As rotas silenciosas do mercado ilegal: o ethos de "ser" traficante na comunidade do "Pé do Morro"

12
As rotas silenciosas do mercado ilegal: O ethos de ser traficante na comunidade do “pé do morro” Erick Sousa de Sousa¹ Este breve artigo visa refletir sobre as experiências de campo vividas na comunidade que alegoricamente iremos intitular de pé do morro. A dita região é situada num município do interior do Ceará, onde tradicionalmente, instalouse em alguns territórios da comunidade a circulação e comercialização de diversas substancias de porte e consumo tido como ilegal – as “drogas”, que vão desde as usais maconha e “pó”, até comprimidos “tarja preta”. A comunidade, situada na região noroeste do município carente de saneamento básico e calçamento na rua, ganha sua pertinência fenomenológica na capacidade sutil de agenciamentos de pessoas que se estabelecem na prática da venda, muitas vezes, talvez, através dos contratos silenciosos nas esferas familiares, tecido nas sensíveis redes de relações estabelecidas; Assim como espaço de [re]significação subjetiva de sentidos sobre os territórios, indivíduos/ agentes envolvidos. Deste modo, procuramos trazer para o centro da discussão a constituição da categoria, no entendimento hegemônico, de ‘traficante’, como ela reflete e é acionada na relação vivida pela comunidade envolvida, que subsiste através da circulação de “mercadorias políticas” (MISSE, 2012.). Sentindo os agentes através da apreensão dos conceitos nativos, percebendo as relações constituídas que permeiam a prática a partir da experienciação em loco e da reflexão teórico metodológica, subscrevemos uma experimentação nas tênues e tensas fronteiras das ilegalidades urbanas. PalavrasChave: PÉ DO MORRO – DROGAS – ILEGALIDADE ¹Graduando em Antropologia pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia AfroBrasileira – UNILAB

description

Artigo publicado nos Anais da V Reunião Equatorial de Antropologia. Breve Resumo: Este breve artigo visa refletir sobre as experiências de campo vividas na comunidadeque alegoricamente iremos intitular de pé do morro. A dita região é situada nummunicípio do interior do Ceará, onde tradicionalmente, instalouseem alguns territóriosda comunidade a circulação e comercialização de diversas substancias de porte econsumo tido como ilegal – as “drogas”, que vão desde as usais maconha e “pó”, atécomprimidos “tarja preta”. A comunidade, situada na região noroeste do municípiocarente de saneamento básico e calçamento na rua, ganha sua pertinênciafenomenológica na capacidade sutil de agenciamentos de pessoas que se estabelecem naprática da venda, muitas vezes, talvez, através dos contratos silenciosos nas esferasfamiliares, tecido nas sensíveis redes de relações estabelecidas; Assim como espaço de[re]significação subjetiva de sentidos sobre os territórios, indivíduos/ agentesenvolvidos. Deste modo, procuramos trazer para o centro da discussão a constituição dacategoria, no entendimento hegemônico, de ‘traficante’, como ela reflete e é acionadana relação vivida pela comunidade envolvida, que subsiste através da circulação de“mercadorias políticas” (MISSE, 2012.). Sentindo os agentes através da apreensão dosconceitos nativos, percebendo as relações constituídas que permeiam a prática a partirda experienciação em loco e da reflexão teórico metodológica, subscrevemos umaexperimentação nas tênues e tensas fronteiras das ilegalidades urbanas.

Transcript of As rotas silenciosas do mercado ilegal: o ethos de "ser" traficante na comunidade do "Pé do Morro"

Page 1: As rotas silenciosas do mercado ilegal: o ethos de "ser" traficante na comunidade do "Pé do Morro"

As rotas silenciosas do mercado ilegal: O ethos de ser traficante na comunidade do

“pé do morro”

Erick Sousa de Sousa¹

Este breve artigo visa refletir sobre as experiências de campo vividas na comunidade

que alegoricamente iremos intitular de pé do morro. A dita região é situada num

município do interior do Ceará, onde tradicionalmente, instalou­se em alguns territórios

da comunidade a circulação e comercialização de diversas substancias de porte e

consumo tido como ilegal – as “drogas”, que vão desde as usais maconha e “pó”, até

comprimidos “tarja preta”. A comunidade, situada na região noroeste do município

carente de saneamento básico e calçamento na rua, ganha sua pertinência

fenomenológica na capacidade sutil de agenciamentos de pessoas que se estabelecem na

prática da venda, muitas vezes, talvez, através dos contratos silenciosos nas esferas

familiares, tecido nas sensíveis redes de relações estabelecidas; Assim como espaço de

[re]significação subjetiva de sentidos sobre os territórios, indivíduos/ agentes

envolvidos. Deste modo, procuramos trazer para o centro da discussão a constituição da

categoria, no entendimento hegemônico, de ‘traficante’, como ela reflete e é acionada

na relação vivida pela comunidade envolvida, que subsiste através da circulação de

“mercadorias políticas” (MISSE, 2012.). Sentindo os agentes através da apreensão dos

conceitos nativos, percebendo as relações constituídas que permeiam a prática a partir

da experienciação em loco e da reflexão teórico metodológica, subscrevemos uma

experimentação nas tênues e tensas fronteiras das ilegalidades urbanas.

Palavras­Chave: PÉ DO MORRO – DROGAS – ILEGALIDADE

¹Graduando em Antropologia pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro­Brasileira – UNILAB

Page 2: As rotas silenciosas do mercado ilegal: o ethos de "ser" traficante na comunidade do "Pé do Morro"

APRESENTAÇÃO

Este artigo procura refletir através das experimentações de campo na

comunidade que preferencialmente, por segurança das pessoas envolvidos e pela

propagação de um certo clima poético, iremos denominar de “pé do morro”. No

território desta comunidade articulam­se indivíduos em processos ocupacionais tangido

nas porosas, violentas e tênues ponta varejista do mercado ilegal de drogas, são os

“terríveis” traficantes. Esta noção e este indivíduo, interpenetráveis e inseparáveis, a

qual todos no brasil tem algo à falar sobre, serão alvo de reflexão e ponderamento antro­

filosófico nestas breves páginas.

Antes da devida apresentação do objeto expomos algumas noções a serem

trabalhadas, que para nós são nuances a serem percebidas no trabalho de campo em

comunidades de fronteira. Estes indivíduos que já foram entendidos pela grande

sociologia como o “Homem Marginal” (PARK. 1948. Apud KOWARIC. 1977.), ou a

“Massa de Reserva” (NUM. 1967. Apud, Idem.). Exemplos destes sujeitos que

constituem a sua prática trabalhista nas fronteiras cinzenta da ilegalidade são os

vendedores ambulantes (PITA. 2012.), os Feirantes (BORZACHIELO. 2010.), os

diversos trabalhadores autônomos dos grandes centros comerciais urbanos, assim como

a grande predominância dos serviços informais/ilegais nos polos metropolitanos,

interioranos e rurais. Ainda nos centros urbanos onde centenas de pessoas enchem as

calçadas, alterando e resignificando os espaços, assim como os agentes mais silenciosos

do mercado “mundalizado de baixo” os “responsáveis” pela produção, circulação e

comercialização de mercadorias e substancias ilegais, notoriamente os responsáveis

pelos circuitos do tráfico de drogas.

Estes agentes pela sua justa articulação perpassada pela porosidade entre a

legalidade e ilegalidade, promovem o seu silenciamento, dificultando, colocando

entremeios e circunstâncias de natureza diversas para o pesquisador (etnógrafo), pois

estes silenciados (pelo peso do estigma da marginalidade, e do bandido (MISSSE.

2010.) ­e silenciosos – por fazerem parte de uma submundialização econômica ­, que

sobrevivem e são sobreviventes da economia da droga, tem como inimigos, numa

política proibicionista, o Estado, e sofrem do estigma, excludente, perverso e

desconcertante de criminoso.

Page 3: As rotas silenciosas do mercado ilegal: o ethos de "ser" traficante na comunidade do "Pé do Morro"

Assim estas contingências políticas­institucionais aparecem como situações a

serem contornadas na anedota espúria da etnografia. Outro ponto central a ser digerido

neste escrito, através das experiências em campo é a própria emergência da noção de

‘traficante’ no território do pé do morro, tomando como ponto de partida a historicidade

da comunidade e as relações constituídas no cotidiano, procurando assim caracterizar a

imersão e articulação dos sujeitos na prática da venda das substancias ilegais. Deste

modo através do confronto de perspectiva entre os conceitos acionados e construídos

pelos ‘nativos’ e os canônicos das ciências humanas procuramos contribuir em síntese

com a multifacetada discussão das relações sociais instituídas através dos tênues e

tensos terrenos da ilegalidade, através da proposição que nos guiará: Quando alguém é

(vem à ser) traficante do “Pé do Morro”?

1. A BUSCA DO CAMALEÃO

Inicialmente gostaríamos de trazer algumas considerações sobre a abordagem

metodológica­teórica à ser contrastada em paralelo as perspectivas instituídas

(naturalizadas) na comunidade do bairro. Pois assim como Peirano (apud URIARTE.

2013) percebemos o universo teórico transpassado paradoxalmente pelas experiências.

Para a sociedade, entendida como a nação brasileira, constituir uma noção

constitucional, para definir as práticas que são “ilegais” de práticas “legais” perpassa as

relações estabelecidas na macroeconomia e nos tratos políticos, que mudam de tempos

em tempos, nem sempre ao certo estas definições, abstratas da instância jurídica

normatizam a vida das pessoas, produzindo deste modo, nos termos do filósofo

Agamben, “estados de exceção”, territórios onde a lei, a ordem e o poder, e seus

contrários, expressam­se, numa relação paradoxal onde os indivíduos sujeitados pelas

constituições jurídicas­institucionais, emergem numa confusão transpassada pela

violência, o estigma e variabilidade instantânea, provocando um silenciamento dos

agentes, da prática, do entendimento, confeccionando em última análise a alma

indesejada, o desejo negado, o pecado real, o indivíduo que pode ser morto.

Quando nos referimos a acuamento do nativo, estamos, nos referenciando a uma

situação mencionada pelo antropólogo Carlos Brandão numa gravação transcrita por

Roberto lima professor efetivo da UECE, onde o autor de “Pesquisa Participante”, nos

expõe precisos métodos de conduta do trabalho de campo a qual o mesmo tem usado

frequentemente em suas pesquisas. Que estas “dicas”, “manuais” e “métodos”,

tradicionais no cenário antropológico, ficam na cabeça e agem nas situações em campo,

Page 4: As rotas silenciosas do mercado ilegal: o ethos de "ser" traficante na comunidade do "Pé do Morro"

disto não temos dúvida! O que procuramos expor é o distanciamento das tradicionais

etnografias, com “objetos visíveis” ou apresentáveis à superfície, dos já costumeiros

trabalhos em comunidades de fronteira, ou onde os indivíduos são percebidos através da

realidade da violência legitimada (legitimadora) do Estado de estigmatização e

retaliação. Numa relação de exceção¸ para usar os termos de Agamben, distante das

condutas formais e aceitáveis, estes indivíduos, muitas vezes por decorrerem de tal

circunferência político­conjuntural circunscrevem­se numa rede determinante de

silenciamento agenciada numa simbiose pelo estado proibicionista e a prática ‘nefanda’.

Assim os metódicos questionários, as pontuadas instruções e as certeiras

indicações de como construir um bom questionário com perguntas informativas caem

por terra, e o acuamento do nativo, resultado de uma invasão do etnólogo, expresso por

Brandão torna­se, talvez, a primeira situação a ser contornada, pois o confronto direto

com os agentes também pode levar ao ‘fim’ das experiências de campo, o nosso objeto

está numa relação acuada pela sujeição hedionda, citando o código penal, com órgão

máximo de representatividade democrática, a União, isto significa um constante estado

de alerta vivido pela comunidade. Tomando isto como ponto de partida sabíamos que a

construção de uma relação reciproca com a pesquisa, os tão aclamados momentos das

entrevistas seriam métodos que apresentar­se­iam mais timidamente. Então pode­se

dizer de alguma forma que a primeira sensação experiênciada, além das tantas outras

inexploradas neste escrito, na rotina do campo foi a dificuldade de estabelecer um canal

direto de comunicação, que em outra situação poder­se­ia ser feita, de certo modo, com

o ‘chefe’ da comunidade, o representante sindical, o conselheiro do bairro, ou mesmo o

vendedor ambulante, a senhora da esquina ou muitos outros indivíduos moralmente

concebidos na superfície social legitimada pelo Estado, mas como expor para um jovem

rapaz, pai de uma menina de olhos e cabelos claro, vendedor de maconha, cocaína e

crack, que está fazendo uma pesquisa sobre a sua prática?

Neste momento desaguamos numa problemática fundante para a execução da

prática de campo, ou como nós a assumimos nestas condições que nos impedem de

‘estar lá’, estado antropológico necessário para Geertz. A metodologia abordada que

tentamos ilustrar na intitulação desta sessão tem sua origem na lição que vemos no

habito de um réptil do sertão: o stronoros gumirus ou camaleão, este projeta sua

coloração em acordo com o as cores dispostas no ambiente. Estes astutos animais fazem

isto para defender­se de predadores, e ainda efetivar a sua caça camuflando­se na

Page 5: As rotas silenciosas do mercado ilegal: o ethos de "ser" traficante na comunidade do "Pé do Morro"

confusão de cores da natureza, de algum modo este animal que condiciona, ajustado ao

ambiente, sua superfície de apresentação, em termos objetivo a sua cor, poderia

alegorizar de alguma forma a condição paradoxal da sujeição sofrida pelos indivíduos,

que confeccionam, no estado excessivo novos sujeitos, promovido através do ajuste

articulado na relação estabelecida entre as redes de sujeitos. Então nada melhor do que o

camaleão, o ser do ajuste, para parabolizar a busca pelo objeto, pois assim, como já

exposto acima, nossas energias concentravam­se inicialmente em vencer a barreira do

silencio­camuflagem promovido pela relação da conjuntura político­institucional que

sujeita e veicula cores, situações e (pre) conceitos para estes indivíduos­camaleões.

Assim o nosso intento inicial é absorção da qualidade de ser camaleão, transformando­

se assim em um indivíduo­camaleão que silenciar­se­ia para deste modo inserir­se

na/em sintonia do/com ambiente, transformando­se assim, talvez, num ser que é

ninguém, que não tem rosto, nem vez, apenas um esquema confuso, nebuloso, mas

violento de cores porosas e incertas que preenche o ambiente e o camaleão, dispersando

a qualidade do indivíduo, restando aos atores acionarem­se a partir do nada.

Perceber­se como camaleão seria, neste sentido, lançar mão à uma necessária

atuação no ambiente, evidenciada pela apreensão sutil do “estado de exceção”, que

condensar­se­ia numa ambivalência consonante entre as relações tecidas nos “territórios

existenciais” que exprimir­se­iam como “zonas de indeterminação entre a lei e não­lei,

terrenos de fronteiras incertas e sempre deslocantes que produzem a figura do homo

sacer, vida matável” (TELLES. 2010. p, 08), ou seja, o território da ilegalidade, mais

precisamente do tráfico de drogas, está intrinsecamente relacionado a emergência de um

território constituído paradoxalmente entre a atuação e não atuação estatal, entre a lei e

uma outra relação. Deste modo tece­se em fronteiras incertas e deslocantes uma outra

confecção de subjetividade, em um nível diferente de subjetivação, e a apreciação de

múltiplos sujeitos, “que produz outros assujeitamento, e, portanto, também outros

sujeitos” (MISSE. 2010. p, 16) que desdobram suas rotinas nas redes sensíveis de

relação paradoxal da ilegalidade é o marco inicial da tortuosa, laboram­te e esburacada

estrada pela subjetividade ilegal.

2. SOBRE A VENDA E O VENDEDOR: OS MENINOS DA ESQUINA

O “pé do morro” é um bairro situada na região noroeste de um pequeno município

no interior da região serrana cearense, o município tem 155 KM², e não chega a vinte

mil habitantes, além de ter menos de três décadas de emancipação. A cidade tem um

Page 6: As rotas silenciosas do mercado ilegal: o ethos de "ser" traficante na comunidade do "Pé do Morro"

clima típico interiorano, as pessoas são em geral cristãs­caóticas, e reconhecem os

moradores mais antigos da cidade, assim como percebem logo um desconhecido, os

principais eventos da cidade são os da pastoral, dorme­se cedo, o comercio noturno é

inexistente em muitas localidades do município, assim como muitos serviços básicos –

saúde pública de qualidade, segurança cidadã, e o direito à moradia ­ que são

sucateados e insuficientes no centro da cidade, agravam­se ferrenhamente nas regiões

periféricas, que diferente das grandes cidades, que estão escondidas pela cortina dos

grandes prédios, espremida pelas grandes avenidas e despercebida pelo transeunte

apressado, estão ali na próxima esquina, andando não mais que um quilometro do centro

da cidade, e ainda sim, salta aos olhos o descaso, o estigma pulsante do preconceito

inerente à comunidade estratificada, mais humilde, com menos acesso aos serviços

formais, expresso através da objetiva afirmação “Aqui é quente, todo dia é bala”, ou

“nem se me dessem uma casa no pé do morro eu não queria”, ou ainda na reação

assustada quando o moto taxista, numa corrida após às oito da noite, descobre que o

destino é o “pé do morro”, pois sabe­se de conhecimento comum que o “pé do morro”

não é local de gente de ‘bem’ andar.

O “pé do morro” encontra­se na região noroeste do município e também é o

limite da cidade antes de chegar na serra que está na região. Cerca de duzentos grupos

familiares habitam a região. Quando chegamos ao bairro percebemos uma gritante

mudança na arquitetura das casas, muitas, mais em algumas regiões do que em outras,

tem sua estrutura básica a “taipa”, ou parte da casa é composto pela armação em

madeira, que delimita o terreno de uma família, ou propriedade de alguém. Todo o

bairro é em calçamento e parte dele é em terra batida, não coincidentemente, são as

regiões de maior concentração de vendas de drogas, que em geral é no ‘fim’ do bairro.

Há cinco ruas que dão acesso ao bairro, basta entrar em uma delas e caminhar alguns

quarteirões acompanhando inicialmente o fluxo da rua e logo após os das trilhas feitas

entre a vegetação que cresce a beira da ‘estrada’ para encontrar o ‘pé do morro’, em

uma das ruas, passa uma linha férrea desativada para transporte de passageiros a mais

de duas décadas, por esta rua que entraremos!

Aqui nos deparamos no cruzamento da estrada estadual que corta a cidade, e a

rua ao lado da estrada de ferro, no horizonte vemos a serra e uma longa rua de

calçamento esburacado. Podemos perceber que estamos numa das partes mais baixa da

cidade, continuamos seguindo, observamos as casas, nesta altura ainda há casas de

Page 7: As rotas silenciosas do mercado ilegal: o ethos de "ser" traficante na comunidade do "Pé do Morro"

alvenaria, em geral, com cercas e portões de taipa. Caminhando exatos cinco quarteirões

nos deparamos então com uma separação da rua em três caminhos, um seguindo em

frente reto, outro noventa graus à esquerda e outro a direita fazendo uma sinuosa curva à

esquerda que no fim encontra­se novamente com o caminho do meio. Ao fim da rua do

meio podemos observar a movimentação comum das pessoas no dia­a­dia superando a

senhora problema com os probleminhas seguindo atrás, mas num segundo momento,

pode­se perceber um nítido movimento de compra e venda de drogas ‘ilegais’,

misturado aos cachorros e galinhas que preenche a estética do espaço. Percebemos que

cerca de seis núcleos familiares se encontram diretamente e mais constantemente

envolvidos com o tráfico de diversas substancias ilegais.

Os meninos da esquina direcionam olhares matreiros ao desconhecido, talvez

determinando em parte uma insultuosa história com os estranhos que aparecem por ali,

mais estranhamente vai ser recebido quem for ao “pé do morro” de carro, ou moto, ou

em horários específicos – noite por exemplo ­, resultado da sua própria constituição

articulada com as experiências alimentadas no decorrer da sua própria historicidade,

promovendo deste modo um [re] ajuste, nos termos da metafisica de Maturana,

autopoietico que é o estado da autogestão, os seres, indivíduos, humanos e não

humanos como produtores continuo de sí, entendendo o indivíduo, a comunidade, o

agente, nos termos do autor, este é “o modo de sua constituição e realização contínua

em sí continuamente modulada pelo fluir do viver do sistema” (MATURANA. 2000. p,

176.), que nesta concepção ganha um sentido complexo, ou seja, a relação percebida é

de ajuste nas fronteiras porosos e nebulosas da ilegalidade que paradoxalmente

constitui­se fluidamente entre ‘ser’ ilegal. Pois o que dizer do comercio ilegal,

propriamente a venda de drogas, sendo somente possível para o indivíduo com a renda

certa do comercio formal, assim como observamos. Voltando para a nossa imersão no

bairro, se ficamos por algum tempo, no fim da rua que vem reto, logo podemos observar

o Neguinho parado na esquina, um rapaz de vinte e quatro anos franzino, moreno, de

olhos grandes pai de uma menina de sete anos, divide uma casa de um cômodo com

Lucia mãe da menina. Neguinho sai todo dia às 6hrs, de segunda a sexta, para trabalhar

como ajudante de pedreiro, deixa a menina na creche do bairro e segue para o dia

cansativo. Enquanto isso, Lucia, sabe que a quinzena do companheiro não dará até o fim

do mês, então ela fica responsável de passar as balinhas de maconha de dois reais, a

aranha – comprimido Artane ­, de cinco reais, ou mesmo a rocha – crack – de dois reais

Page 8: As rotas silenciosas do mercado ilegal: o ethos de "ser" traficante na comunidade do "Pé do Morro"

para qualquer um que bata na porta ou seja encaminhado até a sua casa pelo seu

cunhado o Zé, que mora a algumas casas dali, também vendedor das mesmas

substancias, mudando que este vende cocaína mais constantemente que o irmão. Lucia

fica nesta até o horário que o companheiro retorne. Neguinho é filho de Dona Maria,

que vez por outra, acaba também vendendo as mesmas substancias que os filhos, em

geral só faz pedido de nova carga, após receber o da quinzena. O dinheiro do serviço é

o capital inicial para a movimentação e permanência da atividade. Quando Neguinho

chega do trabalho, em geral no fim da tarde, passa a ‘tomar de conta’ do comercio. A

noite chega e com ela a escuridão toma conta de parte do bairro, a iluminação é precária

e com a escuridão também vem a possibilidade dos tradicionais botes policiais. Que

segundo relatos de Nego um “médio” distribuidor para os vendedores da redondeza. Os

homens sobem para duas coisas “certa” a primeira é a possibilidade de conseguirem

dinheiro de forma violenta, ou menos comum, mas ainda percebido no período, é

subirem para a efetivação de prisão, ou batidas em casas de vendedores. Apesar de os

polos tradicionais de venda não terem caído nos períodos da pesquisa,

aproximadamente sete meses em campo, ainda sim, em diferentes momentos a polícia

veio rondar o bairro, em geral a noite e somente uma vez por dia, o comum de ocorrer

era somente os chamados bacas policiais em jovens “sujeitados criminalmente”

(MISSE. 1999.) onde estes “[...]não são qualquer sujeito incriminado [...] é [...] aquele

cuja a morte ou desaparecimento podem ser amplamente desejados [...]” (MISSE.

2010.p, 17.).

Retornando novamente para a frente da casa do Neguinho podemos olhar para o

fim da rua, que é sem saída pois as casas limitam­se com a serra, na última casa da rua

mora Nego e Patrícia com seus três filhos. Nego é notoriamente o vendedor mais

conhecido e respeitado da região, além de sua história de vida ser transpassada pela

aventura mortal da criminalidade. Já foi assaltante, pistoleiro, hoje vende

primordialmente pó e crack, não há comprimidos no estoque, às vezes, com mais

frequência maconha também, mas orgulha­se de ter sido preso somente uma vez. Da

localidade da casa dá para visualizar toda a comunidade, além do controle e prevenção

das investidas policiais, o local é estratégico, pois há um vasto terreno, onde as

substancias podem ser enterradas. Mas estas estratégias, algumas vezes, provocam perca

de parte das substancias, assim como confusões rotineiras.

Page 9: As rotas silenciosas do mercado ilegal: o ethos de "ser" traficante na comunidade do "Pé do Morro"

Nego não tem um emprego formal, o que nos expressa ainda mais, a estabilidade

financeira que passa com a venda das substancias. Mas recentemente construiu uma

casa para alugar, e entrou com um sócio para a criação de um bar. O sócio é Natim

rapaz loiro, algumas tatuagens pelo corpo, antes era funcionário de Nego, mas com

alguma dificuldade, largando o consumo diário do crack, passou a ser um vendedor

autônomo, construiu sua casa, Natim também não tem emprego formal. Mas passou

bastante tempo entre a vida marginal, com uso extremado de pedra, os chamados

noinha, e a venda aleatória de drogas, através do serviço de aviãozinho até se firmar na

venda e não gastar todo o saldo com a própria mercadoria, ou mesmo consumi­la sem

conseguir repor. Natim mora no meio da rua do caminho do meio (o que viria reto) na

divisão que passamos logo atrás. Sua casa é uma das novas da rua, muitas casas estão

edificando­se recentemente nos terrenos demarcados! (que é grande parte da terra),

alterando, ainda que vagarosamente, na estética serrana, mas antes de juntar­se com

Vânia¸ mãe de sua filha de aproximados sete anos, Natim morava em outro bairro do

município, uma outra comunidade distante do centro da cidade, mas o local estava

embaçado.

Durante a noite, assim como parte da comercio ‘formal’, os “pontos de vendas”

ilegais também se reconfiguram, a lógica noturna é diferente, os tradicionais meninos da

esquina não ocupam mais os mesmos postos. Os ditos aviõezinhos, ou o cara do corre,

dispersam­se pelas ruas escuras, aproximando­se mais das casas, misturando­se a

vizinhança familiar que vai, a cada hora da noite, diminuído o fluxo na rua e as casas

viram os pontos de acesso direto as substancias ilegais. Batendo na porta de algum

vendedor ou através do avião pode­se ainda conseguir drogas até um pouco depois da

meia noite, após isso o acesso é restrito, os tradicionais vendedores estão muitas vezes

dormindo! Comprar maconha, pó, crack ou comprimidos após meia noite é uma missão

complicada, mas não impossível. Dependendo da fidelidade (frequência) do cliente e

relação com o vendedor pode­se abrir portas que estão fechadas para outros.

Mas em contraponto a lógica noturna, comprar algo durante o dia é mais

simples, a atividade começa cedo, já que a casa e o trabalho se misturam. A relação

direta do indivíduo com a mercadoria nos intua uma noção quase animista da relação

paradoxal de constituição da subjetividade do vendedor, ante a uma espécie de unidade

da percepção hegemônica, assumida através da própria ‘objetividade’ anacrônica da

jurisdição, em confluência com a prática hedionda e a substancia indesejada. Deste

Page 10: As rotas silenciosas do mercado ilegal: o ethos de "ser" traficante na comunidade do "Pé do Morro"

modo numa simbiose confusa, o sujeito e o objeto, o indivíduo e a mercadoria

misturam­se numa perene relação de equivalência, onde a marginalidade é diretamente

acionada com a prática do porte da substancia ilegal, por este viés, numa formação em

relação de ubiquidade entre a mercadoria e o vendedor, que é concebido, numa lógica

intuída, através de uma polivalência de atividades e de sujeitos, que provoca uma porosa

relação de quem em real é o traficante, já que a venda é sustentada por uma rede de

relações inapreensíveis em cadeia quebrada, além de constituírem­se num mercado

mundalizado – o tráfico de drogas; outra apreensão a ser entendida é a venda para certos

agentes, como os aviõezinhos, que não são em sí funcionários do traficante, mas

assumem, para certos cliente papeis definitivos, e são a fonte última (o varejista) para

uma parcela de clientes, constituem­se, talvez pode­se dizer, como um mecanismo de

ganho de confiança (para uma possível aquisição de carga) ou crédito (saldo em

mercadoria imediata, como droga para uso próprio, ou um valor/parte em cima da

mercadoria, acordado ou não com o cliente­vendedor), em parte com o traficante, numa

percepção mais ampla com toda a comunidade de vendedores, a sua família e os

conhecidos.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim percebemos a formação do grupo a ser capturado para a reflexão

etnográfica através deste espectro confuso, complexo da relação perene que este(s)

indivíduo(s) mantém com a ilegalidade em paralelo ao envolvimento com outros

diversos circuitos entendidos como formais. Neste universo semiótico de relações,

interdependentes, emaranhadas e sobrepostas compõem­se conjuntamente, em dialogia,

a atmosfera das comunidades “controladas” pelo tráfico. As relações, e os valores dado,

pela comunidade, perpassam muitas vezes um idealizado em comum (o consumo, a

ascensão de status e a mobilidade social.), mas com outras perspectivas sobre a ação. A

sua moral e juízo de valor constrói, em parte, os valores comungados pela comunidade,

mas em uma relação paradoxal, ao mesmo tempo é construído, por estes valores, que

são ao mesmo tempo individuais e coletivo.

Deste modo conjuga­se a nossa experimentação perpassando agentes obscuros,

territórios indefinidos e redes de subjetividade complexas emaranhadas no continuo

ajuste, e na perpetua confecção de assujeitamento e indivíduos tecendo o “estado de

exceção”, onde conjuga­se a prática da venda de “mercadorias políticas”, pois estes

territórios da não­lei, “[...]essas redes sociais que interligam mercadorias legais e

Page 11: As rotas silenciosas do mercado ilegal: o ethos de "ser" traficante na comunidade do "Pé do Morro"

ilegais, formais e informais [...] não adquirem necessariamente contornos espaciais ou

comunitários [...] mas, antes, percorrem complexamente todo o conjunto do tecido

social, político e econômico [...]” (MISSE. 2007. p, 144.). Ou seja, como diria Latour,

não há em sí um grupo, território apenas uma constante (autopoiese) construção de

grupos. Pois assim como constitui­se a prática que esta não está desassociada da

confecção da subjetividade, o incialmente proposto ethos, que é múltiplo, multifacetado,

composta em conjunto numa rede de relações e partilha de afetos e desejos compõe­se

na conjugação da complexa autopoiese do mercado ilegal. Que induz uma noção de

auto regulação, mas apreendida através do entendimento de uma múltipla conjugação

simbiótica que não separa nem indivíduo nem objeto, nem Eles e Nós pois o que se

constitui é o encontro etnográfico que longe das aspirações estruturalistas de apreensão

de uma infraestrutura (individual) X superestrutura (coletiva), ou do ideal positivista de

configuração de um real acreditamos numa etnografia como experimentação devir,

emergida na relação, pesquisador x pesquisado.

Bibliografia

AGAMBEN. Giorgio, Homo Sace: Poder Soberano e Vida Nua I. Belo Horizonte.

Editora UFMG, 2002.

CASTRO, Eduardo Viveiros. O conceito de sociedade em antropologia: um sobrevoô.

Rio de Janiero. 2010

GEERTZ. Clifford, Obras e Vidas: O Antropólogo como Autor. Rio de Janeiro. Ed.

UFRJ, 2009. p, 11­39.

Da MATTA, Roberto. O ofício de etnólogo ou como ter anthropological blues. Rio de

Janeiro: Boletim Museu Nacional, 1978.

MISSE, Michel. A construção social do crime no Brasil. Belo Horizonte: 2002.

_____________. Crime, Sujeito e Sujeição Criminal: Aspectos de uma contribuição

analítica sobre a categoria Bandido. São Paulo. Lua Nova. 2010. p, 15­38.

_____________. Mercados Ilegais, redes de proteção e Organização local do crime no

Rio de Janeiro. Estudos Avançados. 2007.

Page 12: As rotas silenciosas do mercado ilegal: o ethos de "ser" traficante na comunidade do "Pé do Morro"

MATURANA, Humberto. Cognição, Ciência e Vida Cotidiana. Belo Horizonte. Ed.

UFMG, 2001. p, 125­ 159.

PEIRANO. Mariza, A favor da etnografia. Rio de Janeiro: Relume­Dumará, 1995.

TELLES. Vera, A cidade nas Fronteiras do Legal e Ilegal. Belo Horizonte. Ed.

ARGVMENTVM. 2010. p, 01­ 106.