty, lugar que ela odiou. No terceiro
mês ela passou uma semana com a família, em Ourinhos,
deixando ela-outra cheia de saudade; por outro lado, ela-outra
trocou de emprego e ficou eufórica, dando mais importância
ao trabalho novo do que a ela. O quarto mês elas consumiram
trabalhando, vendo TV de mãos dadas nos fins-de-semana e
cuidando do filhote de labrador, presente de ela-outra para ela.
No quinto mês os corações congelaram: ela bateu com o carro
num ônibus, ferindo gravemente os passageiros e gerando um
processo legal; ela-outra perdeu o emprego, ficando bastante
deprimida e ansiosa, bem como sem proventos – o que sempre
dá uma rasteira no amor. No sexto mês elas foram ao padre, na
guru, ao terreiro, aos astrólogos, e pediram conselhos aos
amigos - que estavam apaixonados para ter suas amigas de
volta. No sétimo mês ela e ela-outra conversaram bastante - e
morreram.
62
12 Verdades de verdade
Existem as verdades que são genuinamente
verdadeiras. Mas são poucas e são tão nobres. Ou são muitas e
eu venho formando um conceito errado, amedrontado e
desconfiado, acerca delas. Existem as verdades mentirosas,
ilícitas – são tantas nas quais temos que fiar ou fingimos
acreditar, até. Há verdades transitórias, também chamadas de
vigentes, convenientes ou apropriadas. E há verdades
ficcionais. Há verdades míticas! E verdades antagônicas.
Existem verdades históricas que nem se sabe se são mesmo
veridicidades, mas a História é sempre tão convincente,
interessante e elegante. Ô, como há verdades. Há verdades
secretas, ocultas, camufladas de mentira e até verdades
íntimas, como pérolas cultivadas, que nada mais são que…
bolinhas de plástico.
A minha verdade é funcional e até vital para mim,
mas pode ser fatal para você. Não existe uma verdade
unânime, muito menos uma verdade atemporal. A minha
verdade se transforma, a sua pode nunca mudar. Ou pode a sua
verdade convicta alterar daqui a anos favorecendo a minha
verdade, mas ser tarde demais. E nossas verdades, de um dia
para outro, tornarem-se inimigas e divisórias, completamente
inválidas ou inúteis, ah não é nada raro isto acontecer.
Existe a verdade do agora, do antes de tudo, a
verdade improvisada; e a verdade do daqui a pouco, do depois
que ninguém vê ou depois do ninguém soube.
Existe a verdade da noite, do dia, das portas
fechadas, das janelas abertas, da presença dos pais ou dos
63
filhos, da troca de roupa em vestiário público e a verdade
doida e, muitas vezes, doída, dos papéis sociais – que nem
sempre são… de verdade.
A verdade pode ser apenas um começo, mas pode
ser também um meio, um fim, um meio de vida ou uma via de
fato. Existe a verdade revelada, a verdade póstuma, a verdade
fofocada ou aquela em que é mais cômodo acreditar. Existe
também uma verdade estranha: a que não se quer saber jamais.
A verdade impossível é, para muitas pessoas, a única
forma de sobreviver com sua própria verdade, que pode ser
tosca, omitida e vergonhosa. E há a verdade inventada do
passado, na qual se passa a acreditar para poder sobreviver,
especialmente quando se teve um passado do qual se quer
desligar.
A verdade velada, batizada de meia-verdade,
sinceramente me é incompreensível. Juro que faço de tudo
para crer que ela é metade de uma crônica maior, mas não
consigo. É que minha verdade é, às vezes, limitada e presa à
verdade total.
Existe verdade falada, gritada, afônica, rouca e
sussurrada. Existe verdade silenciosa, paralisada, assustada e
até a verdade que nem precisa ser verbalizada. Existe verdade
dos olhos, da boca, das rugas da testa, das pernas trêmulas, do
vazio no ventre e até do suor das nossas mãos.
Existe verdade emocionada, aliviada, intencional,
arrependida e aturdida. Existe até verdade sem querer: por
descuido – e pode ser chamada de verdade incontinente.
Existe verdade trocada, direcionada à pessoa errada, ou
equivocada, mesmo que por alguns instantes. Existe verdade
64
súbita, verdade demorada, verdade preguiçosa, atrasada e até
verdade apressada. Existe uma verdade gananciosa,
oportunista, falso-modesta e, portanto, pouco garantida.
Existe verdade sem memória, e esta é tão perigosa
depois.
E existe verdade em dor, em choro, em reza, em
sacrifício, de joelhos, implorada, em poema e em música.
Existe verdade saborosa, hilariante, tenebrosa e até a
verdade que jamais deveria ter o direito de ser verdade.
A verdade suicida é aquela que, subitamente, separa
algo ou alguém de outra coisa ou de outra pessoa. E passa a
ser verdade polêmica, duvidada, desastrosa ou até mesmo
esquecida, se for melhor assim. E há a verdade incrementada,
aquela baseada numa tola passagem, mas que exige tornar-se
muito interessante para que se possa contar aos outros e os
distintos se interessem em ouvir. E olhem a narrativa da
verdade, acreditando, nos olhos de quem a descreve.
Ah, como existem verdades...
Existe a verdade do futuro, a verdade muito
sonhada, tão imaginada, delirante até, pois que alguns a
chamam de esperança…
Eu acredito em todas estas verdades.
65
13 Pequenos Malefícios
Maternos O menino sofreu por toda a infância com desníveis
afetivos e emocionais. Sentia alívio, em seguida a um grande
desespero. Mas o alívio era curto, pois uma nova semente de
desespero era-lhe depositada no pensamentozinho que queria
tudo que conhecer, tudo que ver, menos tudo que sofrer.
Certa vez sua mãe lhe disse: “você não é meu filho,
sinto muito; você foi encontrado na lixeira, assim como sua
irmã”. O menino desesperou de verdade, por uns dois dias,
chorando quase todo o seu soro fisiológico, chorando até ter
cãibras, quando finalmente a mãe se satisfez com tamanha
crueldade, e por (talvez) saciedade satânica ou, mais
otimisticamente, culpa auto-criticada, resolveu devolver ao
menino a verdade: que era sim, sua mãe, e que sim,
certamente, o menino passara uns 8 ou 9 meses se
desenvolvendo dentro de sua barriga. Isso em seguida à
fecundação realizada pelo pai. Sim, o pai também haveria
introduzido seu pinto nela, para que isto acontecesse. Todas
essas perguntas houveram que ser respondidas para que o
menino conseguisse acreditar, desconfiadamente para todo o
sempre, que era sim filho daqueles dois.
A mãe tinha o costume cruel e irônico de sair de
casa dizendo sempre que, se não retornasse, poderiam contar
que haveria morrido de alguma morte qualquer. E que teriam
que se virar sem ela, o que afirmava categoricamente ser
impossível. As crianças ouviam isto todos os dias e, se a mãe
demorasse mais do que uns minutos além do previsível, era
desespero certo: estaria morta, seqüestrada, ou seqüestrada-e-
morta. Até isto a mãe fazia com os filhos: inseria-lhes no
66
íntimo, registrava na memoriazinha faminta deles, várias
formas de morrer para si mesma, sempre horríveis, sempre
sofisticadas, deixando as crianças em total desamparo mesmo
na presença dela.
A mãe também sentia muito prazer em dizer aos
filhos que o fato deles não terem sido abortados e ter-lhes sido
permitido, por um descuido do superego, a vida, a inserção
milagrosa da consciência individual, era-lhes um favor, um
benefício ao qual não mereciam, e um malefício ao qual ela
também não merecia, a este fardo insuportável de ser mãe.
A mãe também sofria descargas de cortisona e de
opióides em dizer aos filhos que, a qualquer deslize deles,
mesmo que fosse andar com a coluna torta pela casa, seriam
eles expulsos, para sempre, para um lugar onde seriam
internados, e onde seriam infestados por piolhos, e pela sarna,
e onde provavelmente pegariam tuberculose até que as
cavernas pulmonares lhes matassem de falta de ar.
A mãe também preferia, ao invés de promulgar
segurança, ameaçar os filhos de não terem mais onde morar,
de irem morar nas ruas como morava o homem que cheirava
éter ou a mulher de branco de Ipanema, isto sem motivo, sem
mesmo rol de exigências, apenas pelo prazer de dizer que tudo
lhes era esmola, a casa, a água, o feijão, o sabonete.
O carinho, a mão nos cabelos, o beijo no rosto, ah,
estes não existiam. Existiam sim, quando nas ruas, na frente de
amigas da mãe, de aparentados da mãe, para que os outros
tivessem a idéia de que naquele lar perfeito de tortura
inigualável, existia atenção continuada e positiva.
Mas era pura Dor.
67
O menino, fatalmente, teve que inventar uma forma
de sobreviver. Teve que aceitar desde muito cedo que aquela
mulher não poderia ser sua mãe. E, para isto, elegeu outras
mães, alguns modelos certos e outros errados, algumas mães
bonitas e outras bem feias, algumas muito saudáveis e sutis,
outras bastante rudes e doentes. Mas muitas mães. À medida
em que foi crescendo, a dúvida de ser seu filho verdadeiro
desapareceu, isso da desconfiança genética. Tinha seus dentes,
seus pés e seus cabelos. Mas teve que aceitar para si que
aquela mulher, no seu íntimo organocerebral, não poderia
jamais ser sua mãe. Escolhera modelos éticos e polarizados de
muita positividade e vida.
Entretanto, o fantasma do medo de ruína e do
desamparo já lhe haviam sido plantados desde sempre.
Este menino, quando tinha quarenta anos, tinha uma
esposa. Casou-se tarde, aos trinta e oito, pois só a esta idade
conseguiu acreditar que nem todas as mulheres seriam
terríveis, traiçoeiras e cobras. Mas sua esposa, certa vez,
viajou de avião, do Rio para Salvador, para um Congresso. O
meninão solicitou que ela, ao chegar lá, ela lhe telefonasse
para dizer que chegara bem.
O tempo passou um pouco e, alguns minutos depois
da hora prevista, o meninão entrou em desespero. Ela poderia
ter morrido, ter sido seqüestrada ou pior, ter sido seqüestrada e
morta. Ela poderia ter desaparecido. Poderia ser também que
ela não o considerasse mais seu esposo, seu companheiro, e
que tivesse decidido abandoná-lo. Ainda pior, ela poderia estar
lhe condenando ao exílio sem motivo.
O meninão dirigiu até o aeroporto e lá esperou uns
vinte minutos, urinando a cada dois, até que entrasse no avião
68
para Salvador. E chegando em Salvador, entrou no primeiro
táxi já com uma nota de cinqüenta na mão para que o
motorista o conduzisse muito rapidamente àquele hotel. No
hotel ele subiu apressadamente pelas escadas.
Quando ela abriu a porta do quarto, ele caiu no chão
de fraqueza. E chorou pelos quarenta anos que investira no
controle de poder sofrer até o limite. Chorou até ter cãibras.
Chorou até seu soro fisiológico acabar.
Ela o abraçou e o acolheu. Ela o proporcionou
conforto e segurança naquelas horas que se seguiram e
dormiram juntos.
Mas ele negou-se a explicar o motivo de ter sofrido
tanto.
69
14 Identidade, Ética,
Profissionalismo e Paixão
Hoje, dia 26 de março de 2008, foi um dia que, se a
demência não vier, lembrarei até mesmo no meu momento
derradeiro na vida. Um dia no qual ganhei um abraço. Mas
não um abraço qualquer. Um abraço. Desses que fazem os
pêlos eriçarem. Desses sem definição possível. Desses.
Reunião da Sociedade de Dermatologia. Eu, como
sempre, um dos primeiros a chegar. Sento-me, como sempre,
numa das últimas fileiras, onde estou ao mesmo tempo isolado
e satisfeito em meu voyeurismo de ver pessoas entrando e
saindo, levantando e sentando, virando as cabeças e mexendo
em suas coisas, sejam cabelos ou objetos que carregam.
Lá na frente, na primeira fileira, vejo a pessoa que
mais admiro no meio acadêmico. Minha professora preferida.
Eu a reconheci pelos cabelos, sempre revoltos e despenteados,
alourados. Seu jeito quase ausente.
Hesitei. Não sabia se deveria ou poderia falar com
ela. Mas queria.
Entrei na faculdade de Medicina em 1986 e a
conheci em 1988. Até o fim da graduação e depois até o fim
da especialização, foram 8 anos de convivência, sempre
estreita, até 1996. Eu a admirava tanto que a admirei de cara,
de reflexo. Seu modo simples, seu silêncio, sua presença
gigantesca. Seu conhecimento sempre franco, sempre amplo, e
sua irrestrição em transmiti-lo. Sua boa-vontade. Tantos
predicados.
70
Entretanto, havia alguma barreira. Eu percebia que,
diante de minha tentativa de aproximação, ela se afastava.
Talvez por causa dessas definições sociais de homens e de
mulheres, dessa sociedade fálica e heterossexista, nas quais os
homens estão sempre à procura das vaginas das mulheres. Não
sei. Preferi acreditar que ela não gostava de mim como aluno
tanto quanto eu a venerava como professora. E respeitei seu
distanciamento.
Mas nunca desisti de me manter perto dela, nos
mesmos ambulatórios, nos mesmos horários de enfermaria,
sempre ávido por sua orientação.
Ela parecia ser uma pessoa fria, distante. Aos poucos
fui percebendo que ela sofria de um problema semelhante ao
meu: éramos os dois pessoas de certa diferenciação
antropológica. E para quem pensa que esta definição se refere
a algo no contexto da eugenia, engana-se. Nossa nobreza
antropológica significava o seguinte: éramos nós mesmos e
pagávamos um preço caríssimo por isto. Tentávamos fingir
diplomacia, mas não conseguíamos. Por mais que tentássemos
esconder nossas definições, elas transpiravam sem que
pudéssemos controlar – e todo mundo percebia. E como “todo
mundo” era, na verdade, um exército de predadores
insaciáveis no fogaréu de suas vaidades cretinas e
dissimuladas, repletas de carreirismos e devastadorismos,
apreciávamos certa distância.
Até que, um dia, sempre sozinho, isolado pelos
outros da especialização, cheguei no ambulatório na parte da
tarde bem mais cedo do que deveria. E pus-me a arrumar
gavetas. E a limpar o que considerava inaceitavelmente sujo.
Menos de quinze minutos depois de mim ela chegou. Abriu as
71
gavetas e as encontrou arrumadas. A pilha de prontuários
estava na ordem de atendimento e já com todas as datas
preenchidas. Então ela sentou-se de modo menos confortável,
com as pernas unidas debaixo da mesa, segurou um lápis e
permaneceu olhando para frente. Ela não dizia uma palavra
sequer. E eu tinha um todo medo de perguntar.
Atendemos um paciente. E outro, e mais outro. Ela
dava pouca atenção aos pacientes e menos ainda para mim.
Escrevia mecanicamente e mal girava a cabeça. Até que criei
coragem:
- Professora, aconteceu alguma coisa?
- Não.
- Eu sei que aconteceu. O que foi que eu fiz que te
deixou assim? Por favor fale.
Ela respirou. E respirou mais uma vez. E fechou os
olhos por trás de seus óculos de armação rosada. E os abriu,
olhando para a frente. Eu sentia medo, mas estava certo de que
tinha feito a pergunta de modo correto. Até que ela, de olhos
semicerrados e olhando para a parede:
- Sabe o que é, Bruno. É muito esquisito e difícil
quando se encontra uma pessoa tão parecida com a gente.
Aquilo foi uma declaração de amor. Sim, se foi. Eu
era amado, finalmente havia reciprocidade. A tarefa daquele
momento em diante era provar que a reciprocidade não era,
jamais seria, perigosa.
A partir daquele dia não houve mais qualquer limite
entre nós dois no que se refere à franqueza. Ela me dizia tudo
o que pensava e eu a ela. Das pessoas que odiávamos – porque
a nós nos odiavam - falávamos o que bem desejássemos, de
72
preferência antes das 7 da manhã. Sem medo. E sabíamos que
nossos códigos, nossos subtextos, nossas informações veladas,
eram segredos nossos que não tínhamos como esconder um do
outro, mesmo que nem no assunto específico falássemos.
A especialização acabou e conversamos outra vez
por telefone, dois ou três anos depois, quando conheci duas
crianças de Cabo Frio que tinham xeroderma pigmentoso, uma
doença rara na qual um não se pode expor ao sol. As crianças
eram conhecidas como Filhas da Lua no bairro em que
moravam, a Ilha da Gigoga. Encaminhei as crianças para o
Hospital Universitário e ela, além de gratidão, demonstrou
satisfação e admiração pelo conhecimento que eu lhe
proporcionava. Cuidou das crianças como cuidava de seus
alunos, com total entrega, e resolveu não publicar um artigo
científico por considerar que era um caso meu, exclusivamente
meu, e que eu, caso assim decidisse, teria sozinho o direito de
publicar um artigo sobre elas.
Boa parte… grande parte do que exerço como ética,
tanto pessoal, cívica e profissional, aprendi com ela.
E, acima de tudo, aprendi que a forma mais eficaz de
se aprender alguma coisa é quando se admira alguém.
E hoje a vejo sentada, isolada na fila da frente do
auditório, exalando sua grandeza. Exatos dez anos depois que
a vi pela última vez. Eu grisalho, ela já uma senhorinha. Qual
seria a reação?
Eu na minha indecisão, na minha eterna expectativa
de rejeição – uma doencinha que tenho, hesitei por uns dez
minutos antes de ir até ela.
73
E sabia que não deveria demonstrar muito afeto, pois
ela não gostava de manifestações exageradas de afeto. O que
talvez ocorresse fosse um aperto de mão, no máximo um beijo
breve no rosto, já em retirada. Um par de elogios, talvez.
Que medo eu estava de ser recebido friamente!
Levantei-me. Fui até ela e apenas a olhei. Ela
arregalou os olhos, levantou-se e me dirigiu o rosto para um
beijo. Quando a beijei, ela abriu os braços e me deu um abraço
que, para mim, durou a eternidade. Talvez uns 20 segundos.
Mas para mim foram oito mais dez anos de abraço. Dezoito.
Oito da nossa convivência e dez de nossa separação.
E para minha surpresa, ela me perguntou como eu
estava profissionalmente. Perguntou se eu estava feliz na
minha vida pessoal.
Detalhei minha vida como está andando e ela
demonstrou felicidade de mãe. Sem perder o velho costume de
cumplicidade que só os que se identificam como sozinhos
compreendem, ela arriscou:
- Você tem vindo nessa reuniãozinha, sempre?
- Tenho, sim, na maioria delas.
- E…?
Eu sorri:
- E têm sido razoáveis. Há algumas performances,
claro, como sempre houve, mas são menos performáticas,
especialmente depois do…
Ela apenas sorriu com os olhos, esperando.
Continuei:
- …do falecimento.
74
- Ah, sim, do falecimento! – ela sorriu e mostrou os
dentes. Era a alusão à morte de um professor que chefiou a
especialidade, que nos odiava e nós reciprocamente a ele, e
que praticamente atravancou minha vida, de modo
fantasmagórico, por alguns anos.
Em seguida chegaram alunas dela e se meteram
entre nós, em pleno ataque de ansiedade porque iriam
apresentar um caso clínico em público.
- Bem, eu me vou, para que vocês conversem.
- Bruno, nunca deixe de me dar notícias. Você é uma
pessoa muito especial para mim.
- E você, para mim.
- Que bom, Bruno.
Abraçou-me uma segunda vez. Beijou-me no rosto.
E se eu tivesse mais alguma coisa a dizer, seria a
tentativa frustrada de denotar esta lágrima. Esta aqui. Não há
outro modo de terminar este escrito.
75
15 Refletindo Diante do
Aspirador de Pó
Um dos momentos em que mais me entrego à reflexão
sobre a vida e a morte é na hora em que limpo o filtro do
aspirador de pó. A cada duas semanas. Aspirando em dias
alternados um pequeno apartamento de dois quartos que fica
quase sempre lacrado, recolho cerca de 150 gramas de pó e de
cabelos, lascas de piso e de parede, além de muitos insetos
mortos, fibras não-identificáveis, pequenos ferrinhos, farelos
de pão, resíduos de cera e de verniz dos móveis. E sempre me
assola um espanto que é o mesmo espanto que se me dá
quando olho estrelas, algo raríssimo de se ver hoje em dia, ou
quando vi a cauda do cometa deixando um rastro de seu resto,
ou vejo um velório em plena decomposição, ou mesmo um
recém-nascido em ávida aquisição tecidual e organização
funcional das células. E me ocorre uma espécie de porrada no
pensamento: ao pó retornarás. E de onde vem tanto pó, de
minhas células sempre desprendendo-se de minha superfície
(li que 80% do pó de uma casa é pura pele!), da tinta das
paredes esfoliando de ressecamento, das solas dos sapatos que
trazem das ruas restos de tudo que se possa imaginar, das
fibras de algodão e de linho desentrelaçando-se das roupas que
uso, de meus cabelos caindo, e do sal evaporando de meu
suor. O sal condensa-se novamente, por ressecamento, e cai ao
chão. Assim retorno a cerca de sessenta bilhões de anos,
quando tudo já estava em esfarinhamento. Poeira de estrelas?,
ou as estrelas são realmente gigantescas ou somos
simplesmente a menor das miniaturas. E penso nas criaturas
que habitavam aqui, há tanto tempo, que foram sendo
substituídas por criaturas cada vez menores. Ainda hoje as
criaturas maiores tendem a desaparecer. A miniaturização
76
parece ser a única forma de sobrevivência. E o ser humano,
que tinha cerca de um metro e sessenta, hoje chega a dois
metros tão facilmente, tenderá ao desaparecimento devido ao
agigantamento? Pois parece que chegamos ao tamanho crucial
de risco para o nosso fim. Tento não me desconcentrar: é
limpeza de aspirador e nada mais. Porém retorno à visão
tenebrosa de saírem 150 gramas de pó em duas semanas de
aspiração. O caminho parece ser invariavelmente aquele.
Encho minha mão com aquele pó, compacto com ajuda de um
pouco de água e o atiro um tijolinho feito dele no vaso
sanitário. Ali ele se expande, mas dou a descarga antes que
leve outro susto. Será espalhado na unidade de tratamento de
esgoto, e depois no meio do oceano, de onde provavelmente
servirá de alimento, poluente, veneno, evaporativo para
formação de outras coleções de criaturas que, por sua vez,
estão também a caminho do destino em pó.
O pó me assusta. Mais ainda me assusta tudo o que
faço para que consiga atrasar ao máximo o meu próprio
destino, que é esfarinhar, ressecar, até que eu me resuma de
novo a nada.
77
16 Acontece
Acontece que era um homem fascinado por ostras e
outros bichos marítimos que vivem em conchas. E comia as
ostras após gotas de limão, escorregando-as pela garganta,
como se estivesse adornando-se com ouro e pedras preciosas.
Como se fosse um faraó, suas tâmaras, sendo abanado por
eunucos. Fazia isto em todas as oportunidades.
Um dia a oportunidade surgiu do outro lado, de
dentro das conchas. Este homem foi à um restaurante em
Arraial do Cabo onde havia mostruários, viveiros, criadouros,
culturas de todos os tipos de ostras e outros seres
enconchados. O mar lhe fascinava, assim como as sereias e os
tritões. Ele ficou completamente abilolado querendo saber o
que havia dentro de cada um daqueles seres de conchas
gemelares, a sentir o gosto de cada uma delas, independente
de suas similaridades. Pediu um prato onde vinham dezenas de
conchas abertas e cozidas no vapor. E pôs-se a comê-las
vertiginosamente. Limão e ostra, limão e ostra. Não resistiu e
atacou também alguns mexilhões, os quais sabia identificar
perfeitamente se eram machos ou fêmeas. "Este aqui é macho;
eu sei; vou comê-lo" - e comia. Seus olhos diminuíam,
tornavam-se minúsculos de prazer enquanto mastigava.
Saiu dali meio enjoado, mas foi para a praia
comemorar com o sol, que estava escaldante e disposto a
vinganças. Sob o astro-rei ficou duas ou três horas tomando
cerveja, mas pouca cerveja, pois queria preservar o estômago,
ainda não sabia bem do quê.
À noite começou a se coçar. Suas palmas das mãos
ficaram maiores do que as próprias mãos. Depois vomitou
78
umas cinco ou seis vezes e ficou ofegante. E coçando-se sentiu
uma forte dor no abdome. E aí sim seus olhos ficaram
realmente miúdos. Depois de muita espuma, perdi um amigo.
79
17 Vó com Açúcar
Eu tive uma avó que morreu louca. Se bem que minhas
tias-avós e minhas tias diziam que ela havia já nascido louca.
Minha visão de menino, de menino adolescente e até mesmo
de adulto não era esta: eu a percebi, a ouvi e vi enlouquecer.
Ou talvez tenha enlouquecido junto, num processo conhecido
como folie à deux. Mas acho que não. Eu entendia seus
motivos para tal, apenas não concordava com o modo como
ela lidava com suas adversidades, seus poréns e
circunstâncias. Ela tinha uma tal característica de matar um
pouco de si e a boa parte dos mais próximos, em acordo com o
que julgava ser sua única solução para a sobrevivência. Assim
todos morriam, um pouco, a cada dia, até que chegou o
derradeiro momento no qual ela se viu sozinha, e que cada
qual foi exercer sua loucura um pouco distante dela na
tentativa de enlouquecer ao menos de modo diferente. Menos
suicida, menos traumático, menos fatal.
Esta minha avó era uma mulher pequena de metro e
meio e muito, morbidamente gorda. Feia, de nariz largo e
narinas abertas, pele muito branca e cabelos ralos, tingidos de
escuro até seus oitenta anos, quando os deixou definitivamente
brancos. Usava vestidos largos e compridos de tecido
estampado que ela mesmo confeccionava. Tinha uma
habilidade culinária invejável, primordialmente de pratos
salgados, salgadinhos e farofas. Eu era capaz de abandonar
meu prato de comida na minha casa, o que deixava minha mãe
completamente indignada, para ir a casa dela comer bolinhos
de arroz, ou de vagem, ou rissoles de carne moída. Era uma
pessoa desesperada, arregalada, com olhar perdido e, ao
mesmo tempo, sempre à procura de algo. Tinha um cacoete
com os 3 últimos dedos da mão direita, e os esfregava como
80
quem roda uma aliança. O cacoete era sempre muito evidente
pois sua mão estava sempre apoiada no braço do sofá.
Esta minha avó tinha uma necessidade de domínio, de
demonstração de poder mas, sobretudo, de obter prazer
maltratando os outros, preferentemente em público. Ou
melhor, com platéia. As cenas, geralmente sem motivos
capitais, continham um misto de constrangimento,
humilhação, olhos arregalados, ameaça, verdadeiras decepções
definitivas para filhos, netos. Minha irmã rompeu cedo com
este tipo de relação sado-masoquista: ela sempre foi bem
menos submissa do que eu. Aos quinze anos ela simplesmente
chegou em casa e disse de público: “nunca mais vou na casa
da vovó” – e nunca mais foi, mesmo. Eu não. Meu defeito era
o de testar até que ponto eu era capaz de suportar sofrimento
sem morrer de fato. Tinha uma particular dificuldade de
inventar esperança, de cegar-me para o pior que as pessoas
possuíssem no caráter e, em contrapartida, exacerbar de
importância o que tivessem de bom, mesmo que mínimo
desprezível fosse. E vovó era assim: uma mulher louca,
sádica, especialista em matar e morrer, mas que tinha
qualidades notáveis. Eu pagava com sofrimento moral o
usufruto de seus bolinhos de arroz, suas estórias que sempre
continham muita História, seu ouvido para meus desabafos tão
mal-fundamentados, ou de inabilidade de enfrentamento da
vida.
Vovó era uma mulher tão aparentemente forte, tão
belicosa, tão dona da verdade que todos nós tínhamos a
impressão de que íamos morrer antes dela. Ela era tão
demonstrativa de força que parecia ser imortal. Mas com a
mesma força que ela transformava a família em um fogo
cruzado devido às suas maledicências e manipulações de
informações de uns sobre os outros, ela conseguia atrair para
81
si a confiabilidade máxima e enganada de todos nós. Todos
nós sabíamos que podíamos confiar nela, mesmo tendo a
certeza de que ela, em menos de um dia, usaria nossas
conversas a seu modo, seja para que nós nos
desentendêssemos, seja para puro exibicionismo dela. E
definitivamente, com uma força dissimuladamente acanhada,
ela entrava em cena novamente quando todos estavam se
digladiando, desta vez como uma grande apaziguadora, e
triunfava. Assim, por décadas, ela se alimentou de nossas
fraquezas, de nossas indecisões e incapacidades
relacionamentais. O resultado foi o óbvio: ela sozinha na casa
dela e cada célula de nossa família em sua casa, minimamente
com um filho ou um marido, ou sem mesmo marido ou
esposa, pois todos, rigorosamente todos se separaram e jamais
se entenderam novamente, ficando cada um sozinho em um
pequeno apartamento e pior: sem crença nenhuma mais; sem
iniciativa, sem qualquer indício de desejo de retornar a um
relacionamento saudável ou apenas respeitoso que fosse, entre
nós. Seria comparável a uma granada que explodiu: cada
fragmento foi alojar-se ou perdeu-se num canto qualquer,
ficando localizável apenas o pino que lhe foi retirado.
Vovó finalmente morreu de uma morte doída e
abandonada.
82
18 Domingo de Ramos
Todo mundo carregando capim na rua.
Eu tinha uns quatorze ou quinze anos quando deixei
de frequentar as missas de domingo, mas até então adorava
quando chegava o Domingo de Ramos - eu era de fato temente
a Deus. No domingo anual de ramos havia uma das poucas
oportunidades da missa ser um tiquinho diferente. Um
tiquinho só, coisa escassa. O sermão era noutro tom, não
menos estranho que os habituais (a carapuça nunca me servia),
mas era diferente. O padre dizia coisas que o J.Cristo disse na
Cruz e isto naquele momento parecia mais interessante do que
as chatices dos outros domingos que sempre começavam com
“Naquele tempo…”. A missa enchia e muita gente ficava em
pé, por falta de lugar. Como os velhos daquela época não eram
emergentes nem tão irritadiços como os de hoje, e nem o
estatuto do idoso existia, as crianças ficavam todas
sentadinhas e os velhos todos em pé numa boa. Ninguém
brigava ou reclamava. A coisa era assim e permanecia assim,
pacífica. Velhos pra lá e crianças pra cá, sem cobiça pelos
assentos, sem ódio ao conforto alheio. Os pecadores pré-
cadastrados no Inferno iam todos neste dia, como que a
oportunidade de se arrepender fosse única e imperdível.
Afinal, Cristo estava morrendo na Cruz. Uma vizinha nossa,
Dona Celestina (que ironia o nome), que vivia tentando fazer
com que o apartamento de um outro vizinho nosso, Seu
Valpone, fosse leiloado, estava sempre lá, empunhando o
capim, e na hora do mea culpa mea culpa mea culpa, ela batia
com o capim no peito com força! O mato amarrotava que só.
Em seguida ela alisava as folhas para cima, para que
desdobrassem e ficassem como o chumaço de todos os outros,
ereto até o fim da missa.
83
Depois de alguns anos deixei de pegar a folhagem na
entrada da missa. Cacete demais ficar com a mão fechada por
quarenta e cinco minutos segurando aquilo apenas pro padre
ver, vez ou outra gerava cãibra, sem contar que às vezes me
dava coceira.
Quando crianças eu e minha irmã ainda por cima
levávamos o mato pra casa. Era ordem de mamãe. Ela dizia
que o mato era bento e que o significado era sagrado. Até
acreditávamos. E quando o capim murchava ainda
dobrávamos e guardávamos dentro de um livro qualquer,
como preciosidade, como se fosse um pedacinho do abadá
para ir pro Céu. Sabe-se lá para quê... Depois de alguns anos
as folhas secas eram encontradas perdidas dentro dos livros,
deformando as páginas, e iam mesmo para o lixo.
A educação lá em casa foi bem singular no que se
refere à religiosidade. Por mais que nenhum de nós
conseguisse acreditar em nada sobrenatural, fosse
celestialidades cristãs ou de outro religare qualquer, tínhamos
que assumir o tempo todo que éramos pecadores, que éramos
sujos, e que se somente pensássemos em sexo ou em outra
coisa da lista interminável de impropérios, estaríamos
condenados certamente a ir morar com o Cão após a morte, a
não ser que nos arrependêssemos muito, mas muito mesmo, e
nos apressássemos para não morrer antes da próxima
confissão ou perder a hora da extrema-unção pr‟uma parada
cardíaca. Era uma tal pressa paranóica de esterilizar a alma.
Quantas vezes, morrendo de medo de não sobreviver até o
próximo domingo, saí à procura de um confessionário
disponível durante a semana, para correndo livrar-me de todo
o mal. Tínhamos que despejar nossos segredos ao Padre
Junqueira, que não passava de um fofoqueiro: ele que ia
84
depois contar tudo aos pais de todas as crianças sem mais se
lembrar quem era filho de quem; para se fazer de amigo e de
confidente, de conselheiro e de exemplo, na verdade
arruinando a paz daquelas famílias que, depois de muita
confusão em casa nos dias que se seguiam, estariam então
condenadas à missa da semana seguinte para, quem sabe,
resolver mais questões em falso-definitivo.
Mas ninguém percebia isto… A sacristia no pós-
missa ficava lotada dos pais que queriam saber o que seus
filhos tinham lhe contado na casinha de jacarandá da treliça
indiscreta.
Bem, eu só via capim e mais capim. Até via bonito
ver o povo todo presente, as crianças todas com cara de sono,
olho inchado e algumas com resto de manteiga na bochecha;
aquelas matronas de véu preto, outras de véu cinza, e meninas
de véu branco, declarando a todo mundo se já tinham dado ou
se ainda não tinham dado. A sala das velas praticamente
incendiava, e danava-se o aquecedor global. Eu gostava.
Gostava de ver o que uma simples data era capaz de gerar
como desespero. Gostava de ver que uma suposta memória,
comemorada então em fantasia, era capaz de mobilizar um
monte de gente repleta de culpa e medo de ir para as Trevas
Eternas. Isso sem contar que muito matagal ficava sem capim.
Gostava de ver que as quatro carolas do coral cantavam com a
voz muito mais forte, inspiradas pelo sacrifício do Filho de
Deus, e desafinavam mais do que o habitual por forçar as
vozes além do que o fole e as cordas da garganta lhes eram
capazes. Na missa da semana seguinte estavam sempre roucas,
as quatro.
Hoje fui passear na orla e fiquei muito assustado.
Com as pessoas, com a feiúra das pessoas, com o fedor das
85
pessoas e com a pressa das pessoas até mesmo para o lazer. É,
eu sei que isso nada tem a ver com o Domingo de Ramos. Mas
é que dei de cara na rua com três homens crucificados. Uma
encenação. As cruzes iluminadas e lá, os três homens,
fingindo-se de mortos, com as caras caídas pros lados. O
homem da cruz central era saradinho, bronzeadinho. Os das
cruzes laterais, além de pálidos, tinham esse tal tipo físico do
século XXI. Ou seja, sobrepeso, índice de massa alto, pneus
com estrias, coxas grossas, ginecomastia e braços fracos. É
muito nugget. O Cristo não, era bem malhadinho, parecia que
nada tinha sofrido até ali. Ou sua Via Crucis tinha sido na
Body-Tech. Mas estava lá com a cara caída pro lado, meio
mortificado. Cheguei a pensar que estivesse dormindo. Nem
barba tinha. Ao redor da cruz central, essa do Cristo, umas
criaturas mal-ensaiadas com peitoral de plástico dourado e
capa vermelha fingiam-se inaptos de soldadinhos romanos. Os
elmos eram largos, e para levantar as espadas de plástico e
fingir certa fúria de exterminar o Cristo, eles todos seguravam
os elmos para não ficarem sem chapéu. Uma tal falta de
divertimento que me deu até gargalhada. Uma cena realmente
escalrichada. E os três lá em cima, alheios, com as caras
caídas pros lados. Poucas dúzias de pessoas assistiam, e não
tinham no semblante nenhum interesse. Nenhum som. Uma
coisa que nem quero mais lembrar que vi.
Nas Filipinas tem gente que se crucifica de verdade,
eu já vi na TV. É horrível. Cada um carrega sua fé à seu modo,
seja num simples capim fingido, seja pregando-se na cruz.
86
19 Boina do Gianecchini
Os erros de português a seguir são reprodução
exata da mensagem recebida.
“Olá, eu encontrei o seu email no site Dominio
Feminino, eu preciso muito que você me ajude a conseguir
comprar a boina preta usada por Reynaldo Gianecchini na
novela Esperança. Essa boina é tão importante pra mim quanto
um disco raro para um colecionador. É muito mais muito
importante pra mim, eu já tentei de tudo para consegui-la, se
você me ajudar eu serei eternamente grato a você, eu fui
informado que era vendida na Emporio Armani mas a coleção
do ano passado já acabou em todo o mundo, e as novas
coleções não vem com a mesma boina, além de ser difícil
encontrar lojas de boina, aqui onde eu moro não tem, e eu
queria muito aquela. Escrevi para a Rede Globo de Televisão
mas não obtive resposta. Já tentei de tudo, falei com muitas
pessoas, só Deus sabe o que eu já fiz para conseguir isso. Essa
boina é tão importante pra mim porque eu sou infeliz porque
não consigo ter um penteado e o meu cabelo é ruim eu já fui
no cabeleireiro e não resolvi, como me sinto um lixo saindo de
casa assim, pensei em usar chapéu e até peruca (descartei logo
porque é muito cara e quem usa fica mais feio ainda) desisti
porque não consegui o chapéu que gostava, até o dia em que
olhei a boina na novela Esperança (novela que não assistia), e
falei Meu Deus é a minha última opção. Já parei de sair de
casa por causa disso, porque me sinto infeliz desse jeito, se
você puder me ajudar a conseguir com a Rede Globo de algum
jeito, por favor entre em contato comigo, não quero tomar o
seu tempo com o meu problema, obrigado por ter respondido a
minha primeira mensagem só quero que alguem me ajude
porque sei que sozinho jamais conseguirei realizar esse sonho
87
sim para muitos que não me entendem pode parecer bobagem
mas para mim é mais importante que tudo espero que você
tenha me entendido e que possa me ajudar a comprá-la porque
já não sei mais o que fazer. Um abraço. Que Deus te ilumine.”
88
20 Como Sobreviver ao Mundo
Vive-se uma época na qual as pessoas foram
transformadas em desesperadas devoradoras de sonhos e de
propostas de felicidade. O capitalismo, a globalização e a
descartabilidade geraram criaturas pós-modernas que se tratam
ora como lixo, ora como latas de lixo. Tudo é efêmero e
insuficiente. Não há dose ideal. Não há matéria o bastante,
nem sensações bastantes. A regra emocional dos sapiens é a
infelicidade. É desejar sem ter nunca o suficiente. Ai de vós se
não fordes infelizes. Ai de você se sentir-se satisfeito. Nunca
houve tanta gente depressiva pensando em suicídio ou
simplesmente sentindo-se morta sem encontrar sentido para
nada. Motivação então nem pensar, substituída pela
insatisfação de não ter tudo que, teoricamente, todo mundo
tem (e ninguém precisa ter). Pois a TV a cabo não tem mais
canais o suficiente e nem programação interessante o
suficiente; automóveis não trazem acessórios suficientes;
telefones celulares servem, afinal, para muito pouco, apesar de
tudo que fazem; nos cabeleireiros todos os tratamentos juntos
não servem para coisa alguma e infelizmente, apesar da
quantidade de cores de tinta para cabelo nas prateleiras,
justamente aquela que se quer ainda não foi inventada. E os
alisamentos mudam de nome todos os meses, para arrebanhar
mais pessoas de cabelo ondulado a fingirem que tem cabelos
lisos. E deprime-se com o fim do efeito da toxina botulínica, já
que ruga tornou-se doença. As pessoas acreditam nas
promessas da publicidade, de que podem deixar de ser velhas
ou de ser feias. As promessas exageradas de produtos caça-
níqueis nunca se cumprem. Impossível copiar as imagens e as
sensações usadas como atrativos de consumo: somos
devorados por nossas próprias percepções de valor. Variar
desesperadamente, então,vira regra, pois não há opção. Uma
89
confusão total de valores. Eu me pergunto se, antes do
processo de globalização, as viagens para se conhecer culturas
e coisas novas não eram de certa forma um lenitivo para a
tradicional insatisfação humana. Hoje viagem é sensação,
sexual ou numa aventura radical, muitas vezes envolvendo
risco de vida. A intangibilidade de determinados sonhos não
era mais saudável? Não sei, mas creio que sim. Não procurarei
esta resposta exata. Prefiro inventar respostas e criar um self-
habitat onde falo meu idioleto, vivo quase minimalescamente,
dando importância ao necessário para ser feliz: e é tão pouco.
Minha mais grave frustração é não conseguir mais reunir meus
amigos. Pois eles só se disponibilizam para tal se desistem
temporariamente da suas buscas loucas, muitas vezes atrás do
próprio umbigo perdido; depois de horas com a TV ligada e
conectados à internet atrás de mais coisas para comprar e mais
pessoas para conhecer. Se nada conseguem, e geralmente não
mesmo, cedem uma curta presença para mim. Mas sem muita
energia para interagir. Sem vontade de me ouvir, apenas de
falar. E quando me olham falando, o olhar é perdido de quem
sequer está diante de mim. Assim, deste modo, não me
interessa. Não quero ser o consolo da procura frustrada de
ninguém. Somos então buracos-negros personificados, em
desespero de incorporação: eu aceito, mas não compreendo.
Mas o buraco jamais deixa de sê-lo. Por vezes a existência em
coletividade, pelos motivos acima, muito me exaure. Chega,
estou exausto. Gostaria tanto de criar cabras, tratar de
podridão de cascos e até levar uma cabeçada de um bode
ciumento.
90
21 Cercado de Cuidados
Uma das formas de se aperceber que a velhice chegou é
lembrar-se freqüentemente de fatos muito antigos, ao contrário
dos fatos recentes dos quais se esquece com muita, muita
facilidade.
O envelhecimento parece ter um ar de resgate.
Recuperação de antigas formas de ser, de antigas
convivências, de métodos menos eficazes porém mais
familiares e espontâneos, de se negociar o cotidiano.
O obstáculo, porém, aparece logo após cada tentativa de
viver de modo primordial: limitação física, preguiça de
procurar antigos amigos, sensação de incompetência ou
fracasso em resgatar relações familiares já tão carregadas de
histórias e de suturas, portanto, conclusões impeditivas ou
desfavoráveis à qualquer continuidade eficiente.
Hoje pela manhã tive uma dessas afloradas de memória
primordial, enquanto assistia na TV a um programa de
entrevistas onde uma atriz falava de seu mais novo filho, e da
quantidade de cuidados que reservava para ele nos seus
primeiros meses de vida. Da escolha das babás, do modo de
preparar a mama para o aleitamento, da limpeza dos lençóis do
berço, do cronograma de horários de visita ao neném,
impedindo o estresse e o assédio de familiares e paparazzi.
Achei tudo muito engraçado.
E lembrei-me de quando nasceu meu primo Eleno.
Eleno foi uma criança muito aguardada, por ter sido o último
de nossa geração a nascer. Eu já tinha treze anos e minha irmã
91
acabara de completar oito. Minha tia estava casada há dez
anos e não tinha engravidado – porque nunca quisera.
Entretanto, como em toda família repleta de tias e de primas –
e só de tias havia dez, um disse-me-disse cruel era a umidade
relativa de todas as conversas telefônicas. “Luzia não
engravida porque tem adenomiose”; “Luzia até agora não
engravidou porque odeia o marido”; “Se Luzia engravidar, é
de outro, de tão puta que é”. Entre outras malditas ainda
piores. Não que não houvesse verdade no que as pessoas
diziam, pois Luzia era realmente adúltera compulsiva e
certamente odiava o marido. O que me incomodava era a falta
de ética; e a capacidade de devastação de um bando de tias e
primas tão, tão fofoqueiras e corajosamente inconseqüentes.
Não é à toa que hoje cada um isolou-se em seu inferno
particular. Era uma época diferente, na qual as mulheres
viviam para detestar os maridos, tentar tirar-lhes todo o
dinheiro que pudessem ganhar, falar mal deles para as amigas
e fingir tragédia desabafando com suas mães e sogras. Ah,
mas das sogras também falavam e muito, pois era um bom
costume detestar as sogras. O pior é que isto era ensinado de
geração a outra.
Mas voltando a Luzia, minha tia, esta que finalmente
engravidou e deu a luz a Eleno. Ela não queria ser mãe. Mas
para dar à família uma prova de fertilidade e tentar curar-se da
adenomiose – doença que, naquela época, acreditava-se curar
após a gravidez, ela cultivou a criança por nove meses.
Foram nove meses… ridículos. Até hoje não sei se ela
enlouqueceu ou fingiu-se de louca, pois era atriz com curso
superior em artes cênicas. Chorava muito, pedia misto-quente
no meio da madrugada se ouvisse a Rita Lee cantar “misto-
quente, sanduíche de gente”, e lá ia o marido à cozinha ou a
um fast-food providenciar-lhe o desejo, que era imediatamente
92
vomitado depois. Fora os escândalos, a gritaria, as brigas
freqüentes e inúteis, dia após dia, que culminaram com a
obrigatoriedade de que um psiquiatra fosse visitado e, sem
prescrever nenhuma medicação, apenas proferiu a frase que
foi o prato do dia para todas as tias e primas, até o fim da
gravidez:
- Luzia precisa de porrada, de limite. É histérica, só. Está se
aproveitando da barriga para maltratar os outros, fazer e falar
o que quer.
Mas quando o minúsculo Eleno veio ao mundo,
todas as fofocas e disse-me-disses dissiparam e se
transformaram no instinto maternal coletivo: todas queriam
ver Eleno, pegar no colo e, de preferência, deixar Eleno dar
uma mamadinha em todas as suas tetas. Minha avó, ela
mesma, punha a mama de fora e deixava o menino sugar por
um tempo, sugar em seco, segundo ela “para que se
acalmasse”.
(nunca vi Eleno nervoso ou berrando: o menino era pura
apatia recém-nata)
Se isto é instinto, de deixar filho dos outros mamar
em si, se é normal, se é necessidade de mulher, não sei. Para
mim era apenas nojento.
Até que, alguns dias depois que Eleno foi para casa
com sua mãe, a adúltera Luzia, minha mãe mandou-nos, eu e a
minha irmã, ao banho caprichado e nos recebeu ainda úmidos
com perfume de alfazema (sempre detestei) que ela
encharcava no ápice das nossas cabeças, além de vestidos com
roupas limpas, recém-passadas e cheirosas. Fomos à casa de
Luzia, que morava com minha avó, visitar o pequeno Eleno.
93
Quando entramos, mandaram-nos sussurrar e não
gritar para nada, além de pisar macio num tapete que já era
espesso. A casa estava numa penumbra detestável, com apenas
um abajur aceso na sala, e cuja lâmpada havia sido trocada por
uma de apenas 15 watts. Luzia estava sentada no sofá de cara
inchada e os cabelos mais despenteados que já vi em toda a
minha vida. Era como se tivesse chegado de uma tragédia, que
era o parto ou aqueles nove meses, não sei. Mantinha uma cara
de cansada e de sofredora, fazendo jus artístico à máxima de
que „ser mãe é padecer no paraíso‟. Minha avó nos olhava
como se fôssemos Herodes e nos vigiava em cada gesto,
controlando-nos com seu olhar eugenista e genocida. Ficamos
quietos no sofá enquanto minha avó, minha mãe e minha tia
Luzia foram ao quarto ver se Eleno estava acordado e em
condições de receber visitas (!).
Elas voltaram com caras de mães. Alertaram que
Eleno estava dormindo e que poderíamos vê-lo rapidamente,
mas não poderíamos encostar nele, e que, se fôssemos tocá-lo,
que lavássemos antes as mãos, e jamais pegássemos em suas
mãozinhas ou pezinhos, para que ele não levasse nossas
sujeiras à sua boquinha vermelha como geléia de morango.
Éramos realmente um perigo para Eleno.
Fomos. Minha irmã, obviamente, queria pôr a mão
em Eleno, queria pentear os cabelinhos de Eleno com a escova
de cabo de prata e cerdas macias, o que lhe foi negado. Eu
não. Queria mesmo sair dali, daquele quarto escuro que mais
parecia um velório de recém-nascido. E que se danasse o fato
de Eleno ser meu primo-irmão. Honestamente eu não sentia
absolutamente nada por aquela criança e havia em mim muito
desprezo por aquelas mulheres e suas regras e ditames hostis.
94
Fiz um gesto brusco para sair do quarto e fui pego
pelo braço por minha avó, pois a porta só poderia ser aberta
quando todos dali resolvessem sair, para que não entrasse
muita luminosidade no quarto. Meu Deus, quanto tempo seria
necessário para que a criança fizesse esta transição lenta da
escuridão do útero submarino para o sol incandescente da terra
firme? Fiquei então como espectador expectante. Quando as
mulheres satisfizessem seus instintos, eu seria livre.
E não me lembro do que se passou naquele
mausoleuzinho enquanto estávamos ali. Elas cochicharam um
monte de coisas, passaram os dedos levemente na testa da
criança que realmente era muito bonitinha, contaram
espartanamente os dedos dos pés e das mãos. Finalmente a
porta da liberdade se abriu e pude ir para a sala que, pelo
menos, era iluminada com uma lâmpada de 15 watts, e fui
com bastante resignação para ouvir as mulheres falarem
exaustivamente sobre a criança por umas duas horas,
comparando as narinas com as do pai, o cabelo com o da mãe,
e mais uma série de comparações fantasiosas sobre o
temperamento que ainda nem existia.
Dali a algum tempo, minha irmã fingiu ir ao
banheiro e desapareceu por minutos a mais. Logo minha avó
percebeu:
- Cadê a Leninha?
- Foi ao banheiro – respondi.
As mulheres todas ficaram de pé, sinalizando o
perigo dela ter ido ao quarto de Eleno ao invés do sanitário.
Talvez Leninha houvesse sufocado Eleno, talvez estivesse
infectando Eleno com suas bactérias, quanto perigo! E foram
95
em exército atrás dela, que foi pega saindo do mausoléu do
garoto com a cara mais santa do mundo.
- O que você fez aí sem a gente? – foi a inquisição de minha
avó.
- Nada. – ela simulava inocência.
- Você acordou meu filho? – Luzia perguntou, ávida por uma
bronca bem dada assim que ouvisse a resposta.
- Ele acordou, sim. Mas eu dei um “penteio” nele e ele dormiu
de novo.
96
22 E tanto... para...
E tanto contato com a natureza na infância para
viver numa imensa aglomeração urbana. E tanto silêncio para
aprender os estudos do mundo para viver no futuro dos
insuportáveis ruídos. E tantos conselhos e planos para ter em
troca a total insegurança social. E tanta calma no aprender
para enfrentar a necessidade de urgência em tudo. E tanta
concentração num objetivo para receber em troca um excesso
de informações que estimulam o medo. E tanto aprendizado de
jogo para jogar em completa deslealdade na competição. E
tanto tempo estudando para a carência de oportunidade para
todos. E tanto jogo de cintura para a falta de participação nos
processos decisórios. E tanto esmero para um excesso de
responsabilidades. E tanta compaixão para a falta de
solidariedade. E tanto romantismo para a ausência de um
relacionamento afetivo significativo. E tanto improviso para
um excesso de mudanças. E tanto pensamento para a
impaciência. E tanta postura para aparentar ser forte. E tanta
aquisição para ter que gerar recursos que mantenha. E tanta
tensão para chegar à realização pessoal. E tanta frustração para
não conseguir o que se quis depois de tanto lutar. E tanto
conflito para ignorar a culpa. E tanto litígio para conseguir
dissimular o suficiente. E tanto alheio para a despersonificação
dos desejos. E tanta ioga para não conseguir relaxar nem por
um átimo. E tanta desilusão para a desistência. E tanta
desesperança para a derrota. E tanto deus para esquecer-se do
eu. E tanto credo para o desencanto. E tanta insistência para a
desistência.
97
23 Era uma Vez... Três Vezes
Era uma vez um menino que ainda acreditava que
estar vivo era consentir. E este menino consentiu uma primeira
paixão em sua vida, por sua colega de colégio bem feia e
nariguda, cheia de cravos no nariz e com o cabelo ensebado de
gomalina. Ela era horrenda consentida. E ele o apaixonado que
consentira.
Este menino consentiu que iria pela primeira vez ao
cinema convidando o sexo oposto. Chamou a menina, colega
horrenda de colégio, objeto da paixão. Esperava pessimista
que ela consentisse que ele pegasse a mão dela durante o
filme, um pouquinho ao menos. Sem que isto significasse
molestação.
A mãe do menino consentiu que ele fosse ao cinema
sozinho, desde que na primeira sessão. Alertou sobre a
existência dos tarados, especialmente nos cinemas de
Copacabana. E a mãe da menina horrenda consentiu que ela
pegasse um ônibus de Ipanema para Copacabana, apesar do
medo da violência, desde que ela telefonasse assim que lá
pusesse os pés, em um bairro que considerava infecto. Porém
era o habitat do menino. Este a esperava ansiosamente na
porta do cinema, esquina de Bolívar com Avenida Nossa
Senhora de Copacabana, consentindo o tremendo barulho dos
ônibus e a fumaça gordurosa do pipoqueiro em seu rosto, um
mendigo debridando sua ferida numa hora de pouca esmola e
algumas ciganas atrás de clientes. Procurava a paixão na porta
de saída de todos os coletivos. Seus pés escorregando de tanto
suor colinérgico.
98
O menino esperou cinco minutos. A menina não
apareceu. Consentiu que ela se atrasase mais dez minutos e
completou-se o quarto-de-hora elegante. E nada dela aparecer.
Então o filme começou: ele escutou o rumor lá de dentro da
sala de projeção do gigantesco cinema Roxy. Entrou no meio
de "Atualidades Atlântida", o que consentiu a si mesmo
prestar atenção. Todas as pessoas que entravam atrasadas eram
a menina e não eram a menina.
Uns vinte minutos depois do filme ter começado,
apareceu na tela iluminada pelo filme norte-americano um dos
personagens enforcado. E o menino finalmente conseguiu
chorar.
Pela segunda vez: era uma vez o mesmo menino que
combinou de ir ao cinema com uma outra menina. Ela também
morava em Ipanema e ele ainda em Copacabana. Como já
tinham os dois dezesseis anos, bastou que se dissesse aos pais
que iam ao cinema. Que lá estariam juntos por duas horas.
Que talvez fossem ao Bob's depois do filme. E como eram os
dois muito responsáveis, os pais apenas ficaram tranqüilos e
“entregaram a Deus”, como os pais gostam de dizer.
Combinaram de se encontrar em frente ao Bruni
Ipanema às dezesseis horas. Ele estava lá às 15:30h,
ansiosíssimo, com as mãos úmidas e geladas, os lábios pálidos
de tempo que não passa. Para que o tempo acompanhasse seu
ritmo, deu uma volta vagarosa na praça Nossa Senhora da Paz
e uma bisbilhotadinha na renovação carismática da Igreja da
esquina.
Às dezesseis horas a menina não havia chegado.
Como tinha se tornado um menino impaciente e não agüentava
mais o cheiro de pipoca e nem o barulho dos ônibus, entrou no
99
cinema às 16:05h e que se danasse a menina. Meninas talvez
não servissem para ir ao cinema.
O filme começou. E era chatíssimo. Tratava de
espionagem russa.
Depois de uns quinze minutos as luzes da sala de
projeção foram acesas. E apareceu a menina lá na entrada
junto com o lanterninha berrando o nome do menino, à cata
dele. Como ele quis se vingar da menina, abaixou-se o
máximo que pôde e deixou que ela o procurasse em vão, em
desespero, já que ninguém ali o conhecia mesmo. E sentiu um
enorme prazer com isto.
Vaiaram até que as luzes se apagassem. A menina,
envergonhada, desistida até de si mesma, foi-se embora. E o
filme voltou do ponto em que estava, como se cinema fosse
videocassete e se pudesse atordoar assim uma platéia. Mas
faz-se uma idéia da histeria da menina para que ocorresse toda
esta mobilização. Merecia ser castigada.
O filme era cacete, mas ele o assistiu até o fim
sozinho. Depois foi ao Bob's como queria ir desde antes. Por
estar muito feliz em ter castigado sua primeira mulher
atrasada, resolveu ir para Copacabana à pé. Demorou mais do
que o cinema e o Bob's consumiriam do tempo. Lentamente
pelas calçadas da praia de Ipanema, cortando até Copacabana
pelo Parque do Arpoador e todos aqueles gatos famintos
roendo cabeças de frango.
Chegou em casa e foi recebido aos berros. Na sala os
pais e os quatro avós, um delegado amigo da família, a vizinha
maníaco-depressiva em sua fase maníaca e um médico-legista.
A menina histérica aos prantos. A mãe da menina consolando-
100
a como podia, albergando nos braços aquela diátese
psicossomática.
A mãe do menino já havia inspecionado as
geladeiras do Instituto Médico Legal atrás de seu corpo. O
delegado estava com um boletim de ocorrência pronto a ser
preenchido. O médico-legista estava sorrindo. A vizinha
maníaca falando sem parar e ninguém sequer a olhava. O
menino, que mastigava um pé-de-moleque, limitou-se à
pergunta fria: "quem mandou se atrasar?" e foi para seu quarto
trocar de roupa. Um gosto delicioso de amendoim e açúcar.
Não contava com uma festa-surpresa.
Pela terceira vez: era uma vez um menino que
combinou de ir ao cinema com outra menina. Como tinha
vinte anos e já o primeiro emprego, e como os dois moravam
em Copacabana, ele caminhou do posto seis ao posto três,
esperou que ela descesse à portaria perfumada de jasmim e
caminharam juntos ao cinema, desta vez o Art-Palácio. O
filme era apenas um filme. A sessão era a segunda, para que o
fim da projeção coincidisse com o pôr-do-sol que tinham
combinado de ver em Ipanema.
O cheiro de pipoca era convidativo e ele comprou-
lhe pipoca doce. Como ele era menino e tinha emprego, pagou
a entrada dela. E fugiram do barulho dos ônibus logo entrando
para a sala de espera.
O filme era apenas a companhia dela. Ele nervoso,
as mãos úmidas. Ela paralisada, olhando apenas para a frente.
Depois de uns quarenta minutos, ele encostou o joelho nela.
Ela apôs sua mão delicada e fria no joelho dele. E depois de
uns dez minutos, ele segurou sua mão.
101
24 Sociedade Fálica e Confusa
O menino acordou bem mais cedo do que de
costume, pelas cinco da manhã, sem ter muito o que pensar
deitado na cama até que o sol clareasse o quarto, e foi direto
ao banheiro urinar. Quando levantou a tampa do vaso
sanitário, a surpresa de encontrar uma camisinha desenrolada,
estirada e boiando sobre um pouco de papel higiênico
dobrado. Que camisinha grande! Ou melhor, que pênis
enorme! E era o pênis de seu pai, que certamente havia feito
amor com sua mãe naquela noite, e prestando mais atenção à
água do vaso, quem sabe encontraria ainda alguns
sobreviventes candidatos à fecundação por ali; como seriam os
seres flagelados tão nervosos que saíam do prazer final do
sexo? Era uma oportunidade única.
Mas nada. Era apenas uma camisinha estirada e
desenrolada no vaso sanitário. Como nunca havia visto uma
camisinha utilizada e depois descartada, sua lógica infantil o
fez concluir que, depois do sexo, aquele anelzinho sempre
palpável escondido na fronha do travesseiro da mamãe,
dilatava-se ao mesmo tempo em que seu pai se excitava,
assumindo o exato tamanho do pênis de seu pai, então era
aquele, sim, a cópia do tamanho do pênis de seu pai! – assim
sua lógica determinou.
Mas que vergonha!, tinha que imediatamente dar
descarga no vaso, antes que sua irmã cinco anos mais nova se
deparasse com a fôrma (tem circunflexo?) do pênis de seu pai
à mostra, denunciando não apenas o tamanho como também o
fato ocorrido naquela madrugada, o sexo, ao qual não tinham
idéia do que fosse, e como fosse, se limpo ou se sujo, se
demorado ou imediatamente breve, e que conseqüência traria.
102
Então viria um irmão novo? Não, mas somente se a
camisinha estivesse intacta. Correu ao quarto na ponta dos pés
descalços, a procurar um palito de sorvete dentro da gavetinha
de palitos de sorvete já sorvidos. Correu de volta ao banheiro
para remexer aquela camisinha inteira à procura de um furo ou
pequeno rasgo, e remexeu até que o papel higiênico que lhe
servia de leito para não afundar se desfizesse e tudo se
tornasse uma grande confusão de celulose e látex. De certo
não queria mais um irmão, por ciúme, mas se houvesse ali
algum furo na borracha, seriam nove meses dali em diante
para fantasiar louca e diuturnamente o crescimento de uma
criança dentro da barriga da mamãe.
Largou ali mesmo o palito de sorvete e ia se
levantando para dar descarga no vaso sanitário, quando
aconteceu o inesperado. A descarga ocorreu. Pela mão de seu
pai, que surgiu em pé, imenso, ao seu lado, e seu rosto – o do
menino – pôs-se apenas a olhar para a calçola do pijama dele,
à procura do que estaria dentro da camisinha há pouco tempo.
- Não fale com sua irmã que encontrou isto aqui.
- Ta…
- Nem com sua mãe.
- Tá bom.
Foi embora dali o pai, para requentar o café e
misturar com leite e tomar sentado, calado e quietamente
inerte, junto com um pedaço de pão engordurado de manteiga.
A cabeça do menino confundiu-se de vez. Era
normal aquilo e não era, era proibido de se contar ou era fato
usual de dia-a-dia de adultos? Talvez um motivo para
vergonha, não saberia tão cedo, e menos ainda se vergonha
103
dele ou de seu pai, ou de ambos. Coragem de fazer perguntas
então, nem pensar. Então nesta sociedade era permitido usar o
pênis para urinar e se excitar, mas obrigatório esconder que o
pênis encapado era usado nas madrugadas. Concluir assim,
então? Que baita confusão. Afinal, era motivo de orgulho ou
descontentamento? Deveria ser exibido, escondido ou
camuflado?
Na confusão de tantas variáveis sem respostas e
desencorajadoras, escovou seus dentes. Passou água nos olhos.
Era bom retornar à cama de boca fresca e olhos limpos.
104
25 Mirtes
Mirtes, para mim, é nome de galinha. Não da puta,
mas daquela denotativa mesmo, que se assusta quando bota
um ovo: Mon Dieu.
Mirtes, de preferência, é uma galinha branca e
gorduchenta, mas não obesa. Galinha que cisca, pasta, pára e
finge que está tendo um brilhante pensamento. Anda dois
passos de cada vez e paralisa por cansaço e por não se lembrar
para onde ia e sequer o que iria fazer; tem no olhar aquela
pergunta eterna: para que tenho asas se não consigo voar? Sem
conseguir responder à pergunta, dá mais dois passos e tranca-
se novamente: “quem sou eu?”.
Mirtes é triste. Odeia ter que sair correndo em todas
as direções para não ser pisoteada no terreiro, o que acontece
com freqüência, ter que correr sem fôlego. Sem imaginar que
sempre desviarão dela, ao invés de pisar.
Mirtes é sedentária, nunca sente vontade de fazer
nada. E perde um semelhante por dia. Além disso, nunca sabe
onde foram parar extamente seus ovos e vai dormir todos os
dias com esta dúvida cruel. Mas no dia seguinte esquece.
E quando Mirtes vê, pela manhã usualmente, o ovo
imenso e duro que saiu de si "a duras penas", fica um tempo a
observá-lo e, mesmo que o cozinhe por vinte e oito dias crente
da finalidade, esquece várias vezes por dia de que dali sai
pinto. Mirtes olha cada ovo novo, sabe que tem que aquecê-lo,
mas não consegue senão um único pensamento infame e
inédito: "de onde veio isso, meu Deus?".
105
26 O Diário de Vovô Lilico
A vida, que engraçado. Fase de não gostar e de
gostar. Passa. Fase de querer saber tudo nossa menores
detalhes. Como funciona, como nasce, como morre, por que
morre. Passa. Fase de gostar e de não gostar. Só. Volta. Fase
de viver. De esquecer da morte. De temê-la. De desejá-la.
Viver. Não gostar. Gostar.
Parou diante da casa da avó. A porta.
"Estou sozinho. Estou em casa. Estou sozinho, estou
em casa. Estou sozinho e estou em casa." Vontade de voltar,
mas tinha a chave e a fechadura diante de si. A vontade de
passar a chave por debaixo da porta. Obrigações. Desejos
refratários e em desacordo com sua vontade.
Decisão. Chave na fechadura, dentro. Duas voltas,
clique. Entrou. A avó jazia no sofá. Magra como de costume,
mas com rosto redondo e bochechudo. Lia jornal sem óculos.
"Qual será sua primeira reclamação…"
- Vovó, sou eu...
- Oi, meu filho... passei tão mal a noite...
- Imagino.
- Andei pela casa a noite toda, feito um zumbi, mijei
pacas, pois meu diabetes está descontrolado, tão nervosa, tão
trêmula, mas por outro lado... descobri uma coisa.
- É?...
- É. Herdei esta minha doença do meu avô.
- Como é que é isso?
106
- Você sabe que eu tenho uma caixa grande de
fotografias, de recortes, de manuscritos, pois esta noite eu
peguei nesta caixa, pensei assim: "nada que fazer, vou ver aqui
o que tem para me lembrar..." (...) pois imagine que encontrei
o seguinte bilhete. Posso ler?
- Claro.
- Escuta esta: "Rio de Janeiro, 12 de fevereiro de
1914. Vovô Lilico acaba de morrer. Há quatro anos que eu o
vejo sentindo tantas dores no corpo todo. Suas pernas têm que
ser erguidas à cama quando se decide por dormir, pois não tem
força para tanto mais. Agora vovô Lilico está longe de tudo, é
uma pena, mas longe mais ainda da doença que lhe doía tanto.
Suas pernas arquearam com o tempo, como dois alicates.
Descanse em paz, vovô Lilico. Zezé." Está ouvindo?
- Sim.
- (...) e era esta a minha doença, que pulou a geração
e me atingiu. Espero que pulando a da sua mãe não lhe atinja,
senão, a quem irá atingir esta doença? Um coração bom, com
certeza, pois os corações maus não sofrem influência de nada,
isto eu tenho certeza... Ainda bem que os corações bons são
também os mais valentes.
- Vovó, não pense assim.
- Penso. E vou te dizer porque penso. Porque tenho
oitenta anos. E quase tudo que há para se pensar na vida, eu já
pensei.
- Entendo.
- E vou te contar mais. Telefonei para minha irmã
que tem o diário de vovô Lilico. Ela, lendo comigo pelo
telefone, encontrou o seguinte: "Rio de Janeiro, em 16 de
dezembro de 1851. Não agüento de dor nas minhas pernas.
Queria que houvesse cura para isto. Quando ando, perco as
forças. Elas bambeam, como se não fossem minhas."
- Mas vovó, você tem que levar em conta todo o
lirismo da época.
107
- Não... dor, com lirismo ou sem lirismo, é a mesma
dor. O tempo passa, mas a dor que se sente é sempre a mesma
dor, veja você, há um século ele sentia exatamente o que eu
sinto. E não adianta a medicina ser o que é, quantos remédios,
neto, quantos… com a única finalidade de combater a dor… e
a dor continua invencível.
O telefone toca. Ele se levanta e vai atender, muito
feliz pela interrupção.
- Alô.
- Rapaz! - era sua tia - Acabo de comer um prato
enorme de macarrão. Comi feito uma louca
faminta, de uma vez só, nem senti o gosto!
Sabe por quê?
- Hã... diga.
- Por causa do vovô Lilico!
Vovô Lilico estava causando estragos, mais de cem
anos depois. Em que dimensão estaria vivendo aquela avó. E
aquela tia, capaz de engolir um prato de macarrão por puro
nervosismo. O tempo, se o beneficiasse com a sobrevida, diria.
Traria respostas ou pratos de macarrão, o que viesse primeiro
e tomasse conta de si.
E não vos falei do cisto sinovial que nasceu no dorso
da mão da tal vovó. Ela passou a semana inteira às voltas com
aquilo. Telefonemas incessantes, horas a fio falando do
pequeno cisto e contando milhares de estórias familiares de
coisas semelhantes, com mil parêntesis, mil parêntesis... até
que um dia seu problema desapareceu:
- Neto, imagine... aquele caroço que eu te mostrei na
minha mão, lembra-se? Pois sumiu, rapaz! Eu fiquei fazendo
uma massagem nele, todas as noites, até que ontem eu rezei,
108
rezei muito, mas demais mesmo, pedi à Nossa Senhora assim:
“poxa, Nossa Senhora, a Senhora que ajuda a tantos, que
resolve tantos problemas, por favor... resolva o meu. Eu, que
sou uma velha doente, o dia inteiro sem poder participar do
mundo... resolve, Nossa Senhora.” – e quando acordei, meu
filho, o caroço não estava mais lá.
- Ah, vovó... não me diga que está acreditando que
seu caroço sumiu por causa da Nossa Senhora?!
- Estou dizendo sim, rapaz. Porque este caroço aqui,
se não foi Ela que tirou, foi a minha fé. A fé remove
montanhas, o que dirá caroços! Ela está ali que não me deixa
mentir… - e apontou para a imagem de Notre Dame.
Como é complicado conviver com certos
temperamentos, ou (des)temperamentos, como é o caso desta
vovó. Ela encontra normal o interesse por Getúlio Vargas.
Claro que o neto não se interessa por Getúlio ma altura do
campeonato. E nem pelo modo como o padeiro entregava o
pão em mil novecentos e vinte e poucos. Mas isto para ela é de
suma importância, a comparação com o passado.
Para o neto, o passado servia apenas como citação.
Passou, o substantivo já diz: foi embora. Quando em
circunstâncias raras, significa alguma coisa. O passado, em
raras exceções, significa muito pouco para algum passo futuro.
- Não quero ficar velho falando no passado o tempo
todo, ah, como tenho medo disto…
- Medo de quê?
- Do futuro, vó.
- E não adianta nada Ter medo do futuro. Tem
que ter medo do agora.
109
- E como assim? - ele não tinha curiosidade
alguma.
- Você mesmo tem a resposta.
- Como se eu, daqui a 50 anos, ficasse falando
para a juventude como era o modo de se assistir televisão hoje.
Sim, até porque eu imagino que, daqui a alguns anos, a
televisão venha a ser uma espécie de miniprojetor que a gente
colocará sobre alguma coisa e aquela coisinha projetará a
imagem super nítida em alguma parede. E Só. Mas isto não é
nada. Pior são os detalhes.
Ela o olhou demoradamente. Achou melhor não
falar nada. Pelo silêncio que cultivava, ele se incomodou:
- Vó, o que foi?
- Nada.
- Está sentindo alguma coisa?
- Dor.
110
27 O Homenzinho e o Temporal
Um homenzinho de braços cruzados, arrepiado, olhando
a chuva torrencial sobre a piscina, e sob um enorme guarda-
sol. Queria nadar, estava trajado para (ou quase despido para),
mas não tinha coragem de entrar na piscina aquosa ávida por
descargas elétricas, transbordando de trovões. Queria nadar,
mas tinha medo. A cada trovoada, tremia e se encolhia, um
sorrisinho de medo na sua cara redonda rodeada por seus
cabelos arrepiados e grisalhos. Era um homenzinho, um
homenzinho frágil como todos os homenzinhos que passam de
um metro e oitenta e também, por sorte, dos quarenta anos. De
nada lhe servia a barba, os pêlos pelo corpo, a aliança no
anular da mão esquerda, pois era um homenzinho com medo
da chuva e de levar um choque do céu. Só.
Em volta dele outros homenzinhos, encolhidos sob o
guarda-sol, esperando a chuva passar para mergulhar na
piscina. Paradoxo de água da chuva versus água clorada, as
duas que molham, mas uma delas merece que se fuja, sabe-se
lá o motivo, talvez respingos, talvez sabe-se Deus. É
interessante, por exemplo, ver como as pessoas saem da praia
quando começa a chover, se o propósito de ir à praia é nada
menos que jogar-se no mar... Da chuva a fuga, da piscina
vontade de se molhar. Coisas que só as entendem os
homenzinhos. Ou deixam de entender para não entender nada
de uma vez. Vá entender: prefiro não.
Do lado de fora do guarda-sol havia um outro
homenzinho tomando chuva, arrepiando-se com cada gota na
pele, pois isto não acontecia há mais de vinte anos, isto de
tomar chuva. Ele olhava para o céu, para a água da piscina de
111
uma superfície totalmente singular de banheira de chuva
destilada, assim como ele, pingos do alto escorrendo pelo
nariz, interessante, não fugir da chuva, nem dos trovões.
- Eu não vou nadar pois não estou preparado para morrer
ainda. – disse o homenzinho que se escondia sob o guarda-sol.
- Eu estou preparado para morrer. – homenzinho do lado de
fora.
- Quem aqui está preparado para morrer? – bradou a todos o
homenzinho sob, como numa enquete exibicionista de
sociedade machista, e todos paralisaram diante da pergunta.
E ninguém mesmo respondia. Estar preparado para
morrer, diante de uma piscina que recebia água da chuva, sob
um céu trovejante e relampejado, e ainda mais diante de um
homem molhado de chuva preparado para morrer, era
simplesmente um dilema sem resposta. E fez-se silêncio longo
e esquisito.
O mais velho de todos, na casa dos cinqüenta anos,
encheu-se de capacidade de falar:
- Estou doido pra nadar. – E depois de um longo silêncio em
que todos se molharam de tanto olhá-lo, prosseguiu mesmo
apercebendo-se da ausência de interesse dos outros: - Mas
para morrer ainda não. Se este aí quer morrer, que morra, que
se agarre num pára-raios de um telhado e espere morrer. É
rápido assim: “tzzz” e morre. Mas eu acho melhor ir embora.
E foi.
O homenzinho molhado, aquele que estava se
molhando desde o início desta história, sorria de escárnio
112
secreto. Seus pés já estavam roxos. E até disto ele gostava.
Claro que queria, como os outros, nadar. Mas a chuva o fazia
bem. Sem a água em poça, a água que empoça serve.
A probabilidade de cair um raio na piscina era cada
vez menor, pois a distância de tempo entre os lampejos e o
barulho era cada vez maior. Mas a covardia ainda era o
comportamento de todos.
Os homenzinhos foram, aos poucos, um a um,
embora, e sobrou o homenzinho já molhado, nadando ao ar-
livre, vendo a água da piscina voltar aos poucos à cor e
“textura” normais. Ao longe os edifícios voltavam a aparecer
nítidos. Mas não havia mais ninguém ali para nadar, nem
mesmo o professor para orientar. E ele abdicou em seguida,
por não haver mais sentido. É que, como muitos homenzinhos,
ele necessitava receber ordens para exercitar-se. Ao menos se
molhou bastante.
Como era um homenzinho desistido, pôs sua camisa
de malha, sua bermuda de nylon azul, calçou chinelos à prova
d‟água (sim, eu sei que quase todos são) e foi para sua casa.
Estava aprontado para morrer. Mas não foi daquela
vez. Ainda bem que não.
113
28 O menino e o beija-flor
O menino tinha quatorze anos. E nenhum fio de barba. E
nenhum fio no pube. E nenhum desejo outro que aprender
apenas novidades. O menino tinha tantos quatorze anos.
Tantos que eram apenas. Acordou bem cedo, como sempre,
pois tinha insônia já há quatorze anos. Desceu as escadas e foi
para a varanda de Santa Teresa ver a claridade da aurora que
era tímida como ele. Sentou-se numa cadeira de vime e
observou a grama ainda verde demais. E as onze-horas todas
esperando sua vez. E eram quatorze anos. Só. Tudo isto.
Esperou o beija-flor vermelho que todas as manhãs
vinha com seu barulhinho de abelha sugar a água-com-açúcar
pendurada em uma das samambaias. As formigas eram mais
vivas, nunca deixavam a trilha atrás do açúcar que pingava, o
trabalho era incessante. Veio o pássaro preto, veio o azulado.
Brigaram pelo bebedouro, saíram ganindo os dois em vôo
desesperado de duelo de asas de beija-flor. O vermelho miúdo
ainda estava por vir.
Um pingo d‟água lhe caiu bem no meio da cabeça e não
soube de onde veio. Ainda bem que não era cocô de
passarinho. Cheirou o pingo e era água mesmo. Uma água
qualquer da natureza. Só. Ateve-se novamente aos dois beija-
flores que voltaram para disputar a água açucarada e prendeu-
se por um longo período de tempo nada perdido observando
como as sombras das árvores diminuíam tão lentamente. E
nada do beija-flor vermelho aparecer.
O menino esperava aquele beija-flor. Só. Quatorze anos.
Ausência.
114
- Varre aqui em baixo que eu varro lá em cima. - apareceu a
avó com duas vassouras na mão. - E quando me ouvir
descendo com o pó pelos degraus, traz a pá para recolher o pó
no pé da escada.
- O menino levantou-se indignado, mas fingindo boa-vontade.
Pegou a vassoura e pôs-se a varrer a casa bem devagar para
não fazer ruído: ouvido tenso procurando o tempo todo o
barulhinho de abelha do beija-flor vermelho que ainda não
vira, e todas as vezes que passava perto da varanda parava um
pouco para procurá-lo. Nada.
- Já acabou de varrer aí em baixo?
- Não.
- Estou descendo com o pó. Vou jogar aí em baixo mesmo e
você depois recolhe. E eu subo de novo para limpar o
banheiro.
- Cadê o vovô?
- Seu avô foi rezar. Esqueceu de que hoje é Domingo?
- É. Saiu cedo.
- Pois já são nove horas, menino!
E iam conversando de segundo para primeiro andar.
- Você poderia ter ido com ele.
- Ele não me chamou - era claro que não gostaria de ter ido.
- Não chamou porque isto tem que partir de você, acompanhar
seu avô. Não é ele que tem que ficar atrás de você sempre. E
ele gosta muito de você, você sabe. Todos nós aqui gostamos
muito de você. E ele é que é o mais velho. Os mais novos é
que se chegam aos mais velhos, ora essa.
Não entendeu muito bem o porque desta
unilateralidade. Mas era coisa de gente antiga. Melhor
115
esquecer. Por que o menino estava com os avós não importa
muito. Mas ele tinha pai e mãe, sim. Problemáticos, mas tinha.
E tinha irmãos também, assim como amigos. Mas naqueles
dias estava com os avós. Um tempo. E tinha quatorze anos.
- Vó.
- Fala alto que estou com a torneira aberta.
- A que horas o vovô saiu?
- Às sete.
- Eu já estava acordado.
- Foi direto pro carro, você não deve ter visto. Saiu cedo.
Queria ir à Igreja antes que a Igreja enchesse e encontrasse
com a Circe. Você sabe que a Circe é uma chata, pega seu avô
e não larga falando aqueles assuntos chatos dela.
- É. E por que você não foi com ele?
- Você sabe que sou espírita.
- E daí?
- E daí que não entro em Igrejas.
Ele não entendeu nada, então deu a conversa por
encerrada já que ele, mesmo tendo educação religiosa,
também preferia nunca entrar em igrejas. Continuou a varrer a
casa para ajudar sua avó e procurar a visita do beija-flor
vermelho. Recolheu o pó que veio da escada, degrau por
degrau, foi aos fundos e jogou no canteiro de plantas, onde
regou com água depois.
- Já te disse que pó não é no canteiro que se joga! - gritou a
avó do segundo andar.
- Mas vó. Pó e terra são parecidos.
- São nada. Você assim mata minhas plantas.
- A senhora joga pó de café...
- Pó de café é nutritivo. Pó da casa não.
116
Apesar de ter quatorze anos, pó e pó poderiam bem
ser a mesma coisa e ponto-final. Pó de café usado e pó de casa
de desagregação da matéria eram a mesma coisa. E só. Pó ao
pó retornava, como se lia nos cemitérios. E um canteiro com
plantas sempre lhe lembrou cemitérios. Limpou a vassoura e
levou-a ao quarto dos fundos. Arrumou num canto e voltou
para a varanda. Nada do beija-flor. Deu o tempo por perdido e
acreditou que o pássaro já tivesse vindo durante sua ida aos
fundos. E só. No dia seguinte o esperaria de novo. A avó
passou por ele com uma vassoura e pano úmido. A casa ficou
tão limpa que não dava mais vontade de sair dela.
- Vai descascando essas batatas aqui que eu vou descascando
as cenouras. - a avó com duas tigelas na mão repletas de
batatas e cenouras. - Vou fazer um ensopado hoje de carne,
batata e cenoura. Você gosta?
- Gosto.
Não, ele não gostava. Mas nunca diria que detestava
ou que era indiferente. Assim como também não gostava de
descascar legume nenhum. Mas descascou todas as batatas,
enquanto conversava com a avó.
- Hoje faz dez anos que sua bisavó morreu.
- É?
- Por isto que digo: você deveria ter ido à Igreja com seu avô.
Eu não. Eu não gostava dela. Mas ela adorava você.
- É verdade. Mas está morta, n‟é, vó?
- Que desrespeito…
- Desrespeito com o quê?
- Com seu avô e com sua bisavó…
- Não vejo desrespeito. Ela não está morta?
- Está. E por isto mesmo.
- Por isto mesmo o quê?
117
- Temos que respeitar os mortos.
- Ah… Eu estou desrespeitando?
- Deveria ter ido com seu avô à igreja.
Ele não entendeu, da mesma forma que não entendia
o porquê dela lhe pedir para descascar legumes. Aliás, não
entendia nem por que deveriam ser descascados. Mas deixava
a coisa continuar. A tal coisa da vida que poderia ser apenas
fruto de sua ignorância jovem. Os quatorze anos. E ia
aprendendo.
- Sua bisavó lhe deu uma vez um terço de pérolas, você ainda
o tem?
- Tenho - e não tinha mais nada. Havia dado o terço a uma
amiga de colégio que ficara encantada com as pequeninas
pérolas barrocas. E se lembrava bem da frase que dissera
quando a presenteara com o terço: “Eu não rezo mesmo. Pode
ficar”.
- Guarde bem aquele terço.
- Guardo sim.
- Se um dia você precisar vender, ele vale dinheiro. Aquelas
pérolas são todas verdadeiras. Maciças, não são meras pérolas
cultivadas. E o Cristo é de prata.
- Pois é, vó. Isto tudo para rezar, não é esquisito?
- É uma obra de arte, menino.
- Isto é. - e para ele não era.
O que a avó não sabia é que era apenas uma obra de
arte. Ele não sabia mais onde andava nem a menina que
recebera o terço de presente, quanto mais o terço com suas
pérolas e o Cristo de prata.
- E o relógio que seu avô lhe deu, aquele de ouro, ainda tem?
- Tenho. - esse tinha mesmo.
118
- A caneta de ouro, tem?
- Tenho. - e não tinha mais. Perdera no caminho de volta para
casa.
- Aquela caneta foi usada para assinar nosso casamento.
- Que lindo, vó. - e não achava nada demais. Nem mesmo
interessante.
A avó ficou um tempo olhando para a frente, onde se
via as árvores do outro lado da rua. Ele sabia no que ela estava
pensando.
- Vou deixar isto tudo adiantado e depois não temos mais
trabalho. Quando seu avô chegar, é só esquentar e pronto:
temos o almoço. E vê se não come biscoito antes da hora.
- Não como não. - Será que ela não sabia que todas as crianças
sem exceção comiam biscoito antes do almoço e que isto não
trazia prejuízo nenhum?
Assim que ela subiu a escada, ele foi à cozinha e
pegou um punhado de biscoitos, foi para o jardim comê-los.
Se a avó não o tivesse lembrado, ele não estaria comendo os
biscoitos. Pois naquela manhã, até a avó o lembrar de que
biscoitos existiam, sua única preocupação era encontrar o
beija-flor vermelho. De estômago cheio de biscoitos, sentou-se
de novo na cadeira de vime e abraçou uma almofada. Ali ficou
e sonhou. Acordou com barulho de chaves no seu ouvido: o
avô com uma sacola de supermercado e sacudido as chaves
como sinos para acordá-lo.
- Oi, vô.
- Você hoje acordou tarde, hein? Nem me viu sair.
- Vovó disse que você saiu pelos fundos.
119
- Eu não. - e saiu atrás da avó (do menino, claro). Subiu as
escadas devagar, sempre balançando bastante as chaves para
anunciar sua presença. Era um tanto exibicionista.
E foi uma manhã de sono, sonho e cochilo. Uma
manhã morna de deixar o tempo passar. O tempo passou,
rapidamente.
- Vamos almoçar?
- Já? - ele se surpreendeu.
- O almoço já está atrasado até. Já é meio-dia e meia.
- Nossa. Nem percebi. - e espreguiçou-se lenta e longamente.
- Vamos. Seu avô já está sentado na mesa.
- Agora é que estou sentindo o cheiro do ensopado. - uma
forma de dizer que cheiro de ensopado jamais lhe tiraria de um
cochilo.
Foi vagarosamente em direção à cozinha, onde
aconteciam os almoços informais, e vagarosamente
propositadamente, para pensar mais, para ralentar o início do
almoço atrasado, fome que não tinha. Quando chegou lá, sua
tia-avó estava sentada à mesa e mais um mistério: o
aparecimento de sua tia-avó sem que ele soubesse. Como ela
teria aparecido lá? Não importava. Talvez enquanto estivesse
cochilando e não o tenham acordado. Comida era combustível.
Aquela gente sua família e companhia para o abastecimento
do corpo preguiçoso.
- Vovô nunca rezou antes de comer, não?, que engraçado. Vai
à Igreja, mas não reza antes de comer.
- Eu rezo silenciosamente. - disse o velho sem sequer levantar
os olhos. - Já rezei e ninguém percebeu.
120
- Desculpe, é que eu estou acostumado com filmes
americanos, novelas, as pessoas fazem aquela ceninha antes de
comer. Até na casa da Catarina o pai dela…
- Aqui cada um tem que rezar por si. - abreviou o avô.
E era indício de que o almoço seria de silêncio. Ou
quase.
Por um tempo ouvia-se apenas o barulho dos
talheres cuidadosos pelos pratos, catando o que comer,
garfando pedacinhos de cenoura e batata que haviam sido
descascados por ele naquela manhã. Ele olhava para a cara
esquisita das pessoas comendo. Um misto de obrigação e de
vontade. Esquisito demais. Uma certa indiferença de todos.
Seu avô parecia ter pressa de acabar a comida do prato. Sua
avó parecia não comer. Sua tia-avó sentia o maior dos
prazeres.
- A comida é uma delícia. Temos o que comer, graças a deus.
Sabe que acabei de chegar de Hong Kong? - perguntou a tia.
- Soube, sim. A senhora conhece o mundo todo, é?
- Conheço.
- Não falta nenhum lugar para conhecer, não?
- Falta, claro, a África.
- Ah, logo imaginei. A África que ninguém quer, né? Nem
aqui...
- Mas fui à África do Sul.
- Ah, essa é boa, tia, a África do Sul…
- Este mês ele faz quinze anos. - interrompeu a avó.
- Sim, quinze anos. - o avô.
- Quinze anos. - o menino.
- Quando eu tinha oito anos - o avô - eu já andava com todas
as pequenas do bairro onde a gente morava.
- Que garanhão. - debochou o menino.
121
- Seu avô está falando a verdade. - disse a avó.
- Que diferença faz… - e voltou a catar pedacinhos e misturar
com arroz.
- Não deboche assim - continuou a avó - Você sabe muito bem
que já está na hora de você começar a procurar as pequenas
também, por aí. Não tem um monte delas dando sopa?
- Tem.
- Pois procure elas. Pegue nas partes delas.
- Prá quê, vó? Prá ser processado?
- Que ser processado, menino, deixe de dizer besteira. As
meninas estão doidas para que os meninos façam isto.
- A senhora nesta idade estava doida para que os meninos
fizessem isto com a senhora?
- Eu já estava comprometida em casar com seu avô.
- Sei. Então ele já pegava nas suas partes, é?
- Deixa disso, menino! - a tia se meteu na conversa. Estamos
falando de tempos diferentes. No tempo da sua avó, e no meu
tempo também, era tudo muito diferente. Hoje em dia é que é
tudo fácil.
- Sei. E eu tenho que ser como vocês acham que é hoje em
dia?
Fez-se um longo e desconfortável silêncio. Ninguém
tinha o que falar. Nem o menino. Muito menos o menino.
- Você sabe que, se não usar isto aí, atrofia, não sabe?
- Como, vó? - Ele fingiu que não entendeu. Mas sua avó
acabara de ameaçá-lo de atrofia do pênis por falta de uso.
- Atrofia. Até desaparecer.
Depois de ser ameaçado de desaparecimento de seu
pênis, o menino calou-se. Calou-se de vez. Terminou o
ensopado. Foi a pia e lavou seu prato e seus talheres com
muito vagar e tristeza. Os velhos vieram com seus pratos, pois
122
trataram logo de terminar de comer, e puseram dentro da pia
para que ele também lavasse todo o resto da louça. E sua avó
deu-lhe um beijo no rosto:
- Um bom neto é este, que ajuda os avós em tudo.
Ele sentiu dor deste beijo. Um beijo de guerra. Os
três velhos saíram da cozinha e ele ficou ali espiando pela
janela da cozinha, que dava para a área de serviço onde as
roupas balançavam. A água da pia corria quente, água de casa,
de caixa d' água exposta ao sol durante a manhã. E era bom.
Estar sozinho na cozinha, mesmo que trabalhando, era
igualmente bom. Secou a pia com o pano e, pela última vez,
retirou o que restava de gordura das mãos. Sem nojo.
Na sala que dava para a varanda onde se esperava o
beija-flor todas as manhãs, os três velhos estavam sentados
assistindo a qualquer coisa na televisão. Sentiu um certo nojo
que não sabia explicar de onde vinha, nem mesmo se era de si,
do mundo ou dos velhos. A tia-avó acrescentou ruído ao da
televisão:
- Estávamos mesmo falando de você, menino bonzinho. Lava
a louça de seus avós sem reclamar. Bom menino você.
- É, eu sou muito bonzinho mesmo.
- Eu acho, vou ser sincera - ela continuou - em dizer que seus
avós têm razão quando dizem que já está na hora de você
procurar mulher.
O menino olhou para dentro de si um pouco. Sentou-
se no único sofá vazio daquela enorme sala, mas bem próximo
dos velhos. Respirou profundamente duas ou três vezes
enquanto olhava para a varanda e para as plantas lá fora
suavemente ao sabor do vento.
123
- Pode ser sua neta, tia?
E apareceu o beija-flor, numa hora incomum, no
início da tarde. Entrou na casa, deu com o bico nas naturezas-
mortas em forma de óleo sobre tela, bateu diversas vezes pelos
quadros com seu som de abelha e foi-se com a mesma rapidez
pela sala procurando como escapar. Insistiu inutilmente nos
mesmos quadros, pois estava confuso e fora de hora. O avô
saltou da cadeira, animado, e foi correndo em direção às
portas da varanda. A avó gritou, assanhada, que se fechasse
correndo as portas para que o beija-flor não escapasse. O avô
apressou-se a fechar as portas de correr. A tia-avó olhou tudo
com indiferença. O menino contentou-se apenas em ouvir o
barulho das asas infantis do pássaro. O pássaro, de sua parte,
percebeu finalmente que os quadros não eram flores de
verdade e voou em direção à liberdade. O avô terminou de
fechar as portas da varanda exatamente no beija-flor.
E o menino apenas escutou o ruído da coincidência do
tempo.
124
29 A Aula de Neurologia
Eu e minhas enrascadas. A última que caí, hoje, foi no
consultório de um médico de oitenta e cinco anos. Tudo
começou pelo fato de estar completando quarenta anos (eu). É
que aos quarenta a licença para dirigir veículos vence e tem-se
que se apresentar ao órgão, como se fosse um alistamento
militar. E lá se declara que se terá 40 anos em breve, e
submete-se à entrega de uma série de documentos e de cópias
de documentos, e se declara um endereço, e se agenda exames
de vista, neurológico e uma tal prova escrita, delicadamente
denominada por eles “prova de atualização”.
Cancelei alguns dias de trabalho por conta desta
burocracia toda. Tudo bem, não tenho muito do que reclamar,
pois estão me tratando com uma cortesia surpreendente para
quem está acostumado, há quarenta anos – assumo, com a
barbárie do amoralismo e comportamento aético tão
característicos da nossa… nação, por assim dizer – já que é
assim que se deve dizer, concordando ou não.
O primeiro dia foi da entrega de documentos.
Fotografaram meu rosto, e que medo que estou de como ficou,
escanearam minhas dez digitais das mãos, para que todas?
Não sei. Ou melhor, sei. Agendaram um exame de vista. Lá
fui eu, noutro dia, para o médico que acende as luzes dos
sinais de trânsito e pergunta a cor. E que pergunta qual das
luzezinhas verdes está mais perto, a da direita ou a da
esquerda. Ok, passei, desde que eu prometa usar os óculos
para dirigir. Afinal, aos 40 anos sou ainda míope,
surpreendentemente enxergo de perto que é uma beleza.
Quanto mais perto, melhor para mim. O que é um
orgulhozinho secreto.
125
O segundo dia foi o de levar o automóvel para a
tradicional vistoria anual de acende aqui, apaga ali, engata
aqui e farol alto farol baixo, raspa número de chassi e dá o ok.
Sempre me dão o ok sem inspeção de gases, acho super
esquisito. Pois é do meu catalisador de que mais me orgulho.
O terceiro dia foi hoje, e deste nunca mais me
esquecerei. Lá fui eu para um exame neurológico num
consultório de um desses edifícios de Copacabana que tem 40
salas por andar. O consultório era uma pocilga, fora a
temperatura de 40 graus lá dentro. Na recepção de paredes
imundas e porta meio-pintada (desistiram por algum motivo e
a porta ficou meio tinta nova, meio tinta velha), havia uma
geladeira – frigobar - com uma impressora em cima. Surreal.
Três cadeirinhas para esperar, dessas que os parafusos puxam
o fio da calça – e furam a bunda.
O médico, de 85 anos, era uma espoleta. Não parava
quieto e não parava de falar. Ah, como as pessoas que não
param de falar me deixam mal. Essas pessoas me exaurem.
Não sobra nada de mim. O velho me identificou como médico
também e pôs-se a comparar seu tempo com o meu. Tudo que
eu mais detesto. Juro, por tudo que há de mais sagrado, que
quando ficar velho, bem velho, calarei a minha boca.
Exatamente como fez minha bisavó, que foi falando cada vez
menos até que expiou.
Durante uma hora o velho me martelou todos os
tendões, fez com que eu me equilibrasse num pé e depois no
outro, andasse de lá prá cá e de cá pra lá, fizesse o tal do
quatro, logo eu que caio à toa, e ainda mirasse a ponta do dedo
em tudo que é ponta de nariz, inclusive o dele. E falava,
falava, sem vírgula, ponto ou travessão, ou aspas que fosse...
126
Algum remédio aquele velho toma, tenho certeza, algum
excitante para senis. E tinha acabado de tomá-lo misturado
com café. Ou algo pior, nunca se sabe.
A maior preocupação do velho, por fim, era me dar
dicas para passar na prova escrita. Acontece que as dicas se
resumiam a uma apenas: saber que a palavra „água‟ tinha 4
letras. E que, por espirrar água em alguém, passando de carro
com os pneus sobre uma poça, eu perderia 4 pontos na carteira
de motorista. Só. Isso porque a palavra „água‟ tinha quatro
letras. Oh my beloved God.
Saí de lá sem condições de dirigir automóvel.
Precisamente saí de lá sem condições mesmo até de atravessar
a rua sozinho. Fui pro trabalho de ônibus mesmo.
127
30 Operação Trocadilho de
Beira de Estrada
A importância da articulação das palavras sempre tem
exemplos extraordinários nos telejornais.
Uma entrevista com um inspetor de qualquer coisa,
dessas operações anti-acidentes e anti-irregularidades de
feriadão, todas com nome de batismo (operação Transformers,
operação Speed Racer), que nada mais servem para aporrinhar
os condutores incorrigíveis, mal-educados e mal-caráteres no
tráfego de algazarra baixa e cretina das ruas cariocas. Falo
“aporrinhar”, porque o importante não é nenhuma mega-
operação de fiscalização, mas uma seleção de quem pode
guiar automóvel. Eu, sinceramente, acho que as pessoas
deveriam fazer por onde merecer seus direitos... Ça va. Un
jour nous verons.
O tal inspetor tinha vícios de linguagem, característica
de quem não tem vocabulário nem conhecimento de quase
nada e que, quando se mete a falar difícil expressão que defina
melhor não há: se f...erra.
O vício de linguagem do analfabeto funcional era
perguntar ao entrevistador se ele havia entendido o que ele
havia falado:
- Nanã, terê, caquê, tará, blalá, entendido?
- Iê, oá, catá, parê nená, entendido?
Um saco.
128
Já o vício de linguagem heavy duty era sensacional.
Tudo o que ele falava era principal. E o sufixo ~mente, para os
limítrofes lingüísticos, é a maior prova de cultura e
intelectualidade – e de superioridade. “Principalmente”,
portanto, é uma palavra de justa atividade cerebral. E por tudo
ser principal, era um “sipalmente a velocidade, sipalmente a
chuva, sipalmente quando, sipalmente os carro”, e por aí ia,
“entendido”? O mais formidável foi a frase: “o poblema é a
falta de educação das pessoa, sipalmente”
Senhor inspetor: pau não mente. Se pau mente, eu não
sei que mentira ele lhe pregou. Mas de certo lhe convenceu.
Quem mente somos nós. Ou nozes, se preferir. Nozes
sipalmente.
129
31 Sob a Égide de Tánatos
Hoje atendi uma paciente que muito estimo; chama-se
Minácia. Nome estranho, sim, que nome! Ela mesma gosta
que eu divulgue que gosto dela. Então taí, Minácia, agora é
público que eu adoro você e quem quiser que tome ciência,
reprove ou apóie.
Minácia é altamente evoluída, totalmente culta,
professora disto e daquilo, daquilo-outro de vários algos mais.
É multidisciplinar ate dizer chega. E é de um improviso
sentimental que invejo. Tem respostas para muitas das minhas
mortes. Acho que esta última só você entendeu, Mina. É que
ela conhece muito da minha vida. Conhece a década em que
fiquei distante dos morredores da minha família e sabe o
quanto isto me fez bem. Mas se os morredores reapareceram,
não é?, eu que aprenda a neutralizar.
Hoje Mina me provou que fui educado sob a égide de
tánatos. E que meus pais são especialistas em morte. Mina,
aqui da matrix te confesso que só não abri o berreiro naquela
hora porque eu estava protegido pelo meu laptop, pela minha
mesa que nos separava e pelo hábito de desenroscar e enroscar
sem parar a ponteira da caneta enquanto escuto algo que me
comove.
É, Mina, filho dos especialistas em morrer. É por isto
que acordo todos os dias tão feliz, tão vivo e loquaz, tão
apaixonado pelas folhas verdes e pela umidade das primeiras
horas do dia; e termino sempre calado, decepcionado e
desistido: porque minha vida toda foi assim: acordar, preparar-
se pra morrer e morrer confiante no dia seguinte. Viciei neste
modus maldito de acordar e morrer todos os dias. Por isto o
130
terror noturno, de sensação iminência de morte no meio da
noite: é o medo de não viver nunca, nem ao menos uma vez,
nem ao menos um dia.
Mas de agora em diante será mais diferente, Mina. Digo
“mais” porque já vinha mudando mas não tive coragem de te
dizer, pois sempre que nos encontramos invertemos os papéis,
eu me entrego à seu diagnóstico. Venho vivendo de uma
forma muito interessante. Venho sentindo vida em muitas
coisas. Você me deu esta dica na hora em que eu mais acredito
em mim. Na hora em que eu virei minha própria mesa. Na
hora em que eu reconheço tão facilmente os discípulos da
morte e os desprezo tanto, tanto que chego a rir de suas verves
dissimuladas e reclamações traiçoeiras e obtusas. Aprendi que
a morte se finge de boa, mata e se esquece que matou. E que
passamos a vida fugindo da eutanásia.
Mina, obrigado por respeitar minha incapacidade de
acreditar em Deus. Que bom que você concorda comigo, em
que o mundo precisa de ética, não de religião. E que a religião
cada vez mais fanatizada serve, na verdade, de máscara
incompleta das mais variadas e torpes fugas da ética.
Mina: obrigado.
131
32 Você se Sente
Você se sente vazio por não ter o que fazer e nem
conseguir inventar. Você se sente privilegiado porque um gato
veio deitar-se no seu colo. Você se sente culpado porque passa
vendo sem ver o mendigo sem perna no chão da rua. Você se
sente sozinho porque está num elevador lotado. Você se sente
um predador porque está com uma doença contagiosa. Você se
sente vivo por ter acordado disposto e ter sonhado. Você se
sente elétrico por ter visto uma barata correndo e
desaparecendo numa fresta. Você se sente louco por ter ficar
horas esperando por alguém que queria ver. Você se sente
envergonhado por ter descoberto uma única variz em sua
perna. Você se sente raso por ter acabado de mentir. Você se
sente cafona por ter brincado de bem-me-quer-mal-me-quer
com uma margarida. Você se sente órfão porque seu irmão – e
não seus pais – viajou. Você se sente exausto por ter passado o
dia inteiro ouvindo. Você se sente nu por ter contado que tem
medo de dormir sozinho. Você se sente forte por escutar os
graves problemas alheios. Você se sente renascido por ter-se
curado da gripe. Você se sente dividido por ter conhecido
outra pessoa além da que ama. Você se sente tenso por querer
sair de onde está – mesmo sem saber para onde ir. Você se
sente apressado porque querem que você se sinta. Você se
sente oco por não entender, subitamente, nada. Você se sente
morto por saber que a morte virá invariavelmente. Você se
sente inútil por não terem seguido seu conselho. Você se sente
pobre por haver tão poucos ricos. Você se sente rico por haver
tantos pobres. Você se sente ileso por não ter sido assaltado.
Você se sente contaminado por ter visto alguém com lepra.
Você se sente ofendido por terem lhe perguntado a idade.
Você se sente mortal por ter ido a um velório. Você se sente
no escuro porque não tem ninguém ao seu lado. Você se sente
132
desprezado porque esperou mais do que quinze minutos e não
ouviu um pedido de desculpa. Você se sente frustrado porque
plantou duzentas sementes e colheu apenas duas. Você se
sente sonolento porque alguém falou sem parar no seu ouvido.
Você se sente um ser superior por estar diante de uma mosca.
Você se sente criança porque toma refrigerante de laranja com
um canudinho. Você se sente imortal porque vê seus filhos
brincarem. Você se sente lindo porque se olha no espelho
depois do êxtase do amor.
133
33 O Lado Ingênuo da
Aristocracia
Algum tempo depois de ter saído da casa de meus pais
para morar sozinho, cansado do trabalho doméstico, contratei
uma faxineira que vinha duas vezes por semana e passava
minhas roupas. Era terrível. Limpava a casa de qualquer jeito,
passava mal minhas camisas, deixando vincos irrecuperáveis,
roubava enlatados e matava o serviço, sempre saindo mais
cedo. Eu chegava em casa procurando suas falhas, o que
terminava numa nova faxina minha, à meu modo. E ainda
passava de novo as camisas.
Muito furioso, certo dia deixei um bilhete para ela, antes
de sair para o trabalho:
“Marlene! Estou cansado da sujeira. Limpe todas as
superfícies horizontais! Minhas camisas estão mal-passadas.
Não carregue minhas latas de milho e de ervilha, por favor!
Não mexa na máquina de lavar. Se preferir, pode ir embora.”
Cheguei do trabalho com a certeza de que estava em
alívio e nunca mais a veria. Entretanto, encontrei o bilhete
abaixo:
“Patrão, usei “Passe Bem” nas suas camisa. Eu não
carrego suas lata, elas estão escondidas atrás dos papel-toalha.
Não encontrei a tal de superfice horizontal que o senhor falou,
então não limpei. Depois o senhor mostra onde fica. Deixei as
roupa de molho na máquina. Fui embora sim. Até a próxima
terça.”
134
Para Luíza Costa Duque-Estrada, minha
bisavó, a senhora mais ética que já vi, e em
quem me espelhei e me espelho em inúmeras
decisões na minha vida.
Contato: