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AS TRANSFORMAÇÕES TÉCNICAS E O IMPACTO AMBIENTAL PROVOCADO
PELA CERÂMICA ESTRUTURAL NO BRASIL E EM PORTUGAL1
Roberto MASSEI2
Resumo: Esta comunicação visa apresentar os resultados preliminares de uma pesquisa realizada no
Brasil e em Portugal sobre cerâmica estrutural. Procurar-se-á fazer uma análise comparativa
destacando o impacto ambiental que a extração do barro e sua transformação em artefato provocou nos
dois países. Em documentos analisados da Comissão Europeia, do governo português, de entidades
empresariais e entrevistas de pessoas ligadas à atividade observei que há uma preocupação com novas
técnicas para aumentar a extração, melhorar a matéria-prima, a construção de fornos que
potencializem o calor e o uso da energia e reduzam custos. A escassez de recursos naturais e a
proposição de modos de construção que utilizem saberes e outros recursos que não agridam o
ambiente não aparecem nos documentos daqueles órgãos. Cabe problematizar o modo como tanto a
Comissão Europeia quanto os governos português e brasileiro têm procurado solucionar o impacto que
a extração produziu, produz e continuará produzindo. Este trabalho norteia-se pela preocupação de se
construir uma História Ambiental ressaltando o papel da natureza na vida humana e das
transformações impostas pelo homem por meio de suas técnicas e tecnologias e se referencia
metodologicamente na História Oral.
Palavras-chave: Cerâmica Estrutural; Impacto Ambiental; Argila; Portugal; Brasil.
INTRODUÇÃO
A cerâmica estrutural, no Brasil também denominada vermelha, desenvolveu-se de
modo significativo na Europa ocidental desde a segunda metade do século passado. Em
Portugal, nas últimas décadas, embora tenha se modernizado em função das exigências do
mercado e de sua inserção na Comunidade Europeia, ela consolidou a "modernização" e
automatizou o processo produtivo. Apesar disso, continua se deparando com dois problemas,
que governos e autoridades europeus procuram solucionar e encontrar caminhos que tornem a
atividade viável econômica e ambientalmente e atendam aos padrões do mercado: extração de
matéria-prima e obtenção de energia.
Para o contexto europeu, cerâmica estrutural diz respeito às atividades industriais que
abrangem os vários sub-setores da indústria cerâmica que "[...] integram um amplo leque de
matérias-primas e de técnicas de fabrico que envolvem a selecção de argilas e de outros
materiais, sobretudo inorgânicos, que são sujeitos a transformação, secagem e cozedura."
(COMISSÃO EUROPEIA, 2006: 15) O processo de produção da cerâmica estrutural em
Portugal, portanto, leva em consideração, como no Brasil, a seleção, a preparação de argilas e
1 Este texto é resultado, ainda preliminar, de pesquisa desenvolvida no estágio de pós-doutoramento no
PPGICH/CCHF/UFSC, com supervisão do professor doutor Marcos Montysuma, entre março de 2015 e
fevereiro de 2016. 2 Professor Adjunto. Colegiado do Curso de História/Centro de Ciências Humanas e da Educação/Universidade
Estadual do Norte do Paraná/Campus Jacarezinho, Brasil. Email: [email protected]
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eventualmente outros minerais inorgânicos, a moldagem do material, geralmente feito a partir
de matérias-primas em estado plástico ou sob a forma de pasta, a secagem do material
moldado e eventual vidragem e cozedura (queima).
A cerâmica estrutural nos países que faziam parte da comunidade, por volta de 2006,
se constituía em setor importante da economia nos países-membros da comunidade europeia.
Gerava um significativo número de empregos e sua receita se expressava em vários bilhões de
euros. O número de fábricas era bastante significativo: Itália, 238 unidades; Alemanha, 183,
Portugal, 150 (terceiro maior produtor); França, 136; e Reino Unido, 134. Em outros países, o
número de fábricas era inferior a 70. Esses eram os casos dos Países Baixos, 58; Bélgica, 40;
Áustria, 30; Suíça, 27; e Dinamarca, 26. A Finlândia e a Noruega não produziriam esse tipo
de material. (COMISSÃO EUROPEIA, 2006: 21)
É preciso problematizar o sentido de sustentabilidade que os vários países, Brasil
incluído, têm procurado justificar a exploração dos recursos naturais. A argila, ora em
questão, é um mineral não-metálico finito e sem perspectivas de recuperação. Está presente no
solo, em barrancos e nas várzeas dos rios. Por ser aparentemente de fácil obtenção e quase
"onipresente", é considerado inesgotável. No entanto, a formação da argila é um processo
longo e depende das condições do meio natural. Uma vez extraída e utilizada, não há como
repor ou elaborá-la artificialmente. A energia, por sua vez, pode ser obtida de forma limpa (?)
ou renovável, porém não sem degradação ao ambiente e seus ecossistemas.
Uma observação para terminar essas observações iniciais. Este texto norteia-se pela
preocupação que se deve ter ao se construir uma História Ambiental destacando o papel da
natureza na vida humana e das transformações impostas pelo homem através de suas técnicas
e tecnologias.
CERÂMICA ESTRUTURAL EM PORTUGAL E NO BRASIL: APROXIMAÇÕES
A produção cerâmica é uma atividade que envolve extração, preparação da argila, sua
transformação e, por fim, cozimento ou queima, como é conhecida no Brasil. Portanto, é uma
atividade econômica com alto potencial de impacto para o ambiente: da extração da matéria-
prima, barro vermelho e caulim ou barro branco, à emissão dos mais diversos tipos de
poluentes na atmosfera e aos rios próximos aos barreiros e às fábricas. É um ramo cujo
processo produtivo exige controle – da extração da matéria-prima à venda de tijolos e telhas.
Argila e energia resultam da exploração de recursos naturais esgotáveis e irrecuperáveis.
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Portugal é considerado um país cujo território é rico em matérias-primas para
cerâmica. Elas podem ser encontradas
[...] com mais incidência na zona litoral do país (distritos de Aveiros, Coimbra, Leiria e Lisboa).
No território nacional existem diversas unidades litostratigráficas produtivas de argilas, nas quais
existem várias explorações a céu aberto, destacando-se as existentes na zona de Aveiro, Tomar,
Pontão-Avelar, e na faixa entre Leirias e Torres Vedras. [...] (PORTUGAL SOU EU, 2014: 6)
A produção portuguesa de argilas, comuns e especiais, diminuiu em 2012 de acordo a DGEG
– Direção-Geral de Energia e Geologia. (PORTUGAL SOU EU, 2014: 6)
Os documentos analisados não têm como preocupação a extração de matérias-primas,
pois esta é considerada atividade primária. A argila para a cerâmica estrutural é de domínio
privado; ao passo que o caulim é de domínio público. Os estudos técnicos analisados
destacam esses dois momentos da produção, sobretudo. Em nenhum momento aparece uma
preocupação com a escassez ou possível escassez desse tipo de matéria-prima bem como com
fontes de energia para a queima. Há uma preocupação com o desenvolvimento de técnicas de
extração, preparação e cozedura que visem melhorar a qualidade do produto. Portanto, uma
submissão ao mercado consumidor.
Nesse sentido, a Comissão Europeia e a APICER (Associação Portuguesa da Indústria
Cerâmica e do Vidro) ressaltam a necessidade de a argila, a matéria-prima básica da cerâmica
estrutural, estar preparada ao chegar à planta industrial. Isso pouparia tempo e energia, isto é,
reduziria custos. Isso ajudaria a diminuir a quantidade necessária de matéria-prima,
potencializando os estoques. É o mercado, em última análise, que determina a conduta de
empresa e dos governos. Para que telhas e tijolos mantenham ou melhorem suas
características físicas, químicas e tecnológicas, é fundamental "que as matérias-primas
extraídas sejam sujeitas a processo de beneficiação e tratamento, de forma a manterem as suas
características num estreito intervalo de variação exigido pelo mercado consumidor."
((PORTUGAL SOU EU, 2014: 8)
Embora seja uma atividade industrial bastante antiga, e ter se mecanizado e
automatizado em vários países, ainda há trabalho manual em parte da produção de tijolo. Seu
uso é restrito à confecção de um tipo de tijolo, normalmente empregado em algumas
construções. Trata-se do tijolo de face-à-vista, no Brasil conhecido como tijolo à vista, ou
maciço, que é usado na fachada das casas e na construção de áreas de lazer, churrasqueiras
etc. Em Portugal esse tijolo recebe a designação de "burro" e em muitos casos tem sido
adquirido de empresas cerâmicas espanholas. A moldagem é manual e realizada por um
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trabalhador. Há trabalho manual, pelo que se deduz da leitura dos documentos e visitas feitas
a uma cerâmica e uma empresa de processamento de caulim. Os fornos estão automatizados,
já que não há relato da existência de fornos abóbadas. No entanto, ao sul de Portugal, na
região de Tavira, há casos de cerâmicas que ainda preservam todo o processo manual. Com
relação às demais etapas, os procedimentos estão mecanizados e em várias plantas o processo
é todo automatizado, já que o equipamento mais usado para cozedura é o forno túnel.
Ou seja, em Portugal, em meados da década de 1990, conforme relatam Susana
Corvelo e outros, existem "fábricas com uma componente manual acentuada e com processos
artesanais de fabrico", principalmente "nas fases de conformação, enchimento e decoração
com fraco grau de automatização". Nessa fase da produção, há "mais mão-de-obra
comparativamente a outras áreas da fábrica". (2002: 7) A tendência, porém, concluem os
autores, é a progressiva automatização do processo produtivo de tal maneira a eliminar o uso
de mão de obra, que aumenta o custo e diminui a qualidade, já que nos casos em que ela é
importante não é possível padronizar a confecção do artefato cerâmico.
Como nas cerâmicas brasileiras, e nas localizadas no Paraná particularmente, também
em meados da década de 1990, o trabalho manual continuou existindo e irria conviver com a
produção mecanizada. Em Portugal, a automatização do processo produtivo consolidava-se.
Seguindo a análise do mesmo estudo, entre 1990 e 1993 consumo e produção mantiveram-se
praticamente inalterados, o que significa estagnação econômica. Isso se refletiu também na
quantidade de empresas e de trabalhadores. Três anos depois, o número de empresas chegava
a quase 200 e o de trabalhadores ultrapassava 6200. Nas palavras da referida autora, as cerca
de 196 empresas produtoras de tijolos empregavam 6236 funcionários e representavam 23%
do setor cerâmico e 20% do emprego. (Dados do MTS – Quadro de Pessoal, 1996. Apud
CORVELO, 2002: 13)
Com relação à organização das empresas, Corvelo e outros destacam que no início dos
anos 1990 elas eram, em sua maioria, pequenas e médias. Em 1984 eram 500 cerâmicas; dez
anos depois, 610. Em muitos casos, ainda eram familiares e empregavam 99% da mão de obra
no setor. Depois, ao longo dos anos seguintes, ocorreu uma concentração e as pequenas e
médias empresas foram cedendo lugar para as grandes e pertencentes a multinacionais.
Houve, portanto, uma centralização de capital. Nos últimos anos, algumas cerâmicas
permaneceram como empresas familiares; outras, foram adquiridas por grupos de capital
internacional, especialmente espanhol.
A atividade se transformou bastante da metade da década 1990 até o início desta –
2011. As exigências para a produção, subordinando-se à lógica capitalista e ao mercado,
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padronizaram-se quanto às tecnologias empregadas na extração, na produção e na cozedura,
estágio final que utiliza mais energia. Para isso, desde meados do século XX vêm sendo
utilizados fornos de vários tipos, todos com um objetivo: diminuir o uso do calor e
potencializar o combustível – óleo, gás natural ou biomassa. Algumas condicionantes
tornaram a produção mais onerosa. Segundo a lógica do mercado, é preciso racionalizar
despesas e aumentar a margem de lucro.
Tanto no Brasil quanto em Portugal a cerâmica estrutural era uma atividade
"tradicional" e familiar. No Brasil isso é mais visível. Nos dois países houve, contudo, um
processo de concentração da produção em algumas empresas detentoras de grande capital e,
portanto, com capacidade de investir em e incorporar novos tipos de matérias-primas,
tecnologias e equipamentos para maximizar a extração de matéria-prima, melhorar sua
qualidade e potencializar a energia utilizada para a queima do barro. Em outras palavras,
concentração de capital e subordinação ao mercado, que impôs regras draconianas em todo o
processo de produção. No Brasil, isso também vem ocorrendo desde os anos 1990.
Existe uma preocupação com o ecossistema aquático. Mais uma vez, porém, Comissão
Europeia, governo português e empresários sub-dimensionam o impacto provocado ao
ambiente pela atividade cerâmica. Tais emissões ocorrem sobretudo durante a fabricação dos
produtos cerâmicos. As águas residuais contêm componentes minerais e suas partículas são
insolúveis, o que vai acarretar algum dano aos rios próximos das fábricas. As águas podem
conter matérias inorgânicas, eventualmente matérias orgânicas e metais pesados tóxicos para
humanos. A água utilizada e reutilizada no processo de arrefecimento, por exemplo, pode
conter algum tipo de material poluente ou tóxico para animais ou humanos. (COMISSÃO
EUROPEIA, 2006: 19)
Finalmente, chama a atenção o destaque que é dado pelas autoridades europeias ao uso
de energia. Vários estudos, diretivas e propostas foram feitos nas últimas décadas para tornar
o uso da energia na indústria cerâmica – estrutural incluída – mais racional e diminuir a
dependência dos combustíveis fósseis. O objetivo é claro: tornar a cerâmica estrutural
competitiva, produzindo material com qualidade a custo ínfimo. Na indústria cerâmica e
especialmente no "fabrico de tijolos, a percentagem correspondente a custos energéticos varia
entre 17 e 25%, atingindo, no máximo, 30%." (COMISSÃO EUROPEIA, 2006: 20) Em
síntese, a energia é um item caro na produção e é preciso racionalizar seu uso para maximizar
o lucro e viabilizar o acúmulo de capital.
Na Europa e em Portugal há uma ênfase no desenvolvimento de tecnologias para a
cozedura: fornos que potencializem o uso do calor e economizem energia. (CORVELO, 2002:
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7) Aparentemente, a preocupação é com o ambiente, pois a queima produz poluentes tóxicos.
No entanto, subjaz uma outra: quanto melhor for o aproveitamento do combustível tanto
menor será o custo da produção. Portanto, maior será o lucro. Essa é á lógica que preside o
processo de produção da cerâmica estrutural na Europa, no Brasil e certamente em todas as
outras regiões do mundo onde ela está presente: a do mercado.
METODOLOGIA
Neste trabalho, foram utilizadas fontes escritas e orais. A História Oral, aqui, é
importante e respalda a elaboração de entrevistas e coleta de depoimentos de pessoas
envolvidas inicialmente na atividade cerâmica e em outras atividades que produzem impacto
no ambiente em que elas vivem. Elas permeam a análise, embora não tenham sido citadas
mais longamente por falta de espaço.
As escritas são importantes para o desenvolvimento de qualquer pesquisa. No entanto,
segundo Joan Garrido, “o uso das fontes orais nos permite um aprofundamento da história de
grupos sociais que, por razões diversas, estiveram marginalizados ou quase ausentes das
fontes documentais escritas [...].” (Set. 92/Ago. 93: 93; 43) As entrevistas e os depoimentos
são modos privilegiados para se obter informações de populações que não se expressaram –
ou não conseguiram fazê-lo – por meio de documentos escritos. (MONTENEGRO, 1993: 10)
A História Oral tem um caráter inovador por pelo menos dois motivos. O primeiro são
seus objetos, já que atribui atenção particular aos dominados, àqueles considerados excluídos
da história. Preocupar-se-ia, enfim, com o cotidiano e a vida privada, essenciais para o estudo
da Cultura Material. Em segundo lugar, ela é
inovadora por suas abordagens, que dão preferência a uma ‘história vista de
baixo’, atenta às maneiras de ver e de sentir, e que às estruturas ‘objetivas’ e
às determinações coletivas prefere as visões subjetivas e os percursos
individuais, numa perspectiva decididamente ‘micro-histórica’. (AMADO;
FERREIRA, 1996: 4)
O historiador deve fazer a crítica das fontes documentais. (LE ROY LADURIE, 1997,
p. 12) Nenhum documento é neutro, confiável em absoluto. Os depoimentos e as evidências
orais, como qualquer outra fonte, precisam ser analisados e interpretados historicamente. As
fontes orais devem ser articuladas às outras fontes documentais “tradicionais” do trabalho
historiográfico. Logo, não se pode limitar a um único método e a uma técnica, mas
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complementá-las e torná-las mais complexas e ricas. O historiador deve, enfim, explicitar sua
perspectiva teórico-metodológica da análise histórica e estar aberto ao contato e ao diálogo
com outras disciplinas. (AMADO; FERREIRA, 1996: 22)
Os depoimentos são fontes muito importantes, que, combinadas com documentos
escritos, permitem compor uma [História da] Cultura Material. A fonte oral possibilita
recuperar e dimensionar a experiência de homens e mulheres. Ela permite entrar pelo
cotidiano e pela vida privada, o que os documentos escritos não conseguem, nem têm
interesse em fazer, pois às vezes ficam restritos aos relatos oficiais. Elas são indispensáveis
para se [re]constituir a cultura material e construir uma História Ambiental.
A experiência, para Edward Thompson, é construída no espaço da vida cotidiana,
como uma resposta mental e emocional, de um indivíduo ou grupo social, a acontecimentos
inter-relacionados. Cultura, para Raymond Williams, pode ser entendida como modos de
viver e difere, portanto, de cultura erudita, que pode universalizar o pensamento e ocultar as
diferenças. A experiência permite compreender que a cultura é produto de relações sociais,
sempre conflituosas e tensas. Historicamente, existem culturas. Elas estão presentes na forma
como as pessoas se relacionam entre elas mesmas, com a natureza e com tudo o que
constroem ao longo do tempo. Experiência é um conceito fundamental para o estudo e a
compreensão da cultura material. Por meio dela, o homem transforma o ambiente e constrói
sua vida material e imaterial. (THOMPSON, 1998: 13-24; WILLIAMS, 1976: 17-26; 2007:
171-175).
No que diz respeito à documentação escrita procurou se fazer uma análise que
privilegiou a interpretação, isto é, dissecou-se o texto em suas várias formas. O texto
representa uma visão de mundo de quem o elaborou. Uma fonte documental é indispensável.
Entretanto, é preciso cuidado com as informações nela contidas. (GARRIDO, set. 92/ago. 93:
36; MONTENEGRO, 1993: 10; CARDOSO; VAINFAS, 1997: 375-399; ARÓSTEGUI,
2006: 419-458) A representação, ela mesma, não prescinde de um mundo material. Logo, é
preciso lembrar que representar pressupõe um certo nível de materialidade, sem reduzi-la,
todavia, a um elemento meramente econômico. A representação é uma construção social e,
por conseguinte, histórica. O documento escrito e a fonte oral possibilitaram reconstituir todo
o processo de transformação do barro e a construção do mundo material e imaterial de
mulheres e homens vinculados à cerâmica estrutrual – vermelha – no tanto no Brasil quanto
como Portugal.
RESULTADOS: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES GERAIS
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O processo de produção da cerâmica estrutural – a extração da matéria-prima,
preparação, moldagem, secagem e cozedura –, precisa ser estudado, analisado,
problematizado e entendido historicamente. Com relação à extração de argila, esta talvez
demande maior atenção pois produz um grande impacto ambiental e altera a paisagem e todo
o ecossistema, sobretudo das áreas adjacentes aos rios. No Brasil, essa ação é fiscalizada pelos
órgãos governamentais, mas não se evita a degradação do ambiente. No Paraná, o IAP –
Instituto Ambiental do Paraná – concentra a fiscalização relacionada ao impacto que toda
atividade mineral provoca no solo e nos rios. Há muitas falhas do poder público e é possível
observar vastas áreas com cavas, lagoas, erosão e paisagens devastadas.
Tal questão é tratada de modo secundário nos "estudos" sobre cerâmica estrutural na
Europa por mim consultados. Comissão Europeia, governos português e brasileiro e
empresários propõem extrair e transformar o barro em artefato cerâmico, pois a lógica que
tem determinado os investimentos em tecnologias visa ao mercado consumidor e, portanto,
está subordinada à acumulação de riqueza e à formação de capital.
No Brasil, ao longo do século XX, as cerâmicas foram as responsáveis pela exploração
das jazidas. Por várias décadas oleiros e ceramistas retiraram barro das várzeas e provocaram
danos enormes às margens dos rios próximos às fábricas. É visível a quantidade de cavas ao
longo da margem do rio Paranapanema, por exemplo, na extensão que divide os municípios
de Ourinhos, em São Paulo, e Jacarezinho, no Paraná. Até 1950, a retirada era feita
manualmente, por meio de pás, e transportadas em carroças ou carroções. O impacto precisa
ser visto temporalmente: foram várias décadas de exploração desse recurso natural. Do modo
manual, menos agressivo, ao mecânico, cuja agressividade é muito mais acentuada e
provocou danos irreversíveis ao solo, aos rios e, sem dúvida, mudou radicalmente a paisagem.
Com o processo de mecanização, que se acentuou daquele ano em diante, a extração
passou a ser feita com máquinas retroescavadeiras ou pás carregadeiras hidráulicas,
dependendo da origem da argila, e o material transportado in natura por caminhões e depois
carretas para o depósito, onde permanecia por algum tempo a fim de eliminar as impurezas,
especialmente sua acidez, e ser usada na confecção de telhas e tijolos. Foram milhares de
metros cúbicos extraídos durante esse período, o que devastou as várzeas de alguns rios e
transformou radicalmente a paisagem em toda a região. Gerou-se um enorme passivo
ambiental.
Em Portugal, observa-se que essa extração é feita por empresas "especializadas" nesse
tipo de atividade, sobretudo do caulim. No caso da argila branca ela é vendida já tratada em
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muitos casos para as cerâmicas onde o barro será preparado e misturado a outros componentes
para depois ser extrudado e dar forma a vasos sanitários, cerâmica de revestimento, louças e
faiança.
De outro lado, foi possível estabelecer inicialmente alguns parâmetros para
compreender as peculiaridades da cerâmica vermelha no Brasil. A produção cerâmica
portuguesa se assemelha em algumas de suas fases à cerâmica vermelha no Brasil; a queima
em ambos os países é operada de modo semelhante: alguns procedimentos e tecnologias são
comuns. Os combustíveis, porém, são diferentes. Gás em Portugal, na maioria das fábricas; e
lenha ou cavaco (serragem) nos últimos anos.
Na década de 1990, a cerâmica entrou em declínio no Brasil e um número expressivo
de olarias e cerâmicas fechou. Seja como for, algumas cidades, conhecidas pela grande
produção de telhas e tijolos, tiveram seu parque ceramista reduzido. Muitos proprietários
alegaram que encontraram dificuldades para obter matéria-prima e combustível. Em meados
da década de 1980 ocorreu a definição da política ambiental brasileira, que passou a exigir
estudos de viabilidade econômica para atividades que promovem a extração de mineral,
metálico ou não. A legislação ambiental obrigou oleiros e ceramistas a seguirem as exigências
estabelecidas pela lei. Despreparados, passaram a ter dificuldade para obter e extrair barro.
Durante décadas, retiraram argila das várzeas dos rios sem licença, sem controle, e não
precisaram remunerar o que retiravam. Ao mesmo tempo, isso passou a valer para o
combustível, especialmente a lenha. Houve também outras condicionantes impostas pelo
mercado, como a concentração de capital e o investimento de empresas multinacionais.
Em Portugal houve um aumento da produção entre meados dos anos 1980 e 1990. Na
década seguinte, de certa forma, ela entrou em declínio até culminar com as transformações
que seriam impostas pela formatação da indústria como um todo que vai promover a
constituição da comunidade europeia, processo que se acentuou na primeira década do século
XXI. Nos anos seguintes, observam-se ações – do Estado, dos empresários e mesmo da
Comissão Europeia – que visam à modernização e automatização da produção. As indústrias
precisaram desenvolver padrões de qualidade em seus produtos, assim como adotar
procedimentos que respeitassem o ambiente. Precisaram adaptar-se à legislação ambiental e
às exigências do mercado consumidor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Ao longo da pesquisa foi possível perceber algumas semelhanças entre a atividade
cerâmica estrutural em Portugal e no Brasil e entender historicamente como ambos os países
utilizaram – e utilizam – um recurso mineral não-metálico ao longo da segunda metade do
século XX. Foi possível compreender, também, como se deu e ainda se dá a relação homem e
natureza, elemento fundamental para a História Ambiental.
A História Ambiental perpassa todo o processo de apropriação/reapropriação,
significação/ressignificação e transformação da natureza que resultou na constituição de toda
a vida material. Portanto, uma história que tenha como objeto o ambiente deve destacar que
ele surge da transformação do mundo natural, através da técnica, e a constituição dos artefatos
que circundam e permeam as relações humanas. Em suma, de toda a cultura material.
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