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2 BRUNO THADEU REIS RAMOS AS SEIS CANÇÕES TROVADORESCAS DE FRUCTUOSO VIANNA: Aspectos intertextuais e perspectivas interpretativas para voz de contratenor na canção de câmara brasileira Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Música. Linha de Pesquisa: Performance Musical Orientadora: Profa. Dra. Luciana Monteiro de Castro Silva Dutra (UFMG) Belo Horizonte Escola de Música da UFMG 2013

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BRUNO THADEU REIS RAMOS

AS SEIS CANÇÕES TROVADORESCAS DE FRUCTUOSO VIANNA:

Aspectos intertextuais e perspectivas interpretativas para voz de contratenor na canção de câmara brasileira

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Música. Linha de Pesquisa: Performance Musical Orientadora: Profa. Dra. Luciana Monteiro de Castro Silva Dutra (UFMG)

Belo Horizonte Escola de Música da UFMG

2013

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2 FISIOLOGIA DA VOZ

Este segundo capítulo tratará da fisiologia típica de um homem não castrado que

cante nos registros de contralto e/ou soprano (contratenor) utilizando-se de falsetes.

O foco principal desta pesquisa remete ao universo do canto lírico, não excluindo

outras manifestações artísticas nem as enquadrando sob uma ótica excludente.

Como já mencionado anteriormente, os contratenores geralmente podem cantar

utilizando o registro modal de suas vozes, ou seja, com as qualidades vocais e

tessitura de uma voz masculina, a qual tenha se alterado normalmente pela muda

vocal. Os mecanismos e ajustes fisiológicos utilizados para o alcance das notas

referentes aos registros agudos (soprano e/ou contralto) também serão aqui

abordados. Para nortear este capítulo, segue aqui um breve esquema de revisão da

literatura acerca da fisiologia da voz.

2.1 REVISÃO DA LITERATURA

O aparelho vocal é dividido classicamente em três partes:

• Sistema respiratório;

• A laringe;

• Os ressonadores (pavilhão faringobucal e cavidades anexas).

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FIGURA 1 – Esquema do aparelho Vocal30

2.1.1 SISTEMA RESPIRATÓRIO

A produção vocal nos seres humanos é possibilitada por um sistema respiratório

pulmonar, equipado com diafragma, pulmões, laringe, vias aéreas superiores e

vários outros músculos além de estruturas ósseas e cartilaginosas. A respiração vital

cumpre a função reflexo-vegetativa de manutenção da vida, tendo sua atuação

involuntária. Quando estamos dormindo, a respiração diminui seu ritmo, intensidade

e volume. Por outro lado, quando estamos praticando algum exercício físico, sua

intensidade aumenta em vários graus, independentemente da nossa vontade. Nessa

atividade, os músculos que movimentam o sistema respiratório atuam de modo ativo

30 Fonte: ZEMLIN, Willard R. Princípios da anatomia e fisiologia em fonoaudiologia. (2000).

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na inspiração e predominantemente passivo na expiração, quando em respiração

calma. (CAMPOS, 2007).

A voz pode ser considerada uma expiração sonorizada. Na respiração calma, os

pulmões são cheios (mais, ou menos) pela ação dos músculos inspiradores e se

esvaziam (relativamente) pelo simples retorno ao repouso desses músculos. Na

fonação, ao contrário, a expiração é ativa: o ar é expulso dos pulmões pela ação dos

músculos expiradores, e essa expiração ativa, necessária a produção da voz chama-

se “sopro fonatório”. (LE HUCHE & ALLALI, 1999).

A emissão do sopro fonador é precedida em princípio, de uma inspiração, de um

impulso respiratório: é necessário armazenar ar dentro dos pulmões, uma vez que

se trata da matéria prima da fonação. O diafragma, músculo inspirador principal, é

uma lâmina muscular em forma de calota que separa o tórax do abdome. Acima dele

situam-se coração e pulmões. Abaixo, as vísceras do abdome: estômago, fígado,

baço, intestino.

FIGURA 2 – Esquema expiração/inspiração e funcionamento do diafragma31. (Adaptação do

..autor).

31 Fonte: <http://www.cabuloso.com/Anatomia-Humana/>. Acesso em 05/09/2011.

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2.1.2 A LARINGE

A laringe é a extremidade superior do tubo traqueal, onde este último se abre na

parte posterior da garganta (faringe). Ela (a laringe) é o principal órgão da voz,

contudo essa é uma função secundária, pois a principal é “a de permitir a obturação

da traquéia”. (LE HUCHE & ALLALI, 1999, p. 34).

FIGURA 3 – Localização da laringe no corpo humano32. (Adaptação do autor).

É na laringe que se situam as pregas vocais, responsáveis pela produção da voz.

Ainda freqüentemente chamadas de “cordas vocais”, as pregas vocais apresentam-

se como dois lábios horizontais posicionados na extremidade superior da traquéia,

formando saliências na parede interior da laringe, um à direita e outro à esquerda.

(LE HUCHE & ALLALI, 1999; ZEMLIN, 2000).

32 Fonte: <http://adam.sertaoggi.com.br/encyclopedia/body_parts/laringe.htm>. Acesso em 05/09/2011.

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Unidas na parte anterior, as pregas vocais podem afastar-se e aproximar-se uma da

outra na parte posterior, e ao aproximarem-se, podem vibrar (como lábios

propriamente ditos) graças à ação do sopro pulmonar. Elas (as pregas vocais) são

compostas por um músculo denominado tireoaritenóideo e diferentes tecidos que as

revestem, formando camadas. Existem dois grupos musculares com inserções na

laringe: os músculos intrínsecos e os extrínsecos. A musculatura intrínseca está

diretamente relacionada ao controle de vibração das pregas vocais, enquanto que a

musculatura extrínseca relaciona-se à elevação e abaixamento da laringe. (LE

HUCHE & ALLALI, 1999).

FIGURA 4 – Musculaturas da Laringe33 - vista de cima. (Adaptado pelo autor).

Os músculos intrínsecos são os seguintes: tireoaritenóideo, responsável pelo

encurtamento e enrijecimento das pregas vocais (sons graves); cricotireóideo

responsável pelo alongamento e conseqüente tensionamento das pregas vocais

(sons agudos); cricoaritenóideo lateral, responsável pela adução ou fechamento das

pregas vocais juntamente com os aritenóideos: cricoaritenóideo posterior

responsável pela abdução ou abertura das pregas vocais. (CRUZ, 2006).

33 Fonte: Vocal Parts Brasil, CD interativo.

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FIGURA 5 – Músculo cricoaritenóideo posterior (CAP)34. Consiste de um feixe com trajeto ....vertical (FV), que normalmente é discreto e separado da parte medial em forma ....de leque (M). A ação deste músculo é mostrada no esquema processo ....muscular ..(PM).

Como é facilmente perceptível (principalmente em alguns homens adultos, mas

também possível em algumas mulheres), “o pomo-de-Adão35 movimenta-se

constantemente no sentido vertical, o que é necessário à articulação das vogais

(para o “i” a laringe sobe, para o “u” ela desce)”. (LE HUCHE & ALLALI, 1999, p. 36).

34 Fonte: ZEMLIN, Willard R. Princípios da anatomia e fisiologia em fonoaudiologia. (2000). 35 O pomo-de-adão é uma saliência do osso hióide, junto à laringe, um dos órgãos envolvidos no processo da fala. Esse crescimento é determinado por hormônios masculinos, principalmente a testosterona. Como esses hormônios, em geral, só são encontrados em grandes quantidades no organismo dos homens, principalmente na fase da puberdade, apenas estes apresentam o pomo. (Fonte: Super Abril, <http://super.abril.com.br/superarquivo/1991/conteudo_112858.shtml>).

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FIGURA 6 – Vista do Pomo-de-Adão36 (simplificada).

Esses movimentos rápidos e constantes são assegurados por três grupos de

músculos que constituem os “suspensórios” da laringe.

• Os suspensores anteriores ligam a laringe ao maxilar inferior (músculos

supra-hióideos).

• Os suspensores inferiores ligam a laringe ao bordo superior do esterno, isto

é, ao tórax (músculos infra-hióideos).

• Os suspensores superiores ligam a laringe à base do crânio exatamente

abaixo do conduto auditivo (músculo estilo-hióideo e digástrico). (LE HUCHE

& ALLALI, 1999).

O osso hióideo é um semicírculo ósseo de concavidade voltada para trás, que

podemos sentir com os dedos, entre o polegar e o indicador, ao apalparmos a parte

frontal do pescoço, logo acima do pomo-de-Adão.

36 Fonte: <www.portalsaofrancisco.com.br>. Acesso em 08/10/2011.

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FIGURA 7 – Vista do Pomo-de-Adão37 (detalhada).

2.1.2.1 Mecanismos de mudança de frequência

A freqüência média de vibração das pregas vocais é conhecida como “freqüência

fundamental”, ou seja, ela determina em grande extensão a altura da voz. (ZEMLIN,

2000). A freqüência fundamental em adultos varia entre homens e mulheres, e

também entre constituições anatomo-fisiológicas diferentes bem como fatores

culturais. A freqüência fundamental aproximada em homens adultos varia entre 107

Hz e 130 Hz, e em mulheres adultas, em torno dos 200 Hz a 220 Hz. (CRUZ;

HANAYAMA & GAMA, 2004; PINHO, 2001; ZEMLIN, 2000). Durante a fala,

ocasionalmente, a freqüência vocal utilizada é mais baixa do que durante a emissão

sustentada. “Essas freqüências muito baixas tendem a ocorrer no final das

sentenças, quando a intensidade vocal está diminuindo rapidamente.” (FAIRBANKS,

1959 apud ZEMLIN, 2000, p. 171). Existe a freqüência vocal particularmente ideal

para indivíduo, conhecida como “freqüência natural”. É determinada pelas

características físicas do mecanismo individual da voz, e situa-se no quarto inferior

da extensão fonatória (incluindo o falsete). (Ibid, p. 171).

37 Fonte: <www.jorgebastosgarcia.com.br>. Acesso em 15/12/2011.

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As modificações nos ajustes das pregas vocais (comprimento e tensão) necessárias

para produzir um aumento na freqüência são mediadas pela interação de três

músculos intrínsecos da laringe: o cricotireóideo, o tireoaritenóideo e, em menor

grau, o cricoaritenóideo posterior. (Vide figura 8). O músculo cricotireóideo emerge

do arco ântero-lateral da cartilagem cricóide e insere-se na cartilagem tireóide, como

feixe reto e com direção oblíqua. A contração do feixe reto ocasiona rotação em

torno da articulação cricotireóidea, que diminui a distância entre as cartilagens

cricóide e tireóide anteriormente. O músculo tireoaritenóideo, agindo sem oposição

simplesmente diminui a distância entre as cartilagens aritenóides, e a cartilagem

tireóide para produzir um encurtamento (e relaxamento) das pregas vocais. Os

aumentos de freqüência, portanto, são ocasionados pela ação antagonista dos

músculos cricotireóideo e tireoaritenóideo (tensores das pregas vocais) com uma

ajuda do músculo cricoaritenóideo posterior, que ancora as cartilagens aritenóides.

(ZEMLIN, 2000).

FIGURA 8 – Esquema da ação de alguns músculos intrínsecos da laringe38. Em A, a

........contração dos aritenóideos curva os processos vocais para fora e, em B, a

........contração dos cricoaritenóideos laterais aduz parcialmente os processos

........vocais. Em C, a contração simultânea dos músculos cricoaritenóideo lateral e

........aritenóideo aduz completamente os processos e ligamentos vocais, ainda que

38 Fonte: ZEMLIN, Willard R. Princípios da anatomia e fisiologia em fonoaudiologia. (2000).

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........o movimentos das cartilagens aritenóides para frente também possa ocorrer.

........Em D, o movimento para frente é restringido pelo ligamento cricoaritenóideo

........posterior e pela ação antagonista do músculo cricoaritenóideo posterior, e a

........ação combinada dos três músculos resulta em aproximação firme dos

........ligamentos e das pregas vocais.

Pode-se esperar que um indivíduo com freqüência habitual em torno dos 131 Hz

(Dó2), abranja uma extensão vocal para o canto de 73 Hz (Ré1) a aproximadamente

523 Hz (Dó4), podendo-se estender até 1046,5 Hz (Dó5), pois segundo o mesmo

autor, “a freqüência habitual está perto dos limites inferiores da extensão vocal”39.

Um aumento na tensão e uma diminuição na massa das pregas vocais são os

principais responsáveis pela elevação da freqüência, o que significa:

Uma diminuição na freqüência vibratória deve ser responsabilizada pela diminuição na tensão e/ou pelo aumento na massa [da prega vocal] por unidade de comprimento das pregas vocais. As observações da laringe sugerem que existe reciprocidade (em certo grau) entre a massa e a tensão das pregas vocais; isto é, um não pode ser afetado sem que influencie o outro. (ZEMLIN, 2000, p. 177).

Para produzir freqüências próximas dos extremos vocais, e para facilitar suas

alterações rápidas, uma parte da musculatura extrínseca40 e complementar pode ser

solicitada. A laringe comumente se eleva e abaixa durante a fonação de freqüências

agudas e graves, e isso ocorre muito mais em alguns indivíduos do que em outros.

Essas alterações rápidas na posição da laringe são realizadas pelos músculos

elevadores e depressores da laringe, e pela musculatura complementar que se liga

ao osso hióideo (figura 9).

As evidências eletromiográficas, contudo, demonstram atividade elevada do músculo esternotireóideo quando a laringe está deprimida, e do músculo tiro-hióideo quando está elevada. (FAABORG-ANDERSON & SONNINEN, 1960 apud ZEMLIN, 2000, p. 177).

39 Ibid, p. 177. 40 Musculatura responsável por posicionar e sustentar a laringe. É formada pelos músculos esternotireóideos, tiro-hióideos e o músculo constritor inferior da faringe. (ZEMLIN, 2000, p. 139).

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FIGURA 9 – Esquema frontal detalhando os músculos do pescoço e laringe41.

O músculo constritor inferior da faringe é um músculo tipo esfíncter, e seu papel na

mudança de posição da laringe não é bem compreendido, sendo evidente que as

estruturas laríngeas são complexas e seus músculos podem complementar as

atividades um do outro em determinado momento, e ser antagonistas no seguinte.

(ZEMLIN, 2000).

41 Fonte: NETTER, Frank H.. Atlas de Anatomia Humana, 2000.

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FIGURA 10 – Musculatura extrínseca da laringe42.

2.1.3 OS RESSONADORES (PAVILHÃO FARINGOBUCAL E CAVIDADES

ANEXAS)

A laringe abre-se em sua porção superior dentro da faringe. Essa é uma

“encruzilhada aerodigestiva”; uma cavidade que se segue à boca, por trás da língua,

a que chamamos garganta. Trata-se de uma cavidade muscular capaz de se contrair

lateralmente ou no sentido de trás para frente, mediante a ação dos músculos

constritores da faringe. Seu volume também pode variar verticalmente. Essas

variações dependem dos movimentos de elevação e de abaixamento da laringe de

que acabamos de falar. Esses movimentos participam de maneira muito importante

na articulação das vogais. Essa cavidade divide-se em três estágios superpostos, e

42 Fonte: ZEMLIN, Willard R. Princípios da anatomia e fisiologia em fonoaudiologia. (2000).

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são eles de baixo para cima: a hipofaringe (ou laringofaringe), a orofaringe e a

rinofaringe.

FIGURA 11 – Esquema detalhado da nasofaringe, orofaringe, hipofaringe e parte do ..........................esôfago43.

2.1.3.1 A hipofaringe (ou laringofaringe)

A hipofaringe é toda parte da faringe situada abaixo da porção livre da epiglote.

Quando da deglutição, a epiglote se desloca para fechar o tubo. Porém, em

realidade, o bolo alimentar não passa apenas sobre a epiglote rebatida, mas de um

ou outro lado do tubo ou dos dois lados ao mesmo tempo, pelo que é chamado

“condutos faringolaríngeos ou seios piriformes”. (LE HUCHE & ALLALI, 1999, p. 37).

Dois condutos levam assim, à hipofaringe: a laringe na frente, e o esôfago atrás.

43 Fonte: NETTER, Frank H.. Atlas de Anatomia Humana, 2000.

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O esôfago é como uma mangueira achatada, com aproximadamente dois

centímetros de largura, que vai da faringe ao estômago. Sua parede muscular é

elástica, e o seu orifício que se abre na hipofaringe é a boca do esôfago. Esta pode

permanecer fechada graças à ação de um anel muscular (músculo cricofaríngeo).

Na deglutição, este músculo deve estar relaxado para permitir a passagem dos

alimentos para o esôfago, ao mesmo tempo em que a epiglote se abaixa para

recobrir a laringe e fechar a traquéia.

2.1.3.2 A orofaringe

Quando abrimos bem a boca, percebemos no fundo, de cada lado, as pilares

anteriores e posteriores do véu do palato. São dobras da mucosa dispostas

verticalmente. Separadas em baixo pela base da língua, elas se aproximam em

cima, formando uma ogiva. A úvula pende do cume desta ogiva (e não deve ser

confundida com a glote, que é o espaço compreendido entre as duas pregas vocais,

quando estas não estão em contato).

Os pilares anteriores do véu do palato, por trás das quais podemos ver as

amígdalas, formam juntamente com a base da língua, uma espécie de estreitamento

chamado istmo da garganta. À frente do istmo da garganta situa-se a boca e atrás, a

faringe. (LE HUCHE & ALLALI, 1999).

2.1.3.3 A rinofaringe (nasofaringe)

Quando o véu do palato permanece abaixado, a orofaringe comunica-se com a parte

posterior do nariz, ou rinofaringe. O véu do palato pode ser imaginado como uma

válvula que, ao elevar-se, impede o ar de passar pelo nariz. Na emissão de

palavras, o véu do palato permanece abaixado para as vogais e consoantes nasais

(m, n, nh) e se ergue para os outros sons.

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FIGURA 12 – Desenho esquemático da orofaringe, nasofaringe e hipofaringe (ou ......laringofaringe)44.

2.2 REGISTROS VOCAIS

O termo registro vocal, se refere a uma faixa de extensão vocal na qual a voz

apresenta qualidade sonora homogênea. Popularmente, fala-se de inúmeros

registros vocais, mas segunda literatura especializada, iremos aqui nos ater

basicamente a três deles: fry, modal (subdivididos em peito, médio e cabeça) e

falsete. (CRUZ, 2006).

O fry (ou registro basal) é o registro mais grave da voz, tendo uma sonoridade pobre

em volume e de fácil identificação perceptiva, pois durante sua emissão é possível

ouvir os pulsos da vibração e em observação laringoscópica, as pregas vocais se

mostram encurtadas, grossas e com uma imagem de “bolha dupla” à

laringoestroboscopia. Tal registro tem sido alvo de estudos de vários especialistas, e

muitas são as divergências fisiológicas, acústico-perceptivas e até de terminologia

44 Fonte: ZEMLIN, Willard R. Princípios da anatomia e fisiologia em fonoaudiologia. (2000).

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que neles se encontram. O uso do registro basal como registro habitual de

comunicação deve ser evitado, pois um maior volume e projeção sonora são

impraticáveis nesse tipo de emissão. (PINHO, 2001; BEHLAU & PONTES, 1995).

O registro modal inclui a extensão de alturas que normalmente são utilizadas na fala

habitual e no canto. Por ser o maior de todos os registros, é geralmente subdividido

em três categorias: peito, misto e cabeça, também chamados respectivamente de

registro modal grave, médio e agudo. As freqüências aproximadas desse registro

estão entre 80 e 560 Hz, e por sua importância, as subcategorias peito e cabeça são

comumente designadas como registro de peito e registro de cabeça, embora não

apresentem bases fisiológicas, perceptivas e acústicas que permitam diferenciá-los

em dois registros propriamente ditos. (BEHLAU & PONTES, 1995).

Na subcategoria “peito”, são encontradas a laringe baixa, as pregas vocais espessas

que apresentam grande massa em vibração com superfície de contato de mucosa

extensa, tudo isso favorecendo a emissão de sons graves. Nesse registro, a ação

muscular predominante é a do tireoaritenóideo, sendo o registro principal da voz

falada masculina.

FIGURA 13 – Pregas vocais em registro “peito” (grave)45.

A subcategoria “mista”, ou média, representa uma fase intermediária entre o peito e

a cabeça e corresponde fisiologicamente, à contração do músculo cricotireóideo,

principal responsável pela emissão dos sons agudos. Nesta subcategoria,

45 Fonte: ZEMLIN, Willard R. Princípios da anatomia e fisiologia em fonoaudiologia. (2000).

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geralmente ocorre a chamada “quebra” das notas, o que pode ser mascarado com o

treino.

FIGURA 14 – Pregas vocais em registro médio46.

Na subcategoria de cabeça, a laringe se encontra em posição alta no pescoço, com

as pregas vocais estiradas, com reduzida superfícies de contato e vibrações em

menor extensão. “Nesse sub-registro a ação do cricotireóideo sobrepuja a ação do

tireoaritenóideo, porém, esta ainda está presente.” (Ibid, p. 95).

O registro de falsete comumente é confundido com o sub-registro de cabeça, pois

ambos apresentam notas agudas. Behlau & Pontes (1995, p. 96) os distinguem

relatando que “a diferença básica é que no registro de falsete as emissões são

débeis e têm uma característica de leveza não observada no registro de cabeça,

onde as notas são mais robustas”. Segundo Hollien47 (1974) apud Cruz (2006, p. 10)

o falsete “inclui as notas mais agudas da extensão vocal, tanto na voz masculina

como feminina”, porém Zemlin (2000, p. 186) não compartilha desse conceito, já que

segundo o autor, “as vozes femininas agudas não apresentam falsete, e sim um

assovio laríngeo [ou registro de flauta]”.

No registro de flauta, as pregas vocais se mostram tensas e a glote aparece com

uma fenda muito estreita (cerca de 1 mm), através da qual o ar flui, e este “escape”

de ar gera um assovio laríngeo (ZEMLIN, 2000). Esse é um registro de ocorrência

46

Fonte: ZEMLIN, Willard R. Princípios da anatomia e fisiologia em fonoaudiologia. (2000). 47 HOLLIEN, H. On vocal registers. Journal of Phonetics 1974; 2:125-143.

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muito rara, e com configuração glótica não muito definida, acreditando-se que seja

uma produção praticamente passiva, como o ar sonorizado ao passar pela fresta de

uma janela, por exemplo. (BEHLAU & PONTES, 1995).

FIGURA 15 – Pregas vocais no registro de flauta48.

O registro de falsete é caracterizado pelo relaxamento do músculo tirearitenóideo e

por uma hiperatividade do músculo cricotireóideo, com conseqüente estiramento do

ligamento vocal, deixando apenas as margens das pregas vocais livres para vibrar.

O relaxamento do músculo tireoaritenóideo e de outros músculos como o

cricotireóideo lateral e aritenóideo, no registro de falsete, pode levar ao

aparecimento de fenda glótica ocasionando um escape de ar (em alguns casos

ocasionando uma soprosidade à voz), prejudicando a qualidade vocal. (CRUZ,

2006). O registro de falsete não está totalmente livre de controvérsias, e há uma

forte possibilidade de que exista mais de um mecanismo para produzi-lo. (ZEMLIN,

2000).

Os ligamentos vocais são pressionados entre si tão firmemente pela forte contração dos músculos cricoaritenóideos laterais, assim como de outros músculos de adução, que suas bordas ficam em contato em curta distância diante dos processos vocais, deixando apenas um pequeno comprimento de ligamento livre para vibrar. (AIKIN, 1902 apud ZEMLIN, 2000).

48

Fonte: ZEMLIN, Willard R. Princípios da anatomia e fisiologia em fonoaudiologia. (2000).

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FIGURA 16 – Foto das pregas vocais em registro de falsete.49

Embora o falsete seja confinado à porção superior extrema da tessitura, “também é

uma qualidade vocal peculiar, que é conseqüência da maneira, e não só da

freqüência de vibração das pregas vocais”. (ZEMLIN, 2000, p. 185). No canto lírico

(objeto de estudo aqui em questão), utilizam-se o registro modal e falsete.

Fisiologicamente, a principal característica do registro modal é a grande atividade de

ambos os músculos tireoaritenóideo (contrator) e cricotireóideo (tensor) ao longo de

toda a sua extensão.

A voz de falsete masculina, também utilizada pelos cantores líricos contratenores, foi

reconhecida em três formas: (1) o falsete fino e natural de uma voz não treinada; (2)

o delicado falsete artístico que é praticado por um contratenor; (3) o pleno tom forte

de uma voz de cabeça treinada com ressonância acrescentada. Cruz (2006)

apresenta três classificações do falsete masculino: (1) contratenor (countertenor,

haute-contre, contratenor, alto, etc); (2) Falsetto (falsetista italiano, fausset, etc.); (3)

castrato (castrado, sopranista, cantori evirati, falsettist naturali, musici).

É importante ressaltar aqui que tal nomenclatura acima descrita é simplesmente

uma das formas encontradas para diferenciação dos diversos tipos de vozes agudas

masculinas, enquadradas hoje em dia genericamente como contratenor. A castração

não significava sucesso de adquirir ou conservar uma voz de soprano, pois, como é

documentado, nos séculos XVII e XVIII haviam muitos castrati que atuavam como

49 Fonte: ZEMLIN, Willard R. Princípios da anatomia e fisiologia em fonoaudiologia. (2000).

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54

contraltos. Logo, a classificação vocal destes cantores não era definitiva, no sentido

de imutabilidade vitalícia, mas não eram raras às vezes em que suas vozes

mudavam de registro.

Uma vez castrado, o menino não passava mais pela muda [vocal], ou seja, sua voz não baixava de uma oitava, como em todos os outros rapazes. Permanecia “alta”, para usar um termo muito geral, a meio caminho entre a criança e a da mulher, de que podia adotar uma ou outra tessitura (soprano ou contralto); às vezes essa voz evoluía no decorrer da vida e passava de soprano a contralto, ou o contrário [contralto a soprano]. (BARBIER, 1989, p. 22).

Embora não muito comumente, havia ocasiões nestes mesmos séculos em que

eram encontrados contratenores cantando em tessituras de castrati e, de certa

forma, obtendo considerável êxito nesta empreitada. Porém, a diferenciação entre

ambos era nítida aos ouvintes da época (PACHECO, 2006).

Para tal, esses cantores (contratenores) utilizavam-se de determinados ajustes

fisiológicos que possibilitaram - e ainda possibilitam - o alcance das notas

correspondentes à tessitura de um contralto ou de um soprano. Esses ajustes geram

uma sonoridade (falsete) muito cultivada até hoje por parte principalmente dos

cantores que se dedicam à prática da música antiga. Como já mencionado, esse

registro é comum tanto em homens quanto em mulheres.

Uma das grandes diferenças sonoras produzida por um falsete feminino, para um

falsete masculino está na estrutura fisiológica que produz o ajuste laríngeo para tal

sonoridade. Na mulher, de um modo geral, o registro de falsete e o registro modal

estão mais próximos em relação à altura (freqüência em Hertz), o que

conseqüentemente, contribuirá para uma sonoridade mais homogênea, transmitindo

ao ouvinte uma sensação de “mais naturalidade” por parte do cantor. “Vozes

masculinas têm maior facilidade e preferência pelo registro grave, enquanto vozes

femininas direcionam-se ao registro agudo.” (BEHLAU & PONTES, 1995, p. 97). Isso

acontece como já mencionado, em parte devido a estrutura corporal e a formação

dos órgãos fonatórios da mulher, como a laringe, por exemplo, que é bem menor (e

diferente em proporção de suas partes) do que uma laringe masculina.

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55

FIGURA 17 – Comparação simplificada entre as pregas vocais femininas e masculinas50

Dentre os muitos efeitos causados pela castração (efetuada antes da puberdade) no

corpo do homem, pode-se destacar aqui o desenvolvimento laríngeo, que ocorria de

forma similar ao feminino. Isso fazia com que, no século XVIII, os outros tipos vocais

masculinos diferentes do castrato fossem praticamente desconsiderados e as vozes

femininas tratadas como se fossem iguais àquela dos castrati. (PACHECO, 2006).

Apesar da estrutura óssea, da musculatura e, conseqüentemente, da proporção das

outras partes serem diferentes, as pregas vocais dos castrati se assemelhavam

muito às pregas femininas, mas, no entanto, o timbre de ambos era muito distinto:

[A voz do castrato era] Diferente da voz de homem, por sua leveza, flexibilidade e seus agudos, diferente da voz de mulher por seu brilho, limpidez e potência, ela era também superior à voz da criança, por sua musculação de adulto, sua técnica e expressividade. O castrato modelava assim essa trindade – homem, mulher, criança – para dela extrair uma personalidade assexuada e uma voz com freqüência julgada sublime e sensual pelas testemunhas da época [...]. (BARBIER, 1989, p. 23).

Em 1909 foi feita a dissecação do aparelho vocal de um castrato de vinte e oito anos

e observado que a saliência da tireóide era pouco visível, e a laringe como um todo

era impressionantemente pequena para um homem de 28 anos. O tamanho das

pregas vocais se assemelhava à de um soprano coloratura (feminino), medindo

exatamente 14 mm de comprimento. (PACHECO, 2006). Logo, pode-se constatar

50 Fonte: <http://www.fisicapaidegua.com/conteudo/conteudo.php?id_top=030303>. Acesso em 22/01/2012.

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56

que a sonoridade emitida por um castrato, possivelmente era muito distinta da

sonoridade emitida por um homem cuja estrutura laríngea tenha passado por todo o

processo natural da muda vocal, e por conseqüência, diferente também da

sonoridade emitida por uma mulher.

No caso da voz aguda nos homens não castrados, é fato que os contratenores têm

menor adução, maior fluxo aéreo na fase fechada das pregas vocais e menor

pressão aérea subglótica quando cantam no registro de falsete. O uso de pressões

mais baixas pode ser significativo para a técnica de canto dos contratenores. Em um

estudo sobre os mecanismos vocais utilizados por esses cantores, Cruz (2006)

aponta alguns caminhos acerca de quais seriam os possíveis ajustes laríngeos

utilizados pelos contratenores para obterem o seu registro vocal:

Algumas emissões em falsete masculino não mostram fenda glótica e a voz produzida é bem mais potente, aguda e forte, podendo haver mais atividade do músculo tireoaritenóideo lateral, além do cricotireóideo lateral e aritenóideo, definindo-se assim, o mecanismo utilizado pelos contratenores. (PINHO, 1998, 200151 apud CRUZ, 2006, p. 12).

No entanto, Zemlin (2000) comprova, através de dissecação, a não existência de

divisões no tireoaritenóide, o que contraria a teoria exposta por Cruz (2006) de

divisão do músculo tireoaritenóideo em tireoaritenóideo medial e tireoaritenóideo

lateral.

[...] nossas dissecações e as de Sonesson (1960) não conseguiram revelar qualquer ponto de referência anatômico, como a bainha fascial no interior do músculo tireoaritenóideo, que pudesse justificar ou corroborar a divisão em tirovocal [tireoaritenóideo medial] e tiromuscular [tireoaritenóideo lateral]. (ZEMLIN, 2000, p. 148).

51 PINHO, S. Avaliação e Tratamento da Voz. In: Fundamentos em Fonoaudiologia. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 1998, e Tópicos em Voz, Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 2001.

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57

FIGURA 18 – Corte frontal através da laringe, revelando que a prega vocal consiste de uma ....única massa muscular. No lado esquerdo, pode-se verificar a continuidade ....entre os músculos tireoaritenóideo e cricoaritenóideo lateral. Epiglote (E), ....lâmina tireóidea (T), cricóide (C), massa muscular tireoaritenóideo-....cricotireóidea (TAC), cricotireóideo (CT).52

O próximo sub-capítulo tratará de questões inerentes aos critérios de classificação

do contratenor, como a tessitura usual, as qualidades vocais, possíveis técnicas e

algumas comparações com os castrati.

52 Fonte: ZEMLIN, Willard R. Princípios da anatomia e fisiologia em fonoaudiologia. (2000).

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58

2.2.1 A CLASSIFICAÇÃO VOCAL NOS CONTRATENORES

Desconsiderando os castrati (pois como já visto anteriormente, os mesmos não

sofriam, ou pelo menos, sofriam efeitos mínimos da muda vocal), depois de um

período indiferenciado, anterior à puberdade, as vozes se distinguem em masculinas

e femininas, separadas aproximadamente por uma oitava. Assim, nas vozes

femininas como nas masculinas, há duas categorias básicas bem caracterizadas:

vozes agudas (sopranos e tenores), e vozes graves (contraltos e baixos), cuja

extensão é separada aproximadamente por um intervalo de quinta. Essas quatro

vozes são as bases da estrutura coral, que marcou sua presença séculos inteiros da

civilização musical ocidental e ainda se faz presente em nossos dias.

Na prática do canto solista, porém, encontram-se frequentemente vozes

intermediárias, conhecidas como mezzosopranos e barítonos, classificações

respectivamente feminina e masculina situadas em posição eqüidistantes dos limites

agudos e graves de seus registros. (MAGNANI, 1989). Ao pensarmos em

classificação vocal, basicamente três parâmetros permeiam tal raciocínio, pois os

mesmos devem intervir promovendo uma equilibrada compensação entre si para

auxiliar na definição do registro de cada voz: extensão, tessitura e timbre.

Diferenciando tais conceitos, a palavra extensão diz respeito à totalidade de notas

que um instrumento ou voz humana (aqui em questão) pode emitir, desde a mais

grave a mais aguda. De acordo com Magnani (1989, p. 211), a extensão “constitui o

elemento mais duvidoso da classificação inicial”, já que poucas vozes se

apresentam de início com uma extensão completa, pois a mesma deve ser

alcançada progressivamente através do estudo e consequentemente, da técnica.

A tessitura é a região em que a voz encontra a melhor sonoridade, a emissão mais

natural e, por conseqüência, a maior expressividade. Constitui, portanto o elemento

de definição mais seguro e apresenta geralmente desde o início uma relativa

estabilidade. (MAGNANI, 1989; DINVILLE, 1993).

Finalmente, o timbre é a característica específica de cada voz, individualmente

considerada, sendo geralmente espontâneo, mas passível de grande

desenvolvimento. A riqueza de matizes da “cor” faz o grande intérprete vocal, o qual

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59

dentro da sua cor individual deve saber encontrar, com o auxílio da técnica e do

estudo, todas as nuanças oportunas para valorizar a linha melódica que comenta um

texto ou caracteriza a situação psicológica de determinada personagem (se tratando

de papéis de ópera). A partir disso, Magnani (1989, p. 212) propõe as seguintes

extensões médias para as vozes solistas:

QUADRO 1 – Extensão aproximada das vozes e suas relações em hertz53 (Hz).

Soprano Dó3 (261,63 Hz) ao Dó5 (1046,5 Hz)

Mezzo-soprano Lá2 (220 Hz) ao Lá4 (880 Hz)

Contralto Fá2 (174,61 Hz) ao Fá4 (698,46 Hz)

Tenor Dó2 (130,81 Hz) ao Dó4 (523,25 Hz)

Barítono Lá1 (110 Hz) ao Lá3 (440 Hz)

Baixo Fá1 (87,307 Hz) ao Fá3 (349,23 Hz)

É evidente que a extensão, dentre os três princípios citados, é o parâmetro menos

indicado a predominância na classificação de uma voz. Pelo contrário, no canto é

aconselhável, sempre que possível, que evitem os extremos, pois a qualidade da

emissão tem de ser levada em conta, assim como o conforto do cantor ao emitir

determinadas notas em determinados registros. Todavia, a extrema sensibilidade e a

diversidade do aparelho vocal (assim como a complexidade do repertório), fazem

com que seja necessária uma especialização, que cria em cada registro

subcategorias bem definidas. Subclassificações essas que carecem de ser aqui

explicadas ao menos de forma sucinta, para facilitar uma maior compreensão acerca

dos processos que envolvem a classificação vocal do contratenor. Dentro de uma

razoável média das atuais escolas de canto, serão tais classificações a seguir

citadas e analisadas.

É interessante mencionar aqui que a escola de canto francesa classifica outros tipos

de voz, muito característicos em função da tessitura ou da personagem, atribuindo-

lhes o nome dos cantores que as possuíram de maneira marcante. Por exemplo:

53 As referências em Hz são um acréscimo nosso, partindo da sua relação com a afinação média atual do diapasão em Lá4 (440 Hz).

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60

fala-se em soprano Dugazoni para indicar um soprano de extensão curta e cor

escura, quase perto do mezzo-soprano, cujo papel típico poderia ser Charlotte, da

ópera Werther de J. Massenet, assim como se fala em barítono Martin para indicar

um barítono muito brilhante, agudo e leve, cujo papel principal poderia ser o próprio

Fígaro, no Barbeiro de Sevilha, de Rossini. Trata-se, porém, de subclassificações

muito especializadas, e de acordo com Magnani (1989, p. 212), “nem sempre têm

verdadeira relevância com relação ao repertório e, de qualquer maneira, não

possuem um interesse imediato para o bom ouvinte da música”. Logo, as

subclassificações apresentadas adiante irão se ater ao universo operístico de uma

forma mais ampla, buscando definições que, de certa forma, sejam universais dentro

da música de concerto ocidental.

Como já abordado anteriormente, os contratenores podem atuar utilizando os

registros modais de suas vozes. Isso implica que, a princípio, pode-se considerar

que um contratenor possui a tessitura normal masculina (tenor, barítono ou baixo)

acrescida da tessitura presente no registro de falsete, mais comumente conhecido

como “voz de cabeça”, muito utilizado por contraltos, mezzosopranos ou sopranos.

Logo fica claro aqui que, diferentemente de outros tipos vocais, o contratenor é uma

opção a ser desenvolvida, estando presente em alguns indivíduos que podem ou

não trabalhar o registro visando um maior desenvolvimento do mesmo.

Diante disto, alguns autores discordam sobre a possibilidade de absolutamente

todas as vozes masculinas terem a probabilidade de trabalhar os registros de falsete

da voz, adquirindo assim uma sonoridade típica de contratenor. Para Miller (1992),

os contratenores geralmente não são tenores, mas “na maior parte das vezes eles

são barítonos que tomaram a decisão de desenvolver o registro de falsete como

carro chefe em suas performances”. (MILLER, 1992, p. 13).

De acordo com estudo de Lindestad e Södersten (1988)54 apud Cruz (2006), as

extensões vocais de quatro contratenores foram divididas em voz modal e falsete,

como dispostas no quadro a seguir:

54 LINDESTAD, P-A.; SÖDERSTEN, M. Laryngeal and pharyngeal behavior in countertenor and baritone singing - a videofiberscopic study. J Voice 1988; 2:132-9.

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QUADRO 2 – Extensão vocal de quatro contratenores segundo estudo de Lindestad e ....Södersten (1988) citados por Cruz (2006).

Registro Vocal

Indivíduos

Voz Modal (de peito) Voz de Falsete

Contratenor 1 Sol1 (98 Hz) Mi3 (329,6 Hz) Fá2 (174,6 Hz) Sol4 (784 Hz);

Contratenor 2 Sol1 (98 Hz) Ré3 (293,7 Hz) Fá2 (174,6 Hz) Fá4 (698,5 Hz)

Contratenor 3 Fá#1 (92,5 Hz) Mi3 (329,6 Hz); Fá#2 (185 Hz) Fá4 (698,5)

Contratenor 4 Lá1 (110 Hz) Mi3 (329,6 Hz) Sol2 (196 Hz) Mi4 (659,3 Hz)

Em média, os contratenores citados neste estudo apresentaram uma extensão de

três (3) oitavas considerando a soma dos registros modal ao registro de falsete de

suas vozes. Ao fazer uma comparação, fica nítido que as extensões dos quatro

contratenores do estudo de Lindestad e Södersten (1988) apud Cruz (2006), são até

mais graves que as extensões dos barítonos do quadro proposto por Magnani

(1989), como é constatado nos quadros comparativos que serão apresentados a

seguir: É interessante destacar também que, os mesmos quatro contratenores

citados acima (Quadro2) têm uma quantidade menor de notas agudas na região

modal da voz se comparados à voz do barítono segundo Magnani (1989).

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QUADRO 3 – Quadro comparativo das extensões do barítono e de quatro contratenores

Extensão do barítono segundo

Magnani (1989)

Extensão dos contratenores no registro

modal (voz de peito) segundo

Lindestad e Södersten (1988)

Cantor Nota mais

grave

Nota mais

aguda Cantor

Nota mais

grave

Nota mais

aguda

Barítono Lá1

(110 Hz)

Lá3

(440 Hz)

Contratenor

1

Sol1

(98 Hz)

Mi3

(329,6 Hz)

Contratenor

2

Sol1

(98 Hz)

Ré3

(293,7 Hz)

Contratenor

3

Fá#1

(92,5 Hz)

Mi3

(329,6 Hz)

Contratenor 4 Lá1

(110 Hz)

Mi3

(329,6 Hz)

Em termos de extensão, é notável que os contratenores deste estudo estariam em

uma classificação de barítono, porém, com certa defasagem nos agudos inerentes a

voz deste. Poderiam ser então equiparados a voz de baixo, mas, no entanto, só o

contratenor 3 seria o que mais se aproximaria da nota mais grave desta voz, que

segundo Magnani (1989), seria aproximadamente o Fá1 (87,307 Hz), como é

constatado no quadro comparativo a seguir:

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QUADRO 4 – Comparação entre a extensão média do baixo e de quatro contratenores

Extensão do baixo segundo Magnani

(1989)

Extensão dos contratenores no registro

modal segundo

Lindestad e Södersten (1988)

Cantor Nota mais

grave

Nota mais

aguda Cantor

Nota mais

grave

Nota mais

aguda

Baixo Fá1

(87,307 Hz)

Fá3

(349,23 Hz)

Contratenor

1

Sol1

(98 Hz)

Mi3

(329,6 Hz)

Contratenor

2

Sol1

(98 Hz)

Ré3

(293,7 Hz)

Contratenor

3

Fá#1

(92,5 Hz)

Mi3

(329,6 Hz);

Contratenor

4

Lá1

(110 Hz)

Mi3

(329,6 Hz)

CRUZ, T., HANAYAMA, E. & GAMA, A. (2004) apresentaram um estudo com nove

contratenores de várias localidades do Brasil, com idade entre 18 e 45 anos, sem

queixa vocal, independentemente de conhecimento prévio da existência de

patologia. Todos os sujeitos tinham experiência acima de dois anos no canto,

inclusive em tessituras distintas àquelas comumente exercida pelos contratenores,

como mostrado no quadro a seguir:

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QUADRO 5 – Caracterização dos sujeitos segundo idade, experiência e naipe (registros já ...exercidos além do de contratenor).

Sujeito Idade Experiência

(anos)

Registros vocais já exercidos pelos

sujeitos além de contratenor

1 24 6 Tenor

2 20 8 Tenor, soprano e barítono

3 38 10 Baixo/barítono e tenor

4 34 12 Soprano e tenor

5 42 20 Tenor

6 45 18 Tenor e contralto

7 27 3 Tenor e contralto

8 22 7 Tenor e contralto

9 31 10 Contralto

Na mesma pesquisa, foram relatadas pelos próprios cantores as notas mais graves

e as mais agudas que conseguiam produzir na voz de contratenor com boa

qualidade de emissão vocal, ou seja, na tessitura dos mesmos. (CRUZ, T.,

HANAYAMA, E. & GAMA, A., 2004).

QUADRO 6 – Tessitura dos sujeitos55. (Adaptação do autor).

Sujeito Nota mais grave Nota mais aguda

1 Do3 (261,63 Hz) Sib4 (932,33 Hz)

2 Mi2 (164,81 Hz) Do5 (1046,5 Hz)

3 Fa2 (174,61 Hz) Fa4 (698,46 Hz)

4 Sol2 (196,00 Hz) Sol4 (783,99 Hz)

5 Sol2 (196,00 Hz) Sol4 (783,99 Hz)

6 Sol2 (196,00 Hz) Sol4 (783,99 Hz)

7 Mi2 (164,81 Hz) Mi4 (659,26 Hz)

8 Sol2 (196,00 Hz) Sib4 (932,33 Hz)

9 Re2 (146,83 Hz) Sib4 (932,33 Hz)

55 (CRUZ, T., HANAYAMA, E. & GAMA, A., 2004; CRUZ, 2006, p. 424).

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A relação do tom de fala do contratenor é motivo de freqüentes discussões e

dúvidas no meio musical, sendo levantadas questões como uma possível

proximidade de altura entre a fala e o canto do contratenor. A freqüência habitual de

fala masculina é em torno de 107 Hz a 130 Hz, e feminina, em torno dos 200 Hz a

220 Hz, variando de acordo com a idade e fatores culturais. (CRUZ; HANAYAMA &

GAMA, 2004; PINHO, 2001; ZEMLIN, 2000).

QUADRO 7 – Frequência habitual de fala dos contratenores56. (Adaptação do autor).

Sujeito Freqüência (Hertz) Nota musical correspondente

1 209 Sol#2

2 153 Ré#2

3 113 Lá1

4 146 Ré2

5 119 Lá#1

6 159 Ré#2

7 163 Mi2

8 138 Dó#2

9 173 Fá2

Comparando-se a tessitura dos sujeitos da pesquisa de CRUZ, T., HANAYAMA, E. &

GAMA, A., (2004) aos castrati, é notável certa semelhança no que diz respeito a

quantidade de notas emitidas (mas em regiões distintas), porém a qualidade de tais

notas provavelmente nunca poderá ser efetivamente comparada.

De acordo com Burney, o castrato Matteo Berselli, que estava ativo na década de 1720, podia ir do Dó3 [261,63 Hz] 57 ao Fá5 [1396,9 Hz] com a maior facilidade. Quantz descreveu a extensão do grande castrato Farinelli (1702-1782) como do Lá2 [220 Hz] ao Ré5 [1174,7 Hz] em 1726, adicionando algumas notas abaixo poucos anos depois. (SANFORD, 1979 apud PACHECO, 2006, p. 129).

56 (CRUZ, T., HANAYAMA, E. & GAMA, A., 2004; CRUZ, 2006, p. 425). 57 Os valores em Hz são grifo nosso, levando-se em conta a afinação atual do Lá 440 Hz. Provavelmente esses valores eram mais baixos, visto que a afinação no Barroco era mais grave que a atual.

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Entretanto, tais extensões mesmo para os castrati eram consideradas excepcionais,

porque na verdade, nos séculos XVII e XVIII, a norma era basicamente uma

extensão de duas oitavas. (PACHECO, 2006). Como já visto, existem casos de

extensões que ultrapassam quatro oitavas, mas, até hoje, estas não são

consideradas como parâmetros a ser seguido.

CRUZ, HANAYAMA, & GAMA (2004) sugerem duas classificações básicas para a

voz de contratenor, sendo contratenor agudo (soprano) e contratenor grave

(contralto):

A análise da extensão e tessitura vocal caracterizam claramente a existência de dois tipos de contratenores: o contratenor bassus e o contratenor altus, ou seja, grave e agudo respectivamente. Os contratenores agudos analisados apresentam extensão e tessitura vocal bem acima da média encontrada na literatura. (CRUZ, T., HANAYAMA, E. & GAMA, A., 2004; CRUZ, 2006, p. 427).

2.2.2 POSSÍVEIS PARTICULARIDADES DESSA VOZ

É claro que, não raras as vezes, são encontrados indivíduos adultos do sexo

masculino, que, por alguma anomalia, não tenham desenvolvido normalmente as

estruturas laríngeas, preservando assim, uma voz com poucos (ou quase nenhum)

resquício da muda vocal. Behlau & Pontes (1995) descrevem vários tipos de

distúrbios vocais, dentre eles, um denominado “voz infantilizada”, que pode aparecer

em ambos os sexos, e é geralmente de origem psicológica, por imaturidade ou muda

vocal incompleta. Não é descartada a ocorrência de casos orgânicos, embora raros.

Já nos rapazes, as disfonias da muda [vocal], também chamadas de puberfonias são mais freqüentes [que nas mulheres] e são raras as causas orgânicas, enquadrando-se os casos numa esfera psicoemocional. [... como] o falsete mutacional, disfonia de fundo psicoemocional, onde a voz em registro de falsete identifica o falante masculino como mulher ou pré-adolescente. (BEHLAU & PONTES, 1995, p. 48).

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É interessante observar que, um possível caso orgânico de muda vocal incompleta,

iria conferir ao indivíduo (adulto, do sexo masculino aqui em questão) um pitch58

mais alto do que o comum, possivelmente com qualidade vocais semelhantes à de

um adolescente, ou não obstante, a de uma mulher. No entanto, homens com tais

atributos vocais, seriam igualmente enquadrados na atual classificação de

contratenor, mesmo não tendo estes, possíveis outras opções de registro, como as

vozes tipicamente em registros masculinos, por exemplo.

Fato é que a voz de contratenor, com todas as suas particularidades, requer mais

estudos por parte dos profissionais da área do canto, para que seja possível

estabelecer uma classificação fisiologicamente condizente com a estrutura vocal do

indivíduo. Uma classificação vocal válida deve ter por princípio, as bases

anatômicas, morfológicas e acústicas, e a técnica seria a conseqüência de uma

pesquisa sistemática. É importante que, através de um trabalho bem adaptado, se

possa distribuir essas características classificatórias e técnicas harmoniosamente,

obtendo-se desta forma as qualidades do timbre natural do cantor. (DINVILLE,

1993). No caso do contratenor, existem alguns fatores complicadores que devem ser

conhecidos principalmente pelo professor de canto, já que esta voz, seja por opção

do cantor, ou por incidência fisiológica, carece de uma literatura atualizada.

O contratenor não faz parte do quadro de classificação vocal utilizado atualmente, pois é uma voz que caiu em desuso no repertório lírico pós-Barroco e desde então não se tem dado importância ao seu tipo vocal, exceto para execuções musicais da Idade Média e Renascença. (CRUZ, T., HANAYAMA, E. & GAMA, A., 2004, p. 424).

Para todo, prevalece os parâmetros de classificação vocal como extensão, tessitura

e timbre, bem como o conforto e naturalidade de emissão fonatória dentro do

repertório o qual o cantor se propõe a executar. Como é mostrado na literatura,

ainda prevalecem as classificações de contralto (para os contratenores mais graves)

e soprano (para os mais agudos), não havendo ainda estudos que proponham

possíveis sub-classificações para estas duas classificações básicas.

58 Representa a freqüência fundamental percebida de um som.

Page 35: AS SEIS CANÇÕES TROVADORESCAS DE FRUCTUOSO … · 35 2 FISIOLOGIA DA VOZ Este segundo capítulo tratará da fisiologia típica de um homem não castrado que cante nos registros

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Concluindo, Dinville (1993) tece comentários de extrema significância, não só aos

contratenores, mas a todos os professores e alunos da arte do canto:

É importante saber que a classificação da voz falada se processa como a da voz cantada. É o mesmo instrumento, a mesma constituição anatômica, a mesma função fisiológica. Deve haver concordância entre as duas vozes, tanto para o timbre como para o modo de emissão. Caso contrário, ou o cantor está mal classificado, ou ele modifica a altura tonal da voz falada [...]. De qualquer modo, é prejudicial para um cantor, falar ou cantar com uma voz que não corresponda a sua constituição anatômica. (DINVILLE, 1993, p. 13 e 14).