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1 AS TRANSFORMAÇÕES TÉCNICAS E O IMPACTO AMBIENTAL PROVOCADO PELA CERÂMICA ESTRUTURAL NO BRASIL E EM PORTUGAL 1 Roberto MASSEI 2 Resumo: Esta comunicação visa apresentar os resultados preliminares de uma pesquisa realizada no Brasil e em Portugal sobre cerâmica estrutural. Procurar-se-á fazer uma análise comparativa destacando o impacto ambiental que a extração do barro e sua transformação em artefato provocou nos dois países. Em documentos analisados da Comissão Europeia, do governo português, de entidades empresariais e entrevistas de pessoas ligadas à atividade observei que há uma preocupação com novas técnicas para aumentar a extração, melhorar a matéria-prima, a construção de fornos que potencializem o calor e o uso da energia e reduzam custos. A escassez de recursos naturais e a proposição de modos de construção que utilizem saberes e outros recursos que não agridam o ambiente não aparecem nos documentos daqueles órgãos. Cabe problematizar o modo como tanto a Comissão Europeia quanto os governos português e brasileiro têm procurado solucionar o impacto que a extração produziu, produz e continuará produzindo. Este trabalho norteia-se pela preocupação de se construir uma História Ambiental ressaltando o papel da natureza na vida humana e das transformações impostas pelo homem por meio de suas técnicas e tecnologias e se referencia metodologicamente na História Oral. Palavras-chave: Cerâmica Estrutural; Impacto Ambiental; Argila; Portugal; Brasil. INTRODUÇÃO A cerâmica estrutural, no Brasil também denominada vermelha, desenvolveu-se de modo significativo na Europa ocidental desde a segunda metade do século passado. Em Portugal, nas últimas décadas, embora tenha se modernizado em função das exigências do mercado e de sua inserção na Comunidade Europeia, ela consolidou a "modernização" e automatizou o processo produtivo. Apesar disso, continua se deparando com dois problemas, que governos e autoridades europeus procuram solucionar e encontrar caminhos que tornem a atividade viável econômica e ambientalmente e atendam aos padrões do mercado: extração de matéria-prima e obtenção de energia. Para o contexto europeu, cerâmica estrutural diz respeito às atividades industriais que abrangem os vários sub-setores da indústria cerâmica que "[...] integram um amplo leque de matérias-primas e de técnicas de fabrico que envolvem a selecção de argilas e de outros materiais, sobretudo inorgânicos, que são sujeitos a transformação, secagem e cozedura." (COMISSÃO EUROPEIA, 2006: 15) O processo de produção da cerâmica estrutural em Portugal, portanto, leva em consideração, como no Brasil, a seleção, a preparação de argilas e 1 Este texto é resultado, ainda preliminar, de pesquisa desenvolvida no estágio de pós-doutoramento no PPGICH/CCHF/UFSC, com supervisão do professor doutor Marcos Montysuma, entre março de 2015 e fevereiro de 2016. 2 Professor Adjunto. Colegiado do Curso de História/Centro de Ciências Humanas e da Educação/Universidade Estadual do Norte do Paraná/Campus Jacarezinho, Brasil. Email: [email protected]

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AS TRANSFORMAÇÕES TÉCNICAS E O IMPACTO AMBIENTAL PROVOCADO

PELA CERÂMICA ESTRUTURAL NO BRASIL E EM PORTUGAL1

Roberto MASSEI2

Resumo: Esta comunicação visa apresentar os resultados preliminares de uma pesquisa realizada no

Brasil e em Portugal sobre cerâmica estrutural. Procurar-se-á fazer uma análise comparativa

destacando o impacto ambiental que a extração do barro e sua transformação em artefato provocou nos

dois países. Em documentos analisados da Comissão Europeia, do governo português, de entidades

empresariais e entrevistas de pessoas ligadas à atividade observei que há uma preocupação com novas

técnicas para aumentar a extração, melhorar a matéria-prima, a construção de fornos que

potencializem o calor e o uso da energia e reduzam custos. A escassez de recursos naturais e a

proposição de modos de construção que utilizem saberes e outros recursos que não agridam o

ambiente não aparecem nos documentos daqueles órgãos. Cabe problematizar o modo como tanto a

Comissão Europeia quanto os governos português e brasileiro têm procurado solucionar o impacto que

a extração produziu, produz e continuará produzindo. Este trabalho norteia-se pela preocupação de se

construir uma História Ambiental ressaltando o papel da natureza na vida humana e das

transformações impostas pelo homem por meio de suas técnicas e tecnologias e se referencia

metodologicamente na História Oral.

Palavras-chave: Cerâmica Estrutural; Impacto Ambiental; Argila; Portugal; Brasil.

INTRODUÇÃO

A cerâmica estrutural, no Brasil também denominada vermelha, desenvolveu-se de

modo significativo na Europa ocidental desde a segunda metade do século passado. Em

Portugal, nas últimas décadas, embora tenha se modernizado em função das exigências do

mercado e de sua inserção na Comunidade Europeia, ela consolidou a "modernização" e

automatizou o processo produtivo. Apesar disso, continua se deparando com dois problemas,

que governos e autoridades europeus procuram solucionar e encontrar caminhos que tornem a

atividade viável econômica e ambientalmente e atendam aos padrões do mercado: extração de

matéria-prima e obtenção de energia.

Para o contexto europeu, cerâmica estrutural diz respeito às atividades industriais que

abrangem os vários sub-setores da indústria cerâmica que "[...] integram um amplo leque de

matérias-primas e de técnicas de fabrico que envolvem a selecção de argilas e de outros

materiais, sobretudo inorgânicos, que são sujeitos a transformação, secagem e cozedura."

(COMISSÃO EUROPEIA, 2006: 15) O processo de produção da cerâmica estrutural em

Portugal, portanto, leva em consideração, como no Brasil, a seleção, a preparação de argilas e

1 Este texto é resultado, ainda preliminar, de pesquisa desenvolvida no estágio de pós-doutoramento no

PPGICH/CCHF/UFSC, com supervisão do professor doutor Marcos Montysuma, entre março de 2015 e

fevereiro de 2016. 2 Professor Adjunto. Colegiado do Curso de História/Centro de Ciências Humanas e da Educação/Universidade

Estadual do Norte do Paraná/Campus Jacarezinho, Brasil. Email: [email protected]

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eventualmente outros minerais inorgânicos, a moldagem do material, geralmente feito a partir

de matérias-primas em estado plástico ou sob a forma de pasta, a secagem do material

moldado e eventual vidragem e cozedura (queima).

A cerâmica estrutural nos países que faziam parte da comunidade, por volta de 2006,

se constituía em setor importante da economia nos países-membros da comunidade europeia.

Gerava um significativo número de empregos e sua receita se expressava em vários bilhões de

euros. O número de fábricas era bastante significativo: Itália, 238 unidades; Alemanha, 183,

Portugal, 150 (terceiro maior produtor); França, 136; e Reino Unido, 134. Em outros países, o

número de fábricas era inferior a 70. Esses eram os casos dos Países Baixos, 58; Bélgica, 40;

Áustria, 30; Suíça, 27; e Dinamarca, 26. A Finlândia e a Noruega não produziriam esse tipo

de material. (COMISSÃO EUROPEIA, 2006: 21)

É preciso problematizar o sentido de sustentabilidade que os vários países, Brasil

incluído, têm procurado justificar a exploração dos recursos naturais. A argila, ora em

questão, é um mineral não-metálico finito e sem perspectivas de recuperação. Está presente no

solo, em barrancos e nas várzeas dos rios. Por ser aparentemente de fácil obtenção e quase

"onipresente", é considerado inesgotável. No entanto, a formação da argila é um processo

longo e depende das condições do meio natural. Uma vez extraída e utilizada, não há como

repor ou elaborá-la artificialmente. A energia, por sua vez, pode ser obtida de forma limpa (?)

ou renovável, porém não sem degradação ao ambiente e seus ecossistemas.

Uma observação para terminar essas observações iniciais. Este texto norteia-se pela

preocupação que se deve ter ao se construir uma História Ambiental destacando o papel da

natureza na vida humana e das transformações impostas pelo homem através de suas técnicas

e tecnologias.

CERÂMICA ESTRUTURAL EM PORTUGAL E NO BRASIL: APROXIMAÇÕES

A produção cerâmica é uma atividade que envolve extração, preparação da argila, sua

transformação e, por fim, cozimento ou queima, como é conhecida no Brasil. Portanto, é uma

atividade econômica com alto potencial de impacto para o ambiente: da extração da matéria-

prima, barro vermelho e caulim ou barro branco, à emissão dos mais diversos tipos de

poluentes na atmosfera e aos rios próximos aos barreiros e às fábricas. É um ramo cujo

processo produtivo exige controle – da extração da matéria-prima à venda de tijolos e telhas.

Argila e energia resultam da exploração de recursos naturais esgotáveis e irrecuperáveis.

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Portugal é considerado um país cujo território é rico em matérias-primas para

cerâmica. Elas podem ser encontradas

[...] com mais incidência na zona litoral do país (distritos de Aveiros, Coimbra, Leiria e Lisboa).

No território nacional existem diversas unidades litostratigráficas produtivas de argilas, nas quais

existem várias explorações a céu aberto, destacando-se as existentes na zona de Aveiro, Tomar,

Pontão-Avelar, e na faixa entre Leirias e Torres Vedras. [...] (PORTUGAL SOU EU, 2014: 6)

A produção portuguesa de argilas, comuns e especiais, diminuiu em 2012 de acordo a DGEG

– Direção-Geral de Energia e Geologia. (PORTUGAL SOU EU, 2014: 6)

Os documentos analisados não têm como preocupação a extração de matérias-primas,

pois esta é considerada atividade primária. A argila para a cerâmica estrutural é de domínio

privado; ao passo que o caulim é de domínio público. Os estudos técnicos analisados

destacam esses dois momentos da produção, sobretudo. Em nenhum momento aparece uma

preocupação com a escassez ou possível escassez desse tipo de matéria-prima bem como com

fontes de energia para a queima. Há uma preocupação com o desenvolvimento de técnicas de

extração, preparação e cozedura que visem melhorar a qualidade do produto. Portanto, uma

submissão ao mercado consumidor.

Nesse sentido, a Comissão Europeia e a APICER (Associação Portuguesa da Indústria

Cerâmica e do Vidro) ressaltam a necessidade de a argila, a matéria-prima básica da cerâmica

estrutural, estar preparada ao chegar à planta industrial. Isso pouparia tempo e energia, isto é,

reduziria custos. Isso ajudaria a diminuir a quantidade necessária de matéria-prima,

potencializando os estoques. É o mercado, em última análise, que determina a conduta de

empresa e dos governos. Para que telhas e tijolos mantenham ou melhorem suas

características físicas, químicas e tecnológicas, é fundamental "que as matérias-primas

extraídas sejam sujeitas a processo de beneficiação e tratamento, de forma a manterem as suas

características num estreito intervalo de variação exigido pelo mercado consumidor."

((PORTUGAL SOU EU, 2014: 8)

Embora seja uma atividade industrial bastante antiga, e ter se mecanizado e

automatizado em vários países, ainda há trabalho manual em parte da produção de tijolo. Seu

uso é restrito à confecção de um tipo de tijolo, normalmente empregado em algumas

construções. Trata-se do tijolo de face-à-vista, no Brasil conhecido como tijolo à vista, ou

maciço, que é usado na fachada das casas e na construção de áreas de lazer, churrasqueiras

etc. Em Portugal esse tijolo recebe a designação de "burro" e em muitos casos tem sido

adquirido de empresas cerâmicas espanholas. A moldagem é manual e realizada por um

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trabalhador. Há trabalho manual, pelo que se deduz da leitura dos documentos e visitas feitas

a uma cerâmica e uma empresa de processamento de caulim. Os fornos estão automatizados,

já que não há relato da existência de fornos abóbadas. No entanto, ao sul de Portugal, na

região de Tavira, há casos de cerâmicas que ainda preservam todo o processo manual. Com

relação às demais etapas, os procedimentos estão mecanizados e em várias plantas o processo

é todo automatizado, já que o equipamento mais usado para cozedura é o forno túnel.

Ou seja, em Portugal, em meados da década de 1990, conforme relatam Susana

Corvelo e outros, existem "fábricas com uma componente manual acentuada e com processos

artesanais de fabrico", principalmente "nas fases de conformação, enchimento e decoração

com fraco grau de automatização". Nessa fase da produção, há "mais mão-de-obra

comparativamente a outras áreas da fábrica". (2002: 7) A tendência, porém, concluem os

autores, é a progressiva automatização do processo produtivo de tal maneira a eliminar o uso

de mão de obra, que aumenta o custo e diminui a qualidade, já que nos casos em que ela é

importante não é possível padronizar a confecção do artefato cerâmico.

Como nas cerâmicas brasileiras, e nas localizadas no Paraná particularmente, também

em meados da década de 1990, o trabalho manual continuou existindo e irria conviver com a

produção mecanizada. Em Portugal, a automatização do processo produtivo consolidava-se.

Seguindo a análise do mesmo estudo, entre 1990 e 1993 consumo e produção mantiveram-se

praticamente inalterados, o que significa estagnação econômica. Isso se refletiu também na

quantidade de empresas e de trabalhadores. Três anos depois, o número de empresas chegava

a quase 200 e o de trabalhadores ultrapassava 6200. Nas palavras da referida autora, as cerca

de 196 empresas produtoras de tijolos empregavam 6236 funcionários e representavam 23%

do setor cerâmico e 20% do emprego. (Dados do MTS – Quadro de Pessoal, 1996. Apud

CORVELO, 2002: 13)

Com relação à organização das empresas, Corvelo e outros destacam que no início dos

anos 1990 elas eram, em sua maioria, pequenas e médias. Em 1984 eram 500 cerâmicas; dez

anos depois, 610. Em muitos casos, ainda eram familiares e empregavam 99% da mão de obra

no setor. Depois, ao longo dos anos seguintes, ocorreu uma concentração e as pequenas e

médias empresas foram cedendo lugar para as grandes e pertencentes a multinacionais.

Houve, portanto, uma centralização de capital. Nos últimos anos, algumas cerâmicas

permaneceram como empresas familiares; outras, foram adquiridas por grupos de capital

internacional, especialmente espanhol.

A atividade se transformou bastante da metade da década 1990 até o início desta –

2011. As exigências para a produção, subordinando-se à lógica capitalista e ao mercado,

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padronizaram-se quanto às tecnologias empregadas na extração, na produção e na cozedura,

estágio final que utiliza mais energia. Para isso, desde meados do século XX vêm sendo

utilizados fornos de vários tipos, todos com um objetivo: diminuir o uso do calor e

potencializar o combustível – óleo, gás natural ou biomassa. Algumas condicionantes

tornaram a produção mais onerosa. Segundo a lógica do mercado, é preciso racionalizar

despesas e aumentar a margem de lucro.

Tanto no Brasil quanto em Portugal a cerâmica estrutural era uma atividade

"tradicional" e familiar. No Brasil isso é mais visível. Nos dois países houve, contudo, um

processo de concentração da produção em algumas empresas detentoras de grande capital e,

portanto, com capacidade de investir em e incorporar novos tipos de matérias-primas,

tecnologias e equipamentos para maximizar a extração de matéria-prima, melhorar sua

qualidade e potencializar a energia utilizada para a queima do barro. Em outras palavras,

concentração de capital e subordinação ao mercado, que impôs regras draconianas em todo o

processo de produção. No Brasil, isso também vem ocorrendo desde os anos 1990.

Existe uma preocupação com o ecossistema aquático. Mais uma vez, porém, Comissão

Europeia, governo português e empresários sub-dimensionam o impacto provocado ao

ambiente pela atividade cerâmica. Tais emissões ocorrem sobretudo durante a fabricação dos

produtos cerâmicos. As águas residuais contêm componentes minerais e suas partículas são

insolúveis, o que vai acarretar algum dano aos rios próximos das fábricas. As águas podem

conter matérias inorgânicas, eventualmente matérias orgânicas e metais pesados tóxicos para

humanos. A água utilizada e reutilizada no processo de arrefecimento, por exemplo, pode

conter algum tipo de material poluente ou tóxico para animais ou humanos. (COMISSÃO

EUROPEIA, 2006: 19)

Finalmente, chama a atenção o destaque que é dado pelas autoridades europeias ao uso

de energia. Vários estudos, diretivas e propostas foram feitos nas últimas décadas para tornar

o uso da energia na indústria cerâmica – estrutural incluída – mais racional e diminuir a

dependência dos combustíveis fósseis. O objetivo é claro: tornar a cerâmica estrutural

competitiva, produzindo material com qualidade a custo ínfimo. Na indústria cerâmica e

especialmente no "fabrico de tijolos, a percentagem correspondente a custos energéticos varia

entre 17 e 25%, atingindo, no máximo, 30%." (COMISSÃO EUROPEIA, 2006: 20) Em

síntese, a energia é um item caro na produção e é preciso racionalizar seu uso para maximizar

o lucro e viabilizar o acúmulo de capital.

Na Europa e em Portugal há uma ênfase no desenvolvimento de tecnologias para a

cozedura: fornos que potencializem o uso do calor e economizem energia. (CORVELO, 2002:

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7) Aparentemente, a preocupação é com o ambiente, pois a queima produz poluentes tóxicos.

No entanto, subjaz uma outra: quanto melhor for o aproveitamento do combustível tanto

menor será o custo da produção. Portanto, maior será o lucro. Essa é á lógica que preside o

processo de produção da cerâmica estrutural na Europa, no Brasil e certamente em todas as

outras regiões do mundo onde ela está presente: a do mercado.

METODOLOGIA

Neste trabalho, foram utilizadas fontes escritas e orais. A História Oral, aqui, é

importante e respalda a elaboração de entrevistas e coleta de depoimentos de pessoas

envolvidas inicialmente na atividade cerâmica e em outras atividades que produzem impacto

no ambiente em que elas vivem. Elas permeam a análise, embora não tenham sido citadas

mais longamente por falta de espaço.

As escritas são importantes para o desenvolvimento de qualquer pesquisa. No entanto,

segundo Joan Garrido, “o uso das fontes orais nos permite um aprofundamento da história de

grupos sociais que, por razões diversas, estiveram marginalizados ou quase ausentes das

fontes documentais escritas [...].” (Set. 92/Ago. 93: 93; 43) As entrevistas e os depoimentos

são modos privilegiados para se obter informações de populações que não se expressaram –

ou não conseguiram fazê-lo – por meio de documentos escritos. (MONTENEGRO, 1993: 10)

A História Oral tem um caráter inovador por pelo menos dois motivos. O primeiro são

seus objetos, já que atribui atenção particular aos dominados, àqueles considerados excluídos

da história. Preocupar-se-ia, enfim, com o cotidiano e a vida privada, essenciais para o estudo

da Cultura Material. Em segundo lugar, ela é

inovadora por suas abordagens, que dão preferência a uma ‘história vista de

baixo’, atenta às maneiras de ver e de sentir, e que às estruturas ‘objetivas’ e

às determinações coletivas prefere as visões subjetivas e os percursos

individuais, numa perspectiva decididamente ‘micro-histórica’. (AMADO;

FERREIRA, 1996: 4)

O historiador deve fazer a crítica das fontes documentais. (LE ROY LADURIE, 1997,

p. 12) Nenhum documento é neutro, confiável em absoluto. Os depoimentos e as evidências

orais, como qualquer outra fonte, precisam ser analisados e interpretados historicamente. As

fontes orais devem ser articuladas às outras fontes documentais “tradicionais” do trabalho

historiográfico. Logo, não se pode limitar a um único método e a uma técnica, mas

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complementá-las e torná-las mais complexas e ricas. O historiador deve, enfim, explicitar sua

perspectiva teórico-metodológica da análise histórica e estar aberto ao contato e ao diálogo

com outras disciplinas. (AMADO; FERREIRA, 1996: 22)

Os depoimentos são fontes muito importantes, que, combinadas com documentos

escritos, permitem compor uma [História da] Cultura Material. A fonte oral possibilita

recuperar e dimensionar a experiência de homens e mulheres. Ela permite entrar pelo

cotidiano e pela vida privada, o que os documentos escritos não conseguem, nem têm

interesse em fazer, pois às vezes ficam restritos aos relatos oficiais. Elas são indispensáveis

para se [re]constituir a cultura material e construir uma História Ambiental.

A experiência, para Edward Thompson, é construída no espaço da vida cotidiana,

como uma resposta mental e emocional, de um indivíduo ou grupo social, a acontecimentos

inter-relacionados. Cultura, para Raymond Williams, pode ser entendida como modos de

viver e difere, portanto, de cultura erudita, que pode universalizar o pensamento e ocultar as

diferenças. A experiência permite compreender que a cultura é produto de relações sociais,

sempre conflituosas e tensas. Historicamente, existem culturas. Elas estão presentes na forma

como as pessoas se relacionam entre elas mesmas, com a natureza e com tudo o que

constroem ao longo do tempo. Experiência é um conceito fundamental para o estudo e a

compreensão da cultura material. Por meio dela, o homem transforma o ambiente e constrói

sua vida material e imaterial. (THOMPSON, 1998: 13-24; WILLIAMS, 1976: 17-26; 2007:

171-175).

No que diz respeito à documentação escrita procurou se fazer uma análise que

privilegiou a interpretação, isto é, dissecou-se o texto em suas várias formas. O texto

representa uma visão de mundo de quem o elaborou. Uma fonte documental é indispensável.

Entretanto, é preciso cuidado com as informações nela contidas. (GARRIDO, set. 92/ago. 93:

36; MONTENEGRO, 1993: 10; CARDOSO; VAINFAS, 1997: 375-399; ARÓSTEGUI,

2006: 419-458) A representação, ela mesma, não prescinde de um mundo material. Logo, é

preciso lembrar que representar pressupõe um certo nível de materialidade, sem reduzi-la,

todavia, a um elemento meramente econômico. A representação é uma construção social e,

por conseguinte, histórica. O documento escrito e a fonte oral possibilitaram reconstituir todo

o processo de transformação do barro e a construção do mundo material e imaterial de

mulheres e homens vinculados à cerâmica estrutrual – vermelha – no tanto no Brasil quanto

como Portugal.

RESULTADOS: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES GERAIS

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O processo de produção da cerâmica estrutural – a extração da matéria-prima,

preparação, moldagem, secagem e cozedura –, precisa ser estudado, analisado,

problematizado e entendido historicamente. Com relação à extração de argila, esta talvez

demande maior atenção pois produz um grande impacto ambiental e altera a paisagem e todo

o ecossistema, sobretudo das áreas adjacentes aos rios. No Brasil, essa ação é fiscalizada pelos

órgãos governamentais, mas não se evita a degradação do ambiente. No Paraná, o IAP –

Instituto Ambiental do Paraná – concentra a fiscalização relacionada ao impacto que toda

atividade mineral provoca no solo e nos rios. Há muitas falhas do poder público e é possível

observar vastas áreas com cavas, lagoas, erosão e paisagens devastadas.

Tal questão é tratada de modo secundário nos "estudos" sobre cerâmica estrutural na

Europa por mim consultados. Comissão Europeia, governos português e brasileiro e

empresários propõem extrair e transformar o barro em artefato cerâmico, pois a lógica que

tem determinado os investimentos em tecnologias visa ao mercado consumidor e, portanto,

está subordinada à acumulação de riqueza e à formação de capital.

No Brasil, ao longo do século XX, as cerâmicas foram as responsáveis pela exploração

das jazidas. Por várias décadas oleiros e ceramistas retiraram barro das várzeas e provocaram

danos enormes às margens dos rios próximos às fábricas. É visível a quantidade de cavas ao

longo da margem do rio Paranapanema, por exemplo, na extensão que divide os municípios

de Ourinhos, em São Paulo, e Jacarezinho, no Paraná. Até 1950, a retirada era feita

manualmente, por meio de pás, e transportadas em carroças ou carroções. O impacto precisa

ser visto temporalmente: foram várias décadas de exploração desse recurso natural. Do modo

manual, menos agressivo, ao mecânico, cuja agressividade é muito mais acentuada e

provocou danos irreversíveis ao solo, aos rios e, sem dúvida, mudou radicalmente a paisagem.

Com o processo de mecanização, que se acentuou daquele ano em diante, a extração

passou a ser feita com máquinas retroescavadeiras ou pás carregadeiras hidráulicas,

dependendo da origem da argila, e o material transportado in natura por caminhões e depois

carretas para o depósito, onde permanecia por algum tempo a fim de eliminar as impurezas,

especialmente sua acidez, e ser usada na confecção de telhas e tijolos. Foram milhares de

metros cúbicos extraídos durante esse período, o que devastou as várzeas de alguns rios e

transformou radicalmente a paisagem em toda a região. Gerou-se um enorme passivo

ambiental.

Em Portugal, observa-se que essa extração é feita por empresas "especializadas" nesse

tipo de atividade, sobretudo do caulim. No caso da argila branca ela é vendida já tratada em

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muitos casos para as cerâmicas onde o barro será preparado e misturado a outros componentes

para depois ser extrudado e dar forma a vasos sanitários, cerâmica de revestimento, louças e

faiança.

De outro lado, foi possível estabelecer inicialmente alguns parâmetros para

compreender as peculiaridades da cerâmica vermelha no Brasil. A produção cerâmica

portuguesa se assemelha em algumas de suas fases à cerâmica vermelha no Brasil; a queima

em ambos os países é operada de modo semelhante: alguns procedimentos e tecnologias são

comuns. Os combustíveis, porém, são diferentes. Gás em Portugal, na maioria das fábricas; e

lenha ou cavaco (serragem) nos últimos anos.

Na década de 1990, a cerâmica entrou em declínio no Brasil e um número expressivo

de olarias e cerâmicas fechou. Seja como for, algumas cidades, conhecidas pela grande

produção de telhas e tijolos, tiveram seu parque ceramista reduzido. Muitos proprietários

alegaram que encontraram dificuldades para obter matéria-prima e combustível. Em meados

da década de 1980 ocorreu a definição da política ambiental brasileira, que passou a exigir

estudos de viabilidade econômica para atividades que promovem a extração de mineral,

metálico ou não. A legislação ambiental obrigou oleiros e ceramistas a seguirem as exigências

estabelecidas pela lei. Despreparados, passaram a ter dificuldade para obter e extrair barro.

Durante décadas, retiraram argila das várzeas dos rios sem licença, sem controle, e não

precisaram remunerar o que retiravam. Ao mesmo tempo, isso passou a valer para o

combustível, especialmente a lenha. Houve também outras condicionantes impostas pelo

mercado, como a concentração de capital e o investimento de empresas multinacionais.

Em Portugal houve um aumento da produção entre meados dos anos 1980 e 1990. Na

década seguinte, de certa forma, ela entrou em declínio até culminar com as transformações

que seriam impostas pela formatação da indústria como um todo que vai promover a

constituição da comunidade europeia, processo que se acentuou na primeira década do século

XXI. Nos anos seguintes, observam-se ações – do Estado, dos empresários e mesmo da

Comissão Europeia – que visam à modernização e automatização da produção. As indústrias

precisaram desenvolver padrões de qualidade em seus produtos, assim como adotar

procedimentos que respeitassem o ambiente. Precisaram adaptar-se à legislação ambiental e

às exigências do mercado consumidor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Ao longo da pesquisa foi possível perceber algumas semelhanças entre a atividade

cerâmica estrutural em Portugal e no Brasil e entender historicamente como ambos os países

utilizaram – e utilizam – um recurso mineral não-metálico ao longo da segunda metade do

século XX. Foi possível compreender, também, como se deu e ainda se dá a relação homem e

natureza, elemento fundamental para a História Ambiental.

A História Ambiental perpassa todo o processo de apropriação/reapropriação,

significação/ressignificação e transformação da natureza que resultou na constituição de toda

a vida material. Portanto, uma história que tenha como objeto o ambiente deve destacar que

ele surge da transformação do mundo natural, através da técnica, e a constituição dos artefatos

que circundam e permeam as relações humanas. Em suma, de toda a cultura material.

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