AS REPRESENTAÇÕES DO RIO DOURO NO CINEMA DE … · na religião, filosofia e história,...

93
MÁRIO RUI MAGALHÃES DA SILVA AS REPRESENTAÇÕES DO RIO DOURO NO CINEMA DE MANOEL DE OLIVEIRA Dissertação apresentada na Universidade Lusófona do Porto para obtenção do grau de Mestre em Comunicação Audiovisual e Multimédia Universidade Lusófona do Porto Faculdade de Comunicação, Arquitetura, Artes e Tecnologias da Informação Porto 2015

Transcript of AS REPRESENTAÇÕES DO RIO DOURO NO CINEMA DE … · na religião, filosofia e história,...

  • MRIO RUI MAGALHES DA SILVA

    AS REPRESENTAES DO RIO DOURO NO

    CINEMA DE MANOEL DE OLIVEIRA

    Dissertao apresentada na Universidade Lusfona do Porto para obteno

    do grau de Mestre em Comunicao Audiovisual e Multimdia

    Universidade Lusfona do Porto

    Faculdade de Comunicao, Arquitetura, Artes e Tecnologias da Informao

    Porto

    2015

  • 2

  • 3

    MRIO RUI MAGALHES DA SILVA

    AS REPRESENTAES DO RIO DOURO NO

    CINEMA DE MANOEL DE OLIVEIRA

    Dissertao apresentada na Universidade Lusfona do Porto para obteno

    do grau de Mestre em Comunicao Audiovisual e Multimdia

    Orientador cientfico: Prof. Doutor Joo Sousa Cardoso

    Jri:

    Prof. Doutor Antnio Manuel Joo Preto

    Prof. Doutora Cristina Manuela Vaz Rainha Mateus

    Prof. Doutor Joo Sousa Cardoso

    Universidade Lusfona do Porto

    Faculdade de Comunicao, Arquitetura, Artes e Tecnologias da Informao

    Porto

    2015

  • 1

    Resumo

    Desde a sua primeira obra, Douro, Faina Fluvial (1931) que o cineasta

    Manoel de Oliveira criou uma percurso artstico, temtico e esttico que a todos

    os nveis nico. A relao entre a paisagem natural e humana - e o cinema

    estabelece um campo de complexa construo esttica no cinema de Manoel de

    Oliveira. Ao longo da sua obra, o realizador portuense filmou o Douro, o rio da

    cidade onde nasceu, atribuindo a este um conjunto de representaes

    cinematogrficas, que exigem uma anlise atenta tanto no plano da histria e do

    contexto socio-cultural como no da construo formal.

    Delimitando como objecto de estudo o conjunto de filmes de Manoel de

    Oliveira onde o Douro aparece representado, propomo-nos estudar de modo

    sistematizado e compreender os modos como o rio se inscreve em toda a sua

    obra e as consequentes implicaes culturais e cinematogrficas

    Palavras-chave: Cinema Portugus, Manoel de Oliveira , Porto, Representao, Rio Douro.

  • 2

    Abstract

    Since his first masterpiece, Douro, Faina Fluvial (1931), the filmmaker

    Manoel de Oliveira created one artistic, thematic and aesthetic path that is unique

    at all the levels. The relation between the landscape natural and human - and

    the cinema reveals itself as complex aesthetic field in the cinema of Manoel de

    Oliveira.. Throughout his work, the director filmed the river of the city where he

    was born, attributing to this a set of cinematographic representations, that require

    a careful analysis.

    Analyzing the Manoel de Oliveira films where Douro appears on the stage,

    we try to understand the ways in which the river are inserted in all his work and the

    consequent cultural and cinematic implications.

    Key words: Portuguese Cinema, Manoel de Oliveira , Oporto, Representation, Douro River.

  • 3

    ndice Resumo ..... 1 Abstract .. 2 ndice ......... 3 Introduo ......... 5 1. O Douro de Manoel de Oliveira .. 12

    1.1. - Manoel de Oliveira e o rio expressionista ...... 16

    1.2. - O percursor do neorrealismo .... 20

    1.3. - O filme-viagem da cidade do Porto .. 23

    1.4. - O rio de Agustina Bessa-Luis e Manoel de Oliveira ..... 25

    1.5. - O Passado e o Presente do Douro .. 29

    1.6. - O esprito de Anglica .... 34

    2. Anlise cinematogrfica do Douro de Manoel de Oliveira ............ 36 2.1. - Os planos fixos e longos do Douro .. 37

    2.2. - As artes na representao do Douro ... 41

    2.3. - A construo da imagem ... 48

    Concluso .... 51 Fichas tcnicas ... 56

    Douro, Faina Fluvial .... 56 Aniki-Bb ..57

  • 4

    O Pintor e a Cidade ..... 58

    Vale Abrao ...... 59

    Porto da minha infncia ...... 60

    O Estranho caso de Anglica ..... 61

    Bibliografia ... 62 Webgrafia .... 65 Filmografia ... 66 Filmografia principal.... 66 Filmografia complementar ..... 67 Anexos ..... 68

  • 5

    Introduo

    A presente investigao orienta-se pela ligao entre o rio Douro e o

    cinema de Oliveira por vrias razes. Primeiramente, faz uma homenagem ao rio

    e desvenda-o enquanto um elemento da paisagem com qualidades muito

    versteis. Em segundo lugar, enfatiza a sua presena latente em vrios lugares e

    tempos das nossas vidas. De facto, o rio desempenha um papel importantissimo

    nosso pensamento, mais do que aquele que podemos imaginar. Ele est presente

    na religio, filosofia e histria, envolvendo-se assim, de forma intrnseca na nossa

    lngua e pensamento.

    O rio um elemento de paisagem que acarreta vrias camadas consigo.

    Ao longo da histria, tornou-se um smbolo cultural muito valorizado, suportando

    uma grande nmero de conotaes e significados. Bastando ter em conta o que

    representa na histria do desenvolvimento do mundo real e mitolgico. Estas

    conotaes culturais no surgem, naturalmente, do nada. Devem-se, em grande

    parte, s caractersticas fsicas dos rios e forma como as populaes

    circundantes as interpretam.

    A estratificao e a tenso manifestadas em relao ao rio surgem do

    confronto direto com o mesmo, antes de qualquer conotao ou a interpretao.

    O Homem confrontado com a sua presena durante a sua vivncia, encarando

    o rio como uma ameaa, como um obstculo, como um aliado na sua defesa, ou

    como via de transporte.

    O rio um fornecedor de energia e de alimentos, um irrigador dos seus

    campos, e em contrapartida pode ser um elemento destruidor, quando transborda,

    arruinando todo o trabalho do Homem. ento facilmente percetvel que todas as

    propriedades atribudas ao rio quase que imediatamente originam uma grande

    dualidade e se tornam at contraditrias, assumindo-se como um aliado e um

    inimigo, tendo o poder de dar e tirar vida.

    A sua gua permite o cultivo e desenvolvimento das produes agrcolas

    e contribui tambm para o desenvolvimento das cidades, pese embora, seja

    muitas das vezes causa de devastao das mesmas.

    Importa ter em conta que esta ambiguidade presente no rio moldou o

    olhar do homem em relao a estes cursos de gua.

  • 6

    Alm das diversas camadas que possui, assim como do desconforto que

    ele provoca no ser humano como elemento da paisagem, o rio torna-se uma

    paisagem cinematogrfica por excelncia. A montanha, ao contrrio do rio, um

    elemento esttico e imponente e, talvez, por isso parea possuir uma perfeio

    intemporal, possuindo caractersticas claramente definidas e finitas que permitem

    ao homem contempl-las facilmente.

    O rio torna-se o oposto de um elemento como uma montanha. Atravs do

    seu comprimento, da sua dimenso, da sua velocidade e de uma aparente

    transitoriedade, este torna-se assim um elemento resistente velocidade do

    obturador da cmara fotogrfica de um fotgrafo, assim como aos pincis com

    que o pintor cria os seus quadros. Um rio torna-se mais difcil de representar, se

    tivermos uma imagem esttica sobre uma montanha, ele apenas se traduz numa

    nota de rodap dessa mesma imagem, como o preenchimento da vista de uma

    cidade costeira, ou um espelho para a luz que incide em obras de artistas

    impressionistas. A imagem em movimento torna o rio vivo, faz com que ele se

    curve, acelere e desacelere. A cmara pode assim gravar o seu fluxo, a sua

    velocidade e pode mesmo balancear nas suas ondas. O que faz com que um

    curso de gua seja um rio a sua volatilidade, direo bem definida e o

    movimento.

    As artes contriburam para que cada territrio criasse a sua prpria

    identidade. Estas permitiram estabelecer uma unio entre o que local e o que

    universal, permitindo que uma regio seja confrontada com a representao de si

    mesma, evitando cair em lugares-comuns.

    O cinema foi, no sculo passado, o principal responsvel pela criao de

    um imaginrio no Douro, conferindo a esta zona de Portugal, uma representao

    cinematogrfica que no encontra semelhana em nenhuma outra zona do pas.

    Uma imagem que influncia o imaginrio dos seus habitantes, ao mesmo tempo

    que se propaga por todo o mundo. No causando assim estranheza que alguns

    dos melhores momentos do cinema Portugus tenham sido aqui filmados, sendo

    Manoel de Oliveira um dos precursores deste interesse cinematogrfico, iniciando

    com Douro, Faina Fluvial (1931), uma srie de incurses de outros cineastas pela

    regio.

    A cidade do Porto seria filmada por vrios cineastas, destacando-se Jos

    Pedro Vasconcelos, Manuel Guimares, Saguenail e Paulo Rocha (Andrade,

  • 7

    2001: 14). O Douro interior, das encostas vinhateiras, apenas teria paralelo com

    Paulo Rocha e o seu Rio do Ouro (1998). Antnio Reis e Margarida Cordeiro

    condensariam toda a sua obra a Trs-os-Montes, no esquecendo nomes como

    Joo Csar Monteiro e Antnio Campos.

    Ora tomando o Douro como um territrio mtico, constitudo por tradies

    ancestrais, ora tomando a envolvente ao rio como uma figurao possvel do pais

    real, ora apenas representando uma realidade atravs de imagens, o cinema

    construiu do Douro uma imagem muito diversificada e com vrias camadas.

    Segundo Agustina Bessa-Lus, o Douro no teve cantores (Bessa-Luis,

    2002: 9), e seria atravs da prpria escritora como pela cmara de Manoel de

    Oliveira, que este teria representaes artsticas e culturais adequadas sua

    estatura.

    A produo destes dois criadores fez com que as encostas do Douro

    fossem assoladas por imagens mentais, personagens e intrigas. A colaborao

    entre ambos, fez com que seja hoje impossvel olhar para as encostas de um

    Douro Vinhateiro, sem que nos lembremos da Ema Paiva, como tambm difcil

    no recordarmos o drama de Francisca atravs da neblina do rio, passar pela

    Rgua e no nos lembrarmos igualmente de Camila e Vanessa ou, mais

    recentemente, o fantasma de Anglica a pairar pelos cus da zona envolvente

    daquela cidade.

    O realizador Portuense de certo modo responsvel pela imagem do

    Porto, uma cidade habitada por trabalhadores que labutam na faina fluvial do

    Douro, um local habitado por Carlinhos, Eduardinho e Teresinha, crianas que

    brincam aos polcias e ladres. uma cidade de artistas, local onde vive Antnio

    Cruz, pintor que regista em aguarelas a sua viso da cidade. Estas e outras

    personagens, bem como as histrias em que surgem, fazem parte da paisagem e

    explicam a riqueza patrimonial do Douro.

    Regio e rio, o Douro, constitui-se assim como um tpico que, pela sua

    repetio, permite analisar alguns dos mais importantes posicionamentos

    estticos do realizador.

    Ao longo dos seus 80 anos de carreira, o Douro tem marcado presena

    em muitos momentos da vida e obra de Manoel de Oliveira, desde logo no

    primeiro dos seus filmes, o documentrio, Douro, Faina Fluvial (1931). E nas

    margens deste rio que a histria de Oliveira prossegue com a sua obra mais

  • 8

    popular, Aniki-Bb (1942), assim como um refgio de catorze anos na sua quinta

    do Douro a preparar projetos futuros, que viria a culminar num outro filme

    emblemtico para o Douro, O Pintor e a Cidade (1956). Pouco depois, o

    realizador estabeleceria uma esttica muito prpria e a sua carreira ganharia um

    novo fulgor, mas o rio, apenas voltaria a marcar presena na filmografia de

    Oliveira em 1993, com Vale Abrao.

    O estudo que apresentamos visa as relaes que se estabelecem entre o

    cinema de Manoel de Oliveira e o Rio Douro. Apesar de muito se ter escrito sobre

    a obra deste realizador centenrio, a abordagem sobre a presena do Douro na

    sua filmografia, tem sido realizada de forma muito superficial, tornando aliciante a

    reflexo em torno desta unio.

    Tendo em conta o espao temporal para a realizao da dissertao e

    devido extenso da obra em causa (que conta com mais de cinquenta filmes),

    deu-se a necessidade de uma seleo dos filmes a ter em conta como objeto de

    anlise. Numa primeira fase foram selecionados os filmes que esto relacionados

    com o Porto, o Douro e a zona norte de Portugal. Posteriormente sucedeu-se uma

    outra fase de seleo, uma vez que filmes como Inquietude (1998), O Principio da

    Incerteza (2002), Amor de Perdio (1978) e Francisca (1981) no possuam

    imagens do Douro, ou este no era um elemento preponderante na sua histria.

    No que diz respeito obra de Manoel de Oliveira, pudemos constatar que

    grande poro da produo terica de vrios investigadores, tem sido realizada

    atravs da relao entre o cinema oliveiriano e a literatura, a pintura, o teatro, e

    tambm entre as fronteiras do binmio documentrio/fico.

    Esta investigao assenta ainda, em textos do realizador e informaes

    fornecidas pelo mesmo em entrevistas, assim como em obras de vrios tericos

    na rea do cinema que permitiram a sustentao e interpretao de alguns

    aspetos dos seus filmes.

    As relaes entre o cinema e o rio, entre o cinema e a arte em geral, tm

    sido analisadas por vrios autores de diversos ramos do conhecimento, incluindo

    tericos e crticos de cinema como, Gilles Deleuze, Jacques Aumont e Joo

    Bnard da Costa.

    Estes instrumentos que permitem anlises sobre as especificidades do

    cinema, das suas influncias e semelhanas com outras formas de expresso,

  • 9

    foram o grande suporte da nossa anlise e, por isso, necessariamente abordados

    ao longo da investigao.

    Na elaborao da dissertao privilegimos uma metodologia de trabalho

    diversificada, em que o estudo das imagens flmicas conduziu a uma teorizao e

    respetiva procura do suporte terico, que permitiu alcanar novos nveis de leitura

    das imagens.

    A multiplicidade de elementos de convergncia entre o cinema e a

    literatura, o cinema e a pintura, o cinema e a paisagem, assim como as

    caractersticas muito prprias que existem na filmografia oliveiriana, levou-nos a

    usar esta heterogeneidade de disciplinas, que visa respeitar as transformaes

    tericas que compem a origem do cinema, da obra de Oliveira e tambm da

    paisagem cinematogrfica.

    Num percurso pessoal, acadmico e profissional, recheado de eventos,

    de multidisciplinariedade ou de necessidades terico-prticas de outras reas que

    acabaram por privilegiar uma aproximao a outras disciplinas complementares

    aos audiovisuais e produo dos mdia, justifica-se a realizao deste estudo

    como um ato de continuidade, ao mesmo tempo, de um apuro dessas tendncias.

    O suporte terico e conhecimento histrico de uma formao inicial que

    privilegiou as artes visuais, em especial a fotografia, aliados experincia

    profissional com o nosso patrimnio arquitetnico, arqueolgico e artstico, e o

    facto de o mestrado em Comunicao Audiovisual e Multimdia possuir uma forte

    componente cinematogrfica, permitiram o aprofundamento de noes correntes,

    e despoletaram uma enorme curiosidade sobre a obra de Oliveira, assim como do

    cinema Portugus, acabando por construir um novo olhar sobre uma srie de

    lugares que j conhecia. Este novo olhar veio de algum modo enriquecer a

    perceo geral que possua das relaes qualitativas e espaciais desses mesmos

    lugares.

    O interesse em estudar a obra de um realizador com mais de 80 anos de

    atividade foi o principal motivo na escolha do tema para este trabalho, colocando

    a ambio de chegar a "bom porto" a nveis condizentes com o que um estudo do

    gnero merece. O elevado nmero de livros, crticas, artigos, entrevistas,

    programas televisivos sobre o cinema Portugus, assim como de Oliveira, para

    alguns o maior cineasta vivo e em atividade (Costa, 2008b), obrigou-me a alguma

    considerao sobre a especificidade do assunto a desenvolver. Aps algumas

  • 10

    hesitaes, e temendo comear uma investigao demasiado generalista, decidi

    desbravar terrenos pouco explorados, elegendo como objeto principal de anlise

    o cinema de Manoel de Oliveira e o recurso natural que est intimamente ligado

    sua filmografia, o Douro.

    Das muitas perguntas gerais que se colocaram no incio da investigao,

    tentmos afunilar ao mximo este objetivo para encontrar a essncia do nosso

    estudo. Deste modo, o objetivo geral deste projeto de investigao relacionar o

    cinema de Oliveira com o Rio Douro, procurando analisar essa relao de dois

    objetivos especficos.

    Inicialmente, teremos em conta a paisagem inerente ao cinema

    oliveiriano, em particular, o Douro, um elemento transversal ao longo da sua obra,

    onde importa perceber como a sua esttica e narrao foi inscrita nas suas

    pelculas atravs de sequncias de imagens, de forma a funcionar como

    amostragem rtmica ou configurao cultural associada experincia humana.

    Passando tambm pela decomposio de vrias imagens do rio Douro que

    habitam no cinema de Manoel de Oliveira, atravs da realizao de um estudo

    social, cultural e histrico do Douro. Para isso vo-se analisar temas como a

    sociedade, a histria, a topografia e a arquitetura. Isto deve-se ao facto de o

    cinema encontrar no Homem e nos seus contextos sociais, a base para as suas

    matrias narrativas. A pelcula cinematogrfica funciona como uma metfora da

    passagem do tempo, onde a sua imagem, possui a capacidade de levar o

    espectador a reagir intelectualmente ao que visiona, influenciando o pensamento

    humano e contribuindo assim para a evoluo do mundo.

    O segundo objetivo desta dissertao procurar perceber as vrias

    formas e princpios estticos que o realizador utiliza nas imagens do Douro. Estes

    refletem mudanas ao nvel da evoluo tcnica e de regimes cinematogrficos,

    que esto presentes ao longo dos 80 anos de carreira do cineasta. Esta

    investigao permitiu assim o inventrio de um grande nmero de obras

    cinematogrficas, televisivas, videogrficas e literrias sobre o cinema Portugus

    e Manoel de Oliveira, bem como sobre um conjunto de documentos, quer teses,

    quer artigos cientficos, que permitissem uma abordagem mais ampla, sistemtica

    e orientada do tema.

  • 11

    Para acompanhar esta reflexo, cada captulo ilustrado com fotogramas

    da obra de Oliveira, em anexo, no sentido de melhor esclarecer as nossas

    reflexes.

  • 12

    1 - O DOURO DE MANOEL DE OLIVEIRA

    H a paisagem: o rio e os barcos rabelos, as encostas e as vinhas, as uvas e o vinho Ao longo do sculo XX, o imaginrio do Douro foi sendo fixado em novos suportes grficos: a publicidade de casas como a Ramos Pinto ou a Sandeman, as fotografias de Domingos Alvo e os filmes de Manoel de Oliveira.

    (Andrade, 2008:57)

    Uma regio, uma montanha, um rio, uma cidade, uma determinada

    localidade geogrfica, em geral representada atravs de diversas formas

    artsticas como a fotografia, o cinema, a literatura, a arquitetura, a msica ou a

    pintura (Rocha, 2012: 15). Estas representaes vo por sua vez criar imagens na

    mente dos indivduos.

    A imagem mental generalizada do mundo exterior que o indivduo retm,

    revela-se como o produto da perceo imediata e da memria da experincia

    passada (Lynch, 1999: 20). A necessidade de conhecer e estruturar o nosso meio

    to importante e est to enraizada no passado, que esta imagem assume uma

    grande importncia no indivduo. O meio ambiente organizado pode servir ento

    como estrutura envolvente de referncia, um organizador de atividade e

    conhecimento. Uma imagem clara do meio ambiente torna-se, assim, um dos

    pilares para o crescimento do indivduo.

    Das diferentes formas artsticas mencionadas, o cinema, possui a

    particularidade de conseguir juntar todas as artes, tem a capacidade de unir em

    simultneo a cincia e a arte, o real e o ideal. O cinema torna-se arte devido sua

    capacidade de registar e fixar o movimento nas imagens por si produzidas.

    Sendo assim, a arte que melhor representa a realidade o cinema. Essa

    realidade corresponde sempre a uma perspetiva do realizador, que vai ser o

    responsvel pela transposio para o grande ecr sobre os mais variados

    assuntos da sociedade. O cenrio, quer seja artificial ou natural, vai fazer com

    que o espectador se identifique com o que se passa na tela, sendo para isso

    necessrio que este seja suficientemente realista e adequado trama que

    narrada.

  • 13

    Independentemente de ser um meio urbano ou rural, o local onde decorre

    a narrativa de um filme, possui elementos facilmente identificveis pelos

    espectadores, como montes, encostas, pontes, rios, oceanos, ruas, quartos.

    Desta forma, o cinema, independentemente da trama dos seus filmes, tem por

    base um territrio, que pode ter a dimenso de uma regio, de uma cidade, de

    uma aldeia, que se vem a constituir como habitat natural do ser humano.

    Os locais, as personagens e as histrias mais marcantes do cinema so

    conhecidas por um vasto nmero de pessoas em todo o mundo e ficam no

    imaginrio coletivo durante dcadas. Note-se que existem filmes e cenas dos

    mesmo que assumem um papel marcante em vrias geraes, que transmitem a

    paixo pelas suas histrias favoritas aos descendentes e assim sucessivamente,

    fazendo com que muitas histrias e filmes se tornem intemporais.

    Os prprios lugares onde decorrem os filmes acabam por revelar

    caractersticas muito prprias sobre a imagem que possumos dos mesmos, quer

    seja uma regio, uma cidade ou uma rua. Uma regio acaba por ser muito mais

    do que aquilo que nos visvel. Os locais no so representados apenas pelos

    monumentos, espaos verdes ou edifcios, ou seja, pelos espaos visveis. Os

    lugares, alm da sua fisionomia, tambm possuem qualidades de idealizao e

    representao. frequente que o cinema use zonas internacionalmente

    conhecidas e identificveis, devido sua fotogenia, lugares que possuem uma

    identidade que atrai os espectadores. Sendo um cineasta oriundo do Porto, cedo

    comeou a filmar a sua cidade, que impulsionada pelo rio que a atravessa. Ao

    longo da sua carreira, Oliveira filmou vrias vezes o rio, o Porto e a zona a que

    esse rio d nome.

    O Douro muito mais do que um rio, uma regio com caractersticas

    topolgicas, culturais e sociais muito prprias que se vo manifestando de forma

    muito diferentes ao longo do seu curso. No cinema oliveiriano, desde logo se

    destaca um Douro rural versus Douro urbano. Ser ento necessria uma

    abordagem aos estudos geogrficos e sociodemogrficos para se perceber estas

    designaes do Douro. As diferenas entre campo e cidade so definidas por

    valores numricos e no necessariamente geogrficos.

    Entende-se por meio rural o espao que no densamente povoado e

    que se encontra afastado dos centros urbanos. A cidade surge como o espao

    onde tudo existe e tudo acontece.

  • 14

    No Douro, assim como na generalidade do pas, esta diferena d-se

    maioritariamente entre o Interior e o Litoral. Se no primeiro se encontra o Portugal

    rural, no segundo, abundam os espaos urbanos. O Douro uma regio que

    possui ambas as designaes, aambarcando um Douro transmontano, um douro

    vinhateiro e um Douro urbano. Existe uma realidade serrana a par com uma

    realidade citadina, com a cidade do Porto a assistir ao desaguar das guas do

    Douro no oceano Atlntico. O Porto torna-se assim um local de contrastes

    culturais que se v acentuado no choque entre a realidade dos espaos.

    O Douro rural, no se difere de outras regies rurais do pas. Como

    qualquer regio, esta possui os seus prprios costumes, estando condicionada

    pela sua prpria geografia, parcos acessos, histria, crenas, patrimnio. As

    regies rurais so caracterizadas por estarem afastadas do mundo, devido aos

    difceis acessos que ligam as vrias aldeias.

    Ao falar do Douro, muitas so as imagens que nos vm cabea, em

    particular, a cidade do Porto onde o rio acaba por se encontrar com o mar, um

    Douro vinhateiro, carregado de encostas com uvas, e um Douro esquecido, o

    Douro transmontano. A juntar a estas imagens do senso comum Portugus,

    podemos acrescentar a imagem cinematogrfica do Douro.

    Logo na sua primeira obra, um trabalho realizado durante a juventude de

    Manoel de Oliveira, a cidade do Porto consegue ganhar a sua imagem

    cinematogrfica.

    Portuense de nascimento, de alma e por opo de residncia na vida,

    Manoel de Oliveira comeou a sua carreira na sua cidade, com dois filmes que haveriam de marcar ambos: ao realizador, inscrevendo o seu nome nas tendncias que marcavam o cinema; ao Porto, que com Douro, Faina Fluvial e Aniki-Bb ganhou uma identidade e um imaginrio cinematogrficos, que mais tarde viriam a ser reforados com O Pintor e a Cidade, Inquietude e Porto da Minha Infncia. O Porto a casa cinematogrfica de Manoel de Oliveira, e aqui que o realizador tem tambm a(s) sua(s) casa(s).

    (Andrade, 2008:57)

    Sendo o cinema uma arte que possui as qualidades necessrias para a

    representao da existncia humana no seu meio natural de forma visual e

    cinemtica, as zonas urbanas, em especial as cidades, comearam desde cedo a

    ganhar uma imagem cinematogrfica. Isto possvel devido relao de

    influncia recproca que existe entre o cinema e a cidade, entre o mundo das

  • 15

    imagens em movimento e a materialidade urbana. As imagens flmicas

    contribuem para a nossa imagem e imaginrio de cidade, potenciando as

    condies necessrias para a construo de uma viso da complexidade da

    paisagem urbana e dos seus territrios. A imagem destaca a fisionomia das

    cidades, os vrios ambientes existentes na mesma, e permite-nos experimentar

    as atmosferas que se manifestam nos espaos urbanos. Esta capacidade que as

    imagens possuem de nos fazer sentir as emoes de diversos locais, faz com que

    seja acionado dentro nosso espao percetivo, convenes de histria, de cultura

    e de memria visual.

    J a linguagem cinematogrfica ajuda-nos a estruturar o nosso

    imaginrio da cidade e, simultaneamente, a prpria realidade que se encontra

    marcada por essas mesmas imagens, que influenciam a leitura do mundo

    quotidiano. Assim sendo, atravs das imagens cinematogrficas que se procura

    tornar visvel a cidade que existe nas fitas cinematogrficas. O cinema surgiu

    simultaneamente com a ideia de cidades modernas, originando um percurso

    visual que acompanha o quotidiano temporal da paisagem urbana, e, de como

    reao, esta paisagem estrutura a produo de imagens que perfazem o olhar do

    espectador.

    A cidade uma construo no espao em grande escala, algo apenas

    percetvel no decurso de longos perodos de tempo. A cidade no apenas uma

    estrutura percetvel (e talvez apreciado) por milhes de pessoas, mas o

    resultado de muitas construes que constantemente modificam a estrutura por

    razes particulares (Lynch, 1999: 12).

    A imagem cinematogrfica vai contribuir para a forma como possumos

    uma viso de determinado local. Raramente possumos uma perspetiva global e

    profunda de um local, mas sim bastante parcial, fragmentria. Quase todos os

    nossos sentidos esto envolvidos e a imagem que o resultado de todos eles.

    Manoel de Oliveira, retrata o Douro num espao que vai muito mais alm

    do local. justo reconhecer sua obra uma valncia documental generalizada da

    cultura Portuguesa. O Douro Vinhateiro, ou se quisermos, o Douro rural como

    espao despovoado, envelhecido, a sofrer com a massificao da emigrao,

    fenmeno que tem sido recorrente no Portugal das ltimas dcadas.

    Esta imagem deve muito a Manoel de Oliveira. Filmes como Douro, Faina

    Fluvial (1931), Aniki Bb (1942), O Pintor e a Cidade (1956), Inquietude (1998), e

  • 16

    Porto da minha Infncia (2001) deram expresso cinematogrfica sua cidade, o

    Porto. Vale Abrao (1993), O Principio da Incerteza (2002), O estranho caso de

    Anglica (2010), so filmes que vo dar expressividade a um Douro interior, ou se

    quisermos mais rural.

    Importa analisar nas seguintes pginas, atravs dos filmes de Oliveira, as

    qualidades inerentes aos dois pilares do rio, a cidade do Porto e as encostas de

    um Douro Vinhateiro.

    1.1- Manoel de Oliveira e o rio expressionista

    Douro, Faina Fluvial (1931), como o prprio nome indica, um

    documentrio sobre a cidade do Porto e o seu recurso natural principal - o rio

    Douro - e surge associado com o cinema de velocidade de imagem, as "Sinfonias

    das cidades" (Andrade, 2001: 45)., obras do cinema de vanguarda, que durante a

    dcada 20 do sc. XX, viriam a ter uma papel preponderante na afirmao do

    cinema como arte autnoma, e a definir os parmetros do gnero documental.

    Estes filmes surgem no seguimento de Manhatta, obra dos norte-americanos Paul

    Strand e Charles Sheeler realizada em 1921 e filmada como o ttulo indica em

    Manhattan. Outras "Sinfonias das cidades" famosas so o Berlim, Sinfonia de

    uma Capital (1927), que o Alemo Walther Ruttmann filmou em Berlim; O Homem

    da cmara de filmar (1929) que Sovitico Dziga Vertov filmou em Moscovo; A

    Propos de Nice (1929/1930) que o Francs Jean Vigo rodou naquela cidade do

    sul de Frana; assim como os filmes A Ponte (1928) e a A chuva (1929) que o

    Holands Joris Ivens filmou em Roterdo e Amesterdo. No eplogo destas

    obras, surge o documentrio Douro, Faina Fluvial (1931) de Manoel de Oliveira,

    que permite cidade do Porto, em especial sua ribeira, ganharem um cenrio

    cinematogrfico.

    Manoel de Oliveira assume que a ideia de fazer um filme sobre o Porto,

    surgiu depois de ver a obra de cinema expressionista de Ruttman porque sentiu

    que aquilo era uma proposta que apreciava e se sentia capaz. Nessa altura, o

    prprio Oliveira j lia muito sobre cinema, e estava j relativamente amadurecido

  • 17

    ao que na poca se chamava "arte muda" (Oliveira in Andrade, 2001: 25), o que

    certamente ajudou para que o seu filme tivesse bem marcadas as influncias do

    expressionismo Alemo, como os saberes da montagem sovitica de Vertov.

    A vontade de Oliveira em produzir para o Porto uma obra semelhante,

    leva-o a concentrar-se na zona ribeirinha da cidade de forma a construir essa

    sinfonia urbana.

    O Douro, rio Portugus, possui uma vida prpria caracterstica, que justifica a sua paisagem marginal e as atitudes da gente que em sua volta trabalha.

    (Oliveira, 1931)

    O realizador, atravs da frase anterior, comea um documentrio de vinte

    minutos que nos mostra vrias imagens icnicas como, o quadro arquitetnico da

    margem direita do Douro, onde sobressaem as torres da S; as ruas do centro

    histrico que se dirigem para a Praa da Ribeira; as duas travessias de ferro e

    ao que servem de ponte de comunicao entre as duas margens; a locomotiva

    do comboio, e claro est, o rio, o epicentro da existncia de todos eles.

    Alm das suas caractersticas topogrficas e arquitetnicas, o filme de

    Oliveira tambm gira em torno das pessoas e da sua atividade em torno do

    Douro, um rio que serve como fonte de sobrevivncia para inmeros homens,

    mulheres e crianas. A rotina diria da faina transforma-se num organismo vivo

    coletivo, composto por, animais, pessoas e embarcaes, que formado atravs

    do movimento contnuo fornecido pelo ritmo da montagem.

    As margens do rio Douro, com as suas casas antigas e recorte sombrio e

    grantico tornam-se assim no cenrio para o realizador Portugus lanar o

    primeiro marco da sua comdia humana, porventura j marcada pelo efmero e

    pela frustrao (Costa, 1991: 45).

    O realizador mostra um grande vontade no domnio da linguagem

    cinematogrfica com o recurso a um jogo dialtico de planos fixos, panormicas,

    travellings picados e contrapicados. Oliveira procura assim uma esttica

    sofisticada e rigorosa que vai muito mais alm da pontual observao da

    realidade social, experimentando uma ou outra forma de apresentar o real.

    Ao longo do filme, o realizador filma as casas da Ribeira, inicialmente

    atravs de planos em picado, debruando-se da ponte D.Lus, para depois, como

  • 18

    que se atirando para o rio, a razo de todo este cenrio envolvente, descer at s

    caladas da Ribeira, onde filma algumas cenas do quotidiano local. Alternando a

    cmara, entre o nvel da rua que nos retratam pessoas a conversar sentadas

    porta de casa e a roupa a secar nos estendais, e um contrapicado que nos revela

    o cu por entre o curto espao entre os beirais das casas. O filme remete para

    uma complexa composio visual composta por formas humanas e arquitetnicas

    que se complementam entre si, e, que acabam por atribuir caractersticas

    humanas ao rio. Este torna-se, assim, a referncia de um composto orgnico que

    parece estar em todos os seus elementos, desde a irregularidade dos telhados

    das casas at s poeiras e fumos que advm das casas, das mquinas e do

    trabalho da Ribeira.

    Enquanto Oliveira nos revela um olhar sobre a ocupao da encosta do

    Douro por parte das casas e dos seus habitantes, impossvel no fazer uma

    analogia entre aquele lugar e o incio de uma cidade que surgiu a partir do rio.

    Durante o filme, surgem vrios enquadramentos da ponte D. Lus, revelando o

    impacto e vigor da modernidade da presena da arquitetura do ferro no Porto1.

    O crtico de cinema francs da revista Le Temps, mile Vuillermoz

    escreveu o seguinte:

    Nunca o Pathos novo da arquitetura do ferro e a poesia eterna da gua

    foram traduzidos com tanta fora e inteligncia.

    (Andrade, 2008:58)

    Em Douro, Faina Fluvial (1931), a arquitetura do ferro no serve apenas

    como em elemento presente para ilustrao documental, mas o realizador usa-a

    primeiramente de forma isolada, com imagens de ambas as travessias sobre o

    Douro, para depois ir estabelecendo um contraponto progressivo com o carter

    orgnico da atividade junto ao Cais da Ribeira, enfatizando assim a esttica

    dominante no cinema da altura: o elogio da mquina. Isto pode ser facilmente

    visvel no filme de Ruttman e Vertov, mas Oliveira vai alm da experimentao

    cinematogrfica, e nota-se no seu filme uma preocupao humanista, visvel no

    olhar que a sua cmara lana sobre as personagens existentes2. No filme de

    1 Ver imagens 1 - 6; Anexo desta dissertao, captulo 3, p. XI. 2 Ver imagens 1 - 5; Anexo desta dissertao, captulo 5, p. XIII.

  • 19

    Oliveira, torna-se mais prximo de Eisenstein e de Pudovkin do que de Dziga

    Vertov ou do prprio Ruttman (Pina, 2012: 13). Os homens, mulheres e crianas

    so retratados como escravos do trabalho manual de forma a garantirem a sua

    sobrevivncia.

    Podemos perceber a passagem do tempo, estranhamente presente na

    permanncia do passado no presente, como na arquitetura do lugar, no

    envelhecimento dos personagens, ou nas marcas de um corpo fustigado pelo

    duro quotidiano da altura.

    Isto remete para trs dimenses: o da faina fluvial, o da vida na labuta e o

    da natureza; que no se encontram apenas presentes nas pedras, nas mquinas

    e nas construes, mas acima de tudo nas pessoas.

    As pessoas marcam aqui uma diferena, num ciclo que se repete, sob o

    desgnio de um trabalho repetitivo, mas como um quotidiano recheado de janelas

    para a repetio da diferena, revelando uma proximidade ao realismo de um

    Sergei Eisenstein. o que se nos apresenta, por exemplo, no relacionamento

    amoroso na hora do almoo, no acidente com o carro de boi ou com a mulher que

    vende peixe pois o namoro, a cena do boi e uma nova oportunidade de lucrar

    financeiramente, por meio da negociao, so as oportunidades que levam a uma

    novidade no meio da repetio da faina fluvial.

    O uso de planos prximos para colocar no quadro a diversidade de

    pessoas ou os enquadramentos do corpo dos trabalhadores, de modo a acentuar

    a beleza obtida no pice da exausto fsica, do um valor acrescido lida diria.

    A montagem de Oliveira no cria a ideia da tomada da conscincia por

    parte dos trabalhadores, quando confrontados com situaes injustas ou da

    explorao do trabalho a que se encontram sujeitos, aponta sim para as diversas

    mudanas na vida dessas pessoas ao longo de um dia. Assim Oliveira, no nega,

    nem afirma, a dimenso heroica do trabalhador, simplesmente os apresenta

    demasiadamente humanos.

    Jos Rgio escreveu na revista Presena:

    A moderna poesia do ferro e do ao, o encanto da natureza atravs dos seus vrios aspetos e nuances, a tonalidade das horas, a alegria e a misria do homem scio do animal na luta pelo po de cada dia tudo, ao longo de um dia de atividade na margem do Douro, nos dado com verdadeira grandeza. Precioso como documentrio, o Douro excede, assim, e em muito, o valor de um mero documentrio.

    (Andrade, 2006: 58)

  • 20

    O cineasta Portuense mostra a convivncia das pessoas com a existncia

    simultnea do mundo tecnolgico industrial, com o mundo das tcnicas

    rudimentares de produo da vida. Neste filme, o realizador captura assim a

    imagem da convivncia entre aquilo que considerado tradicional e aquilo que

    visto como avanado, entre o homem e a mquina.

    1.2 - O percursor do neorrealismo

    Importa contextualizar que Aniki-Bb (1942) surge na obra de Manoel de

    Oliveira, quando este no tinha realizado nada de muito significativo entre 1931 e

    1942, o espao temporal entre o seu primeiro filme e esta sua longa-metragem.

    verdade que nesse perodo de tempo teve alguns projetos abortados, assim como

    a realizao de alguns documentrios que praticamente caram no esquecimento,

    sendo o seu trabalho mais relevante nesta altura o filme Famalico (1940). Isto

    deveu-se ao facto de os anos 30 do sculo XX, serem dominados pela

    reorganizao poltica e consequente instalao de um regime autoritrio,

    conservador e extremamente antidemocrtico, o denominado Estado Novo. Este

    regime possua uma variedade e instrumentos repressivos, que iam da polcia

    poltica, a uma crescente analfabetizao da populao, da censura prvia de

    vrios projetos culturais e artsticos, passando mesmo por uma perseguio aos

    artistas e intelectuais, que ousavam colocar em causa as ideias do regime. Este,

    representado pelo Secretariado de Propaganda Nacional, suspeitava de tudo o

    que fosse inovador, proveniente do estrangeiro e que pudesse envolver temticas

    sociais, polticas ou abrir espaos de discusso ou interveno. Ento, o cinema

    proveniente do regime instaurando devia promover os valores catlicos, os temas

    da tradio nacional e os do teatro e da literatura populares (Pina, 2012: 14).

    Ora, Manoel de Oliveira, com o seu Douro, Faina Fluvial (1931), tinha ido contra

    os princpios defendidos pelo regime, comeando a ver os seus projetos

    posteriores condicionados ou censurados.

  • 21

    Apesar do realizador ter sido reprimido pelo regime, a verdade que com

    o seu Douro, este havia conseguido a admirao de Antnio Lopes Ribeiro, amigo

    pessoal de Antnio Ferro, que era o responsvel mximo do Secretariado da

    Propaganda Nacional.

    Numa poca em que a produo cinematogrfica nacional vivia, atravs

    dos dinheiros do Estado e do advento do sonoro nas pelculas, uma grande fase

    de prosperidade, onde surgiram filmes como o Pai Tirano (1941) e o Ptio das

    Cantigas (1942), entre outros. Antnio Lopes Ribeiro cria a sua prpria empresa

    produtora de filmes, convidando Oliveira para um novo projeto cinematogrfico,

    Aniki-Bb (1942).

    Este, a nvel esttico e temtico revela-se totalmente diferente dos

    modelos habituais da produo cinematogrfica portuguesa da altura. Com medo

    que o filme fosse censurado pelo regime, Antnio Lopes Ribeiro usou as suas

    boas relaes com o poder poltico para fazer ver aprovada, a rodagem do filme.

    Uma vez concludo, o filme foi parcialmente bem recebido pela crtica,

    mas acabou maioritariamente por ser criticado pela imprensa conservadora da

    poca, que o considerou imoral e subversivo e o chegou a classificar de

    verdadeira monstruosidade (Pina, 2012: 19), acabando este por ser mais um

    fracasso de bilheteira. Acabou por estar poucas semanas em exibio, uma vez

    que o pblico estava mais interessado em histrias de casamento de

    empregadinhas pobres com aristocratas ou industriais (Pina, 2012: 61).

    Aniki-Bb (1942), torna-se assim, a primeira longa-metragem e primeiro

    filme de fico de Oliveira, fazendo com que este regresse ao Porto ribeirinho de

    Douro, Faina Fluvial (1931). O realizador inspira-se num poema, intitulado de Os

    Meninos Milionrios, de Rodrigues de Freitas, onde usa um universo de crianas,

    como alegoria de temas adultos como a culpa, o crime e o consequente castigo, a

    oposio entre o bem e o mal, entre a responsabilidade e a irresponsabilidade.

    O filme conta a histria de amor de Carlitos, por Teresinha. Porm

    Carlitos tem um rival, Eduardinho que tambm gosta de Teresinha. Esta longa-

    metragem retrata a rivalidade entre estes dois midos, sendo que um atrevido e

    valento enquanto o outro tmido e sossegado. A rivalidade entre os dois vai

    aumentando ao longo do filme, e um certo dia, para tentar atrair a ateno e

    agradar a Teresinha, Carlitos rouba uma boneca de uma loja, que sabia que a

  • 22

    menina gostava e queria para si. Esta oferta de Carlitos faz com que Teresinha

    comece a prestar-lhe mais ateno.

    No entanto, um dia, a partir de uma brincadeira inocente, Eduardinho

    escorrega e cai ao lado de um comboio que passa naquele momento, fazendo

    com que todos, inclusive Teresinha, julguem Carlitos como culpado pelo acidente

    de Eduardinho.

    Sentindo-se sozinho e abandonado, Carlitos pensa fugir num barco

    ancorado no cais do rio, mas descoberto. Toda esta situao se esclarece por

    interveno do dono da loja onde Carlitos havia cometido o furto, pois este

    assistira ao acidente de Eduardinho e retira todas as suspeitas que recaiam sobre

    Carlitos.

    Em 1942, Oliveira surge com o melhor e mais importante dos filmes da

    dcada (Costa, 1991: 95), um filme que representado por crianas e

    praticamente rodado em cenrios naturais da cidade do Porto (as margens do

    Douro e os bairros ribeirinhos de Gaia e Porto), o que levou a que alguns dos

    mais clebres crticos Europeus a consider-lo um percursor do neorrealismo,

    nomeadamente de filmes como Ossessione (1943) e de Sciusia (1946), filmes de

    Visconti e De Sica. Aniki-Bb (1942), tal como em Douro, Faina Fluvial (1931),

    guarda o realismo documental da cidade, para alm de protagonizar a

    irrupo da realidade na fico pelo facto de ser representado predominantemente por crianas originrias das zonas da cidade em que o filme realizado.

    (Fernandes in Museu de Serralves, 2008: 23)

    Isto porque, apesar de o filme ter sido rodado nos cenrios naturais das

    margens do Rio Douro, no Porto e em Vila Nova de Gaia, e com atores amadores

    que eram das zonas ribeirinhas, a verdade que Aniki Bb (1942) no um

    filme documental, ao contrrio da primeira obra do realizador, mas sim de um

    realismo intuitivamente critico sociedade.

    Se este fosse um filme com preocupaes etnolgicas, histricas ou

    geogrficas, a construo teria que ser outra, mas assim, captaram-se os lugares

    mais interessantes para servirem de cenrio cinematogrfico trama3. Apesar de

    o Porto ser facilmente reconhecido no filme, a verdade que neste nunca se faz

    meno a um nico lugar, fazendo com que a cidade seja uma cidade 3 Ver imagem 3; Anexo desta dissertao, captulo 1, p. III.

  • 23

    cinematograficamente construda de acordo com as necessidades expressivas,

    plsticas e dramticas, do filme com imagens obtidas arbitrariamente de uma

    margem e de outra do rio, no Porto e em Vila Nova de Gaia, sem qualquer ndice

    de veracidade ou rigor documental.

    Caracterizado pelas inmeras marcas expressionistas, atravs de

    bastantes jogos de sombras, este um filme que tambm faz referncias

    sociedade repressiva da altura, atravs do aparecimento do policia, agente de

    ameaa e castigo, da represso e da priso4 (Fernandes in Museu de Serralves,

    2008a: 23), assim como todo o esprito do filme, que aborda a oposio entre o

    mundo fechado, conformador e repressivo da escola e o universo livre da rua e do

    rio, territrios abertos das brincadeiras e dos sonhos (Pina, 2012: 17).

    1.3 - O filme-viagem da cidade do Porto

    No perodo decorrente entre 1942 (ano da estreia de Aniki-Bob) e 1956,

    Manoel de Oliveira fez um interregno no seu trabalho enquanto cineasta, marcado

    por vrios projetos recusados e censurados, a que se seguiu um retorno

    realizao com outras perspetivas sobre o cinema (Baecque e Parsi, 1999:141).

    Tendo sido uma poca de isolamento determinante para repensar as

    potencialidades do cinema, tal como foi a marcante experincia de fotografar uma

    defunta chamada Anglica (prima de sua esposa), que lhe permitiu perceber que

    o tempo o grande mistrio, j que deste modo pde ver a duplicao do corpo

    da morta como se de um fantasma se tratasse (Costa e Oliveira, 2008: 60),

    levando-o a escrever um guio para um filme com o nome da falecida, em 1952

    (Baecque e Parsi, 1999: 141).

    Neste incio de carreira, que se encontrou posto de parte perante o

    panorama cinematogrfico nacional, com projetos no subsidiados (Pina,1978 :

    24), s volta s cmaras em meados da dcada de 50. O aparecimento da cor no

    cinema, fez com que em 1955, Manoel Oliveira decidisse fazer um estgio na

    Alemanha, donde regressou com novos materiais, entre eles a pelcula Agfacolor

    4 Ver imagens 1 - 3; Anexo desta dissertao, captulo 4, p. XII.

  • 24

    que serviu de suporte fotossensvel para o seu prximo filme, O Pintor e a Cidade

    (1956). Este o resultado de um encontro fortuito entre trs figuras da vida

    artstica da cidade do Porto, Manoel de Oliveira, o pintor Antnio Cruz e o

    compositor Lus Rodrigues (Costa e Oliveira, 2008: 65). O filme uma curta-

    metragem de vinte e oito minutos, que surge como um trabalho de

    experimentao da cor associado a um tom documental com um forte cariz

    esttico. O motor narrativo deste terceiro filme so os quadros do pintor Antnio

    Cruz, o artista que produziu obras atravs das aguarelas que fazia sobre a cidade

    do Porto.

    Eles so o contraponto de uma viagem pelo Porto em que o realizador

    ousa sair do grande cenrio que a zona ribeirinha para subir zona alta da

    cidade de forma a mostrar todo o seu modernismo. Nesta obra, Oliveira regressa

    cidade portuense, filmando as pontes de ferro, a ribeira e certos socalcos do

    Douro que j havia filmado nas suas obras precedentes. Apesar do regresso aos

    locais geogrficos do seu cinema, este filme revela-se muito diferente dos seus

    antecessores. Existe um prolongamento no tempo dos planos, onde o tempo real

    irrompe na sua obra. O realizador, enquanto d ento a conhecer as obras de

    Antnio Cruz, revela-nos o seu ponto de vista sobre as mesmas, atravs do seu

    olhar cinematogrfico. O filme d-se entre o dilogo lado a lado das aguarelas do

    pintor e as filmagens do realizador5, conseguindo ir mais alm do que Antnio

    Cruz na sua representao da cidade.

    Esta emancipao de Oliveira em relao a um outro autor, j havia sido

    verificada no seu primeiro filme, Douro, Faina Fluvial (1931). Se nas aguarelas do

    pintor, a representao humana era praticamente inexistente, o filme de Oliveira

    d-nos uma viso comovente dos habitantes de uma cidade, dos namorados nos

    bancos de jardim s crianas que brincam na rua, dos guardas a cavalo aos

    moradores dos bairros de lata (Fernandes in Museu de Serralves, 2008b: 13).

    Apesar desta humanizao dos quadros do pintor portuense, Oliveira tambm faz

    um registo dos lugares do Porto, desde igrejas, ruas, praas, monumentos, o

    antigo Estdio das Antas, passando por edifcios modernistas.

    Aqui, a arquitetura serve como elemento de confrontao para os olhares

    mais tradicionais que so colocados na tela por parte do pintor. Nesta produo,

    5 Ver imagens 13 - 20; Anexo desta dissertao, captulo 2, pp. IX-X.

  • 25

    tal como em Douro, Faina Fluvial (1931), o realizador tenta dinamizar a imagem

    atravs das qualidades rtmicas da arquitetura moderna, originando um filme

    muito mais pausado que o primeiro (Preto, 2008: 28).

    Esta viagem pelo Porto com cores pictoricamente fortes, acaba por

    contrastar com os dois filmes anteriores. Neste encontro entre o filme e a pintura

    de Antnio Cruz, o realizador vai passando progressivamente de uma

    representao suave da toponmia da cidade, para uma viso mais sombria. Das

    imagens alegres e coloridas do incio do filme, passmos para uma noite sombria

    que se esconde na cidade, que reflete os raios solares durante o dia.

    Apesar de o filme ter um tom de reverncia e elogio cor, podemos ainda

    constatar que o Porto continua a ser uma cidade bem mais incmoda do que a

    cidade evidenciada nos primeiros minutos do filme. O Porto de O Pintor e a

    Cidade (1956) aproxima-se assim da cidade a preto e branco retratada nos filmes

    anteriormente apresentados.

    1.4 - O rio de Agustina Bessa-Lus e Manoel de Oliveira

    Em 1993, Oliveira realiza Vale Abrao, filme que surge da adaptao do

    romance com o mesmo nome, de Agustina Bessa-Lus, que teve origem num

    pedido de Oliveira para que a escritora fizesse uma reescrita da histria de

    Madame Bovary para os dias de hoje no norte de Portugal. A obra de Flaubert

    revela-se como um ponto de partida, que segundo Oliveira, apenas tem como

    ponto comum o facto de retratar a histria de uma mulher que se chama Ema,

    que casa com um mdico que se chama Carlos, que se entedia com uma vida

    demasiado provinciana, possuindo muitos amantes e que acaba por se suicidar.

    O filme conta-nos a histria de Ema Cardenado, a filha de um proprietrio

    de terras em decadncia nas margens do Douro, que cresceu no Romesal sob

    um regime familiar fechado at puberdade. Desde cedo que a jovem Ema viu-se

    rf de me, sentindo-se cercada, pelas criadas da propriedade com as suas

    conversas maliciosas, e pela beata tia Augusta. Ema era dona de uma beleza

    muito prpria, capaz at de provocar acidentes rodovirios quando se expunha na

    varanda de sua casa. Certo dia, enquanto almoava com o pai num restaurante,

  • 26

    por ocasio das festas da Nossa Senhora da Agonia, na cidade de Lamego,

    conhece Carlos Paiva, mdico e agricultor. Este ficou encantado com a sua

    beleza, encetando conversa com o pai de Ema.

    Com o passar dos anos, Carlos enviva e comea a frequentar o

    Romesal, tornando-se noivo de Ema, uma moa ainda ignorante no que toca a

    relaes amorosas.

    Durante o casamento, rapidamente Ema v-se desiludida com o seu

    marido. Isto leva-a a querer viver novas experincias, vendo os seus desejos a

    serem realizados no primeiro evento social a que Carlos a leva, o Baile das Jacas.

    Este baile vai marcar a sua vida, medida que lhe d a dimenso de uma

    existncia que deseja alcanar e que lhe permanece inacessvel.

    Perante a impossibilidade de ser, ter e possuir segundo os seus prprios

    desejos, debate-se entre amantes, viagens e fases de desespero. Ema sente uma

    profunda insatisfao e incompreenso ao longo da sua existncia. Tem duas

    filhas, s quais no se afeioa, no encontrando na maternidade qualquer tipo de

    realizao pessoal, ao contrrio da maioria das mulheres. Apesar de toda esta

    insatisfao, dos seus amantes, a verdade que o seu casamento com Carlos

    no chega a ser abalado ao ponto de provocar uma separao entre o casal. Esta

    mulher recorre frequentemente a um dos seus amantes, para se refugiar na sua

    propriedade, o Vesvio. Vulco que se encontra extinto, o Vesvio simboliza a

    prpria Ema, onde esta ir selar o seu destino nas guas do rio Douro.

    Importa analisar a adaptao de Manoel de Oliveira, com o livro de

    Agustina Bessa-Lus, onde ambos transmitem dois olhares sobre o rio, o Douro

    das palavras, das imagens, dos planos narrativos e dos planos cinematogrficos.

    Tal como o romance de Agustina Bessa-Lus, o filme de Oliveira comea

    com um narrador que no se identifica nem pertence a qualquer personagem da

    histria, mas que situa os espectadores no universo geogrfico onde se desenrola

    a ao do romance.

    A margem esquerda dos rios no apetece tanto, seja porque o sol a

    procura em horas mais solitrias, seja porque a povoa gente mais tristonha e descendente de homiziados e descontentes do mundo e das suas leis. A regio demarcada do Douro, que ocupa quase na sua totalidade a margem direita, prova pelo menos que o reflexo solar tem efeito no negcio dos homens e lhes determina a morada.

    Porm, h na curva que apascenta o rio pelo recho areento, ao sair da rgua, um vale ribeiro de produo de vinhos de cheiro e que se estende, rumo

  • 27

    cidade de Lamego, comarca a que pertence, at as guas medicinais de cambres. o Vale Abrao, com as suas quintas e lugares de sombra

    (Bessa-Luis,1993:7)

    No livro este contexto acontece de forma progressiva, j que comea de

    forma muito vaga a margem esquerda dos rios, passando em seguida a regio

    demarcada do Douro, para s ento chegar localidade de Vale Abrao.

    J no filme, o narrador comea a contar-nos a histria de Abrao,

    enquanto exibido um vale atravessado por um rio.

    No Vale Abrao, lugar chamado de um homem inutilmente conscincia de

    seu orgulho, de vergonha, de clera, passavam-se e passam-se coisas que pertencem ao mundo dos sonhos, o mundo mais hipcrita que h. O patriarca Abrao tinha um costume arcaico: o de usar a beleza da mulher, Sara, como soluo das suas dificuldades. Para isso, intitulava-a sua irm, o que deixava caminho para o desejo de outros homens.

    (Oliveira,1993)

    Posteriormente surge o som de um comboio e a vista que se tem desse,

    introduzindo-nos as casas, as plantaes, o rio e todo o cenrio envolvente ao

    filme6. Em ambos os casos, livro e filme, o narrador revela conhecer todo o

    territrio geogrfico da regio, bem como o passado das personagens e

    respetivas famlias, caracterizando-se assim como um narrador omnisciente.

    Manoel de Oliveira faz uso da metfora bblica do Vale Abrao como uma

    possvel viso do paraso perdido, criando assim uma viso particular em que o

    Douro o elemento central. A omnipresena do rio em todo o filme, acaba por ser

    o fio condutor que agarra os lugares que do forma, reconstituindo o ambiente da

    poca. O rio torna-se assim o elo que une diversos elementos do seu percurso.

    Em Vale Abrao, feita uma reconstruo do ambiente do Douro vincola,

    aproximadamente entre as dcadas de sessenta e oitenta, atravs de "vinhedos

    do vinho do Porto, to magnificamente filmados..." (Baecque, 1999 : 12),

    aproximadamente entre as dcadas de sessenta e oitenta. Um lugar conservador,

    onde ainda no existe uma grande insero de elementos modernos como o

    automvel, sendo que o comboio o grande meio de locomoo, como as

    primeiras imagens do filme. O barco acaba por ser um meio que utilizado para

    6 Ver imagens 5 - 7; Anexo desta dissertao, captulo 1, pp. III-IV.

  • 28

    passeios de lazer7, uma vez que os barcos rabelos foram perdendo a sua

    utilidade como forma de transporte do vinho entre as quintas do Douro Vinhateiro

    para os armazns situados na foz do rio.

    Estas quintas que estruturam o Vale do Douro fazem partes de uma altura

    em que o Douro se organizava em funo da sua atividade vincola. As casas

    destas quintas pertencem s famlias ligadas produo do vinho,

    assemelhando-se com solares. No outro extremo do espectro social existem

    construes bastante parcas em condies de alojamento que so destinadas

    aos trabalhadores vincolas, assim como anexos s casas das quintas, que

    servem para os seus empregados, salientando o Douro enquanto rio de trabalho.

    Oliveira representa ainda, estruturas de apoio a essas quintas como tanques de

    gua para lavar a roupa8, caminhos que tomam a direo dos socalcos das

    vinhas, revelando um subsistema muito prprio e caracterstico.

    Perante isto, o realizador adota tcnicas prprias do cinema clssico,

    antecipando todas as mudanas de cena com imagens do exterior das casas de

    quinta em que a sequncia se desenrola, ou ento, filmando atravs de travellings

    laterais o trajeto correspondente deslocao dos personagens de um local para

    o outro, quase sempre com a presena do Douro9.

    No filme, o rio intromete-se, at nas cenas de interiores, observando

    vrias vezes as personagens atravs de janelas abertas para o vale10. O Douro

    possui, deste modo, um magnetismo que fora as casas do vale a olhar para ele,

    atravs de varandas ou divises com grandes janelas de vidro.

    Todos estes parmetros que envolvem estas construes visuais, vo

    marcar a paisagem do Douro no cinema Portugus, seja atravs dos "socalcos,

    quintas e ancoradouros" (Oliveira, 2004:1), da linha frrea que liga a cidade da

    Rgua cidade do Porto, quer seja das caractersticas da luz naquela regio do

    pas.

    A relao de Ema com o Douro d-se no ancoradouro da Quinta do

    Vesvio, um local que prenuncia a morte desta, devido a um grande plano de uma

    tbua podre e da escurido das guas do rio. Antnio Barreto considera o Douro,

    7 Ver imagens 15 - 17; Anexo desta dissertao, captulo 5, p. XV. 8 Ver imagem 7; Anexo desta dissertao, captulo 5, p. XIII. 9 Ver imagens 5 - 14; Anexo desta dissertao, captulo 1, pp. III-IV. 10 Ver imagens 1 - 5; Anexo desta dissertao, captulo 6, p. XVI.

  • 29

    uma mulher. A morte de Ema representar uma comunho total entre esta e o rio,

    porque Ema o prprio Douro. (Oliveira, 2004 : 6).

    1.5 O Passado e o Presente do Douro

    Em 2001, a cidade do Porto foi nomeada para Capital Europeia da

    Cultura, sendo-lhe proposta a realizao de um documentrio sobre a cidade,

    onde viria a surgir, o filme Porto da Minha Infncia (2001).

    Oliveira considerou que no seria a melhor altura para se fazer o filme,

    devido s obras que estavam a decorrer por toda a cidade relativas ao evento,

    optando por fazer um cruzamento entre imagens captadas da cidade do Porto

    para este projeto, juntamente com imagens do Porto dos tempos em que era

    criana, com cenas de fico gravadas para este filme e ainda excertos dos seus

    filmes nas margens do Rio Douro, culminando num trabalho que vive da

    montagem, evocando assim as primeiras escolas russas.

    Oliveira regressa assim sua cidade natal. Ela j o tinha inspirado para o

    seu primeiro filme, Douro, Faina Fluvial (1931), e para o que marca o seu

    regresso atrs da cmara em 1956, O Pintor e a Cidade. Nas duas obras

    referidas, o realizador portuense havia filmado aquilo que prendia o seu olhar.

    Nesta obra de 2001, o autor escolhe filmar aquilo que j no existe e que s os

    olhos da sua memria, podem ainda ver.

    Porto da Minha Infncia (2001), assim, um filme que invoca uma ideia

    de transcendente, dualismos entre real e fico, as origens do cinema e a

    memria humana.

    Este pode ser considerado um filme auto biogrfico urbano, dado que o

    realizador constri o seu prprio eu, na sua relao com a cidade Natal e de

    adoo. Nestas pelculas, o espao est sempre mediatizado pelas experincias

    pessoais, que os diretores tm vivido ali, representando um lugar de memria.

    Oliveira, documenta tambm a sua relao com a cidade, fundada com a

    sua memria, o que John Grieson define como A falsificao criativa da

    realidade. (Alvarez, 2014: 123). Assim, mais do que as recordaes sobre a

  • 30

    paisagem urbana que desaparecera, os acontecimentos do passado, importa a

    forma como as recorda.

    Um filme autobiogrfico, um gnero que pretende situar o seu autor no

    centro do seu discurso sem necessariamente possuir uma lgica narrativa.

    De certo modo, a memria converteu-se, num dos temas principais da

    obra de Manoel de Oliveira, onde o realizador a v como uma grande fonte de

    inspirao para explorar o seu prprio ser, passado e o prprio imaginrio

    histrico de um pas. A memria passa a ser muito mais do que um conjunto de

    vivncias que se podem reproduzir com um elevado nvel de detalhe.

    Uma pelcula marcada pela saudade, pela emoo, distinta da melancolia

    e nostalgia de um passado vivido pelo realizador, porm com a conscincia

    profunda destes sentimentos (Alvarez, 2014: 124).

    Recordar momentos dum passado longnquo viajar fora do tempo. S a

    memria de cada um o pode fazer. o que vou tentar.

    (Oliveira, 2001)

    Logo na primeira declarao do filme, Oliveira revela que pode no atingir

    o seu objetivo de usar a memria como fonte de inspirao criativa, dado que

    tudo o que a memria no recordar, deve transformar-se em fico.

    O comentrio na primeira pessoa, vai sofrendo alteraes, com breves

    passagens de msica clssica, assim como canes populares que reforam a

    dimenso emocional das imagens. O conjunto de todas estas estratgias trata de

    representar a lgica da memria, assumindo que nem as imagens, nem a

    narrao so suficientes por si mesmas para evocar as imagens mentais do

    cineasta (Alvarez, 2014: 124).

    Em vrios momentos, o documentrio recorre ao contraste entre as vistas

    antigas e contemporneas da paisagem urbana de forma a criticar as suas

    transformaes, pese o facto de o realizador, no estar interessado em recuperar

    o passado, mas sim em criar um elo de ligao entre os dois tempos.

    A associao constante entre lugares e recordaes, leva o espectador a

    visitar lugares da memria do cineasta, assim como permite que estes viagem

    tambm pelo passado dos lugares de uma cidade que j no existe mais. Assim,

  • 31

    o realizador representa ao passado e o presente de forma simultnea, bem como

    a sua prpria evoluo enquanto indivduo ao longo do tempo.

    Oliveira, no decorrer do filme, revela uma desconfiana sobre a sua

    capacidade de recordar, fazendo com que o filme se dirija para a autofico,

    atravs de imagens reconstrudas que possuem o mesmo valor documental que

    as imagens de arquivo. Estas no pretendem reproduzir a aparncia real do

    passado, mas construir a sua imagem desde o presente.

    Nas cenas recriadas, por vezes, as personagens ajudam o realizador a

    recordar alguns detalhes da sua memria, sussurrando determinadas palavras

    antes que este as pronuncie. Esta ideia pretende mostrar que a prpria fico

    que guia o relato das prprias vivncias, e no o contrrio. Importa referir que os

    atores que encarnam Manoel de Oliveira, enquanto jovem, so os seus netos,

    Jorge e Ricardo Trpa, reforando a fico sobre a memria, ou o presente sobre

    o passado.

    de notar que o filme no promove apenas as memrias de infncia ou

    de juventude de um Manoel de Oliveira, mas uma representao sociocultural da

    cidade do Porto, dos anos 20 e 30, servindo tambm como um guia da cidade e

    da sua histria, passando por teatros, cafs, esttuas e placas toponmias.

    Esta unio entre o passado e o presente desenrola-se em termos

    temporais e espaciais. O realizador faz uso da insero de imagens de fico com

    imagens de arquivos histrico, de forma a inserir as suas recordaes num

    determinado tempo histrico. Um bom exemplo disso, na cena onde um homem

    sobe ao alto da Torre dos Clrigos, onde vrios planos contrapicados do ator que

    representa Manoel de Oliveira, olha para cima e v as imagens do acontecimento

    real que se passou na primeira metade do sculo XX, criando a sensao que a

    imagem do homem a subir a torre est a ser vista pelo jovem Oliveira. Esta

    estratgia ser usada em diversas cenas, revelando o cuidado com que o

    realizador coloca as suas recordaes nos espaos reais onde decorrem. Uma

    exceo, a cena que se passa no caf Majestic, caf histrico da cidade do

    Porto, e que ainda hoje conserva a beleza dos seus interiores. Manoel de Oliveira

    filma o local exato onde em jovem escreveu o argumento do filme Os Gigantes do

    Douro, filme que nunca chegou a ser exibido.

    Importa salientar a refilmagem do filme de Aurlio paz dos Reis, Sada do

    Pessoal operrio da fbrica confiana (1896), no mesmo local onde antes se

  • 32

    situava essa fbrica de camisas, onde os trabalhadores desse tempo so

    substitudos por trabalhadores contemporneos que esto a laborar nas obras

    para o Porto 2001.

    Esta homenagem a Paz dos Reis sugere que o cinema um elemento

    essencial para conservar a memria da cidade e do cineasta. As referncias

    diretas a trs filmes anteriores, Douro Faina Fluvial (1931), Aniki Bb (1942) e O

    Pintor e a Cidade (1956) contribuem para dar a ideia que o realizador recorda o

    passado da sua cidade atravs dos filmes que filmou ali. Estas quatro obras,

    rodadas no Porto, e tal como a cidade, intrinsecamente ligadas ao Douro,

    mostram uma evoluo da paisagem urbana e das suas representaes ao longo

    do tempo, estabelecendo uma histria visual da cidade a partir de imagens que

    pertencem a diversos perodos cinematogrficos.

    Oliveira assume que o cinema s pode conservar pequenos fragmentos

    de memria, o que no o impede de criar novas recordaes

    Graas ao cinema, podemos ver e rever estes bocados, mas recordar

    coisas que s em ns viveram, s a memria de cada um o pode fazer. E faz-lo no ser a melhor maneira de nos dar a conhecer? Porm, com a passagem do tempo, muitas memrias ficaram sepultadas.

    (Oliveira, 2001)

    Com isto, o realizador no pretende apenas recuperar lembranas do

    passado, mas tambm criar novas memrias para o futuro. O filme invoca a ideia

    de transcendente logo no seu incio, comeando numa espcie de prlogo, com

    um maestro de msica contemporneo em plano contrapicado, iluminado de

    baixo para cima, fazendo com que parea estar acima de algo. A cena seguinte

    contm imagens do mar, no local onde o rio Douro acaba o seu percurso, onde o

    mar mostra toda a sua energia e fora, representando simbolicamente a

    passagem para um outro lado.

    Neste filme, existe um travelling que conduz o rio ao longo do viaduto do

    Cais de Pedra, situado na margem direita do Douro, acompanhado com msica

    contempornea. O desenho deste viaduto, permite que tenhamos uma perspetiva

    sobre a cidade, semelhante que os marinheiros, no passado, tinham da cidade

  • 33

    e do rio, rumo ao desconhecido. O travelling vai terminar num grande plano de

    um azulejo onde se encontra o Infante D. Henrique11. Esta concluso, uma

    metfora, que relaciona a foz do rio com o relato de Oliveira, assim como, os

    descobrimentos ultramarinos Portugueses com o descobrimento da vida atravs

    do cinema.

    Num dos ltimos planos do filme, surge uma panormica sobre as

    lombadas de escritores do Porto, tal como Arnaldo Gama, Sampaio Bruno, Camilo

    Castelo Branco e Antnio Nobre, detendo-se algum tempo mais sobre a capa da

    obra do ultimo, intitulada de S12.

    Sinaliza a solido do prprio Oliveira, um autntico corredor de fundo que, a

    cada passo, olha para trs e se v irremediavelmente s na sua caminhada de quase um sculo praticamente o mesmo tempo que tem a histria do cinema.

    (Andrade, 2008: 66)

    Como os autores anteriormente referidos, como o Infante, tambm

    Manoel de Oliveira partiu do Porto e conquistou o futuro.

    Partiu das margens-imagens do rio Douro-Faina-Fluvial. Partiu dessas

    guas e agora a elas volta, guas j de noite, guas j do mar. As guas do Douro repousam no escuro do mar da Foz e fundem-se com as outras obras, as da estante, dos outros autores ilustres do Porto.

    (Torres, 2001)

    Na ltima cena do filme v-se um farol a piscar ao longe, surgindo ento a

    msica aquando da lembrana de Manoel de Oliveira sobre seu pai.

    Uma imagem simblica que une as possibilidades infinitas que podem ser

    encontradas no horizonte, com as possibilidades infinitas que se podem obter no

    cinema. Este farol, o farolim de Felgueiras, o mesmo que aparece na primeira

    cena do primeiro filme de Oliveira, Douro Faina Fluvial (1931), estabelecendo-se

    deste modo um elo de ligao com o seu passado cinematogrfico, permitindo-o

    viajar atravs do tempo:

    A cidade est a ser renovada, mas por muito que lhe faam, sempre o meu Porto de Infncia, com um fio de ouro a correr a seus ps.

    (Oliveira, 2001)

    11 Ver imagens 3 - 4; Anexo desta dissertao, captulo 9, p. XXI. 12 Ver imagens 7 - 12; Anexo desta dissertao, captulo 9, p. XXII.

  • 34

    1.6 - O esprito de Anglica

    O Estranho Caso de Anglica, um projeto que Manoel de Oliveira levou

    quase seis dcadas a concretizar, sendo um dos planos que o cineasta se viu

    impossibilitado de realizar, durante os longos perodos de tempo que esteve sem

    filmar por causa do clima de censura existente no pas.

    Durante o interregno flmico vivido entre 1942 e 1956, Oliveira inspirou-se

    para escrever o argumento de Anglica, que partiu de uma vivncia pessoal: um

    dia, quando estava numa aldeia do Douro com a a sua mulher, ambos foram

    chamados a visitar, numa casa prxima, uma prima que se encontrava muito

    doente e que viria a falecer pouco tempo depois. Foi-lhe pedido ento que,

    fotografasse para a posterioridade o rosto da jovem.

    Esta histria, surge assim de base para O Estranho Caso de Anglica,

    que nos conta a histria de Isaac, um jovem fotgrafo que se encontra na Rgua

    a registar os trabalhadores da zona. Uma noite ele chamado para ir fotografar

    uma rapariga morta de seu nome Anglica. Numa das fotografias que Isaac

    regista da defunta, esta abre os olhos e sorri-lhe. Este evento deixa Isaac nervoso

    e obcecado pela rapariga. Anglica comea a fazer aparies ao jovem fotgrafo,

    acabando por se enamorar, fazendo com que o jovem fotgrafo v perdendo

    gradualmente a sua ligao ao real.

    Apesar de se estar a desligar do real, Isaac nunca deixa de fotografar os

    trabalhadores nas vinhas da margem do Douro, como que procura de algo que

    se prende com a terra e que espera encontrar atravs da fotografia. Este ciclo de

    loucura, leva o personagem a um ponto que termina com a morte no seu quarto.

    Neste filme, o protagonista age como projeo do realizador no filme, pela

    ligao terra e ao passado. Ambos retratam o trabalho rural da mesma forma,

    existindo planos subjetivos da cmara que correspondem ao olho de Isaac. Neste

    momento de registo do real, os trabalhadores do Douro fundem-se com a

    paisagem, tornando-se num s elemento. O facto de ainda serem trabalhadores

    que usam a fora braal, em detrimento da maquinaria13, faz com que paream

    ainda mais contguos terra de Oliveira.

    13 Ver imagens 9 - 12; Anexo desta dissertao, captulo 5, p. XIV.

  • 35

    Protagonista e realizador procuram algo que parece estar escondido na

    paisagem, na vida que existe nela.

    Isaac preocupa-se em retratar algo de um tempo que j passou, enquanto

    que, Oliveira encena uma universo cheio de anacronismos, no definindo de

    forma concreta a temporalidade da ao. So usadas roupas, adereos e

    interiores de um tempo que no se compadecem com o mundo de camies e

    viadutos, apesar de os mesmos conviverem em harmonia entre si.

    Ambos encontram na contemplao da terra, a temporalidade que lhes

    importa, pois o espao a condio crucial da paisagem, daquilo que esta

    representa, daquilo que ela corporaliza, o tempo (Rosrio, 2014: 117).

  • 36

    2. Anlise Cinematogrfica do Douro de Manoel de Oliveira

    Neste captulo vamos realizar uma anlise aos elementos existentes na

    composio das imagens no cinema de Oliveira, direcionando a pesquisa para as

    cenas onde o Douro marca a sua presena. Propomo-nos a perceber a

    composio estrutural destes planos e a forma como estes resultam num estilo

    muito pessoal do realizador Portuense. De forma a cumprirmos este objetivo,

    orientmos a nossa investigao para a identificao e explicao dos vrios

    elementos que entram na criao artstica de Manoel de Oliveira para, ao mesmo

    tempo, estabelecer ligaes entre eles.

    de focar que existe uma evidente relao com o tempo cinematogrfico

    na obra de Manoel de Oliveira, o que lhe confere uma importante dimenso

    interior e afetiva inerentes fixao do real que as imagens transportam. O

    cinema oliveiriano, um cinema pobre no que se refere a tcnicas de

    comunicao como a montagem, originando imagens que possuem elementos

    conceptuais que fazem a mediao entre os planos, apelando imaginao

    humana. Esta capacidade de imaginao s possvel atravs de um esforo de

    respirao flmica capaz de nos levar para um patamar transcendente da

    espiritualidade cinematogrfica.

    Ao evitar o uso de meios tcnicos de expresso, o realizador pressupe

    que o cinema moderno se reencontra nos princpios dos seus primrdios. Sendo

    assim, assenta a sua obra em imagens que mais do que serem observadas,

    necessitam de uma leitura atenta e crtica. Imagens que possuem uma elevada

    carga pictrica, que so construdas a partir de enquadramentos frontais e

    rigorosos. Oliveira concentra as suas intenes artsticas nas relaes que

    estabelece com o espectador, evitando que este se coloque numa posio

    passiva durante o filme.

    A forma demorada como a voz, os gestos e os movimentos so usados

    no cinema de Oliveira, cria uma sensao de artificialidade que fortalece a

    narrativa numa imagem que se revela como um ato puro de cinema.

  • 37

    Apesar de a filmografia de Manoel de Oliveira constituir diversos

    contributos de vrias dimenses artsticas, estas no se introduzem de forma

    aleatria e incoerente nos seus filmes, sendo a sua insero realizada de forma

    muito precisa e cuidada por parte do autor.

    Apesar da idade, Oliveira continua na vanguarda de uma forma de fazer

    cinema que se recusa a ser dominada pelas frmulas cinematogrficas assentes

    nos critrios de um cinema mais comercial. Apesar dos seus 106 anos, o

    realizador ainda consegue apontar para novas formas de fazer cinema.

    A forma como o realizador compe os elementos existentes nos seus

    filmes, revela uma ideia de cinema bem definida e uma capacidade de

    implementar a teorizao desses conceitos com a operacionalizao dos

    mesmos. A capacidade que Manoel de Oliveira tem em articular estes conceitos,

    faz com que os mesmos sejam complementares entre eles.

    2.1 - Os planos fixos e longos do Douro

    O percurso cinematogrfico do realizador foi desde sempre marcado por

    uma procura pela objetividade que, derivada das suas experincias iniciais

    envoltas no campo do documentrio, se refletiu por muito tempo numa recusa em

    escrever argumentos originais. O realizador no sentiu a necessidade de inventar

    histrias e personagens falsos, pois a literatura obrigava-o a enfrentar a

    impossibilidade de traduo cinematogrfica do texto. Foi atravs deste confronto

    entre literatura e cinema que Oliveira desenvolveu o seu pensamento sobre as

    imagens, criando assim a sua prpria esttica cinematogrfica. As imagens

    construdas pelo realizador so ento uma arte, que simula a vida real, tornando

    os seus filmes em exerccios contemplativos sobre a vida, num cinema que

    capaz de reviver o tempo perdido e simultaneamente lembra o futuro.

    O cineasta evita usar a montagem, por entender que esta se afasta da

    objetividade, ao mesmo tempo que entende o plano fixo como nica forma de

    registar a realidade. Conforme o prprio afirma:

  • 38

    A verdade fixa, ou seja, o plano fixo o mais prximo da objetividade. A montagem, ou seja, a mesma cena em vrios planos, o afastamento da objetividade, porque esta como um globo forrado de espelhos. A objetividade teria a sua representao numa viso total, impossvel de captar, seria a apresentao levada ao infinito de todos os espelhos possveis em cada cena.

    (Machado, 2005: 29).

    Para Oliveira, a cmara fixa a melhor forma para se conseguir alcanar

    a objetividade, pois a mudana de planos coloca o espectador exposto a um

    elevado nvel de subjetividade. Esta perda de objetividade deve-se ao facto de a

    realidade variar em funo do local onde se filma a cena, revelando mltiplas

    verdades cinematogrficas.

    A obra de Manoel de Oliveira possui uma austeridade que imposta

    cmara, de forma a que esta sirva unicamente para registar o que lhe colocado

    perante a objetiva. O cinema de Oliveira procura modelar a imagem em funo da

    qualidade esttica do que filmado, fazendo com que as suas imagens possuam

    uma carter fortemente fotognico.

    O realizador portuense executa um cinema que se identifica com a

    linguagem dos primrdios cinematogrficos, evitando as tcnicas de movimento

    de cmara. As emoes que so registadas pelo olho do cineasta, so blindadas

    por um sistema do real, no qual a cmara serve de meio intermedirio numa

    complexa representao artstica. Manoel de Oliveira diz que o movimento da

    cmara faz sentir a presena de algum que a faz mexer (Arajo, 2010: 8), o que

    revela um certo desconforto entre o realizador e as relaes que possam surgir

    com o publico atravs desses exerccios de linguagem cinematogrfica.

    Considera ainda que, o movimento da cmara distrai o pblico, retirando

    protagonismo riqueza das cenas, quer sejam dilogos, quer sejam paisagens.

    Apesar de ser uma estratgia que coloca o cinema como um espetculo, um

    elemento de diverso, acaba por ser uma estratgia artstica pobre.

    Oliveira cria assim, um estilo muito prprio que rompe com a tradio e

    estratgia de montagem existentes no cinema dos cineastas contemporneos, de

    forma a deslocar os princpios do cinema moderno para uma passagem ou uma

    pontuao puramente tica entre imagens, operando diretamente, sacrificando

    todos os efeitos sintticos (Deleuze, 2006: 27).

    Para Gilles Deleuze, a montagem encontra-se na prpria imagem

    diretamente captada, e nos elementos que a compe, retirando os elementos que

  • 39

    se encontram por trs da cmara. Manoel de Oliveira aborda estas ideias de

    Deleuze quando diz que o ideal seria que o realizador se escondesse

    inteiramente por detrs das imagens e que no se mostrasse pela manipulao

    da cmara (Oliveira in Baecque e Parsi, 1999:69).

    atravs desta quase ausncia de movimentos de cmara, que o cinema

    de Oliveira vai-se concentrar nas variaes compositoras do plano, focando a sua

    ateno para o mistrio da vida, desconstruindo assim a presena da cmara

    atravs do seu olhar. Perante isto, o cinema torna-se numa arte que regista o que

    colocado em frente da cmara.

    Para o realizador, a cmara esttica revela-se o nico veculo

    intelectualmente correto para usufruir da alma humana, usando a pelcula como

    forma de registo da existncia do Homem. Os planos fixos assumem-se

    elementos fulcrais para um cinema que procura registar a vida, existindo uma

    conscincia-cmara que no se define pelos movimentos que capaz de seguir

    ou de realizar, mas pelas relaes mentais em que capaz de entrar (Deleuze,

    2006:39).

    Apesar de pequenas incurses nos seus filmes prvios, Manoel de

    Oliveira acentua o uso da cmara fixa a partir de Benilde ou a Virgem Me (1975),

    mas s ir filmar o Douro, o rio, nos momentos iniciais de Vale Abrao (1993).

    Nesta cena, o realizador, fixa a cmara no plano geral de um vale cortado

    pelo Douro, permanecendo imvel durante quarenta e dois segundos. Este o

    espao onde se desenrola toda a trama do filme, apresentando-se como cenrio

    do filme e como figura sobrenatural que domina todos os acontecimentos e

    destino das personagens14. neste momento que o narrador em voz off introduz a histria do local,

    mostrando-se como algum que sabe tudo o que se passa com as personagens.

    Esta dimenso permite-nos tirar algumas concluses a respeito do filme,

    comeando pela posio em que coloca o narrador em relao ao universo

    apresentado no filme. A posio superior e o enquadramento da cmara coloca o

    narrador numa posio superior e de distanciamento do universo da diegese. Ao

    longo do filme, o Douro vai sendo vrias vezes filmado pela cmara fixa de

    Oliveira, servindo como elemento de transio e evoluo das personagens15.

    14 Ver imagem 5; Anexo desta dissertao, captulo 1, p. III. 15 Ver imagens 9 - 14; Anexo desta dissertao, captulo 1, p. IV.

  • 40

    Alm de Vale Abrao (1993), o realizador usa um plano fixo e muito geral do

    Douro, no plano inicial de O Estranho caso de Anglica (2010), atravs de uma

    imagem da cidade da Rgua e do Douro durante a noite16. Esta tcnica surgir

    vrias vezes ao longo do filme, de dia e de noite, de forma a desenvolver a trama,

    contudo da varanda do quarto de Isaac que o rio representado com

    serenidade e delicadeza. O quarto filmado de frente para a varanda, que na

    maioria das vezes se encontra aberta e por isso permite ao espectador ver a

    paisagem rural daquela zona do Douro17.

    A cmara fixa enquanto opo esttica, torna o tempo e a ao similares,

    o que regista uma realidade que uma dimenso teatral, como forma de substituir

    o plano. Esta surge nos filmes de Oliveira como uma figura sobrenatural que

    comanda tudo o que se passa.

    Quanto ao Douro, este volta a ter um papel preponderante no modo do

    realizador portuense fazer cinema, pois com o filme, O Pintor e a Cidade (1956),

    que este opta pelo prolongamento dos planos, descobrindo um novo tempo para

    os seus filmes. Isto permite que os espectadores se envolvam com a matria

    flmica, onde os planos contm uma materialidade expressiva capaz de provocar

    experincias e emoes no espectador. Oliveira cria imagens que so suportadas

    pela estabilidade do seu movimento que s a longa durao dos planos consegue

    garantir. Antnio Preto afirma que o realizador estrutura o equilbrio dos seus

    planos atravs da multiplicao dos planos fixos e a amputao sistemtica das

    imagens e de ligaes. (Arajo, 2010: 58).

    O realizador pretende que o seu cinema esteja absorvido pela realidade,

    recusando prender o espectador atravs de um ritmo acelerado que se deve a

    constantes acontecimentos que no tm uma correspondncia com a realidade.

    Sendo assim, o espectador comea a substituir uma necessidade de que

    acontea sempre algo, por uma relao de afeto com um acontecimento

    absorvido de realidade, comeando a existir um envolvimento emocional com a

    narrativa.

    Manoel de Oliveira diz que a imagem quando persiste ganha outra

    forma (Costa, 2008: 57), permitindo que o espectador adquira sensaes e

    emoes que a fixao do real necessita, enquanto que a imagem rpida no o

    16 Ver imagem 19; Anexo desta dissertao, captulo 1, p. V. 17 Ver imagens 9 - 10; Anexo desta dissertao, captulo 6, p. XVII.

  • 41

    permite. Esta opo estratgica do realizador, de permitir ao espectador

    contemplar e refletir sobre o que disponibilizado pela imagem, a principal

    razo, para que uma parte do pblico apelide os seus filmes, caracterizando-os

    como lentos, aborrecidos ou desinteressantes.

    O Pintor e a Cidade (1956), est assente em trs grandes pilares: as

    imagens da cidade, as aguarelas do pintor e a atmosfera sonora da cidade. Para

    se conseguir experienciar este trs elementos, o realizador sente a necessidade

    de introduzir um ritmo que leve o espectador a uma proximidade afetiva com a

    matria flmica. O som desempenha a funo de narrador, na medida em que

    este conta as histrias da cidade, funcionando como elemento mediador na

    passagem de planos, estabelecendo o movimento imagtico atravs do fluxo

    sonoro.

    Numa busca continua por processos estticos, o uso de longos planos

    comea a ser uma imagem de marca no cinema oliveiriano, permitindo que o

    espectador se aperceba de determinados movimentos e pormenores que apenas

    a longa durao do plano permite.

    2.2 - As artes na representao do Douro

    O cinema, tal como a fotografia, desde os seus primrdios que o cinema

    tem provocado vrias reflexes sobre o seu teor artstico. Se uma corrente

    defende a autonomia do cinema como meio de expresso, outra insiste no seu

    carter hbrido, defendendo que no filme existe um encontro de elementos que

    provm de mltiplas expresses artsticas.

    Existe ainda, a corrente que no considera o cinema como uma arte, por

    este derivar de um processo mecnico que apenas serve para imitar a realidade.

    Contudo, outros rejeitam o cinema como simples automatismo e defendem que a

    transposio da conscincia e emoes do realizador para a pelcula so muito

    similares ao ato de pintar.

    O cinema tem acompanhado as vanguardas estticas do modernismo,

    resultando em filmes que valorizavam os elementos plsticos da imagem, o seu

    grafismo e os seus contrastes de luz. Segundo Aumont e Marie, so vrios os

  • 42

    autores do cinema moderno que usam incurses atravs da pintura atravs do

    sentido da cor, de uma superfcie, de um quadro, de uma modulao. Essa

    entrada no mundo