As rotas silenciosas do mercado ilegal: o ethos de "ser" traficante na comunidade do "Pé do Morro"
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As rotas silenciosas do mercado ilegal: O ethos de ser traficante na comunidade do
“pé do morro”
Erick Sousa de Sousa¹
Este breve artigo visa refletir sobre as experiências de campo vividas na comunidade
que alegoricamente iremos intitular de pé do morro. A dita região é situada num
município do interior do Ceará, onde tradicionalmente, instalouse em alguns territórios
da comunidade a circulação e comercialização de diversas substancias de porte e
consumo tido como ilegal – as “drogas”, que vão desde as usais maconha e “pó”, até
comprimidos “tarja preta”. A comunidade, situada na região noroeste do município
carente de saneamento básico e calçamento na rua, ganha sua pertinência
fenomenológica na capacidade sutil de agenciamentos de pessoas que se estabelecem na
prática da venda, muitas vezes, talvez, através dos contratos silenciosos nas esferas
familiares, tecido nas sensíveis redes de relações estabelecidas; Assim como espaço de
[re]significação subjetiva de sentidos sobre os territórios, indivíduos/ agentes
envolvidos. Deste modo, procuramos trazer para o centro da discussão a constituição da
categoria, no entendimento hegemônico, de ‘traficante’, como ela reflete e é acionada
na relação vivida pela comunidade envolvida, que subsiste através da circulação de
“mercadorias políticas” (MISSE, 2012.). Sentindo os agentes através da apreensão dos
conceitos nativos, percebendo as relações constituídas que permeiam a prática a partir
da experienciação em loco e da reflexão teórico metodológica, subscrevemos uma
experimentação nas tênues e tensas fronteiras das ilegalidades urbanas.
PalavrasChave: PÉ DO MORRO – DROGAS – ILEGALIDADE
¹Graduando em Antropologia pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia AfroBrasileira – UNILAB
APRESENTAÇÃO
Este artigo procura refletir através das experimentações de campo na
comunidade que preferencialmente, por segurança das pessoas envolvidos e pela
propagação de um certo clima poético, iremos denominar de “pé do morro”. No
território desta comunidade articulamse indivíduos em processos ocupacionais tangido
nas porosas, violentas e tênues ponta varejista do mercado ilegal de drogas, são os
“terríveis” traficantes. Esta noção e este indivíduo, interpenetráveis e inseparáveis, a
qual todos no brasil tem algo à falar sobre, serão alvo de reflexão e ponderamento antro
filosófico nestas breves páginas.
Antes da devida apresentação do objeto expomos algumas noções a serem
trabalhadas, que para nós são nuances a serem percebidas no trabalho de campo em
comunidades de fronteira. Estes indivíduos que já foram entendidos pela grande
sociologia como o “Homem Marginal” (PARK. 1948. Apud KOWARIC. 1977.), ou a
“Massa de Reserva” (NUM. 1967. Apud, Idem.). Exemplos destes sujeitos que
constituem a sua prática trabalhista nas fronteiras cinzenta da ilegalidade são os
vendedores ambulantes (PITA. 2012.), os Feirantes (BORZACHIELO. 2010.), os
diversos trabalhadores autônomos dos grandes centros comerciais urbanos, assim como
a grande predominância dos serviços informais/ilegais nos polos metropolitanos,
interioranos e rurais. Ainda nos centros urbanos onde centenas de pessoas enchem as
calçadas, alterando e resignificando os espaços, assim como os agentes mais silenciosos
do mercado “mundalizado de baixo” os “responsáveis” pela produção, circulação e
comercialização de mercadorias e substancias ilegais, notoriamente os responsáveis
pelos circuitos do tráfico de drogas.
Estes agentes pela sua justa articulação perpassada pela porosidade entre a
legalidade e ilegalidade, promovem o seu silenciamento, dificultando, colocando
entremeios e circunstâncias de natureza diversas para o pesquisador (etnógrafo), pois
estes silenciados (pelo peso do estigma da marginalidade, e do bandido (MISSSE.
2010.) e silenciosos – por fazerem parte de uma submundialização econômica , que
sobrevivem e são sobreviventes da economia da droga, tem como inimigos, numa
política proibicionista, o Estado, e sofrem do estigma, excludente, perverso e
desconcertante de criminoso.
Assim estas contingências políticasinstitucionais aparecem como situações a
serem contornadas na anedota espúria da etnografia. Outro ponto central a ser digerido
neste escrito, através das experiências em campo é a própria emergência da noção de
‘traficante’ no território do pé do morro, tomando como ponto de partida a historicidade
da comunidade e as relações constituídas no cotidiano, procurando assim caracterizar a
imersão e articulação dos sujeitos na prática da venda das substancias ilegais. Deste
modo através do confronto de perspectiva entre os conceitos acionados e construídos
pelos ‘nativos’ e os canônicos das ciências humanas procuramos contribuir em síntese
com a multifacetada discussão das relações sociais instituídas através dos tênues e
tensos terrenos da ilegalidade, através da proposição que nos guiará: Quando alguém é
(vem à ser) traficante do “Pé do Morro”?
1. A BUSCA DO CAMALEÃO
Inicialmente gostaríamos de trazer algumas considerações sobre a abordagem
metodológicateórica à ser contrastada em paralelo as perspectivas instituídas
(naturalizadas) na comunidade do bairro. Pois assim como Peirano (apud URIARTE.
2013) percebemos o universo teórico transpassado paradoxalmente pelas experiências.
Para a sociedade, entendida como a nação brasileira, constituir uma noção
constitucional, para definir as práticas que são “ilegais” de práticas “legais” perpassa as
relações estabelecidas na macroeconomia e nos tratos políticos, que mudam de tempos
em tempos, nem sempre ao certo estas definições, abstratas da instância jurídica
normatizam a vida das pessoas, produzindo deste modo, nos termos do filósofo
Agamben, “estados de exceção”, territórios onde a lei, a ordem e o poder, e seus
contrários, expressamse, numa relação paradoxal onde os indivíduos sujeitados pelas
constituições jurídicasinstitucionais, emergem numa confusão transpassada pela
violência, o estigma e variabilidade instantânea, provocando um silenciamento dos
agentes, da prática, do entendimento, confeccionando em última análise a alma
indesejada, o desejo negado, o pecado real, o indivíduo que pode ser morto.
Quando nos referimos a acuamento do nativo, estamos, nos referenciando a uma
situação mencionada pelo antropólogo Carlos Brandão numa gravação transcrita por
Roberto lima professor efetivo da UECE, onde o autor de “Pesquisa Participante”, nos
expõe precisos métodos de conduta do trabalho de campo a qual o mesmo tem usado
frequentemente em suas pesquisas. Que estas “dicas”, “manuais” e “métodos”,
tradicionais no cenário antropológico, ficam na cabeça e agem nas situações em campo,
disto não temos dúvida! O que procuramos expor é o distanciamento das tradicionais
etnografias, com “objetos visíveis” ou apresentáveis à superfície, dos já costumeiros
trabalhos em comunidades de fronteira, ou onde os indivíduos são percebidos através da
realidade da violência legitimada (legitimadora) do Estado de estigmatização e
retaliação. Numa relação de exceção¸ para usar os termos de Agamben, distante das
condutas formais e aceitáveis, estes indivíduos, muitas vezes por decorrerem de tal
circunferência políticoconjuntural circunscrevemse numa rede determinante de
silenciamento agenciada numa simbiose pelo estado proibicionista e a prática ‘nefanda’.
Assim os metódicos questionários, as pontuadas instruções e as certeiras
indicações de como construir um bom questionário com perguntas informativas caem
por terra, e o acuamento do nativo, resultado de uma invasão do etnólogo, expresso por
Brandão tornase, talvez, a primeira situação a ser contornada, pois o confronto direto
com os agentes também pode levar ao ‘fim’ das experiências de campo, o nosso objeto
está numa relação acuada pela sujeição hedionda, citando o código penal, com órgão
máximo de representatividade democrática, a União, isto significa um constante estado
de alerta vivido pela comunidade. Tomando isto como ponto de partida sabíamos que a
construção de uma relação reciproca com a pesquisa, os tão aclamados momentos das
entrevistas seriam métodos que apresentarseiam mais timidamente. Então podese
dizer de alguma forma que a primeira sensação experiênciada, além das tantas outras
inexploradas neste escrito, na rotina do campo foi a dificuldade de estabelecer um canal
direto de comunicação, que em outra situação poderseia ser feita, de certo modo, com
o ‘chefe’ da comunidade, o representante sindical, o conselheiro do bairro, ou mesmo o
vendedor ambulante, a senhora da esquina ou muitos outros indivíduos moralmente
concebidos na superfície social legitimada pelo Estado, mas como expor para um jovem
rapaz, pai de uma menina de olhos e cabelos claro, vendedor de maconha, cocaína e
crack, que está fazendo uma pesquisa sobre a sua prática?
Neste momento desaguamos numa problemática fundante para a execução da
prática de campo, ou como nós a assumimos nestas condições que nos impedem de
‘estar lá’, estado antropológico necessário para Geertz. A metodologia abordada que
tentamos ilustrar na intitulação desta sessão tem sua origem na lição que vemos no
habito de um réptil do sertão: o stronoros gumirus ou camaleão, este projeta sua
coloração em acordo com o as cores dispostas no ambiente. Estes astutos animais fazem
isto para defenderse de predadores, e ainda efetivar a sua caça camuflandose na
confusão de cores da natureza, de algum modo este animal que condiciona, ajustado ao
ambiente, sua superfície de apresentação, em termos objetivo a sua cor, poderia
alegorizar de alguma forma a condição paradoxal da sujeição sofrida pelos indivíduos,
que confeccionam, no estado excessivo novos sujeitos, promovido através do ajuste
articulado na relação estabelecida entre as redes de sujeitos. Então nada melhor do que o
camaleão, o ser do ajuste, para parabolizar a busca pelo objeto, pois assim, como já
exposto acima, nossas energias concentravamse inicialmente em vencer a barreira do
silenciocamuflagem promovido pela relação da conjuntura políticoinstitucional que
sujeita e veicula cores, situações e (pre) conceitos para estes indivíduoscamaleões.
Assim o nosso intento inicial é absorção da qualidade de ser camaleão, transformando
se assim em um indivíduocamaleão que silenciarseia para deste modo inserirse
na/em sintonia do/com ambiente, transformandose assim, talvez, num ser que é
ninguém, que não tem rosto, nem vez, apenas um esquema confuso, nebuloso, mas
violento de cores porosas e incertas que preenche o ambiente e o camaleão, dispersando
a qualidade do indivíduo, restando aos atores acionaremse a partir do nada.
Perceberse como camaleão seria, neste sentido, lançar mão à uma necessária
atuação no ambiente, evidenciada pela apreensão sutil do “estado de exceção”, que
condensarseia numa ambivalência consonante entre as relações tecidas nos “territórios
existenciais” que exprimirseiam como “zonas de indeterminação entre a lei e nãolei,
terrenos de fronteiras incertas e sempre deslocantes que produzem a figura do homo
sacer, vida matável” (TELLES. 2010. p, 08), ou seja, o território da ilegalidade, mais
precisamente do tráfico de drogas, está intrinsecamente relacionado a emergência de um
território constituído paradoxalmente entre a atuação e não atuação estatal, entre a lei e
uma outra relação. Deste modo tecese em fronteiras incertas e deslocantes uma outra
confecção de subjetividade, em um nível diferente de subjetivação, e a apreciação de
múltiplos sujeitos, “que produz outros assujeitamento, e, portanto, também outros
sujeitos” (MISSE. 2010. p, 16) que desdobram suas rotinas nas redes sensíveis de
relação paradoxal da ilegalidade é o marco inicial da tortuosa, laboramte e esburacada
estrada pela subjetividade ilegal.
2. SOBRE A VENDA E O VENDEDOR: OS MENINOS DA ESQUINA
O “pé do morro” é um bairro situada na região noroeste de um pequeno município
no interior da região serrana cearense, o município tem 155 KM², e não chega a vinte
mil habitantes, além de ter menos de três décadas de emancipação. A cidade tem um
clima típico interiorano, as pessoas são em geral cristãscaóticas, e reconhecem os
moradores mais antigos da cidade, assim como percebem logo um desconhecido, os
principais eventos da cidade são os da pastoral, dormese cedo, o comercio noturno é
inexistente em muitas localidades do município, assim como muitos serviços básicos –
saúde pública de qualidade, segurança cidadã, e o direito à moradia que são
sucateados e insuficientes no centro da cidade, agravamse ferrenhamente nas regiões
periféricas, que diferente das grandes cidades, que estão escondidas pela cortina dos
grandes prédios, espremida pelas grandes avenidas e despercebida pelo transeunte
apressado, estão ali na próxima esquina, andando não mais que um quilometro do centro
da cidade, e ainda sim, salta aos olhos o descaso, o estigma pulsante do preconceito
inerente à comunidade estratificada, mais humilde, com menos acesso aos serviços
formais, expresso através da objetiva afirmação “Aqui é quente, todo dia é bala”, ou
“nem se me dessem uma casa no pé do morro eu não queria”, ou ainda na reação
assustada quando o moto taxista, numa corrida após às oito da noite, descobre que o
destino é o “pé do morro”, pois sabese de conhecimento comum que o “pé do morro”
não é local de gente de ‘bem’ andar.
O “pé do morro” encontrase na região noroeste do município e também é o
limite da cidade antes de chegar na serra que está na região. Cerca de duzentos grupos
familiares habitam a região. Quando chegamos ao bairro percebemos uma gritante
mudança na arquitetura das casas, muitas, mais em algumas regiões do que em outras,
tem sua estrutura básica a “taipa”, ou parte da casa é composto pela armação em
madeira, que delimita o terreno de uma família, ou propriedade de alguém. Todo o
bairro é em calçamento e parte dele é em terra batida, não coincidentemente, são as
regiões de maior concentração de vendas de drogas, que em geral é no ‘fim’ do bairro.
Há cinco ruas que dão acesso ao bairro, basta entrar em uma delas e caminhar alguns
quarteirões acompanhando inicialmente o fluxo da rua e logo após os das trilhas feitas
entre a vegetação que cresce a beira da ‘estrada’ para encontrar o ‘pé do morro’, em
uma das ruas, passa uma linha férrea desativada para transporte de passageiros a mais
de duas décadas, por esta rua que entraremos!
Aqui nos deparamos no cruzamento da estrada estadual que corta a cidade, e a
rua ao lado da estrada de ferro, no horizonte vemos a serra e uma longa rua de
calçamento esburacado. Podemos perceber que estamos numa das partes mais baixa da
cidade, continuamos seguindo, observamos as casas, nesta altura ainda há casas de
alvenaria, em geral, com cercas e portões de taipa. Caminhando exatos cinco quarteirões
nos deparamos então com uma separação da rua em três caminhos, um seguindo em
frente reto, outro noventa graus à esquerda e outro a direita fazendo uma sinuosa curva à
esquerda que no fim encontrase novamente com o caminho do meio. Ao fim da rua do
meio podemos observar a movimentação comum das pessoas no diaadia superando a
senhora problema com os probleminhas seguindo atrás, mas num segundo momento,
podese perceber um nítido movimento de compra e venda de drogas ‘ilegais’,
misturado aos cachorros e galinhas que preenche a estética do espaço. Percebemos que
cerca de seis núcleos familiares se encontram diretamente e mais constantemente
envolvidos com o tráfico de diversas substancias ilegais.
Os meninos da esquina direcionam olhares matreiros ao desconhecido, talvez
determinando em parte uma insultuosa história com os estranhos que aparecem por ali,
mais estranhamente vai ser recebido quem for ao “pé do morro” de carro, ou moto, ou
em horários específicos – noite por exemplo , resultado da sua própria constituição
articulada com as experiências alimentadas no decorrer da sua própria historicidade,
promovendo deste modo um [re] ajuste, nos termos da metafisica de Maturana,
autopoietico que é o estado da autogestão, os seres, indivíduos, humanos e não
humanos como produtores continuo de sí, entendendo o indivíduo, a comunidade, o
agente, nos termos do autor, este é “o modo de sua constituição e realização contínua
em sí continuamente modulada pelo fluir do viver do sistema” (MATURANA. 2000. p,
176.), que nesta concepção ganha um sentido complexo, ou seja, a relação percebida é
de ajuste nas fronteiras porosos e nebulosas da ilegalidade que paradoxalmente
constituise fluidamente entre ‘ser’ ilegal. Pois o que dizer do comercio ilegal,
propriamente a venda de drogas, sendo somente possível para o indivíduo com a renda
certa do comercio formal, assim como observamos. Voltando para a nossa imersão no
bairro, se ficamos por algum tempo, no fim da rua que vem reto, logo podemos observar
o Neguinho parado na esquina, um rapaz de vinte e quatro anos franzino, moreno, de
olhos grandes pai de uma menina de sete anos, divide uma casa de um cômodo com
Lucia mãe da menina. Neguinho sai todo dia às 6hrs, de segunda a sexta, para trabalhar
como ajudante de pedreiro, deixa a menina na creche do bairro e segue para o dia
cansativo. Enquanto isso, Lucia, sabe que a quinzena do companheiro não dará até o fim
do mês, então ela fica responsável de passar as balinhas de maconha de dois reais, a
aranha – comprimido Artane , de cinco reais, ou mesmo a rocha – crack – de dois reais
para qualquer um que bata na porta ou seja encaminhado até a sua casa pelo seu
cunhado o Zé, que mora a algumas casas dali, também vendedor das mesmas
substancias, mudando que este vende cocaína mais constantemente que o irmão. Lucia
fica nesta até o horário que o companheiro retorne. Neguinho é filho de Dona Maria,
que vez por outra, acaba também vendendo as mesmas substancias que os filhos, em
geral só faz pedido de nova carga, após receber o da quinzena. O dinheiro do serviço é
o capital inicial para a movimentação e permanência da atividade. Quando Neguinho
chega do trabalho, em geral no fim da tarde, passa a ‘tomar de conta’ do comercio. A
noite chega e com ela a escuridão toma conta de parte do bairro, a iluminação é precária
e com a escuridão também vem a possibilidade dos tradicionais botes policiais. Que
segundo relatos de Nego um “médio” distribuidor para os vendedores da redondeza. Os
homens sobem para duas coisas “certa” a primeira é a possibilidade de conseguirem
dinheiro de forma violenta, ou menos comum, mas ainda percebido no período, é
subirem para a efetivação de prisão, ou batidas em casas de vendedores. Apesar de os
polos tradicionais de venda não terem caído nos períodos da pesquisa,
aproximadamente sete meses em campo, ainda sim, em diferentes momentos a polícia
veio rondar o bairro, em geral a noite e somente uma vez por dia, o comum de ocorrer
era somente os chamados bacas policiais em jovens “sujeitados criminalmente”
(MISSE. 1999.) onde estes “[...]não são qualquer sujeito incriminado [...] é [...] aquele
cuja a morte ou desaparecimento podem ser amplamente desejados [...]” (MISSE.
2010.p, 17.).
Retornando novamente para a frente da casa do Neguinho podemos olhar para o
fim da rua, que é sem saída pois as casas limitamse com a serra, na última casa da rua
mora Nego e Patrícia com seus três filhos. Nego é notoriamente o vendedor mais
conhecido e respeitado da região, além de sua história de vida ser transpassada pela
aventura mortal da criminalidade. Já foi assaltante, pistoleiro, hoje vende
primordialmente pó e crack, não há comprimidos no estoque, às vezes, com mais
frequência maconha também, mas orgulhase de ter sido preso somente uma vez. Da
localidade da casa dá para visualizar toda a comunidade, além do controle e prevenção
das investidas policiais, o local é estratégico, pois há um vasto terreno, onde as
substancias podem ser enterradas. Mas estas estratégias, algumas vezes, provocam perca
de parte das substancias, assim como confusões rotineiras.
Nego não tem um emprego formal, o que nos expressa ainda mais, a estabilidade
financeira que passa com a venda das substancias. Mas recentemente construiu uma
casa para alugar, e entrou com um sócio para a criação de um bar. O sócio é Natim
rapaz loiro, algumas tatuagens pelo corpo, antes era funcionário de Nego, mas com
alguma dificuldade, largando o consumo diário do crack, passou a ser um vendedor
autônomo, construiu sua casa, Natim também não tem emprego formal. Mas passou
bastante tempo entre a vida marginal, com uso extremado de pedra, os chamados
noinha, e a venda aleatória de drogas, através do serviço de aviãozinho até se firmar na
venda e não gastar todo o saldo com a própria mercadoria, ou mesmo consumila sem
conseguir repor. Natim mora no meio da rua do caminho do meio (o que viria reto) na
divisão que passamos logo atrás. Sua casa é uma das novas da rua, muitas casas estão
edificandose recentemente nos terrenos demarcados! (que é grande parte da terra),
alterando, ainda que vagarosamente, na estética serrana, mas antes de juntarse com
Vânia¸ mãe de sua filha de aproximados sete anos, Natim morava em outro bairro do
município, uma outra comunidade distante do centro da cidade, mas o local estava
embaçado.
Durante a noite, assim como parte da comercio ‘formal’, os “pontos de vendas”
ilegais também se reconfiguram, a lógica noturna é diferente, os tradicionais meninos da
esquina não ocupam mais os mesmos postos. Os ditos aviõezinhos, ou o cara do corre,
dispersamse pelas ruas escuras, aproximandose mais das casas, misturandose a
vizinhança familiar que vai, a cada hora da noite, diminuído o fluxo na rua e as casas
viram os pontos de acesso direto as substancias ilegais. Batendo na porta de algum
vendedor ou através do avião podese ainda conseguir drogas até um pouco depois da
meia noite, após isso o acesso é restrito, os tradicionais vendedores estão muitas vezes
dormindo! Comprar maconha, pó, crack ou comprimidos após meia noite é uma missão
complicada, mas não impossível. Dependendo da fidelidade (frequência) do cliente e
relação com o vendedor podese abrir portas que estão fechadas para outros.
Mas em contraponto a lógica noturna, comprar algo durante o dia é mais
simples, a atividade começa cedo, já que a casa e o trabalho se misturam. A relação
direta do indivíduo com a mercadoria nos intua uma noção quase animista da relação
paradoxal de constituição da subjetividade do vendedor, ante a uma espécie de unidade
da percepção hegemônica, assumida através da própria ‘objetividade’ anacrônica da
jurisdição, em confluência com a prática hedionda e a substancia indesejada. Deste
modo numa simbiose confusa, o sujeito e o objeto, o indivíduo e a mercadoria
misturamse numa perene relação de equivalência, onde a marginalidade é diretamente
acionada com a prática do porte da substancia ilegal, por este viés, numa formação em
relação de ubiquidade entre a mercadoria e o vendedor, que é concebido, numa lógica
intuída, através de uma polivalência de atividades e de sujeitos, que provoca uma porosa
relação de quem em real é o traficante, já que a venda é sustentada por uma rede de
relações inapreensíveis em cadeia quebrada, além de constituíremse num mercado
mundalizado – o tráfico de drogas; outra apreensão a ser entendida é a venda para certos
agentes, como os aviõezinhos, que não são em sí funcionários do traficante, mas
assumem, para certos cliente papeis definitivos, e são a fonte última (o varejista) para
uma parcela de clientes, constituemse, talvez podese dizer, como um mecanismo de
ganho de confiança (para uma possível aquisição de carga) ou crédito (saldo em
mercadoria imediata, como droga para uso próprio, ou um valor/parte em cima da
mercadoria, acordado ou não com o clientevendedor), em parte com o traficante, numa
percepção mais ampla com toda a comunidade de vendedores, a sua família e os
conhecidos.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim percebemos a formação do grupo a ser capturado para a reflexão
etnográfica através deste espectro confuso, complexo da relação perene que este(s)
indivíduo(s) mantém com a ilegalidade em paralelo ao envolvimento com outros
diversos circuitos entendidos como formais. Neste universo semiótico de relações,
interdependentes, emaranhadas e sobrepostas compõemse conjuntamente, em dialogia,
a atmosfera das comunidades “controladas” pelo tráfico. As relações, e os valores dado,
pela comunidade, perpassam muitas vezes um idealizado em comum (o consumo, a
ascensão de status e a mobilidade social.), mas com outras perspectivas sobre a ação. A
sua moral e juízo de valor constrói, em parte, os valores comungados pela comunidade,
mas em uma relação paradoxal, ao mesmo tempo é construído, por estes valores, que
são ao mesmo tempo individuais e coletivo.
Deste modo conjugase a nossa experimentação perpassando agentes obscuros,
territórios indefinidos e redes de subjetividade complexas emaranhadas no continuo
ajuste, e na perpetua confecção de assujeitamento e indivíduos tecendo o “estado de
exceção”, onde conjugase a prática da venda de “mercadorias políticas”, pois estes
territórios da nãolei, “[...]essas redes sociais que interligam mercadorias legais e
ilegais, formais e informais [...] não adquirem necessariamente contornos espaciais ou
comunitários [...] mas, antes, percorrem complexamente todo o conjunto do tecido
social, político e econômico [...]” (MISSE. 2007. p, 144.). Ou seja, como diria Latour,
não há em sí um grupo, território apenas uma constante (autopoiese) construção de
grupos. Pois assim como constituise a prática que esta não está desassociada da
confecção da subjetividade, o incialmente proposto ethos, que é múltiplo, multifacetado,
composta em conjunto numa rede de relações e partilha de afetos e desejos compõese
na conjugação da complexa autopoiese do mercado ilegal. Que induz uma noção de
auto regulação, mas apreendida através do entendimento de uma múltipla conjugação
simbiótica que não separa nem indivíduo nem objeto, nem Eles e Nós pois o que se
constitui é o encontro etnográfico que longe das aspirações estruturalistas de apreensão
de uma infraestrutura (individual) X superestrutura (coletiva), ou do ideal positivista de
configuração de um real acreditamos numa etnografia como experimentação devir,
emergida na relação, pesquisador x pesquisado.
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